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Esra obrn foi puhlirnda 1Jriginalmt•111e em russo com o t itulo


ESTETIKA SLOVIFSNOVA 7VÓRTCHES1VA.
Copyrixl1t © by Ediçõe.~ /.rlmstvo. Moscou , 1979.
Copyright © 1992 e 2003. Livmria Marfins Ftmll'S Editora Lhla ..
Sâo Pcm/o, para o pre.ve11te ediçiio.

1! edição 1992
s: edição 20 I o

Tr adução
PAULO BEZERRA
..
AC'o mpanhamento editorial
frett• Batista dos Somos
Introdução .... ...... . IX
Revisões gráficas
Marit1 Ltli:.o Pa vrer Prefacio à edição francesa . XIII
lw!te Bu1is r11 dos Somos
Dinar/e Zur:.m1elli da Silvo Arte e responsabilidade . . XXXlll
Produção gráfka
Geraldo Alw's
Pagin ação/Fotolitos O AUTOR E A PERSONAGEM NA AT IVIDADE ESTÉTICA
St11dio J De.H•11volvime11to Editorial

CAPITULO 1 1 O auto r e a perso nagem ... ... . 3


Dados lntemacionail; de Catalogação na Publicaç'lo (CIP) • 1
(Câmara Br..sileira do Livro, SP. Hra.ü) CAPITULO 11 1 A fo rma espacial d a personagem 21
Bakhtin. Mikhail Mikhai lovitch
1. O excedente da visão estética 21
Estétic.a da criação verbal I Mik.hail Mikhailovitch Bakhtin: pre-
fácio à edição francesa Tzvet<in Todorov : introdução e lradução do 2. A imagem externa . . .. . .. . 25
russo Paulo Bezerra . - 5~ ed. - São Paulo : Editora WMF Martins
Fontes. 2010.
3. O vivenciamento das fronteiras externas do ho-
Título original: Estctika Sloviésno va Tvórtchestva
mem . . .. ....... . . .. . 34
ISBN 978-85-7827-260-9 4. A imagem externa da ação 39
1. Literatura - Estética 2. Literat ura - História e critica L Bezerra. 5. O corpo como valor: o corpo interior 44
Paulo. li. Todorov. Tzvctan. HJ. Título
6. O corpo exterior ..... .. . .... . . . . 56
I0-01992 CDD-809
Índices para catálogo sistemático:
7. O todo espacial da personagem e do seu mundo.
1. Literatura : Hi1;t6ria e critica 809 Teoria do "horizonte" e do "ambiente" . ..... . 84

Todos os direitos desta ed;çüo reservados à CAPÍTULO m 1 O todo tempora l da perso nagem (A qu estão do
Editora WMF Martins Fonte.< Lida.

homem interi o r - da alma) .. .. .. . . . . . .... . 91
Rua Conselheiro Ramalho. 3.IO 01325-000 Stio Paulo SP Brasil
Te/ . (li) 3293.8150 Fax(//) 3101.1042 1. A personagem e sua integridade na obra de arte 91
e·mail: infu @ u·mfmartin~fo11tes .com .br http://www.wmfnwrtinsfvmes .com .br
2. A relação volitivo-emocional com a determinida-
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OS ESTUDOS LITERÁRIOS HOJE


(Resposta a uma pe rgunta da revista Novi Mir)

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A redação da revista Novi Mir me enviou uma pergunta sobre a mi-
nha avaliação do estado dos estudos literários* em nossos dias.
É claro que uma resposta categórica a semelhante pergunta é difícil.
Quando avaliam o seu dia-a-dia, a sua atualidade, as pessoas tendem
li
sempre a cometer erros (nesse ou naquele sentido) . E isso deve ser le- li
vado em conta. Ainda assim vou tentar responder. '1

Os nossos estudos literários dispõem de grandes potencialidades:


temos muitos estudiosos da literatura sérios e talentosos, inclusive jovens, \1

temos elevadas tradições científicas elaboradas tanto no passado (Po- li


]I
tiebnyá, Viesselovski) quanto na época soviética (Tiniânov, Tomachevski,
1
Eikhembaum, Gukovski e outros); existem, é claro, as condições ex-
1

ternas necessárias ao seu desenvolvimento (institutos de pesquisa, ca-


li
deiras da área, financiamento, possibilidades editoriais, etc.). Contudo,
11

a despeito de tudo isso, os nossos estudos literários dos últimos anos


(em essência, quase do último decênio), a meu ver, não realizam em li-
\1

nhas gerais essas possibilidades e não atendem às demandas que temos

..,
• Literaturoviédenie, termo empregado por Bakhtin, é o mais usual na exegese literária
russa e compreende história da literatura, teoria da literatura e crítica literária. Na fal-
ta de um similar em porcuguês, optamos pela categoria abrangente "escudos literá-
rios". (N. do T.)
360 J MIKHAIL BAKHT IN ESTl'.TI CA DA C RIAÇ ÃO VE RBAL J 361
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o direito de apresentar a eles. Não há uma colocação ousada das ques- agem sobre a cultura no seu todo e só através dela e juntamente com
tões gerais, não há descobertas de novos campos ou fenômenos parti- ela influenciam a literatura. Entre nós, durante um período bastante
culares significativos no vasto mundo da literatura, não há uma luta longo deu-se atenção particular à especificidade da literatura. Na época
verdadeira e sadia entre correntes científicas; domina um certo temor isso talvez tenha sido necessário e útil. Cabe dizer que uma especificação
de risco investigatório, um temor de levantar hipóteses. No fundo, os estreita é estranha às melhores tradições da nossa ciência. Lembremos
estudos literários ainda são uma ciência jovem, ainda não possuem mé- dos vastíssimos horiwntes culturais, das pesquisas de Potiebnyá e par-
todos elaborados e verificados na experiência como existem nas ciên- ticularmente de Viesselovski. Em função do envolvimento com especifi-
cias naturais; por isso a ausência de uma luta entre correntes e o temor cações, ignoravam-se as questões da relação mútua e da interdependên-
de levantar hipóteses ousadas acarretam necessariamente o domínio de cia entre os diversos campos da cultura; esquecia-se freqüentemente
truísmos e chavões; destes, lamentavelmente, não há carência entre nós. que as fronteiras desses campos não são absolutas, que variam em dife-
A meu ver, é essa a índole geral dos estudos literários nos nossos dias. rentes épocas; não se levava em conta que a vida mais intensa e produ-
Contudo, nenhuma caracterização geral é plenamente justa. Também tiva da cultura transcorre precisamente nas fronteiras de campos parti-
em nossos dias se publicam, evidentemente, livros razo;lveis e úteis (par- culares dela e não onde e quando essas fronteiras se fecham em sua espe-
ticularmente de história da literatura), aparecem artigos interessantes e cificidade. Nossos trabalhos de história e teoria da literatura costumam
profundos, por último, há grandes fenômenos aos quais a minha carac- caracterizar as épocas a que se referem os fenômenos literários estudados,
terização absolutamente não se estende. Tenho em vista o livro de N. mas, na maioria dos casos, essas caracterizações em nada diferem daque-
Conrad, O Ocidente e o Oriente, os livros de D. Likhatchov, A poética da las apresentadas em história geral, sem a análise diferenciada dos cam-
literatura russa antiga e Trabalhos sobre sistemas semi6ticos, em quatro pos da cultura e sua interação com a literatura. Ademais, ainda não se
volumes (de uma corrente de jovens pesquisadores liderados por Yuri elaborou a metodologia de tais análises. O chamado processo literário
M. Locman) . São fenômenos sumamente agradáveis dos últimos anos. de uma época, estudado isoladamente de uma análise profunda da cul-
Nesta palestra calvez eu ainda voice a comentar esses trabalhos. tura, reduz-se a uma luta superficial entre as correntes literárias e, para
Quanto à minha opinião sobre as tarefas que se colocam diante a modernidade (particularmente para o século XIX}, em essência, re-
dos escudos literários em primeiro lugar, aqui eu me detenho só em duz-se ao sensacionalismo das revistas e jornais, que não exerce influên-
duas, vinculadas apenas à história da literatura das épocas passadas, e cia de peso sobre a grande, a autêntica literatura de uma época. As cor-
ainda por cima da forma mais genérica. Não vou fazer nenhuma refe- rentes poderosas e profundas da cultura (particularmente as de baixo,
rência ao estudo da literatura atual e da crítica literária, embora esteja populares}, que efetivamente determinam a criação dos escritores, con-
justamente aí o maior número de questões importantes e de primeira ti nuam aguardando descobertas e às vezes permanecem totalmente
ordem. As duas questões que pretendo abordar foram escolhidas porque, desconhecidas dos pesquisadores. Sob semelhante enfoque é impossível
a meu ver, já estão amadurecidas e começou em torno delas um traba- penetrar nas profundidades das grandes obras, e a própria literatura
lho eficaz que precisa ser continuado. começa a parecer algo pequeno e assunto desprovido de seriedade.
Antes de mais nada, os estudos literários devem estabelecer o vín- A tarefa a que estou me referindo e os problemas a ela vinculados
culo mais estreito com a história da cultura. A literatura é parte insepará- (o problema das fronteiras de uma época como unidade cultural, o pro-
vel da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda blema da tipologia das culturas, etc.) foram colocados com muita acuida-
a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do restante da cultura e, de na discussão da literatura do barroco nos países eslavos e particular-
como se faz constantemente, ligá-la imediatamente a fato res socioeco- mente na discussão que ora prossegue sobre o Renascimento e o Hu-
nômicos, por assim dizer, passando por cima da cultura. Esses fatores manismo nos países do Oriente; aqui se revelou com particular nitidez
362 I MIKHAIL BAKHTIN EST~TICA DA CRIAÇÃO VERBAL 1 363

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a necessidade de um estudo mais profundo do vínculo indissolúvel da no grande tempo. Entretanto, uma obra não pode viver nos séculos fu-
literatura com a cultura de uma época. turos se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados. Se ela nas-
Os notáveis trabalhos sobre literatura que mencionei - Conrad, cesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não desse
Likhatchov, Lotman e sua escola-, a despeito de toda a diferença de me- continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substan-
todologia, têm o comportamento idêntico de não separar a literatura cial, não poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao pre-
da cultura, procurando interpretar os fenômenos literários na unidade sente morre juntamente com ele.
diferenciada de toda a cultura de uma época. Aqui cabe salientar que a A vida das grandes obras nas épocas futuras e distantes, como já
literatura é um fenômeno complexo e polifacético demais, e os estudos li- afirmei, parece um paradoxo. No processo de sua vida post mortem elas
terários ainda são excessivamente jovens para que se possa falar de um se enriquecem com novos significados, novos sentidos; é como se essas
"método salvador único" nos estudos literários. Os diferentes enfoques obras superassem o que foram na época da sua criação. Podemos d izer
se justificam e até são absolutamente necessários contanto que sejam que nem o próprio Shakespeare nem os seus contemporâneos conheciam
sérios e descubram alguma coisa nova no fenômeno literário estudado, o "grande Shakespeare" que hoje conhecemos. De maneira nenhuma é
que contribuam para uma compreensão mais profunda cfesse fenômeno. possível meter à força o nosso Shakespeare na época elizabetana. Ou-
Se não se pode estudar a literatura isolada de toda a cultura de uma trora Bielinski já dizia que cada época sempre descobre algo de novo
época, é ainda mais nocivo fechar o fenômeno literário apenas na época nas grandes obras do passado. Pois bem, introduzimos nas obras de
de sua criação, em sua chamada atualidade. Habitualmente procuramos Shakespeare coisas inventadas que não havia nelas, modernizamos e de-
explicar um escritor e suas obras precisamente a partir de sua atualidade turpamos o próprio? É claro que houve e haverá modernizações e detur-
e do passado imediato (habitualmente no âmbito de uma época como pações. Contudo, não foi à custa delas que Shakespeare cresceu. Ele
a entendemos) . Tememos nos afastar no tempo para longe do fenômeno cresceu à custa daquilo que realmente houve e há em suas obras, mas
em estudo. Entretanto, uma obra remonta com suas raízes a um passado que nem ele nem os seus contemporâneos foram capazes de perceber
distante. As grandes obras da literatura são preparadas por séculos; na conscientemente e avaliar no contexto da cultura de sua época.
época de sua criação colhem-se apenas os frutos maduros do longo e Os fenômenos semânticos podem existir em forma latente, em for-
complexo processo de amadurecimento. Quando tentamos interpretar ma potencial, e revelar-se apenas nos contextos dos sentidos culturais
e explicar uma obra apenas a partir das condições de sua época, apenas das épocas posteriores favo ráveis a tal descoberta. Os tesouros dos senti-
das condições da época mais próxima, nunca penetramos nas profun- dos, introd uzidos por Shakespeare em sua obra, foram criados e reunidos
dezas dos seus sentidos. O fechamento em uma época não permite com- por séculos e até milênios: estavam escondidos na linguagem, e não só
preender a futura vida da obra nos séculos subseqüentes; essa vida se na literária como também em camadas da linguagem popular q ue an-
apresenta como um paradoxo qualquer. As obras dissolvem as frontei- tes de Shakespeare ainda não haviam penetrado na literatura, nos di-
ras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e além disso versos gêneros de formas de comunicação verbalizada, nas formas da
levam freqüentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais in- poderosa cultura popular (predominantemente nas formas carnavales-
tensiva e plena que em sua atualidade. Em termos mais simplificados e cas) que se formaram ao longo de milênios, nos gêneros do espetáculo
grosseiros: se o significado de alguma obra se reduz, por exemplo, ao teatral (dos mistérios, farsas,. etc.), nos enredos que remontam com suas
seu papel na luta contra o feudalismo (é o que se costuma fazer na es- raízes à Antiguidade pré-histórica e, por último, nas formas de pensa-
cola secundária, entre nós), semelhante obra deve perder inteiramente mento. Shakespeare, como q ualquer artista, não construía suas obras a
o seu significado quando o feudalismo e os seus remanescentes deixam partir de elementos mortos nem de tijolos mas de formas já saturadas, já
a vida, mas amiúde a obra ainda aumenta o seu significado, isto é, entra plenas de sentido. Aliás, os tijolos também possuem uma determinada
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ES TÉTICA DA CRI AÇÃO VERBAL 1 365
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forma espacial e, por conseguinte, expressam alguma coisa nas mãos de lizadas ao longo de toda a vida histórica de uma dada cultura. A pró-
um construtor46 •
pria Antiguidade desconhecia aquela Antiguidade que h oje conhecemos.
Os gêneros têm um significado particularmente importante. Ao lon- Na escola havia uma brincadeira: os gregos antigos desconheciam o mais
go de séculos de sua vida, os gêneros (da literatura e do discurso) acumu- importante sobre si mesmos, não sabiam que eram gregos antigos, e as-
lam formas de visão e assimilação de determinados aspectos do mundo. sim nunca se chamaram. Entretanto, essa distância no tempo, que trans-
Para o escritor-artesão, os gêneros servem como chavão externo, já o formou os gregos em gregos antigos, tinha realmente um imenso signifi-
grande artista desperta neles as potencialidades de sentido jacentes. cado transformador: era p lena de descobertas, na própria Antiguidade,
Shakespeare usou e inseriu em suas obras os imensos tesouros dos sen- de novos e novos valores semânticos que os gregos efetivamente desco-
tidos potenciais que em sua época não puderam ser descobertos e cons- nheciam, ainda que o criassem. É preciso dizer que até o próprio Spengler,
ciencizados em toda a sua plenitude. O próprio autor e os seus contem- em sua magnífica análise da cultura antiga, soube descobrir nela novas
porâneos vêem, conscientizam e avaliam antes de tudo aquilo que está profundidades semânticas; é verdade que ele inventou alguma coisa
mais próximo do seu dia de hoje. O autor é um prisioneiro de sua épo- para ela com o fito de lhe dar maior arredondamento e acabamento, mas
ca, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libert;m dessa prisão, e ainda assim ele também tomou parte da grande causa de libertar a An-
os estudos literários têm a incumbência de ajudá-lo nessa libertação. tiguidade do cativeiro do tempo.
Do que acabamos de afirmar não se segue, absolutamente, que se Devemos salientar que aqui estamos falando de novas profundida-
possa ignorar inteiramente a época contemporânea do escritor, que a des do sentido, jacentes no passado cultural das épocas, e não de am-
sua obra não possa ter irradiações no passado e projeções no futuro. A pliação dos nossos conhecimentos factuais, materiais sobre elas, conti-
atualidade mantém o seu significado imenso e em muitos sentidos de- nuamente obtidos por escavações arqueológicas, pelas descobertas de
cisivo. A análise científica pode partir apenas dela e em seu subseqüente novos textos, pelo aperfeiçoamento da sua decodificação, pelas recons-
desenvolvimento deve verificar-se nela. Como já dissemos, uma obra de truções, etc. Aqui se obtêm novos portadores materiais do sentido, por
literatura se revela antes de tudo na unidade diferenciada da cultura da assim dizer, corpos do sentido. Entretanto, entre o corpo e o sentido não
época de sua criação, mas não se pode fechá-la nessa época: sua pleni- se pode traçar uma fronteira absoluta no campo da cultura47 ; a cultura
tude só se revela no grande tempo.
não é criada a partir de elementos mortos, pois, como já dissemos, até
Contudo, a cultura de uma época, por mais distante que esta este- um simples tijolo traduz alguma coisa com sua forma nas mãos do cons-
ja de nós no tempo, também não pode ser fechada em si mesma como t rutor. Por isso, as novas descobertas de portadores materiais do sentido
algo pronto, plenamente acabado, que se foi de uma vez por todas, introduzem corretivos nas nossas co ncepções de sentido e podem até
morto. As idéias de Spengler acerca dos mundos ·c ulturais fechados e exigir a sua reconstrução substancial.
acabados até hoje exercem grande influência sobre os historiadores e os Existe uma concepção muito vivaz, embora unilateral e por isso
estudiosos de literatura. Entretanto, essas idéias necessitam de correti- falsa, segundo a qual, para compreender melhor a cultura do outro, é
vos substanciais. Spengler concebia a cultura de uma época como um preciso transferir-se para ela e, depois de ter esquecido a sua, olhar para
círculo fechado. Mas a unidade de uma cultura é uma unidade aberta. o mundo com os olhos da cultura do outro. Como já afirmei, seme-
Cada unidade dessa natureza (por exemplo, a Antiguidade), ades- lhante concepção é unilateral. É claro que certa compenetração da cul-
peito de toda a sua singularidade, integra o processo único (embora não tura do outro, a possibilidade de olhar para o mundo com os olhos dela
linear) de formação da cultura da humanidade. Em cada cultura do é um elemento indispensável no processo de sua compreensão; entre-
passado estão sedimentadas as imensas possibilidades semânticas, que tanto, se a compreensão se esgotasse apenas nesse momento, ela seria uma
ficaram à margem das descobertas, não foram conscientizadas nem uti- simples dublagem e não traria consigo nada de novo e enriquecedor. A
366 j MIKHAIL BAKllTIN

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compreensão criadora não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo,
à sua cultura, e nada esquece. A grande causa para a compreensão é a
distância do indivíduo que compreende - no tempo, no espaço, na cul- APONTAM ENTOS D E 1970-1971
tura - em relação àquilo que ele pretende compreender de forma cria-
tiva. Isso porque o próprio homem não consegue perceber de verdade
e assimilar integralmente nem a sua própria imagem externa, nenhum
espelho ou foto o ajudarão; sua a~têntica imagem externa pode ser vista
e entendida apenas por outras pessoas, graças à distância espacial e ao
faro de serem outras.
No campo da cultura, a distância é a alavanca mais poderosa da
compreensão. A cultura do outro só se revela com plenitude e profun-
didade (mas não em toda a plenitude, porque virão outras culturas que
a verão e compreenderão ainda mais) aos olho~ de outra cultura. Um
sentido só revela as suas profundidades encontrando-se e contactando
com outro, com o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de
A ironia entrou em rodas as línguas da Idade Moderna (particular-
didlogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos,
mente na francesa), entrou em rodas as palavras e formas (particularmen-
dessas culturas. Colocamos para a cultura do outro novas questões que
te as sintáticas, a ironia, por exemplo, destruiu a estorvadora periodici-
ela mesma não se colocava; nela procuramos resposta a essas questões,
dade "empolad a" do discurso). A ironia existe em toda parte - da iro-
e a cultura do outro nos responde, revelando-nos seus novos aspectos,
nia mínima, imperceptível, à ruidosa, limítrofe com o riso. O homem
novas profundidades do sentido. Sem levantar nossas questões não po-
da Idade Moderna não proclama mas fala, isto é, fala por ressalvas. Todos
demos compreender nada do outro de modo criativo (é claro, desde
os gêneros proclamadores se conservam principalmente como partes
que se trate de questões sérias, autênticas). Nesse encontro d ialógico
paródicas ou semiparódicas da construção do romance. A linguagem
de duas culturas elas não se fundem nem se confundem; cada uma man-
de Púchkin é precisamente uma linguagem traspassada de ironia (em di-
tém a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem
mutuamente. ferentes graus), a linguagem de ressalvas da Idade Moderna.
Os sujeitos do discurso dos gêneros elevados e proclamadores - os
Quanto à minha avaliação das futuras perspectivas de desenvolvi-
sacerdotes, os profetas, os pregadores, os juízes, os chefes, os pais patriar-
mento dos nossos estudos literários, acho que elas são bastante boas,
cais, etc. - se foram da vida. Todos eles foram substituídos pelo escritor,
uma vez que dispomos de enormes potencialidades. Só nos falta a ousa-
simplesmente pelo escritor, que se tornou herdeiro dos seus estilos. Ele
dia científica, investigatória, sem a qual não conseguiremos nos colo-
ou os estiliza (isco é, assume a pose de profeta, de pregador, etc.) ou os
car nas alturas nem descer às profundezas.
parodia (em diferentes graus) . Ele ainda precisa elaborar o seu estilo, o es-
tilo de escritor. Para o aedo, o rapsodo, o trágico (o sacerdote de D io-
niso), até para o poeta cortesão da Idade Moderna, esse problema ainda
não existia. Ele dispunha até da situação: dos fes tejos de diferentes mo-
dalidades, dos cultos, dos banquetes. Até o discurso pré-romanesco ti-
nha uma situação - festejos de tipo carnavalesco. Já o escritor carece de
estilo e situação. Ocorreu a plena secularização da literatura. O romance,

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