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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

CARLA PIRES MARTINS

CRAVO DO CANAVIAL: „ENTRE‟ O


MARACATU RURAL E A MÍMESIS
CORPÓREA – A CONSTRUÇÃO DE UMA
DRAMATURGIA CÊNICA

NATAL/RN
2013
CARLA PIRES MARTINS

CRAVO DO CANAVIAL:

„Entre‟ o Maracatu Rural e a Mímesis Corpórea –


A Construção de uma Dramaturgia Cênica

Dissertação apresentada em
cumprimento às exigências legais para
obtenção do título de mestre pelo
PPGArC.

Área de Concentração: Pedagogias da


Cena: Corpo e Processos de Criação.

Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos


Haderchpek

Natal – RN

2013

ix
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Martins, Carla Pires.


Cravo do Canavial : „entre‟ o maracatu rural e a mímesis corpórea : a
construção de uma dramaturgia cênica / Carla Pires Martins. – 2013.
000 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas, 2013.
Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.

1. Teatro. 2. Maracatu. 3. Mimesis. 4.Atores. I. Haderchpek, Robson


Carlos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 792

x
À Matriarca dos Pires, a minha voinha,
Dona Edna.

xi
AGRADECIMENTOS:

Aos artistas e técnicos que contribuíram na criação do espetáculo Cravo do Canavial, desde a
primeira fase do processo prático. Em especial aos atores: Aldemar Pereira, Andressa Hazboun,
Potyra Pinheiro,Thais Schmidt e Vânia Maria Bertoldo que desbravaram junto comigo esse canavial
de sonhos. E aos cúmplices: Irapuan Junior, Gustavo Henrique, Marco França, Rogério Ferraz,
Ronaldo Costa, Pablo Pinheiro, Allan Marlon, Paul Moraes e Leila Bezerra.

Aos Brincadores do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, que nos acolheram, compartilhando
generosamente suas memórias para que pudéssemos nos alimentar delas. Sem vocês - Zé de Carlos,
Dona Maria de Lourdes, Seu Dedé, Seu Severino, Dona Biu, Seu Zé Pequeno, Dona Joaninha (in
memória) - o nosso brinquedo não existiria! À AMUNAM (Associação de Mulheres de Nazaré da
Mata), que tanto nos inspirou com tamanho comprometimento às causas femininas.

Ao Lume, especificamente aos atores-pesquisadores Jesser de Souza, Renato Ferracini e Raquel


Scotti Hirson. Raquel, obrigada pela assessoria técnica, por ter participado da banca de qualificação
desta pesquisa e, principalmente, por ter acreditado em mim. Está registrado na minha „memória de
pele‟ o seu olhar atento e a sua generosidade.

Ao professor orientador dessa pesquisa, Robson Carlos Haderchpek, pela confiança, paciência,
cumplicidade e parceria em todos os momentos do processo.

Aos professores Karenine Porpino, Larissa Tibúrcio e Vera Rocha por terem contribuído, através do
conteúdo de suas disciplinas com o aporte teórico dessa pesquisa e por serem educadoras que
realmente se preocupam com o aluno dentro da Instituição. E a Teodora Alves pelo apoio e pelos
comentários assertivos na minha banca de qualificação.

Aos meus Colegas de Turma (2011).

À Família Pires e a Martins.

Ao Universo que conspirou.


E sempre conspira...

xii
RESUMO

Essa dissertação se deu a partir de uma investigação sobre a aplicação da Técnica da Mímesis
Corpórea, sistematizada pelo Lume, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Unicamp, associada à matriz do Maracatu Rural, especificamente do grupo Cambinda
Brasileira (Nazaré da Mata – PE), a fim de fomentar o treinamento e o trabalho de
composição do ator. A partir de uma metodologia empírica, que se utilizou da análise de
experiências práticas – processo de aplicação da Mimese Corpórea e montagem de espetáculo
teatral – associada à pesquisa bibliográfica, pude investigar caminhos de possível
resignificação desta Técnica, utilizando elementos referentes ao ritual e ao jogo presentes na
manifestação popular em questão e experimentar através da concepção do espetáculo Cravo
do Canavial tais caminhos.

PALAVRAS-CHAVES: TEATRO, MÍMESIS CORPÓREA, MARACATU RURAL, ATOR, COMPOSIÇÃO.

ABSTRACT

The present dissertation has begun with an investigation about the application of the
Technique of the Corporeal Mimesis, systematized by the Lume, Interdisciplinary Center for
Theatrical Research of Unicamp, associated with the matrix of Rural Maracatu, specifically of
the group Cambinda Brasileira (Nazaré da Mata – PE), with the purpose of promote the
training and the composition work of the actor. Starting from an empirical methodology,
which used the analysis of practical experiences – the application process of the Corporeal
Mimesis and the construction of a theater play – associated with bibliographical research, I
could investigate possible ways of re-signification of this technique, using components related
to the ritual and the game present in the popular event in question, and experience such paths
through the conception of the play Cravo do Canavial.

KEY-WORDS: THEATER, CORPOREAL MIMESIS, RURAL MARACATU, ACTOR, COMPOSITION.

xiii
SUMÁRIO

ÍNDICE FOTOGRÁFICO XVI


INTRODUÇÃO: COMPARTILHANDO O SENSÍVEL 01

CAPÍTULO 1.
DO MARACATU RURAL E DO TREINAMENTO DO ATOR

1.1. AS CORES DA JUREMA SAGRADA E A RELAÇÃO DAS „FIGURAS‟


COM O JOGO CÊNICO 14
1.2. „ENTRE‟ O CORPO DO BRINCADOR POPULAR E O CORPO DO
ATOR-PESQUISADOR: „SOMBRAS‟ DE UM CORPO MEDIEVAL 25
1.3. „ENTRE‟ O „ESQUENTAMENTO‟ E O TREINAMENTO PRÉ-EXPRESSIVO 38
1.4. A „POESIA DO ATOR‟ E AS ETAPAS DA MÍMESIS CORPÓREA 46

CAPÍTULO 2.
AS MATRIZES DE UM COTIDIANO „EXTRAORDINÁRIO‟:
„ENTRE‟ A MÍMESIS CORPÓREA E O PROCESSO COM OS ATORES
EM CRAVO DO CANAVIAL

2.1. ABRINDO O TERREIRO DA BRINCADEIRA: „MAIS DO QUE DEUS NINGUÉM‟


52
2.1.1 „Esquentando‟ o Terreiro: O Pré-Expressivo do Canavial 54

2.2. EM BUSCA DAS EQUIVALÊNCIAS 65


2.2.1. Encontro com a Matriz Dama do Paço 70
2.2.2. Encontro com a Matriz Burrinha 74
2.2.3. Encontro com a Matriz Catita 77
2.2.4. Encontro com a Matriz Mateus 78
2.2.5. Encontro com a Matriz Caboclo de Lança 79

2.3. DANÇANDO AS MATRIZES NUM TERREIRO IMPROVISADO 80


2.4. A ESTÉTICA DE UM COTIDIANO „EXTRAORDINÁRIO‟ 84
xiv
CAPÍTULO 3.
CRAVO DO CANAVIAL: CONSTRUINDO UMA DRAMATURGIA „DE‟
MEMÓRIAS
92

3.1. „A MULHER DESSA HISTÓRIA‟ 100


3.1.1. A Matriarca Dona Joana 114
3.1.2. O Pai 117

3.2. MEMÓRIAS DE NAZARÉ DA MATA:


AS HISTÓRIAS QUE OS BRINCADORES CONTAM 122
3.2.1. O Vendedor de Figuras 127

3.3. DE MATRIZES MIMETIZADAS A PERSONAGENS


3.3.1. A Curandeira de Pouca Fé 130
3.3.2. As Três Figuras Míticas 133
3.3.3. Os Bóias-Frias 137

3.4. GRITO DO CONTEMPORÂNEO: A OFÉLIA DO MANGUE 139


E OS BRINCANTES-NARRADORES

CONSIDERAÇÕES FINAIS 144


BIBLIOGRAFIA 149
ANEXOS 155

xv
ÍNDICE FOTOGRÁFICO

FIGURA 1 DETALHE DAS MÃOS DA PERSONAGEM DONA JOANA SEGURANDO O CRAVO, NO


ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL. XXI

FIGURA 2 DETALHE DOS MEUS PÉS E DOS DE UM CABOCLO DE LANÇA DO MARACATU RURAL
CAMBINDA BRASILEIRA, REGISTRADO EM FEVEREIRO DE 2007. 14

FIGURA 3 CENA DA PERSONAGEM DONA JOANA NA JANELA DE SUA CASA. ALUSÃO A DONA
JOANINHA DO CUMBE. 176

FIGURA 4 À ESQUERDA, CABOCLO DE LANÇA DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA


E À DIREITA, A PERSONAGEM MULHER, VESTIDA DE CABOCLA DE LANÇA. 198

FIGURA 5 À ESQUERDA, CALUNGA DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA E À


DIREITA, CALUNGA DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL 19

FIGURA 6 DETALHE DAS MÃOS DA PERSONAGEM MULHER NA CENA DAS TRÊS FIGURAS
MÍTICAS, DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL. 24

FIGURA 7 DA ESQUERDA PARA DIREITA: KAZUO OHNO (PERSONAGEM „LA ARGENTINA‟); SEU
ZÉ PEQUENO, CABOCLO DE LANÇA DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA; E A
ATRIZ VÂNIA BERTOLDO, EM PROCESSO. 25

FIGURA 8 CENAS DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL. 26

FIGURA 9 „FIGURA‟ DO MATEUS DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA, VESTIDO


PELO BRINCADOR SEU SEVERINO, EM FEVEREIRO DE 2011. 27

FIGURA 10 DA ESQUERDA PARA DIREITA, CABOCLO DE LANÇA, CABOCLO MIRIM E BAIANA


DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA, EM FEVEREIRO DE 2011. 31

FIGURA 11 CABOCLO DE LANÇA, NA ESTRADA DO ENGENHO DO CUMBE, EM NAZARÉ DA


MATA, INTERIOR DE PERNAMBUCO. 51

FIGURA 12 SEQUÊNCIA DE CINCO FIGURAS (ESQ. PARA DIR.): BURRINHA, CATITA, DAMA DO
PAÇO, CABOCLO DE LANÇA E MATEUS. MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA. 52

xvi
FIGURA 13 ATOR RODRIGO SEVERO EM PROCESSO. PRIMEIRA ETAPA DO PROCESSO PRÁTICO,
REFERENTE A APLICAÇÃO DA DINÂMICA „BAIXIO DAS BESTAS‟. 63

FIGURA 14 ATORES EM TREINAMENTO MUSICAL, MINISTRADO PELO MÚSICO MARCO FRANÇA. 64

FIGURA 15 PRIMEIRA ETAPA DE APLICAÇÃO DA MÍMESIS CORPÓREA ,REFERENTE À


OBSERVAÇÃO. ATORES EM PROCESSO. 68

FIGURA 16 FOTOGRAFIA DA ESQUERDA: ATRIZES CODIFICANDO AÇÕES DA MATRIZ DAMA DO


PAÇO. FOTOGRAFIA DA DIREITA: ATORES CODIFICANDO AÇÕES DA MATRIZ MATEUS. 68

FIGURA 17 SEQUÊNCIA DE QUATRO FOTOGRAFIAS: TRABALHO COM VARIAÇÃO DE


FISICIDADES. DANÇA DAS MATRIZES. 70

FIGURA 18 À ESQUERDA: DONA MARIA DE LOURDES VESTIDA DE DAMA DO PAÇO E A


DIREITA: ATRIZ VÂNIA BERTOLDO NO PROCESSO DA MÍMESIS CORPÓREA. 71

FIGURA 19 IDEM 72

FIGURA 20 À ESQUERDA, DONA MARIA DE LOURDES VESTIDA DE DAMA DO PAÇO E A DIREITA,


ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN EM PROCESSO DE APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA MÍMESIS
CORPÓREA. 73

FIGURA 21 SEQUÊNCIA DE DUAS FOTOGRAFIAS DA ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN,


EXECUTANDO A MATRIZ DAMA DO PAÇO. 74

FIGURA 22 À ESQUERDA, SEU DEDÉ VESTINDO A FIGURA DA BURRINHA; E À DIREITA, ATRIZ


POTYRA PINHEIRO, EM PROCESSO DE APLICAÇÃO DA MÍMESIS CORPÓREA. 76

FIGURA 23 IDEM 76

FIGURA 24 „FIGURA‟ CATITA DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA, REGISTRADA


EM FEVEREIRO DE 2011. 77

FIGURA 25 DA ESQUERDA PARA DIREITA: ATORES ALDEMAR PEREIRA, JOSÉ MARIA, TATIANE
TENÓRIO MIMETIZANDO MATRIZ CATITA (REFERENTE A FOTOGRAFIA ANTERIOR). 78

FIGURA 26 À ESQUERDA, „FIGURA‟ MATEUS, VESTIDA PELO BRINCADOR SEU SEVERINO; À


DIREITA, ATOR RODRIGO SEVERO EM PROCESSO DA MÍMESIS CORPÓREA. 79
xvii
FIGURA 27 APRESENTAÇÃO DE FINALIZAÇÃO DA PRIMEIRA ETAPA DO PROCESSO COM OS
ATORES, EM DEZEMBRO DE 2011. 80

FIGURA 28 IDEM. 83

FIGURA 29 PESQUISA DE CAMPO PARA MONTAGEM DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL.


ATORES (POTYRA PINHEIRO, THAIS SCHMIDT, ALDEMAR PEREIRA, ANDRESSA HAZBOUN
E VÂNIA BERTOLDO) E CABOCLOS DE LANÇA DO MARACATU RURAL CAMBINDA
BRASILEIRA, EM MAIO DE 2012. 84

FIGURA 30 EQUIPE DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL NO TERREIRO DO


MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA (ENGENHO DO CUMBE - NAZARÉ DA MATA) 85

FIGURA 31 FOTOGRAFIA DA ESQUERDA: ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN EM PESQUISA DE


CAMPO, EXPERIMENTANDO MATRIZ DAMA DO PAÇO NA JANELA DA CASA DE DONA
JOANINHA DO CUMBE. FOTOGRAFIA DA DIREITA, ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN EM
APRESENTAÇÃO DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL, CENA DA PERSONAGEM DONA
JOANA. APRESENTAÇÃO REALIZADA NO ENGENHO DO CUMBE, EM OUTUBRO DE 2012. 87

FIGURA 32 ATOR ALDEMAR PEREIRA EM PESQUISA DE CAMPO, VESTINDO INDUMENTÁRIA DO


CABOCLO DE LANÇA, EM MAIO DE 2012. 88

FIGURA 33 ATOR ALDEMAR PEREIRA E ALGUNS DOS BRINCADORES DO CAMBINDA


BRASILEIRA, NO ATELIÊ DO MARACATU, EM NAZARÉ DA MATA, EM MAIO DE 2012. 89

FIGURA 34 CENA DO ENCONTRO DA MULHER COM OS BÓIAS-FRIAS NO ESPETÁCULO CRAVO


DO CANAVIAL. 90

FIGURA 35 ATRIZ POTYRA PINHEIRO EM CENA DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL. 92

FIGURA 36 PERSONAGEM DONA JOANA SEGURANDO O CRAVO. 99

FIGURA 37. PERSONAGEM MULHER CABOCLA DE LANÇA, COM CRAVO NA BOCA. 101

FIGURA 38 DA ESQUERDA PARA DIREITA, PERSONAGEM DA MULHER COM SAIA DE METAL E


MULHER APRISIONADA PELO OPRESSOR. DETALHE MÃOS DO PAI, COM LUVA PLÁSTICA 104

FIGURA 39 FOTOGRAFIA DA ESQUERDA: PERSONAGEM MULHER COM ATADURAS, NA CENA


DA CURANDEIRA DE POUCA FÉ. FOTOGRAFIA DA DIREITA: PERSONAGEM MULHER E
xviii
CURANDEIRA DE POUCA FÉ, APRESENTAÇÃO NO ENGENHO DO CUMBE, EM OUTUBRO DE
2012. 105

FIGURA 40 PERSONAGEM MULHER, VESTIDA PELA ATRIZ VÂNIA BERTOLDO. 106

FIGURA 41 PERSONAGEM MULHER, VESTIDA POR ANDRESSA HAZBOUN, CENA DOS „PÉS
VOLTADOS PARA TRÁS‟. 107

FIGURA 42 CENA DO VENDEDOR DE FIGURAS. 108

FIGURA 43 SEQUÊNCIA DE DUAS FOTOGRAFIAS: CENA DA COROAÇÃO DA PERSONAGEM


MULHER. 109

FIGURA 44 O DUPLO. PERSONAGEM MULHER VESTIDA PELAS ATRIZES, POTYRA PINHEIRO E


VÂNIA BERTOLDO. 111

FIGURA 45 O DUPLO. PERSONAGEM MULHER VESTIDA PELOS ATORES ANDRESSA HAZBOUN E


ALDEMAR PEREIRA. 112

FIGURA 46 CENA DANÇANDO COM A SOMBRA. 113

FIGURA 47 PERSONAGEM DONA JOANA, VESTIDA PELA ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN. 114

FIGURA 48 PERSONAGEM DONA JOANA EVOLUINDO COM SUA CALUNGA. 116

FIGURA 49 DETALHE MÃO DO PERSONAGEM PAI, PEGANDO CHAVES. 117

FIGURA 50SEQUÊNCIA DE FOTOGRAFIAS DA CENA QUE REPRESENTA O ESTUPRO DA MULHER. 120

FIGURA 51 PERSONAGEM VENDEDOR DE FIGURAS, VESTIDO PELA ATRIZ VÂNIA BERTOLDO. 128

FIGURA 52 CENA DO ENCONTRO ENTRE A PERSONAGEM MULHER , O VENDEDOR DE FIGURAS


E OS MASCARADOS. 129

FIGURA 53 PERSONAGEM CURANDEIRA DE POUCA FÉ, VESTIDA PELA ATRIZ VÂNIA


BERTOLDO. 130

xix
FIGURA 54 CENA DO ENCONTRO ENTRE A CURANDEIRA DE POUCA FÉ E A PERSONAGEM
MULHER. 131

FIGURA 55 IMAGENS DE ESCULTURAS DE CAMILLE CLAUDEL. 132

FIGURA 56 CENA DAS TRÊS FIGURAS MÍTICAS. 133

FIGURA 57 PERSONAGEM FIGURA MÍTICA DO PRESENTE, VESTIDA PELA ATRIZ POTYRA


PINHEIRO. 134

FIGURA 58 PERSONAGEM FIGURA MÍTICA DO PASSADO, VESTIDA PELA ATRIZ ANDRESSA


HAZBOUN. 135

FIGURA 59 PERSONAGEM FIGURA MÍTICA DO FUTURO, VESTIDA PELO ATOR ALDEMAR


PEREIRA. 136

FIGURA 60 PERSONAGEM REPRESENTANDO A ENTIDADE DAS ENCRUZILHADAS, VESTIDA


PELA ATRIZ THAIS SCHMIDT. 137

FIGURA 61 CENA DOS BÓIAS-FRIAS. 138

FIGURA 62 CENA OFÉLIA DO MANGUE, VESTIDA PELA ATRIZ THAIS SCHMIDT. APRESENTAÇÃO
NO ENGENHO DO CUMBE, EM OUTUBRO DE 2012. 140

FIGURA 63 IMAGEM DA PINTURA „OPHELIA‟ DO INGLÊS JOHN EVERETT MILLAIS. 141

FIGURA 64 CENA DO INICIO DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL, COM OS BRINCANTES-


NARRADORES. 143

xx
Figura 1

Resolveu então voltar para casa com o que tinha. E o que tinha? Apenas
Memória Tatuada na Pele. E o lenço com o Cravo, dado pela Avó, Dona
Joana.

(TEXTO DA PEÇA CRAVO DO CANAVIAL)

xxi
INTRODUÇÃO

COMPARTILHANDO O SENSÍVEL

Devagar. Hora a hora. Dia a dia. Como se o tempo fosse um banho de acidez,
vou vendo com mais funda nitidez o negativo da fotografia. (...) Dois homens num
só rosto! Uma espécie de Jano sobreposto, inocente, impotente e condenado a este
assombro de se ver forrado dum pano de negrura que desmente a nua claridade do
outro lado (MIGUEL TORGA IN CÂMARA ESCURA).

Desde sempre a minha sombra se fez presente, querendo tomar forma, pulsando.
Mesmo quando não a evocava ela se manifestava nas minhas relações, no meu trabalho.
Detive-me a tentar entender o que causava tanto incômodo, por que sentia tanta inquietação
durante meus processos como atriz, tanto quando me preparava para um espetáculo
específico, como nos meus momentos de ócio nem sempre criativo. Nessa constante tentativa
de conviver com minha sombra, aprendi o que talvez faça lugar comum para muitos: ao
olharmos para nós mesmos podemos ver o outro. E falando de mim mesma, quem sabe posso
ter voz de coletivo. “Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
que a coisa produza em nós” (BARROS, 2006). Ao pensar, então, a sombra como o centro do
inconsciente pessoal, o núcleo do material que foi reprimido do inconsciente, como definiu
Jung, podendo dessa forma conter forças vitais e positivas - devemos assimilá-la na nossa
experiência ativa, e não reprimi-la. Assim como todos os arquétipos, a sombra se origina no
inconsciente coletivo1 e pode permitir acesso individual a grande parte do valioso material
inconsciente (JUNG, 2000). Encará-la como um possível recipiente de energia instintiva,
espontaneidade e vitalidade, seria ativar a fonte principal de nossa criatividade. Ou seja,
pensar a matéria artística como corporificação dos sentidos é ter que se debruçar sobre a
sombra, por isso desnudar as minhas „dobras barrocas‟ (DELEUZE, 1991) passou a ser a
minha obsessão pessoal, obsessão pelo processo, pelo „como‟. Não se trata de produzir

1
“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de
que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o
inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto,
desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo
nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência
apenas à hereditariedade” (JUNG, 2000, p.53). Os conteúdos do inconsciente coletivo são os Arquétipos, cuja
forma de expressão é encontrada fundamentalmente no mito e no conto de fada (JUNG, 2000). No terceiro
capítulo dessa dissertação traço um paralelo entre o processo criativo do espetáculo Cravo do Canavial e os
conceitos de inconsciente coletivo e Arquétipos.
1
verdades, mas da necessidade de investigar o que me move e por sua vez o que move as
pessoas, fazendo alusão à frase da diretora e coreógrafa alemã Pina Bausch. Como
percebemos o mundo a partir dos nossos afetos, faço da minha vontade de partilhar o sensível
- através do encontro de subjetividades em sala de ensaio com atores e aspirantes da UFRN e
em posterior processo de montagem do espetáculo Cravo do Canavial - a tentativa de dar
movimento puro2 à „escritura‟ de minha dissertação de mestrado.
O Maracatu Rural é o meu cravo do canavial, remetendo aos cravos que os Caboclos de
Lança - um dos personagens deste brinquedo - usam na boca durante as apresentações.
Arquétipo do guerreiro, essas „figuras‟ do canavial defendem um território marcado
historicamente pela desigualdade social. Desse mote temos o caráter de resistência presente
nessa manifestação, originária da Zona da Mata de Pernambuco, onde os cortadores de cana-
de- açúcar são os brincadores ou brincantes. Pode-se dizer que foi um contato quase trágico, o
meu, com um Caboclo de Lança e se deu nas ladeiras de Olinda no carnaval de 1992, durante
o cortejo de um Maracatu Nação, manifestação popular que, diferente do Rural, tem sua
origem vinculada à coroação dos reis do Congo, sendo desdobramento das Congadas. Eu
participava do desfile na ala das baianas. De uma hora para outra, tivemos que abrir passagem
para algumas „figuras desgovernadas‟ que desciam a ladeira com uma espécie de cravo na
boca, dançando de modo aparentemente desconexo e portando lanças enormes, cheias de fitas
e bastantes pontiagudas, diga-se de passagem. Em sinal de respeito, ou de medo, nosso cortejo
abriu espaço para o desfile daquele grupo, visto por mim, na época, com estranhamento.
Aqueles Caboclos evoluíam com tamanho entusiasmo, força, exuberância que me deixaram
hipnotizada por alguns instantes. O desmantelo foi tamanho que o meu recuo acabou não
acontecendo e por isso quase me vi com uma lança daquelas „enfiada no bucho‟. Lança que,
anos mais tarde, um brincador conhecido como Seu João me cedeu gentilmente para que eu
pudesse segurar e averiguar seu peso. Pesada, realmente! Ao perguntar o porquê de aos 84
anos continuar brincando Maracatu, o mesmo Seu João me fez entender o significado e a
seriedade que envolve essa misteriosa brincadeira: “O Maracatu é minha vida. A única coisa
que eu quero quando morrer é continuar dançando Maracatu no céu” 3.
Foi sobressaltada pela minha sombra, materializada na figura daquele Caboclo de
Lança, que o objeto de minha pesquisa começou a se figurar. A pesquisa Cravo do Canavial
trata da recriação de ações físicas e vocais a partir do registro das „figuras‟ (personagens)
2
Fazendo alusão a frase da escritora Clarice Lispector: “Quero escrever movimento puro” (LISPECTOR, 2005,
p.41).
3
Brincador João da Silva, Caboclo de Lança do Maracatu Rural Leão Formoso. Entrevista realizada por Carla
Martins durante Carnaval (fevereiro de 2007), em Cidade Tabajara, Olinda-PE.

2
presentes na brincadeira do Maracatu Rural, dialogando com a Técnica da Mímesis Corpórea,
sistematizada pelo Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp - que
aponta caminhos de recriação e codificação destas matrizes corpóreo-vocais. Por Mímesis
Corpórea, entende-se recriação de corporeidades - uso particular que se faz do corpo -
percebidas no cotidiano, numa tentativa de estudar „diferentes estados‟ de um corpo vivo, em
ação no mundo, não podendo então ser confundida com simples „imitação‟ (FERRACINI,
2002). Em linhas gerais, o processo prático com atores e aspirantes se deu a partir da
aplicação das etapas da Mímesis Corpórea (observação, codificação/memorização e
teatralização) associada a elementos presentes no Maracatu Rural, com o objetivo de
observação e reflexão sobre caminhos encontrados durante processo em sala de ensaio na
elaboração e recriação dessas matrizes; e a análise da teatralidade gerada através de
montagem teatral, partindo desse material posto em relação e em diálogo com um processo de
construção cênico-dramatúrgico específico.
Vale ressaltar que no início do processo não pretendia montar um espetáculo, queria
apenas realizar um exercício aberto ao público. Contudo, ao sermos contemplados com o
prêmio Myriam Muniz (FUNARTE), em 2011, o objetivo acabou por transfigurar-se. Um
grupo formado por atores e estudantes de artes, conduzidos e dirigidos por mim participou da
primeira etapa do processo referente à aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, associada a
elementos do Maracatu Rural, resultando em exercício aberto, em dezembro de 2011. Com a
premiação da Funarte o trabalho pode ter continuidade com o objetivo de montarmos um
espetáculo de teatro, experiência relatada no terceiro capítulo dessa dissertação. A concepção
deste espetáculo evidenciou a singularidade da matriz escolhida, abrindo possibilidades outras
de articulação do material resultante da aplicação da Mímesis com a composição da cena e,
por conseguinte, com o trabalho de composição dos atores.
O Maracatu Rural pode ser analisado por diversos ângulos: religioso, étnico, lúdico,
musical, entre outros. E como essa brincadeira evoca forças primitivas que a caracterizam em
seu aspecto ritualístico - presente na relação direta dos Caboclos de Lança com a Jurema4; no
azougue, bebida que contém pólvora tomada em homenagem a Zé Pilintra5; e na calunga de
cera, boneca que faz a ligação do maracatu com o divino, dentre outros – tornou-se
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, relacionar os elementos da brincadeira em
seus subterrâneos, não só em suas dimensões e em seu volume. Ou seja, o trabalho de
recriação das ações físicas e vocais integrado a alguns elementos específicos da brincadeira –

4
Sistema de crenças envolvendo elementos místicos indígenas e o Candomblé.
5
Entidade cultuada na Jurema.
3
referentes ao ritual e ao jogo, principalmente – resultou em material diferenciado, à medida
que interferiram na aplicação da própria técnica, por conta da associação de exercícios e
dinâmicas referentes ao universo popular, e também na construção do espetáculo.
Os cortadores de cana-de-açúcar são os brincadores do Maracatu Rural, cuja tradição
vem da segunda metade do século XIX é uma fusão de vários folguedos que existiam nos
engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata: Cavalo Marinho, Caboclinhos e do Pastoril.
No livro „Maracatu Rural: Luta de Classes ou Espetáculo‟, de Roseana Borges de Medeiros,
encontram-se várias informações sobre o Folguedo como um todo, utilizado como fonte de
consulta e como referência durante o processo prático em sala de ensaio e na escritura dessa
dissertação. Pode-se dividir o folguedo em dois momentos singulares: o das Sambadas e o dos
Cortejos. Os Cortejos são desfiles que acontecem durante o período do carnaval e as
Sambadas, acontecem geralmente a partir de setembro, e são consideradas o „esquentamento‟6
para saída no carnaval, onde os que não conhecem a brincadeira passam a ter acesso às suas
danças e aos detalhes da Manifestação. Na ocasião, os Mestres, figuras centrais da Sambada,
criam suas loas, disputando entre si em improviso (VIEIRA apud MEDEIROS, 2005).
Desde 2007 realizo trabalho de campo – tanto durante as Sambadas como nos Cortejos
– observando e/ou registrando através de fotografias a brincadeira, tendo decidido focar
especificamente no Maracatu Cambinda Brasileira em 2011, devido à vivência no Engenho do
Cumbe, por conta da minha relação com tais brincadores; mas, principalmente, por se tratar
do Maracatu mais antigo de Pernambuco e um dos que mantém as raízes da brincadeira
vivas. O mote da minha investigação prática tem aí sua origem. Daí parte o estímulo para o
trabalho prático com os atores em sala de ensaio, do universo do Maracatu Rural Cambinda
Brasileira, que serviu não apenas como fonte de inspiração, mas dividiu o lugar de
protagonista com os atores no trabalho desenvolvido a fim de encontrar caminhos,
sistematizando-os, para o trabalho de composição do intérprete e para posterior processo de
montagem.
Vale frisar que o meu processo de reconhecimento de „como‟ utilizar os elementos
presentes nas manifestações populares em trabalhos de composição, tornou-se consciente em
1996, quando fui convidada para compor a equipe técnica e de criação do espetáculo „O Auto
da Compadecida‟, do Grupo F... Privilegiados, então dirigido por Antonio Abujamra e João
Fonseca. Assinando a preparação corporal e as coreografias ao lado de Johayne Hildelfonso,
percebi o trabalho de apropriação da linguagem popular que se deu tanto pela composição dos

6
No primeiro capítulo dessa dissertação, explico a origem do termo „esquentamento‟ e sua relação com o
trabalho prático dos atores.
4
atores como pela concepção cênica. Os atores a partir dos movimentos do Maracatu Nação,
Caboclinhos, Coco de Roda e Frevo, desenvolveram o gestual dos seus personagens, alguns
de forma mais sutil, outros numa relação mais direta. Destaco o trabalho do ator Nello
Marrese, que interpretava o Padre João; cuja vinheta musical do seu personagem era
associada a um passo de Maracatu Nação resignificado. Foi a partir dessa experiência que
percebi a relação entre o trabalho com a cultura popular e o trabalho de composição do ator.
Não apenas como treinamento físico, mas como repertório de composição.
Com o passar do tempo, fui associando também dinâmicas presentes em algumas
brincadeiras para trabalhar princípios teatrais específicos. Como por exemplo, o „Mergulhão‟
presente no Cavalo Marinho: Jogo que se dá em roda, onde uma pessoa entra em quatro
tempos chamando outra com o olhar. Nos quatro tempos de saída, a pessoa chamada entra
chamando outra pessoa. Simplifiquei a célula rítmica do Mergulhão para iniciar o trabalho
com atores. Esse jogo toca em questões teatrais referentes ao foco (olhar), variação de
fisicidades7, precisão e a relação nos três níveis: em si, espacial e com o outro. Pode-se,
inclusive, introduzir gestos de personagens específicos e até mesmo texto, nesse jogo.
O contato e a apreensão do trabalho do Lume se deram na minha graduação em Artes
Cênicas na UNIRIO. Contudo, deu-se de forma indireta através de aulas com terceiros. A ida
a Barão Geraldo (interior de São Paulo) aconteceu só em fevereiro de 2011, quando participei
da oficina ministrada pela atriz-pesquisadora, Raquel Scotti Hirson. Durante oito dias,
fizemos aulas partindo do treinamento pré-expressivo para darmos conta do processo da
Mímesis. Foi lá que conheci o Joca. Um homem de 45 anos que morava na rua, ganhava uns
trocados ajudando a estacionar carros, desenhava imagens „pornográficas‟ (assim ele as
definia!) e escrevia letras de música. Baseei-me nesse „personagem das ruas‟ para construir
minha Matriz. As dificuldades em acessar as equivalências corporais8 e a „embocadura‟ para
compor a Mímesis Vocal de Joca, vejo-as refletidas no processo do Cravo do Canavial.
Passei a entender melhor esse procedimento junto com os atores, durante o processo de
aplicação da Técnica, e quando tivemos a oportunidade de contar com a assessoria técnica da
própria Raquel, ao iniciarmos o trabalho de montagem do espetáculo.
Acredito que o grande desafio como pesquisadora e também como artista veio
exatamente na etapa de montagem, quando precisei assumir a função de encenadora e de

7
Segundo Ferracini (2003), fisicidade é a “parte mecânica pela qual opera uma ação física” (2003, p.125).
Variação de fisicidades seria trabalhar essa ação segmentando, variando e ocultando partes dela, a fim de que o
ator passe a executá-la com organicidade (FERRACINI, 2003).
8
Entendida como oposto a imitação. O ator, nos estudos do Lume, “deve encontrar equivalentes orgânicos em
detrimento de qualquer ação que possa remeter ao clichê pessoal e cotidiano, recriando, reconstruindo e
redimensionando a ação física” (FERRACINI, 2003, p.148).
5
dramaturga do espetáculo Cravo do Canavial. Minhas experiências como atriz acabaram por
reverberar nesse processo, onde utilizei memórias pessoais e o prévio contato com o universo
arquetípico ao trabalhar nas montagens dos espetáculos: „O Grande Teatro do Mundo‟, onde
representei a personagem, A Morte; e no „Taj Mahall‟, onde entrei em contato com o mito
indiano do amor eterno. Meus questionamentos recorrentes, sobre o lugar da mulher no
cenário social e também a maneira como o feminino tem sido retratado na dramaturgia ao
longo dos anos. Inquietação que reverberou na minha graduação em Artes Cênicas na
UNIRIO, quando realizei um exercício para disciplina de interpretação, onde escrevi o
encontro entre Ofélia e Desdêmona9 depois de mortas, para refletir sobre os crimes passionais
contra as mulheres e suas desmedidas. Meu arrebatamento ao saber que uma mulher havia
conseguido vestir a figura de Cabocla de Lança pela primeira vez, em 2004. E o livro de
cabeceira que me acompanha desde 2005: „Mulheres que correm com os Lobos‟, da autora
Clarissa Pinkola Estés. Tudo isso de alguma forma reverberou durante o processo criativo de
composição dessa dramaturgia. Essas memórias foram associadas às memórias dos
protagonistas do processo, os atores, e juntamente com o material levantado através do
trabalho da Mímesis Corpórea, em associação com elementos do Maracatu Rural, resultaram
na construção cênica e dramatúrgica do espetáculo Cravo do Canavial.
O ator-dramaturgo (OKAMOTO, 2004) escreve com o corpo sua dramaturgia, uma
atriz ao se colocar como encenadora-dramaturga escreve sua poética cênica, com o corpo do
outro: “recolocando suas vivências, na cadeia mito-história-escrita cênica” (SÁNCHEZ, 2010,
p. 84). A escrita dessa dissertação andou em consonância com o seu processo prático, estando
os aportes teóricos e os relatos e análise do processo com os atores desenvolvidos ao longo de
três capítulos.
No primeiro capítulo dessa dissertação, Do Maracatu Rural e Do Treinamento do Ator,
abordo os dois pilares de sustentação da minha pesquisa: o Maracatu Rural e a Mímesis
Corpórea, focando a princípio no treinamento do artista cênico. Aponto questões ritualísticas,
presentes no Maracatu Rural e que estão associadas à crença da Jurema e abordo a relação das
„figuras‟- personagens – do brinquedo com o jogo cênico. A importância dos rituais como
fonte de inspiração para inúmeros processos de criação cênica e como nas brincadeiras
populares, aspectos rituais e teatrais podem conviver em nome de um jogo dramático são
temas de discussão. A partir desses aspectos - fundamentais para o entendimento do
brinquedo e da relação que estabeleci com os atores em sala de ensaio - o foco passa a ser o
corpo do brincador popular, trazendo o conceito de grotesco de Le Breton (2011) para refletir

9
Peças Hamlet e Othelo, respectivamente. Ambas escritas pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
6
sobre esse corpo. Um corpo que se faz grotesco, com seus transbordamentos e protuberâncias
um corpo „carne levamem‟, carnavalizado. Um corpo que se faz integrado em oposição ao
corpo da modernidade que evidencia a separação do cosmos. É a partir dessa relação de
inteireza que estabeleço diálogo com os princípios da Dança Butô, trazendo referência à
bibliografia de autores que encontram eco de tais princípios em seus processos criativos e
relatos do dançarino Kazuo Ohno, um dos precursores desta dança japonesa do pós-guerra.
O corpo da Dança Butô que fala da conjunção de contrários, apresenta similaridades
com o corpo do brincador popular. Similaridades presentes no caráter de resistência, na
ligação com o tempo ancestral, ritualidade e universo arquetípico. Por que não dizer, por
exemplo, que há similaridades entre a relação do brincador seu João, citado anteriormente, ao
afirmar que quando morrer quer continuar dançando maracatu no céu, com a relação que
Kazuo Ohno estabelece com sua arte. Ambos empregam todo seu ser em seu processo
artístico. Vida e arte são complementares, uma não existe sem a outra:
Quando a pessoa envelhece, o corpo envelhece e morre. Mas o espírito segue
dançando com a energia do universo. A morte não é o fim, é um novo começo.
Quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo. Vou continuar
dançando (...) (OHNO apud LUISI e BOGÉA, 2002, p.98).

Vale ressaltar que a ideia foi utilizar os princípios da Dança Butô no trabalho com os atores a
fim de despertar um corpo que se faz memória. Exemplifico essa relação a partir da „dinâmica
do barro‟, desenvolvida durante o processo com os atores e que resultou no movimento
„Saudação à Jurema‟ e em seu desdobramento no espetáculo: a cena do encontro entre os
personagens Mulher e a Curandeira de Pouca Fé. Dessa relação de corpo que traz tatuado em
sua memória de pele sua herança ancestral, trago para discussão o conceito habitus,10 de
Bourdieu (apud ALVES, 2010). A necessidade em entender o corpo desse brincador se dá
pelo fato de que durante o processo da Mímesis Corpórea o ator precisa encontrar
equivalências em seu corpo a fim de „vestir‟ tais figuras, além de precisar compreender
corporalmente o universo da brincadeira, como dito anteriormente. Passo então a estabelecer,
ainda no primeiro capítulo, pontes entre o treinamento desse ator e o processo de „treino‟ dos
brincadores populares. Vinculo as Sambadas como o momento em que esse treinamento se
faz mais efetivo, e utilizando um termo da brincadeira, chamo esse treinamento de
„esquentamento‟. Esse „esquentamento‟ associaria alguns elementos do treinamento
energético e técnico sistematizado pelo Lume a elementos referentes às manifestações
populares.

10
Esse conceito será retomado no primeiro capítulo dessa dissertação.
7
Desde o início deixo claro nessa dissertação que o termo „treinamento‟ sob os moldes
do Lume está ligado à ampliação de potencialidades, afastando qualquer vínculo com
militarização ou formatação de um corpo. E é a partir desse treinamento que o ator atingiria
um estado cênico, uma dilatação corpórea que associa no mesmo corpo: o cotidiano e o
extracotidiano, trazendo para discussão o conceito de Ferracini (s.d.) de corpo- subjétil. O
corpo desse ator que, a partir do treinamento consegue atingir uma potencialização de si,
passando a ocupar o lugar do „entre‟, em diálogo com o corpo do brincador popular que
também ocupa tal lugar uma vez que o que seria extracotidiano nesse universo está presente
no dia-a-dia do brincador. Teatralidade e Espetacularidade11 no universo dos brincadores
populares são territórios complementares.
No segundo capítulo descrevo os exercícios do treinamento energético e técnico do
Lume associado a outros, vivenciados e elaborados por mim durante minha vivência com a
Cultura Popular e como atriz, preparadora corporal e coreógrafa. Além de descrever e de
relatar os desdobramentos associados a cada exercício, relaciono tais exercícios aos princípios
considerados nos estudos do Lume como fundamentais para preparação de um artista cênico.
São eles: dilatação corpórea, olhar, impulso, variação de fisicidades, base, energia, precisão.
Alguns desses exercícios foram vivenciados por mim durante oficina com Raquel Scotti
Hirson em Barão Geraldo, em fevereiro de 2011 e outros fazem parte das minhas andanças na
UNIRIO e em outros processos criativos. Há também aqueles idealizados para o processo do
Cravo do Canavial especificamente, como a „dinâmica do Mestre‟ e a „dinâmica do barro‟,
por exemplo.
O objetivo dessa fase, desse „esquentamento‟, foi preparar o corpo e a voz para próxima
etapa do processo, a partir do princípio discutido por Eugenio Barba, que aponta as dinâmicas
de alteração de equilíbrio e de oposição física como condição para atingir a dilatação
necessária a um corpo cênico, expressivo. E também „alinhar‟ as almas dos atores-
pesquisadores no que diz respeito ao entendimento do universo da brincadeira. Vale ressaltar
que a fim de apresentar a atmosfera da brincadeira aos atores também nos concentramos no
aprendizado de alguns passos da dança, no contato com a música (loas e toadas), na exibição
de vídeos sobre a brincadeira e na leitura de textos. Destaco a dinâmica a partir da

11
A teatralidade seria aplicada às pequenas interações rotineiras, nas quais as pessoas agem para o olhar do
outro de modo consciente e ao mesmo tempo sem tanta consciência ou nas palavras de Bião (2007) „confuso‟,
onde não há uma distinção clara entre „atores e espectadores‟, por desempenharem todos simultaneamente os
dois „papéis‟(BIÃO, 2007). Já a espetacularidade é aplicada “às maiores interações extraordinárias, quando
coletivamente a sociedade cria fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm consciência
clara como atores e espectadores” (BIÃO, 2007, p. 35).
8
improvisação sobre a temática do filme „Baixio das Bestas‟12, que trouxe desdobramentos
presentes inclusive no exercício aberto e na montagem do espetáculo. No segundo momento,
visando à construção das Matrizes, elenquei as três etapas previstas pelo Lume para aplicação
da Técnica da Mímesis: Observação, Codificação/ Memorização e Teatralização. Partimos da
observação das fotografias das „figuras‟ do Maracatu Rural Cambinda Brasileira que foram
previamente estruturadas em cinco nichos: Catita, Burrinha, Mateus, Caboclo de Lança e
Dama do Paço.
Durante treze encontros, nove atores trabalharam o processo da Mímesis Corpórea ou
da Recriação de Corporeidades, com autonomia. Propus uma rotatividade entre os nichos para
que os participantes experimentassem o material referente a cada „figura‟. Fez-se importante
manter elementos do „esquentamento‟ nessa fase do processo mesmo que de forma
condensada. A partir da relação de equivalência entre o corpo do ator e o corpo observado as
Matrizes foram codificadas. E uma vez que as equivalências das corporeidades observadas já
estavam memorizadas, chegou o momento de „deixar de lado‟ o material observado para que a
Matriz encontrada se tornasse de fato „material vivo‟ para fase da teatralização. „Dançar
Matrizes‟ significa fluir de uma ação para outra sem rompimentos, experimentando a
sensação dessa dinâmica, observando de que forma essa dança interfere na „Matriz original‟.
O trabalho com dinâmicas enfatizando a variação de fisicidades ajudou aos atores a
memorizarem as ações apreendidas. Fragmentar, diminuir, omitir partes, variar no tempo
foram pontos trabalhados. Questões sobre corporeidade e organicidade levantadas no
primeiro capítulo foram vivenciadas na prática com os atores. A organicidade é um ponto
fundamental apontado pelo Lume a ser alcançado para comprovar a eficácia da aplicabilidade
da Técnica. Por isso, fala-se em recriação de corporeidades e não de fisicidades, termos que
abordo de forma mais aprofundada ao longo da dissertação.
A busca de equivalências para mimetizar as ações físicas13 e vocais do corpo desse
brincador, faz com que o entendimento do „lugar‟ desse corpo que ocupa o „entre‟, seja
fundamental para aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea. Proponho um „corpo-memória‟
que irá mimetizar outro „corpo-memória‟, tendo como princípio norteador o fato de que a
Mímesis dentro dos parâmetros do Lume está distante de ser simples imitação. A Técnica da

12
Filme de Cláudio Assis, „Baixio das Bestas‟ conta a história de uma menina explorada pelo avô em Nazaré da
Mata, interior de Pernambuco. Alguns personagens dessa história são brincadores de Maracatu Rural.
13
Nos estudos do Lume Ação física “é a passagem, a transição entre a pré-expressividade e a expressividade. Ela
corporifica os elementos pré-expressivos de trabalho (...) é o cerne, a base e a menor célula nervosa de um ator
que representa. É por meio dela que esse ator comunica sua vida e sua arte” (FERRACINI, 2003, p.113). O
conceito de ação física bem como os seus elementos constitutivos, serão desenvolvidos, durante o primeiro
capítulo dessa dissertação, bem como o termo pré-expressividade e a relação do ator que representa em
contraposição ao ator-interpretativo, segundo os princípios adotados pelos atores-pesquisadores do Lume.
9
Mímesis Corpórea integra fisicidade e corporeidade, tendo as ações físicas como eixo
norteador do ator. O que se procura é estabelecer equivalências corporais. Para isso é
necessário que o ator integre elementos que dizem respeito a si, abrindo uma janela a
discussão contemporânea sobre presença. Um „corpo-sujeito‟ que faz relação com o brincador
que mais do que homo ludens (HUIZINGA, 2004) se faz homo performans (DAWSEY,
2005). Finalizo o capítulo com uma reflexão do trabalho de composição do ator sob o olhar
contemporâneo: de que maneira se dá o processo do ator inserido nesses moldes – levantando
questões sobre a „presentação‟, no lugar do que seria a representação - e como tais princípios
dialogaram com a montagem do espetáculo Cravo do Canavial.
Vale abrir um parêntesis, que durante um workshop com a Diretora Judith Malina (The
Living Theater) cujo objetivo era problematizar a participação ativa do espectador na cena
teatral, desenhei meus primeiros passos em direção a um possível entendimento do que seria a
não representação, em nome da „presentação‟. Na ocasião estava trabalhando o personagem
Dealer do texto „Na solidão dos Campos de Algodão‟, de Bernard- Marie Koltès, para
montagem de espetáculo, dirigido por Alexandre Rudáh. A cena apresentada para Malina
tinha dez minutos e era composta dramaturgicamente por recortes do texto da peça. Não
tínhamos, eu e o outro ator, uma partitura fechada, apenas um roteiro e a indicação do diretor
da montagem de que o embate dos dois personagens - Dealer e Cliente - se daria a partir dos
movimentos de imobilização utilizados na técnica do Jiu-Jitsu, incluído enquanto discurso
corporal. Judith Malina fez várias intervenções na cena e no nosso processo de atuação,
evidenciando a questão da presença do ator e a importância de uma relação viva com o
espectador, que, por sua vez, deveria ser estimulado a ter uma postura ativa na experiência. A
sensação era de absorção, a minha, ao realizar a cena. Precisava ter uma atenção e
concentração no jogo cênico maior do que o habitual, pois não sabia qual seria o desfecho.
Tinha um objetivo enquanto personagem, que poderia ser atingido ou não, de acordo com o
resultado, a atitude seria diferenciada. A sensação era de „corpo potência‟, vivo, pulsante.
Refletindo agora sobre essa experiência, posso associar o que senti ao partilhar o sensível com
Malina, com o momento em que estou no meio de um maracatu dançando, jogando,
brincando.
Por isso o ímpeto em abordar questões relativas à presença no processo do Cravo do
Canavial. Os atores experimentaram um pouco do que seria esse estado de aqui e agora,
durante a apresentação do exercício aberto ao público, que marcou a finalização da primeira
etapa do processo. Por conta da falta de energia elétrica, ao invés de apresentarmos parte do
processo em local fechado, apresentamos ao ar livre. Essa experiência foi potencializada com
10
a pesquisa in loco dos atores, em Nazaré da Mata, em maio de 2012 - cujo relato foi
desmembrado nos dois últimos capítulos - e com assessoria técnica da atriz-pesquisadora do
Lume, Raquel Scotti Hirson.
No terceiro capítulo que está relacionado à criação da dramaturgia cênica do espetáculo
Cravo do Canavial, descrevo como se deu o processo de montagem - a partir de um
argumento dramatúrgico - onde o binômio texto/jogo entre as Matrizes foi evidenciado. Inicio
o capítulo, contudo, reafirmando que ao colocar as Matrizes em relação nasce uma terceira,
carregada de significado e teatralidade, prática constatada pelo próprio Lume e por outros
artistas-pesquisadores que caminham utilizando tais parâmetros de criação. Estabeleço então a
necessidade de falar do que move, fazendo alusão mais uma vez a frase da coreógrafa alemã
Pina Bausch, que, segundo Sánchez (2010), trabalhava com uma dramaturgia da memória14,
cujo processo consiste na manipulação de arquétipos. Relaciono então os arquétipos à
construção da poética cênico-dramatúrgica do espetáculo Cravo do Canavial, cujo
protagonista passa a ser o arquétipo do feminino, inspirada pela figura da empregada
doméstica Maria José Marques dos Santos que, em 2004, conseguiu pela primeira vez na
história do Maracatu Rural, vestir a figura de um Caboclo de Lança, motivação mencionada
anteriormente. Partimos, então, de um conto chamado „Mulher Esqueleto‟, do livro „Mulheres
que correm com os lobos‟, onde a autora aborda a relação vida-morte-vida, associando esse
ciclo à temática do feminino (ESTÉS, 1999).
Configura-se no espetáculo, a estrutura presente no mito do herói (CAMPBELL, 1990)
em busca de sua individuação (JUNG, 2000), conceitos que serão desdobrados ao longo da
dissertação. É a partir da saga desse herói - em Cravo do Canavial, personificado na
personagem Mulher – que se desenvolve a poética cênico-dramatúrgica do espetáculo, em
articulação com o material levantado na primeira etapa do processo com os atores, referente
às Matrizes resultantes da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea e articuladas com os
elementos presentes no universo do Maracatu Rural. E ao friccionar memórias pessoais com a
dos atores para construção dessa poética cênica, a dramaturgia da memória (SÁNCHEZ,
2010) passa a ser dramaturgia „de‟ memórias como a própria Sánchez define, pois o processo
se deu na interação com a memória de um „diretor-criador-dramaturgo‟, que além de
manipular os conteúdos materializados pelos atores, manipulou suas próprias memórias

14
Ao desejar criar, a memória é acionada concomitantemente. A memória movimenta-se a partir da intenção da
criação, expressão do pensamento artístico vinculado a um estimulo (SANCHEZ, 2010). “Assim, o que vem à
tona no pensamento vem de forma natural, mas não é totalmente involuntário porque nela se insemina vontade
de conceber” (SÁNCHEZ, 2010, p. 92).

11
(SANCHÉZ, 2010). Daí o titulo desse capítulo: Cravo do Canavial: Construindo uma
Dramaturgia „de‟ Memórias, onde descrevo o processo de criação de cada personagem, que
compõe a peça e o trabalho com os atores.
O ator de Cravo do Canavial „veste‟ figuras tal qual o brincador popular. Partindo da
personagem A Mulher, fui desenvolvendo, junto com eles, toda a estrutura de criação dos
demais. A Avó, Dona Joana, surge da relação da Mulher com o ciclo vida-morte-vida.
Representando a nostalgia dos brincadores dos carnavais antigos, Dona Joana condensa nela
mesma, os contrários que se completam: Céu e Terra, Alegria e Dor (TIBÚRCIO, 2009),
trazendo de volta a discussão do primeiro capitulo sobre o corpo do brincador popular, com
seu caráter de inteireza. Já o Pai da Mulher, carrega o teor moralizante do mito. Ambos, Dona
Joana e Pai, podem ser entendidos como parte existente, dentro de um mesmo indivíduo. As
Matrizes da Dama do Paço, Burrinha, Catita e Mateus, trabalhadas na etapa anterior à
montagem, apareceram resignificadas nas „figuras‟ dos Bóias-Frias, Curandeira de Pouca Fé e
nas Três figuras Míticas. Já a Matriz do Caboclo de Lança passou a ser a Mulher, que assume
o arquétipo de guerreiro, conjugando animus/anima (JUNG, 2000) dentro de si, em harmonia.
Ou seja, ao encontrar-se com seu Self (JUNG, 2000), a Mulher se transforma no mito da
primeira Cabocla de Lança do Sertão, representado no espetáculo, pela cena „dançando com a
sombra‟.
A opção pela retomada de elementos, princípios, conceitos, discutidos no primeiro
capítulo, deu-se pela singularidade da matriz escolhida, reafirmando o fato de que elementos
referentes ao ritual e ao jogo, presentes Maracatu Rural - evidenciado no universo simbólico
presente na relação do brincador com o brinquedo ou no corpo do próprio brincador -
potencializaram o processo como um todo. Optei pela fragmentação, simultaneidade de signos
e linguagem expressionista em algumas cenas e no trabalho de composição de alguns
personagens. Tal escolha se deu a partir da relação com o conceito de homo performer
(DAWSEY, 2005), que se refere ao cotidiano „extraordinário‟ dos brincadores populares,
articulado no capítulo dois. Essa discussão que me levou a refletir sobre modos de atuação e
de composição da cena contemporânea reverberaram no espetáculo nas escolhas de
articulação desses elementos cênicos e também na opção pelo uso da narrativa, presente nos
personagens dos Brincantes-Narradores.
Em suma, a opção pelo uso de linguagem simbólica desencadeia significados outros,
suscita associações. O espectador fica diante de uma cadeia de possibilidades, onde sua
percepção irá depender da interpretação do sensível apresentado. Compartilho então o
sensível com os espectadores. Essa abordagem me deixa à vontade no caminho das escolhas
12
e descobertas associadas às minhas andanças, aos meus questionamentos com relação à minha
sombra, ao meu processo. É olhando para mim que vejo o outro e é refletida no outro que
vejo minha sombra. A fricção entre a minha persona15 e sua obscura equivalência, a sombra,
me trouxe até aqui ao se materializar naquele Caboclo de Lança. Sigo então com esse animal
de quatro patas à minha espreita,16 e em meio aos meus desmantelos fui dando forma ao cravo
desse canavial. Onde, o que acabou prevalecendo foi uma escrita cênica17 em que atores
contam um conto dos canaviais, vestem figuras, cantam, dançam, friccionando suas
memórias, e as minhas, com a memória de Nazaré da Mata, nas histórias que os brincadores
contam.

15
O termo deriva da palavra latina para máscara usada por atores na época clássica. Persona se refere à máscara
ou face que uma pessoa põe para confrontar o mundo. Durante toda uma vida, muitas personas serão usadas e
diversas podem ser combinadas em qualquer momento específico (RUBEDO, 2003). Disponível
em:<(http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/persona.htm)> acesso em 13/04/2012 ás 23 h.
16
Referência a relação do arquétipo da sombra com a mulher selvagem que a autora Clarissa Pinkola Estés faz
em seu livro Mulheres que correm com os lobos.
17
“A convergência do trabalho dramatúrgico e do trabalho espetacular dá como resultado a concretização do
diretor, isto é, a interpretação ou leitura que entrega o diretor a seu publico” (DE TORO, 1987, p.140 apud
ALMEIDA, 1995, p.5-6).

13
CAPÍTULO 1

DO MARACATU RURAL E DO TREINAMENTO DO ATOR


1.1. AS CORES DA JUREMA SAGRADA E A RELAÇÃO DAS „FIGURAS‟
COM O JOGO CÊNICO

Era um caminho quase sem pegadas, onde tantas madrugadas folhas


serenaram. Era uma estrada muitas curvas tortas, quantas passagens e portas ali
se ocultaram. Era uma linha sem começo e fim e as flores desse jardim meus avós
plantaram (...).
(SIBA IN VALE DO JUCÁ)

Figura 2

Nazaré da Mata, interior de


Pernambuco. A terra do barro rachado, dos canaviais, a terra dos Maracatus. A cinco
quilômetros está localizado o Engenho do Cumbe: terra avermelhada massacrada pelos
períodos de seca, sede do Maracatu Rural Cambinda Brasileira. O trabalho da cana é sazonal
dura mais ou menos três meses e hoje quase nenhum brincador, pelo menos do Cambinda, tira
seu sustento do corte da cana pela decadência dos engenhos canavieiros. Quando cheguei pela
primeira vez no Engenho do Cumbe, Dona Joaninha estava na janela espiando a brincadeira
que parecia ter começado desde cedo, tamanha era a poeira que já se fazia levantada pelos pés
dos brincadores, em meio ao arrastapé. A cor das pessoas se confundia com a cor da terra.
Era fevereiro de 2007, e a mulher, que batia um pouco acima de minha cintura - madrinha
espiritual, encarregada de fazer a proteção do Maracatu - guardava consigo seus
ensinamentos, o mistério do brinquedo que ia me apresentando com poucas palavras, com seu
14
olhar terno e sorriso constante. Casa simples. Na parede da sala fotos da família, revelando
memórias que se confundem com a história do próprio brinquedo. Tempos de Seu João
Estevão, dono ancestral desse Maracatu. Pendurado em lugar de destaque, o primeiro
estandarte do Cambinda, de 1918.
O nome Cambinda tem relação com um peixe de água doce de mesmo nome. É que no
ano que o brinquedo foi formado, as pessoas da região passavam dificuldade financeira, foi
quando, por conta de um inverno rigoroso o rio transbordou e os moradores do Engenho
foram pescar (VIEIRA e NOGUEIRA, 2006). “Por muito tempo só se comeu cambinda e com
o acontecido da pesca, alguém disse: vamos formar um maracatu” (2006, p. sn). Dona
Rosinha Borba, dona do engenho na época, pediu para acrescentar sobrenome „brasileira‟ à
brincadeira, resultando no maracatu mais antigo de Pernambuco (VIEIRA e NOGUEIRA,
2006). Na ocasião da minha primeira visita, o Cambinda Brasileira recebia grupos convidados
em seu terreiro. A Catita – uma das „figuras‟18 do Maracatu, responsável por recolher dinheiro
como uma espécie de pagamento pela brincadeira – rodopiava em cima da laje de uma das
casas do engenho em sua evolução costumeira a fim de arrecadar uns caraminguás do público
que ainda estava chegando.
O Maracatu Rural tem regras onde cada „figura‟ tem sua função, sua obrigação, sendo
responsável pela harmonia do brinquedo, e não cumpri-las significa instaurar „desmantelo‟19.
A Burrinha com seu o chicote é responsável por abrir o terreiro, impedindo que alguém
atrapalhe a evolução da brincadeira, protegida pela Dama do Paço, com sua Calunga. A
arrecadação do dinheiro fica por conta da Catita, como já mencionei, e do Mateus. E se
alguém sair do compasso, os Caboclos de Lança defendem o território, como verdadeiros
guerreiros. Ao todo são mais de quinze „figuras‟ que compõem o brinquedo. Tudo isso sob o
comando do regente, o Mestre do Maracatu, que ao entoar suas loas instaura o silêncio na
festividade. As loas são versos cantados de improviso em forma de pergunta e resposta, e da
mesma maneira que conduzem as loas, o Mestre rege todo o Maracatu, caracterizando-se
como figura central da brincadeira. Tem um apito e bengala, também chamada de batuta, na
mão. Quando ele apita todos param e escutam os seus versos, quando apita novamente a
orquestra volta a tocar e todos os brincantes evoluem na coreografia (MEDEIROS, 2005):
“Sem ele o maracatu não sai” (2005, p.119).

18
Nas Brincadeiras Populares, „vestir uma figura‟ significa representar um personagem, por isso usarei o termo
„figura‟ todas as vezes que me referir aos „personagens‟ do Maracatu Rural.
19
“O Desmantelo é sinônimo de desafinação, desagregação, descontrole. Pode abalar o desenvolvimento de uma
brincadeira, assim como o da própria vida” (ACSELRAD,2002, p.36).
15
Essa „mecânica‟ tem ligação com questões referentes ao ritual e ao jogo presentes no
brinquedo que, durante muitos anos, teve na figura de Dona Joaninha a responsável por
manter a harmonia necessária à brincadeira. De sua janela, aconselhava os brincadores, sendo
detentora dos mistérios que envolviam o Cambinda. Em 2011, na minha visita ao Engenho do
Cumbe para o levantamento do material fotográfico e em vídeo dos brincadores e das suas
respectivas „figuras‟ - que iria utilizar na primeira etapa do processo com os atores - a
Juremeira de confiança do Mestre João Padre já não estava mais entre nós. “Olho sempre pra
janela procurando Dona Joaninha. Ela sempre me aconselhava. Sinto falta dela, mas a vida é
passageira e o maracatu continua”.20 Contudo, antes de partir para “dançar maracatu no céu” -
fazendo minhas às palavras de seu João, a quem citei na introdução dessa dissertação – ela
passou os seus saberes e a feitura dos preparos que fazem o mistério da brincadeira para
Dona Biu: “Eu passei três dias e três noites na casa dela. Aprendendo a fazer o preparo do
maracatu. Juntei as coisas dela com as minhas e (...)” (VIEIRA e NOGUEIRA, 2006, p. sn),
interrompe Dona Biu para conservar o mistério referente aos ingredientes do preparo.

20
Entrevista com Zé de Carlos, realizada por Carla Martins, na sede do Cambinda Brasileira, em fevereiro de
2011.
16
Figura 3

Existem duas Manifestações Populares que carregam o nome Maracatu, tendo


significados diferentes em suas origens africana e indígena21: o Maracatu Nação e o Rural;
sendo o último mais recente, conhecido também como Maracatu de Orquestra e/ou de Baque
Solto. Baque é o toque, o ritmo da percussão, executado em tempos diferentes pelas duas
manifestações. A maior distinção, contudo, é que apesar de ambos serem ligados ao
Candomblé, o Maracatu Nação se origina de uma festividade católica remetendo à coroação
dos Reis do Congo. Já o Rural tem ligação direta com a Jurema, “sistema de crenças que
mistura candomblé e elementos místicos indígenas” 22.
O culto da Jurema pode ser definido como um complexo semiótico, fundamentado
no culto aos mestres, caboclos e reis, cuja origem remonta aos índios nordestinos.
As imagens e símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado,

21
“Etimologicamente, dizem que é de origem africana, proveniente da palavra maracatucá ou muracatucá,
expressão que significava vamos debandar, muito utilizada nos finais das danças ocorridas em frente a igreja do
Rosário, como uma senha combinada entre os integrantes, para avisar a aproximação de policiais com o intuito
de reprimir a dança. (...) Diz-se também que é de origem indígena, fruto da fusão de duas palavras: maracá –
instrumento musical ameríndio e catu – bonito, significando nesse caso dança bonita. Também dentro da origem
indígena, apontam quem Mara significava guerra e com a junção de catu, indicava que seria uma guerra bonita.
E por fim, é também veiculada a hipótese de que o termo é de origem africana, existindo ainda uma dança
intitulada de maracatu praticada pela tribo dos bondos, os quais viviam na época da ocupação portuguesa, numa
região cerca de cinqüenta quilômetros ao norte de Luanda-Angola na África” (MEDEIROS, 2005, p.77).
22
(RAIZ, 2006). Disponível em < http://revistaraiz.uol.com.br/portal/índex.php?option=com> acesso em
05/11/2011 as 20 h.
17
descrito pelos juremeiros como um reino encantado, os encantos ou as cidades da
jurema, explica o antropólogo Sandro Guimarães 23.

Há um mistério envolvendo o Maracatu Rural que por mais que os integrantes revelem parte
dele, o „como fazer os preparos‟, os ingredientes, são mantidos em segredo. “Certo mesmo de
nós preparar a jurema com a força de caboclo é setembro. É na mata... o lugar onde se salvou
os nossos índios. Salve a Jurema sagrada! (...) No dito pelo não dito, todo maracatu faz
preparo por mode da brincadeira não sair descoberta” (VIEIRA e NOGUEIRA, 2006, p. sn).
A ligação ritualística presente no Maracatu Rural gira em torno da Jurema que está na
relação da Dama do Paço com a Calunga, no azougue bebido pelos Caboclos de Lança e até
na vestimenta desta „figura‟, cuja indumentária, chamada surrão, carrega uma armação de
24
chocalhos, confeccionado em número ímpar, para não atrair azar. “Tem que ser ímpar” .
Dizem inclusive que os brincadores que vestem a „figura‟ de Caboclo de Lança não tomam
banho durante o carnaval para não ficar vulneráveis a qualquer mal, guardam abstinência
sexual por pelo menos quinze dias antes do brinquedo ir para rua e mantém distância de
qualquer bebida que não seja o azougue: feita de cachaça, limão e pólvora (MEDEIROS,
2005). Tomada em homenagem ao Zé Pilintra (entidade cultuada pelos juremeiros), trata-se
de bebida necessária, dizem, para aguentar sustentar o peso de suas roupas:
(...) calça e camisa de chitão, gola em formato de poncho toda bordada de
lantejoulas, a cabeleira de celofane e o surrão – uma estrutura de madeira presa às
costas do caboclo, coberta de couro de carneiro ou de material sintético, onde são
pendurados vários chocalhos. Mais ou menos 25 quilos. O rosto tingido de urucum
ou outra tinta e os óculos escuros 25.

22
(AGERP, 2010). Disponível em< http://www.unicap.br/webjornalismo/brincante/index2.php?id=guarda >
acesso em 02/04/2012 às 17.35 h.
24
Entrevista realizada com o administrador do Cambinda Brasileira, em pesquisa de campo, realizada pela
equipe de criação do espetáculo Cravo do Canavial, em maio de 2012. Essa frase, resignificada, é dita pelo
personagem PAI no espetáculo.
25
(RAIZ, 2006). Disponível em: <http://revistaraiz.uol.com.br/portal/índex.php?option=com>Acesso em: 17/11/2011
às 15 h.

18
Figura 4

Medeiros (2005) cita a tese do historiador Olimpio Bonald Neto que defende a ideia do
lanceiro ser a transfiguração do orixá Ogum, o deus da guerra. “Antigamente as festas eram
sangrentas. Eram confrontos violentos, hoje apenas simbolizam as disputas de território a
partir da evolução dos caboclos” (2005, p. 123). Contudo, como mencionei anteriormente, o
mistério que envolve o brinquedo não fica restrito a essa „figura‟.

A Calunga, também chamada de bruxa ou boneca, e que fica sob a proteção da Dama
do Paço, também carrega o mistério do brinquedo. Elemento presente tanto no Maracatu
Nação quanto no Rural tem significado de proteção. Feita de madeira ou de pano, cera e
plástico representa geralmente o orixá que protege o maracatu.

É considerada uma espécie de ídolo, feitiço, objeto de excitação mística e também


representante político-religioso de reis-deuses. Reputa-se que a palavra calunga é
originária do dialeto banto. Em angola, era cultuada como objeto sagrado e
poderoso, pois acreditava que possuía comunicação com forças espirituais
(MEDEIROS, 2005, p.117).
19
Figura 5

No Maracatu Nação a Calunga é preparada nos terreiros de candomblé. No Rural, ela está
ligada à linha da Umbanda, à corrente da Jurema. A Calunga é conduzida pela Dama da
Boneca, ou Dama do Paço, que se localiza, durante o cortejo, no centro do maracatu. A Dama
do Paço leva a boneca. Sua figura tem status de feiticeira (MEDEIROS, 2005). Percebe-se,
então, que aspectos ritualísticos estão presentes na relação dos brincadores com o brinquedo
como um todo, tido como uma „brincadeira séria‟ pelos que dela participam. Relação que se
estende ao cotidiano desses homens e mulheres que passam o ano se preparando para o
carnaval seguinte. Esse preparo vem junto com a memória de um tempo ancestral, tatuada na
parede da casa de Dona Joaninha, e que é evocado nos passos da dança, na música, nas
„mandingas‟ de proteção, nos encontros entre os brincadores.
Ao longo da historiografia cênica, teóricos, pesquisadores e artistas da cena vêm
aproximando a construção de um corpo cênico à ideia de ritual como meio de atingir sentidos
outros, atingir um estado de corpo que irrompe, transborda. O ritual é tido como “gerador de
presença fazendo dos corpos seres mais integrados a vida (...). É provável que essa eficácia se
dê por conta de promover um diálogo entre natureza e cultura , entre interioridade e
exterioridade, operando na constante construção da corporalidade e corporeidade do grupo”
(ARAÚJO, 2005, p. 151). A aproximação entre teatro e ritual, considerando que a própria
representação já tem inúmeros conteúdos rituais, ou seja, levando em conta o cotidiano
teatral, a fricção com atividades ritualísticas tem sido de grande importância para o
desenvolvimento do processo de criação cênica:
Como o mito é uma das modalidades pelas quais o sagrado se manifesta ao
homem, e são atualizados através dos rituais, acredito no poder que a encenação
ritualística tem de provocar nos sujeitos um novo papel a desempenhar na vida,
20
após cada cerimônia/ atuação. Nesse sentido, o ritual atua como facilitador ou
mediador, com as dimensões mais sutis, complexas e desconhecidas da realidade
(ARAÚJO, 2005, p. 150).

Não à toa que os rituais presentes em diferentes culturas têm sido fonte de inspiração para
muitos mestres de teatro, como Grotowski e Eugênio Barba26 por exemplo. E sem tentar fugir
de tamanha referência, não à toa o potencial mítico-religioso presente nos rituais que
envolvem o Maracatu Rural reverberou no processo em sala de ensaio com os atores de Cravo
do Canavial, bem como na construção do espetáculo, relatados no segundo e terceiro
capítulos, respectivamente.
Reforço escolha por relacionar tais elementos em sala de ensaio, trazendo a discussão
levantada por Mariz (2008) de que o conceito do que seria teatro se tornaria ainda mais
abrangente - trazendo perspectivas outras sobre a construção da presença cênica, a concepção
do espaço e da relação ator/espectador - se as manifestações que hoje são vistas como
manifestações teatrais ritualizadas, como é, segundo a autora, o caso dos rituais indígenas e
das festas populares tradicionais, se a análise fosse feita não a partir da perspectiva
„rituais/teatralizados‟, mas, inversamente, „teatrais/ritualizados‟:
Olhar o teatro sob uma perspectiva não-evolucionista, que abarque a pluralidade
cultural que caracteriza as diferentes sociedades, significa restituir-lhes sua
verdadeira vocação de metáfora universal, de metacomentário da humanidade.
Considerado como a arte da representação, como manifestação performática, o
teatro está longe de se restringir a um tipo específico de teatralização. Tal como a
humanidade, ele é plural e culturalmente diversificado, o que impede
generalizações universalizantes. O que parece ser generalizável é que o teatro
contém estruturas rituais, do mesmo modo que o ritual possui elementos teatrais
(MARIZ, 2008, p. 14).

Para a autora, os fatores aos quais se devem a familiaridade entre a linguagem do teatro e a do
ritual estão ligados à origem do próprio teatro (cerimônias religiosas em celebração aos ritos
agrários ou de fecundidade) - onde se supõe não haver distinção entre o ator e a plateia - e aos
que dizem respeito à própria linguagem do ritual. No primeiro caso, ”ambos eram partífices
de um mesmo culto – no caso do teatro grego, por exemplo, o culto ao deus Dionísio27, no
caso do mito japonês, a dança de Uzume” 28 (MARIZ, 2008, p. 77). Já para explicar a relação

26
“A busca de uma linguagem ritualizada – ainda que esteticamente ritualizada -, bem como a utilização de
símbolos arquétipos e de mitologias diversas, por parte de grupos teatrais de pesquisa como os de Grotowski,
Barba e Antunes Filho, parece evidenciar aquilo que Antunes define como a „busca da essência, da essência das
realidades‟, e que Grotowski considera a „experiência de uma verdade comum‟” (MARIZ, 2008, p.13).
27
“Na Grécia, a tragédia parece ter surgido dos ditirambos, do culto ao Dionísio. (...) Dionísio possui o dom da
metamorfose. Para fugir à fúria dos titãs, metamorfoseia-se em bode. Devorado por eles, ressuscita na forma de
um bode divino: o mesmo que será ritualmente imolado para purificação da polis” (MARIZ, 2008, p.15-16).
28
Trata-se de um mito no Japão, que fala da origem do teatro. “Nele, Amaterasu, deusa do sol, enfurecida com
as travessuras de seu irmão, confina-se em uma gruta escura, privando o mundo de luz. A escuridão reinante traz
consigo inúmeras desgraças. Preocupados os deuses se reúnem com os representantes dos clãs. Trazem uma
21
com o ritual, Mariz (2008) traz para discussão a definição de Tambiah do ritual enquanto “um
ato comunicativo performativo”:
(...) as situações rituais como as situações de representação teatral, possuem uma
relação tempo/espaço alterada, com conotação e simbolismos diferentes daqueles
cotidianos. De acordo com Tambiah, a própria forma de ritual tem significações,
tem um significado, tem uma força. Há uma construção metonímica do tema ritual
através da repetição ritual embutida em sua forma (MARIZ, 2008, p.78).

O Maracatu Rural seria um exemplo de como aspectos ritualísticos e teatrais podem


conviver em nome de um jogo dramático compartilhado pela comunidade, sem separação. E
outra referência que pode dar luz a tal discussão é o conceito trazido por Huizinga (2004), que
integra o conceito de jogo ao de cultura - propondo a utilização do mesmo como o fenômeno
cultural, sem restringi-lo a perspectiva biológica, mas elucidando também a histórica –
caracterizando o jogo como algo que não pertence à vida corrente, mas uma parcela dotada de
orientação própria, que possui como característica a liberdade e a evasão da vida real
(HUIZINGA, 2004, p.11). O que segundo Kosovski (2001) abre várias possibilidades de
inter-relação entre o jogo, a ritualidade e o teatro. “O jogo se assemelha ao ritual e ao teatro à
medida que há nestes uma evasão temporária para o que seria uma outra vida, distinta da vida
real” (2001, p.9). E completa: “tomando-o como fenômeno cultural, friccionado à teatralidade
gera um território dramático” (p.33):
Para além da diversidade das opções teóricas, conceituais e estéticas que regem
toda a prática artística, há reconhecidamente, no centro da manifestação de
teatralidade, um espaço de jogo, no triplo sentido do termo: um sentido
propriamente lúdico, onde fantasia e imaginação podem ter livre trânsito; outro, de
distanciamento crítico e consciente do próprio ato de jogar/representar; e um
terceiro, que traz o campo do imprevisível e do imponderável (KOSOVSKI, 2001,
p.39).

Deste modo, pensando a brincadeira como uma espécie de jogo, ou comentário sobre o
meio social, torna-se possível aproximá-la do fenômeno teatral. E sendo um tipo de jogo
também abre fissuras no tempo e no espaço. Na brincadeira as fronteiras se rompem. Quando
ela começa, promove uma suspensão tempo-espaço, que independente do lugar onde se esteja,
quer seja o de observador ou de brincante instaura-se um „espaço outro‟, caracterizando-se

árvore Sakaki florida ( a árvore sagrada em que habitam os deuses) e a ornamentam com trajes azuis e brancos e
fios de pedras preciosas, lapidadas em forma de lua. Por e entre os galhos, prendem um enorme espelho. Alguns
deles trazem consigo instrumentos sagrados, enquanto outros recitam canções mágicas. A deusa Uzume, por sua
vez, prendendo suas mangas com gavinhas, amarra uma faixa em torno da testa e colhe um feixe de bambus
gigantes. Feito isso, pega um barril, vira-o de cabeça para baixo, e põe-se a dançar sobre ele, batendo os pés com
vigor. Possuída por um espírito, Uzume entra em êxtase e desnuda os seios e os genitais. Os deuses, ao verem
aquilo, soltam estrondosa gargalhada. Curiosa, Amaterasu aparece na entrada da gruta para ver do que os deuses
estão rindo e se surpreende com sua imagem ofuscante e luminosa refletida no espelho. Ela sai da gruta, e
palavras mágicas impedem que retorne”(MARIZ, 2008, p.8).
22
por uma fissura na realidade. Durante a brincadeira o homem encontra uma maneira de lidar
com sua condição ordinária, transpondo-a por meio do lúdico. Há uma resignificação da vida,
que subverte a hierarquia instaurada. Acselrad (2002) afirma que “como uma espécie de jogo
ou comentário sobre o meio social pertencente, a brincadeira teria como um de seus maiores
atributos a capacidade de abrir um parêntesis na vida cotidiana, suspendendo-a
temporariamente, para em seguida a ela voltar de forma renovada” (ACSELRAD, 2002, p.
32). Ao se jogar no terreiro da brincadeira, aquele que brinca lança-se em direção ao ponto de
embricamento entre sua subjetividade e a realidade, friccionando a fronteira entre o mundano
e o sagrado, o real e o imaginado.
A partir dessa relação: jogo, ritual, território dramático, brincadeira, foram aplicadas
diversas dinâmicas com os atores durante o processo em sala de ensaio. Dinâmicas cujo
objetivo foi o despertar de uma presença cênica e o entendimento a nível psicofísico do que
seria esse universo referente ao Maracatu Rural e também ao corpo desse brincador,
especificamente, antes da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, propriamente dita. Vale
ressaltar que tais dinâmicas foram associadas ao treinamento pré-expressivo, sistematizado
pelo Lume, fazendo parte do que denominamos de „esquentamento‟. Tais conceitos, como
também o procedimento metodológico detalhado será abordado mais adiante. Por hora, trago
como exemplo a „dinâmica do barro‟, que resultou em uma sequência de movimentos, uma
dança pessoal29, originando a matriz „Saudação à Jurema‟ de cada ator, utilizada
posteriormente na concepção de cena do espetáculo referente à personagem: Curandeira de
Pouca Fé. Tratou-se do ritual de reverência ao sagrado, da criação de um „lugar‟ de ligação
dos atores com um tempo ancestral, que não passasse por movimentos pré-concebidos.
Utilizei como fonte de inspiração princípios da Dança Butô, que trabalha a relação dos
contrários como algo único, por exemplo: céu e terra, vida e morte.
A terra está longe do céu... e tão perto. Íntimos, amorosos, terra e céu se casam.
Paraíso e inferno se casam. Há vida nisso. Quando você dança ou vive, você se
alimenta. Na morte há vida, na vida há morte. Quando se cresce no útero materno,
a mãe dá vida para o feto. Todos nós nos alimentamos da vida materna. Então, (...)
o seu corpo veste o universo (OHNO apud BAIOCCHI, 1995, p. 49).

A presença dos contrários existindo em todas as coisas, a frase do bailarino Kazuo Ohno
”minha dança nasceu da lama” e a imagem da terra como a grande mãe e seu útero serviram
como estímulos para condução da dinâmica. Hirson (2006), atriz-pesquisadora do Lume,
relata em seu livro „Tal qual apanhei do pé‟ sua experiência com Natsu Nakajima, dançarina

29
A Dança Pessoal, nos estudos do Lume, busca “realizar uma intersecção entre a vida e o corpo, ou seja, entre o
subjetivo e o objetivo” (FERRACINI, 2003, 143). Busca-se dentro de si uma relação corpórea nova, para uma
vez mergulhado nela, o ator possa explorar novas possibilidades (FERRACINI, 2003).
23
japonesa de Butô, que a pôs em contato com as coreografias de seu mestre Tatsumi Hijikata 30
que eram baseadas em imagens:
Essas imagens eram elementos externos ao corpo, mas se desdobravam em ações
físicas. As imagens propostas por Hijikata tinham um dado fundamental, que era a
possibilidade de transformação interna a partir da própria sugestão da imagem. (...)
Quando eu me punha a fazê-la, além da imagem proposta e de outras que a
principal me sugeria, procurava respirar de modo diferente, como se a cada
inspiração eu recebesse a complexidade desta imagem e fosse levada ao mundo
dela, virtual, portanto real, mas não palpável, já que formalizado em imagem.
Algumas outras imagens propostas por ela davam suporte para se chegar a esta
respiração. Por exemplo, fazer toda e qualquer ação em estado de neblina. Não
somente estar em meio à neblina, mas também fazer com que a própria ação seja
correspondente à qualidade de ser e de se mover da neblina. Deixar-se adentrar
nesta qualidade, também com a presença do terceiro olho 31 é alterar por completo
o estado geral do corpo e da respiração (HIRSON, 2006 p. 63-64).

Antes de iniciarmos a „dinâmica do barro‟, propriamente dita, os atores passaram por


exercícios, baseados no treinamento energético proposto pelo Lume e uma vez que a exaustão
foi instaurada, como se fossem o próprio barro, os corpos iam se metamorfoseando,
construindo uma partitura composta por cinco movimentos inicialmente fragmentados.
Buscamos a transcendência dos limites do corpo. Os atores começaram deitados no chão e à
medida que os estímulos iam surgindo os movimentos iam emergindo naturalmente de cada
corpo. A ideia era que pudessem ser executados de maneira fluida e pessoal e que uma vez
postos em relação fossem transformados em „dança‟ coletiva:
Estimulados fomos inserindo em nossa dança melodias, sussurros, gemidos e
sorrisos. Esse trabalho resultou na criação de uma sequência pessoal que se
desencadeou na Saudação à Jurema. Esse momento pode ser considerado com um
ritual que nos lançou para uma dimensão mais profunda com nosso trabalho, nos
deparando conosco mesmos na busca do momento sagrado individualcoletivo na
arte, estabelecendo contato com energias mais íntimas e primitivas (Relato do ator
RODRIGO SEVERO).

No encontro anterior ao da aplicação da „dinâmica do barro‟ os atores haviam realizado


uma pesquisa sobre a Jurema e a relação dos brincadores com tal crença. Pedi que a partir
dessa pesquisa construíssem uma frase em primeira pessoa que poderia sintetizar a ligação do

30
“Tatsumi Hijikata (1928-1986) e Kazuo Ohno (nascido em 1906) foram os precursores e fundadores de uma
arte do corpo que transgredia convenções, gramáticas, didatismos, formas e estéticas comprometidas com o
Japão tradicional e conservador e, por outro lado, com os novos padrões de modernidade impostos pela
americanização, que começavam a emergir com o final da segunda guerra mundial. Tanto Hijikata, quanto Ohno,
sempre preferiram a vida metafórica, virtual e imagética ao formularem suas definições, ou melhor, suas
digressões sobre a vida” (BAIOCCHI, 1995, p.18).
31
“O terceiro olho consiste em imaginar um olho no centro da testa, entre as duas sobrancelhas. Os olhos estão
fechados e o ator tenta „ver‟ e se orientar com o terceiro olho. Num segundo momento os olhos podem ficar
abertos, desde que não se olhe com os olhos reais, mas com o terceiro olho. Esse trabalho busca desenvolver
uma visão mais interior e uma espécie de relação direta entre o interior e o exterior. Isso resulta numa qualidade
particular dos olhos do ator, que sugere olhos que sonham” (BURNIER apud HIRSON, 2006, p 63).
24
brincador com tal ritual32. Essa frase seria dita por cada ator durante a execução das partituras.
Os atores atingiram assim um „estado de barro‟ compondo sua dança pessoal, cheia de
respiração e pulsões, e à medida que foram postas em relação, gerou uma dança pessoal-
coletiva. Nesse momento introduzi mais um elemento ao jogo: a fotografia da calunga,
ligando-os ainda mais a questões referentes à ancestralidade, interferindo de certa forma na
relação entre eles.
Ao mesmo tempo em que a dança pessoal-primitiva acontecia, Carla colocou no
centro da sala uma fotografia da Calunga e pediu que nos reuníssemos em torno da
foto. Ficamos olhando os mínimos detalhes e as impressões que ela repercutia em
nosso corpo, em nossa memória muscular-ancestral (Relato do ator RODRIGO
SEVERO).

Os atores do Cravo do Canavial, na primeira etapa do processo prático, trabalharam então


com a imagem da terra, do barro avermelhado e cheio de rachaduras, tão característico da
terra dos maracatus, reverberando, inclusive como elemento cênico do espetáculo.
Figura 6

A importância de entendermos o universo dessa brincadeira e consequentemente o


corpo desse brincante torna-se cada vez mais evidente para que possamos realizar a aplicação
da Mímesis Corpórea. Refletir sobre esse corpo. Ao instaurar o estado de barro tocamos em
questões referentes à ligação do brincador com a própria terra, a sua relação com o primitivo,
acessando o ancestral presente em nossa memória muscular. Para melhor compreender esse
universo e o corpo que nele se transfigura traço algumas relações entre tal corpo, o conceito
de grotesco de Le Breton e alguns princípios do Butô, com o objetivo de sistematizar
caminhos para um possível encontro „entre‟ os brincadores de Maracatu Rural e os atores em
Cravo do Canavial.

32
Seguem as frases dos atores: “Jurema, entidade que protege minha identidade” (Andressa Hazboun); “Quero
me render aos teus encantos Jurema!” (José Maria); “Com ela ninguém me toca, com ela eu to encantado”
(George Holanda), “Minha conexão com o divino” (Rodrigo Severo), “Minha planta é sagrada e venerada por
diferentes povos e culturas do mundo” (Vânia Bertoldo); “Jurema, me proteja!” (Potyra Pinheiro).
25
Figura 7

1.2. „ENTRE‟ O CORPO DO BRINCADOR POPULAR E O CORPO DO ATOR-


PESQUISADOR: „SOMBRAS‟ DE UM CORPO MEDIEVAL

Você liga a motosserra, eu planto flor no cerrado. Você só anda calçado, eu


piso com o pé na terra. Você quer vencer a guerra, eu quero ganhar a paz. Você
busca sempre mais, eu só quero o que é meu. Você se acha europeu, eu sou dos
canaviais.
(ANTONIO NÓBREGA IN O REI E O PALHAÇO)

Sendo tipicamente uma brincadeira do período carnavalesco, o Maracatu Rural carrega


toda a atmosfera presente nesse tipo de festa popular. Considerando os dados históricos, pode-
se afirmar que o carnaval originou-se das antigas festas pagãs, criadas pelas classes
trabalhadoras. Para colocar tais festas, sob controle, a igreja católica fixou época para sua
realização ligando a festividade ao período da quaresma - época de jejum e abstinência sexual
para a purificação do corpo e da alma: “Provavelmente, é a partir daí que surge
etimologicamente a palavra carnaval que, segundo alguns, deriva da expressão „carne vale‟
(adeus carne!) ou „carne levamem‟ (supressão da carne), em razão de esse período anteceder
quarenta dias à quaresma” (MEDEIROS, 2005, p.33-34). A preocupação com essa festividade
se dá por conta do seu caráter transgressor: “O carnaval é o revelador de um regime do corpo
que não se restringe somente ao sujeito, mas transborda sua inserção para verter seus
elementos constitutivos e sua energia no mundo que se avizinha” (LE BRETON, 2011, p.49).
Instaura-se durante essa festividade uma suspensão temporal e espacial, já abordada
anteriormente, ao relacionar ritual, jogo e brincadeira.
O tempo do carnaval suspende provisoriamente os usos costumeiros e favorece seu
renascimento e sua renovação graças a essa passagem paradoxal. É a busca de um
segundo fôlego, depois que o grande riso da praça pública purificou o espaço e os
26
homens. O carnaval institui a regra da transgressão, conduz os homens a uma
liberação de pulsões habitualmente reprimidas. Intervallum mundi, abertura de
outro tempo no tempo dos homens e das sociedades onde vivem. O sério da vida
voa em estilhaços perante o riso irrepreensível da coletividade unida no mesmo
sacrifício ritual das convenções (LE BRETON, 2011, p.45).

Figura 8

A transgressão está presente então nessa festa, onde os limites corporais transbordam,
revelando uma “espécie de corpo provisório, sempre a ponto de transfigurar-se, sem repouso”
(LE BRETON, 2011, p. 48). Segundo Le Breton (2011), inaugura-se um estado de
comunidade, onde a ideia de espetáculo, de distanciamento, ou de apropriação só pelo olhar é
apartada dessa festividade. Os homens zombam de coisas da religião, falam de assuntos
referentes ao seu dia-a-dia, questionam as leis vigentes. O riso é característica sempre
presente, numa festa onde os corpos se misturam indistintamente. “O espírito presente nas
tradições populares seria o de vincular o homem a todas as energias visíveis e invisíveis que
percorrem o mundo que mantém o contato natural sem ter adquirido características
individualizadas” (LE BRETON, 2011, p.62). Le Breton (2011) a fim de entender o corpo
moderno propõe uma volta a essa festa popular, reportando-se ao período medieval. A análise
do autor se dá identificando a necessidade de distanciamento de referências atuais para
entendermos esse corpo específico do período carnavalesco que, segundo o autor, faz-se
grotesco:
O corpo grotesco é formado de relevos, de protuberâncias, ele transborda de
vitalidade, está mesclado à multidão, indiscernível, aberto, em contato com o
cosmo, insatisfeito com os limites que ele não cessa de transgredir. É uma espécie
de “grande corpo popular da espécie” (Bakhtin), um corpo eternamente renascente:
grávido de uma vida a nascer ou de uma vida a perder, para renascer ainda (LE
BRETON, 2011, p.47).

O corpo da sociedade medieval não se encontra separado do que seria o corpo grotesco
carnavalesco. Eles estariam ligados, existe um vínculo entre eles, que se complementam. Já
27
“na modernidade haveria uma separação do cosmos, marcando dessa forma também a
distinção entre um homem em relação ao outro. O individualismo ocidental levaria o homem
a esquecer a sua relação com a comunidade e o respeito às tradições, tornando-se um
„domicilio autônomo‟ conduzido por suas escolhas e valores“ (LE BRETON, 2011, p. 61).
Até meados da década de 70, o Maracatu Rural ainda era pouco conhecido e ainda era
considerado um brinquedo perigoso e violento que envolvia magia e por isso causava medo e
gerava distanciamento: “Segundo os próprios maracatuzeiros, quando saíam para brincar o
carnaval no sábado, não sabiam se voltariam na terça-feira. Os caboclos portavam facas na
cintura e até armas de fogo. Nas suas apresentações, registravam-se muitas brigas, com
feridos e até mortos” (MEDEIROS, 2005, p.62).

O espírito contraventor dessa brincadeira estava presente, sem haver uma preocupação
em seguir regras que não fossem as do próprio brinquedo. Apesar de hoje ser uma brincadeira
oficial, por imposição da Federação Carnavalesca de Pernambuco, percebe-se no Maracatu
Rural a preservação do caráter de resistência, característico de uma brincadeira constituída
por cortadores de cana-de-açúcar que falam , cantam e dançam as dificuldades de se viver
numa região onde a seca impera e o meio de subsistência se encontra em declínio. É fato que
“a manifestação cultural do trabalhador da cana-de-açúcar, passou de algo desconhecido,
selvagem, primitivo, assustador, misterioso, para o símbolo do carnaval pernambucano e de
pernambucanidade, em menos de duas décadas” (MEDEIROS, 2005, p.28).

Contudo, quando se assiste a um desfile de Maracatu Rural, de caráter competitivo ou


quando se entra no Engenho do Cumbe, no caso específico do Cambinda Brasileira, em meio
àquela brincadeira mesmo que o objetivo seja apenas o da observação, parece que estamos
diante de uma fissura temporal e espacial e acabamos fazendo parte daquele universo, onde os
corpos se retorcem, as bocas sem dentes falam palavras quase incompreensíveis, e os gestos
são exagerados e às vezes trazem conotação obscena. Tudo, contudo, com muito respeito e
seriedade.

Figura 9

28
O corpo grotesco, diz Bakhtin, não é demarcado do resto do mundo, não é fechado,
consolidado, nem totalmente pronto, mas ultrapassa-se a si mesmo, supera seus
próprios limites. Enfatizam-se as partes do corpo onde este está, seja aberto ao
mundo do exterior, seja ele mesmo no mundo, isto é, nos orifícios, nas
protuberâncias, em todas as ramificações e excrementos: bocas abertas, órgãos
genitais, seios, falos, intestino grosso, nariz (BAKHTIN, s.d, p.35 apud BRETON,
2011, p.47).

Além do conceito de corpo grotesco de Le Breton, que lança luz a relação de


inteireza e de transbordamento presentes nos corpos carnavalescos – condição corpórea que
os brincadores de Maracatu Rural emanam não só durante o carnaval, mas em seu dia-a-dia –
a bibliografia referente à Dança Butô me ajudou a refletir ainda mais sobre o corpo desse
brincador, que em certa medida se faz grotesco, e os possíveis caminhos para estabelecer
equivalências corporais com os atores que participaram do processo de pesquisa. Como
mencionei anteriormente, no Butô os corpos conjugam os contrários: alegria e dor, céu e terra,
contendo em si todos os sentidos não podendo ser analisado de forma fragmentada; mas em
sua inteireza: “A ressonância sensível do corpo nessa dança traz uma beleza que se constitui
no grotesco, na desmedida e no informe de um corpo que conjuga alegria e dor como
condição de existência” (TIBÚRCIO, 2009, p. 6). E completando:
São muitas as poesias do corpo na dança Butô: corpo mítico, mutante, em processo,
em metamorfose, corpo morto, corpo reversível, são dimensões que configuram a
poética nessa dança, entrelaçando o belo e a arte. O corpo é retorcido, torto,
dobrado sobre si, arabesco inextricável munido da liberdade de se mover no espaço
(TIBÚRCIO, 2009, p. 6).

As matrizes da Dança Butô e as do Maracatu Rural carregam traços similares fortes,


inclusive no que diz respeito ao caráter de resistência, de sobrevivência, presentes em suas
origens. O Butô é um movimento artístico surgido da crise de identidade que marcou o Japão
no pós-guerra e o Maracatu Rural é uma manifestação popular que surge como meio de
resistência aos maus tratos, à fome e a desigualdade social presente na relação entre os
senhores de engenho da Zona da Mata de Pernambuco e os cortadores de cana-de-açúcar.
Além disso, a Dança Butô traz na sua gestualidade a cultura que reverencia o tempo ancestral,
respeitando e considerando o seu legado, que se faz presente na relação com a morte
(TIBÚRCIO, 2009).
Da mesma maneira que o mito, a dança butô remete-nos há um tempo que não
segue uma cronologia linear de um antes distante, de um agora imediato e de um
depois que se distende para o amanhã, isolando passado, presente e futuro. Ela
assume que carregamos o que nos antecede, carregamos a nossa ancestralidade ao
nosso redor. Os gestos ancestrais estão em nós, estão gravados em nosso corpo e
necessitam ser reconhecidos e explorados (BAIOCCHI, 1995 apud TIBÚRCIO,
2009, p.10).
29
A ligação com um tempo ancestral, caracterizada pela reverência aos mortos, presente no
Butô, não está tão distante da relação que os brincadores de Maracatu Rural têm com seu
culto aos ancestrais indígenas, presentes na Jurema, que se desdobra nas relações entre as
„figuras‟ durante a brincadeira. O Butô, por sua vez, reverencia os mortos, ritualizando a
própria morte no corpo, através de sua dança: “É preciso morrer, para que possam emergir
novas e infinitas possibilidades para esse corpo ser e estar no mundo. Morrer para renascer
diferente, para que o corpo possa deixar-se falar na sua multiplicidade de sentidos que se
desvelam sem parar” (TIBÚRCIO, 2009, p.3).
Esse ciclo vida-morte-vida me conduz à relação arquetípica que a psicóloga Junguiana,
Estés (1999), em seu livro „Mulheres que Correm com os Lobos‟, descreve a partir do conto
„Mulher Esqueleto‟, onde a autora aborda os arquétipos da morte e da vida não como opostos,
mas juntos como o lado esquerdo e direito de um único pensamento: “O modus operandi da
natureza da vida-morte-vida é cíclico e se aplica a todo mundo e a todas as coisas” (ESTÉS,
1999, p. 414). Para que o novo possa nascer algo tem que morrer, transformar-se.
„Desmaranhar‟ a mulher esqueleto33, segundo Estés (1999), significaria então modificar nossa
percepção sobre a natureza das coisas. Significa repensarmos a natureza do nosso corpo, ou
seja, a nossa, visto que nós somos o nosso corpo. Tal relação foi fundamental para construção
do argumento dramatúrgico do espetáculo Cravo do Canavial.
Partindo do princípio que percebemos o mundo a partir dos nossos afetos e a fim de
esclarecer o que me move, recorro a algumas linhas da introdução dessa dissertação onde
abordo o arquétipo da sombra e sua relação com o meu processo criativo, descrevendo-a
como força potencializadora da criatividade. Já na introdução falo da necessidade de partilhar
o sensível com os atores envolvidos no processo e na consequente materialização desse
encontro de subjetividades em potência criativa, a fim de gerar a poética cênica do Canavial e
pensar o ator como co-criador, autônomo, fazendo alusão ao ator-compositor de Mateo
Bonfitto (2002). O contato com os princípios da Dança Butô lançaram luz a experimentos
conduzidos, tornando essa relação de subjetividades ainda mais palpável. Ao trabalharmos,
como já mencionei, com alguns de seus princípios - através do olhar de pesquisadores, cujo
objeto de investigação perpassava por esta técnica, e através de relatos do próprio Kazuo
Onho, ao falar sobre o processo de criação de sua dança - relacionados aos da brincadeira

33
No conto, a Mulher Esqueleto é fisgada por um anzol e se vê emaranhada na linha da vara de pescar do
pescador. Esse conto será abordado no capítulo três, pois o mesmo serviu de estímulo para construção da
dramaturgia do espetáculo Cravo do Canavial.

30
popular, nos direcionamos a um contato ainda maior com questões referentes à ancestralidade,
ritualidade e ao universo arquetípico.
Em suma, as características do grotesco, da relação de inteireza, e da relação arquetípica
com a morte, fomentaram a discussão e a reflexão em sala de ensaio com os atores à medida
que encontramos traços similares entre tais princípios e os presentes no universo da
brincadeira popular. Por isso experimentei alguns desses princípios materializados em
dinâmicas durante o processo em sala de ensaio com o objetivo de atingir lugares outros que
dizem respeito a um corpo que se faz memória. Por exemplo, o fato do Butô se inspirar em
“imagens arquetípicas, que nos ligam ao sagrado, ao cosmos, que nos ligam à nossa origem,
ao útero da terra, da mãe”, me fez idealizar a „dinâmica do barro‟, relatada anteriormente.
Outra relação que se pode traçar entre os princípios do Butô e o processo do Cravo do
Canavial está na própria imagem que se tem do brincador que aos setenta, oitenta anos,
vestem suas „figuras‟ com tamanha leveza e desenvoltura, acentuando ainda mais a percepção
da relação tempo-espaço diferenciada na brincadeira. Na Dança Butô, temos a referência de
Kazuo Ohno, um dos nomes de maior expressividade dessa manifestação artística:
Mostrar em cena um corpo de um dançarino como Kazuo Ohno, que com mais de
90 anos, com uma idade talvez avançada para dançar na nossa concepção
cronológica do tempo, ainda pode trazer a leveza e a agilidade do gesto, é uma
lição legada pelo butô, ao revelar a possibilidade de dançar, mesmo que não
sejamos tão jovens na idade cronológica. Também nos deixa o legado de que a vida
continua a vibrar, desde que estejamos disponibilizados a nos abrir ao mundo, a
abdicarmos do enclausuramento na apatia, no isolamento, na mesmice. É possível
mudar, por mais que a maturidade avance. Sempre há tempo para inovar,
transformar de alguma maneira a nossa condição existencial. São nesses possíveis
que o butô se debruça e se constitui (TIBÚRCIO, 2009, p.7).

No Maracatu Rural, corpos de homens e mulheres de oitenta anos se misturam com os


das crianças evoluindo em coreografias que não dá para acreditar que tal execução seja
possível. O corpo do brincador é um corpo aberto, que se transfigura em cada momento da
brincadeira. Até que ponto a definição de Baiocchi (1995) sobre os personagens de Kazuo
Onho caberiam para as figuras vestidas pelos personagens do Maracatu Rural? “(...)
atemporais e despolarizados, sintetizam de uma vez só a criança e o velho, o elemento
masculino e o feminino, a treva e a luz, dor e prazer, o feio e o belo, vida e morte”
(BAIOCCHI, 1995, p.44 apud TIBÚRCIO, 2009, p.10).

31
Figura 10

É preciso dançar com a alma. Quando ficamos velhos, não quer dizer que se
acabam as experiências de vida. E, mesmo sendo jovens, podemos ter profundas
experiências. Não adianta ficar pensando, preocupando-se com o que vai dançar.
Sinta a vida dentro de você. Dance a partir desse sentimento. (OHNO apud LUISI
e BOGÉA, 2002, p. 98)

Uma criança aos oito anos, já caboclo mirim, sabe o seu papel na brincadeira, os passos que
precisa executar para evoluir na coreografia e respeita a seriedade que a envolve. Tradição,
que herdou do pai, do avô. Está na memória, memória de um corpo que brinca Maracatu
Rural, no caso do Cambinda, há mais de cem anos, que carrega a ancestralidade tatuada em
seu corpo de uma herança indígena e africana. Um corpo-memória. Reforço importância de
traçar tais relações, pois para mimetizar as „figuras‟ vestidas pelos brincadores populares é
preciso entender o corpo desse brincador, a sua relação com esse corpo e com a brincadeira
em si:
Não se pode analisar um fenômeno cultural separado do meio em que surgiu. As
manifestações populares expressam uma ideologia, uma visão de mundo e,
portanto, negar isso é supor que existe arte sem participação dos autores que
expressam nela a sua relação com o mundo, os seus conflitos (GUARALDO, 2010,
p. 53).

É um corpo brincante que canta, dança, toca e veste „figura‟, um corpo que se faz memória e
que será „vestido‟ por outro corpo que também carrega todo um referencial em sua memória
muscular. A fim de aprofundar essa reflexão trago à tona o conceito central da obra do
sociólogo Pierre Bourdieu. Àquilo que o autor chama de habitus: “processo de registro e
renovação de tudo o que nós e nossos antepassados vivemos” (ALVES, 2006, p. 45). De um
lado a história que se acumula nas coisas durante o tempo, por exemplo, em monumentos, em
livros, etc; e de outro a história incorporada em habitus que reaviva e atualiza a „história feita
coisa‟:
O princípio da ação histórica – a do artista, do erudito ou do governante, assim
como a do operário ou do pequeno funcionário – não é um objeto que se confronta
32
com a sociedade como um objeto constituído pela exterioridade. Ele não reside
nem na consciência, nem nas coisas, mas na relação entre dois estados do social, ou
seja, entre a História objetivada das coisas, na forma de instituições e a História
encarnada nos corpos, sob a forma desses sistemas de disposições duráveis que
chamamos habitus. O corpo está dentro do mundo social, mas o mundo social está
dentro do corpo (...) (BOURDIEU, 1982, p. 40 apud ALVES, 2006, p.46).

Baseada na obra de Bourdieu, Alves (2006) aborda o habitus como um dos fios
condutores da sua pesquisa, tomando como referência a hexis corporal, que diz respeito ao
gestual, a postura. Diz respeito à como se coloca no meio, suas relações incorporadas
inconscientemente ao longo de sua trajetória, de sua história (ALVES, 2006). Ou seja, ao
longo da história de sua vida, de geração em geração, o individuo vai tatuando seu corpo e
revelando tais marcas nas ações de seu cotidiano: “Seria então o que há de comum entre o
passado e o presente, em termos de gestos, crenças, rituais, saberes, costumes, disposições
adquiridas, e que estão presentes na individualidade de cada sujeito individualcoletivo. Logo
entendemos que a corporeidade de cada um é também constituída pelo „habitus‟
individualcoletivo” (ALVES, 2006, p. 47).
Sobre isso, lembramos de Vaz (2001, p.59), quando diz que “memória e história se
recolocam também no corpo. Seja nos gestos miméticos que nos inscrevem numa
tradição, seja nas marcas pessoais e intransferíveis que carregamos em nossos
corpos”. Trata-se de um sistema mutável, como produto da história ao entrar em
contato com experiências novas faz-se afetado por elas (ALVES, 2006, p. 47).

Desde o primeiro dia de trabalho com os atores a condução foi direcionada para esse
encontro da memória de pele de cada um, da história de cada um34, para que de algum modo
tal história confluísse com a pele das „figuras‟ que seriam posteriormente mimetizadas.
Partimos do princípio de que encontrar equivalências dessas „figuras‟ do Maracatu Rural no
corpo do ator, a fim de desenvolver a aplicação da Mimese, pressupõe um despertar corpóreo
da própria ancestralidade desse ator. Um dos atores que participou da primeira etapa do
processo, George Holanda, apresentou o seguinte relato escrito depois do primeiro dia de
trabalho:
(...) Fomos criando um estado de jogo em que os olhares e os contatos foram se
tornando confidentes, e que, ainda que muitos já se conhecessem de outros
momentos, passamos a construir uma nova relação. E a cultivar uma energia
comum. É verdade que esse nosso brincar é diferente do gozado pelos senhores que
dançam o maracatu, afinal, era a nossa maneira de brincar, mas também sinto que
de alguma forma também era similar, ou melhor, havia uma equivalência entre o
que experimentamos e o que vivenciam aqueles senhores que dançam o maracatu,
como nos explicou Carla. Após criarmos esse estado, nos voltamos ainda mais para
nossa história individual. Carla havia nos pedido que levássemos um objeto que

34
No terceiro capítulo abordo o processo de construção da dramaturgia cênica do espetáculo Cravo do Canavial,
relacionando a sua composição a uma dramaturgia „de‟ memórias, que envolvem as minhas, as dos atores e as
dos brincadores do Cambinda Brasileira.
33
fosse precioso para nós e que fizesse parte da nossa história de pele. Mergulhamos
na nossa história para trazer, através de movimentos, as lembranças impregnadas
nestes objetos. (...) Como para aqueles cortadores de cana, o maracatu faz parte da
história deles desde a infância, para nós, na mesma ideia de equivalência, aqueles
objetos nos remetem a nossa história (Relato do ator GEORGE HOLANDA).

A brincadeira é uma manifestação coletiva, sirvo-me desse coletivo para pensar o


cênico. Um coletivo onde as singularidades de cada ator, suas subjetividades, serão
ressaltadas. E a Técnica da Mímesis Corpórea, e o trabalho do treinamento pré-expressivo que
a antecede, propiciam que a linguagem pessoal de cada um manifeste-se, como explicarei
mais adiante.
Assim, cada corpo tem sua própria escrita. Uma escrita individual. E por ser
individual é específica e diferente. Mas, sendo corpo, sendo individual e sendo
diferente é ao mesmo tempo semelhante. Semelhante ao outro que o identifica, que
o faz se perceber único e ao mesmo tempo semelhante, que juntos estabelecem
códigos dessa individualidadecoletiva e por isso criam, recriam, aprendem e
ensinam os saberes da sua convivência, da sua cultura, da sua etnicidade. Portanto,
podemos ter como pressuposto que “o si-mesmo” não é apenas único, é também
coletivo (...) (MARIOTTI, 2000, p. 68 apud ALVES, 2006, p.60).

Contudo antes de aprofundar essa linha de discussão que envolve o corpo do brincador e
o corpo do ator, que também se faz pesquisador, vale ressaltar mais algumas características
presentes no Maracatu Rural para que determinadas questões fiquem mais claras
posteriormente. Características que irão fomentar ainda mais discussões relativas à relação do
corpo desse brincador com o brinquedo em si, referente ao cotidiano desses brincantes que se
faz extraordinário (DAWSEY, 2005) por natureza.

O Maracatu Rural acontece em dois momentos específicos: o do Cortejo, que são os


desfiles no período carnavalesco, e o das Sambadas - que funcionam com uma espécie de
„esquentamento‟ para os brincantes e o público em geral. Cada momento apresenta regras
específicas, caracterizando-se, dessa forma, pelo jogo, dentro do jogo. A Sambada - festa ao
ar livre, onde os trabalhadores rurais se integram, cantam e dançam - é considerada um
importante elemento de reprodução do Maracatu Rural porque, nesse período os que não
conhecem a brincadeira passam a ter acesso as suas danças e aos detalhes da manifestação. É
nessa ocasião que os Mestres criam suas loas, disputando entre si de improviso (VIEIRA apud
MEDEIROS, 2005). É a ocasião também para os brincadores treinarem sua evolução,
trocando uns com os outros suas experiências. Trata-se de um „esquentamento‟ para o cortejo,
onde o „estrangeiro‟ sente-se pertencente àquele universo. Tais encontros acontecem a partir
de setembro preparando os brincadores para o Cortejo (desfile), que se dará no carnaval no
ano seguinte.
34
Outro momento da brincadeira, especificamente no Cambinda Brasileira, é o que
antecede a saída dos brincantes para o desfile: Vinte e quatro horas antes de evoluir, os
Caboclos de Lança e as demais „figuras‟ são recebidas na entrada do Engenho do Cumbe para
se apresentar ao Mestre, que dá uma espécie de „benção‟ a cada um como proteção para o
desfile em cortejo. O público, apesar de poder observar esse acontecimento, fica „apartado‟ da
brincadeira por uma cerca construída no meio do terreiro, separando os que participam do
brinquedo dos, novamente, „estrangeiros‟. Depois disso, os brincadores paramentados, entram
em ônibus e/ou caminhões em direção ao centro da cidade do Recife onde encontram outros
maracatus para o desfile. Conta-se, que o trajeto entre Nazaré da Mata e Recife era feito a pé
nos primeiros anos da brincadeira: “Andavam quilômetros de terra rachada que só poderia ser
encarada com muito azougue na vêia”, disse sorrindo, em entrevista, o atual administrador do
Cambinda Brasileira, Zé de Carlos35.
Já os Cortejos, momento da brincadeira que é oficial, são desfiles que acontecem
durante o carnaval. Existem os cortejos livres e os que são de caráter competitivo, que não
carregam apenas as regras características da brincadeira, mas da Federação Carnavalesca de
Pernambuco, que dá um ar de „espetacularidade‟ à manifestação, à medida que insere o
brinquedo em competição realizada no carnaval, onde os maracatus desfilam numa espécie de
„sambódromo‟. Os próprios brincadores organizam-se, a fim de conseguir evoluir na passarela
de forma qualificada dentro dos critérios de avaliação da comissão julgadora. Por conta desse
fato, muitos estudiosos afirmam que hoje o maracatu transformou-se em mercadoria:
“Começa o processo de descaracterização, estilização das figuras, modificações no
comportamento e valores dos maracatuzeiros que criaram uma manifestação sem qualquer
interesse mercadológico e têm que reorientar sua manifestação cultural para fins mercantis”
(MEDEIROS, 2005, p. 70).
É fato que o número de maracatus cresceu com o apoio oficial, tornando-se uma atração
turística. Quando conversei com o administrador do Cambinda Brasileira em seu ateliê, Zé de
Carlos demonstrou preocupação com o rumo que a brincadeira estava tomando. Conta que
perderam uma Catita, porque o brincador queria um cachê mais alto, devido às premiações
que recebeu em três carnavais consecutivos. Esse problema não se concentra num único
maracatu, mas vários brincadores já vêm se referindo ao valor das despesas para financiar o
brinquedo. É importante dizer sem perder o foco da dissertação que a falta de recursos é um
dos grandes problemas dos que fazem a brincadeira. Foi uma das primeiras coisas que me

35
Entrevista com Zé de Carlos, administrador do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, realizada por Carla
Martins. Fevereiro de 2011. Ateliê do Cambinda Brasileira. Nazaré da Mata.
35
disse Zé de Carlos, reclamando da falta de incentivo e da ida de muitos pesquisadores que
„garimpam‟ o que precisam e não voltam mais. A fim de me precaver, caso Zé de Carlos, o
administrador, tenha mandando uma „indireta‟ para essa pesquisadora, tratei logo de prever no
projeto, ao ser contemplado com o prêmio Myriam Muniz, uma apresentação lá no Engenho
do Cumbe. Só por via das dúvidas36.
Vale ressaltar, no entanto, que se por um lado o crescente número de agremiação
preocupa os brincadores, por outro o crescente apoio à brincadeira possibilitou que fosse
criado, em Nazaré da Mata, um grupo de Maracatu Rural composto só por mulheres. Numa
brincadeira onde era proibida a participação feminina cuja função era direcionada apenas
para confecção das indumentárias das „figuras‟, junto com os homens, e para fazer a comida
dos brincadores durante as festividades, trata-se de mudança bastante significativa 37.
Depois desse parêntesis, voltemos às Sambadas e aos Cortejos. Apesar de podermos
analisar tais momentos separadamente por possuírem características tão específicas, pode-se
dizer que tanto as sambadas quanto os cortejos fazem parte do dia-a-dia dos brincadores,
configurando-se em desdobramentos de seu cotidiano e até se confundindo com ele. Os
corpos dos brincadores se transfiguram no momento da brincadeira fruto não de um
descolamento, mas de um desdobramento desse cotidiano. A separação e/ou amalgamento
entre cotidiano e extracotidiano tem sido bastante discutida não só na área das Ciências
Sociais, mas também na área das Artes Cênicas, reverberando em questões referentes à
teatralidade e à espetacularidade, e como veremos, no segundo capítulo: performance social e
performance estética.
A Etnocenologia aponta duas noções distintas de jogo social: a teatralidade e a
espetacularidade, sendo a primeira relacionada ao cotidiano e a segunda ao que extrapola o
dia-a-dia, como as competições de Maracatu Rural que acontecem durante o carnaval, por
exemplo. Alguns autores utilizam o instrumental teórico da etnocenologia para abordar as
brincadeiras populares. Guaraldo (2010), ao tratar da relação do corpo do artista cênico com o
corpo do sambador de cavalo-marinho, relaciona o pensamento proposto por Bião38, para
afirmar o caráter complementar entre a teatralidade e a espetacularidade:

36
Desdobramentos no terceiro capítulo.
37
Ressalto essa informação referente à existência de um Maracatu Rural composto só por mulheres, devido
relevância de tal informação para o processo de construção do espetáculo Cravo do Canavial , embora na
ocasião da conversa citada não houvesse nenhum intenção de que isso fosse ocorrer.
38
Segundo Bião (2007) a experiência e a expressão de artistas provenientes de diversas formas de espetáculos e
de culturas distintas somada à experiência de sistematização desses processos de trabalho relacionados ao
ambiente acadêmico servem de suporte teórico para a etnocenologia. “Esse horizonte também pode se beneficiar
das contribuições da antropologia teatral, dos estudos de performance e das ciências humanas e sociais aplicadas,
particularmente em suas vertentes dedicadas à antropologia do imaginário (...) (BIÃO, 2007, p. 33-34).
36
Segundo Bião, a teatralidade é o resultado da tradição vivida de uma comunidade.
Diz respeito a ritos rotineiros de interação que incorporam todas as mudanças
sociais. Vive-se dessa forma, não se pensa mais nisso. Nós interpretamos nossos
papéis e é tudo. É o trágico, o destino e a fatalidade. A espetacularidade, por sua
parte, representa todas as tentativas de manipular a sociedade, de organizá-la, de
compreendê-la, na qual os resultados são formas espetaculares de interação social.
É a cena dramática, o universo da ação humana sobre o mundo. É, enfim, o cômico
e a moeda de troca que se dispõe para negociar com as duas formas de jogo social.
É o que epifaniza o substrato lúdico da vida social (OLIVEIRA, 2006, p. 40 apud
GUARALDO, 2010, p. 23).

A teatralidade seria aplicada às pequenas interações rotineiras, nas quais as pessoas agem para
o olhar do outro de modo consciente e ao mesmo tempo sem tanta consciência ou nas palavras
de Bião (2007) „confuso‟, “onde não há uma distinção clara entre „atores e espectadores‟, por
desempenharem todos simultaneamente os dois papéis” (BIÃO, 2007, p.35). Já a
espetacularidade é aplicada “às maiores interações extraordinárias, quando coletivamente a
sociedade cria fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm
consciência clara como atores e espectadores” (2007, p. 35).
Pode-se identificar fricção entre esses dois territórios - o da teatralidade e o da
espetacularidade – ao analisar tanto o momento das Sambadas quanto o dos Cortejos. Nas
Sambadas e até certo ponto durante os Cortejos, sem caráter competitivo - apesar do último,
apresentar uma separação maior entre quem brinca e quem observa - „ator e espectador‟ estão
misturados em uma mesma fissura espaço-temporal; mas ao mesmo tempo os brincadores
carregam nesses momentos, certa espetacularidade, uma vez que o brincador não se encontra
desprovido de uma „amostração‟ de quem está sendo observado. Há uma intencionalidade de
realizar uma ação que é de certa forma observada (GUARALDO, 2010, p.23). Já durante os
Cortejos de cunho competitivo o caráter de espetacularidade se faz mais acentuado.
A fronteira entre o teatral e o espetacular, entre o cotidiano e o extracotidiano, no
universo das manifestações populares, encontram-se redesenhadas. O estado de jogo
característico da brincadeira está tão „arraigado‟ no cotidiano desses brincadores, a ponto da
linha que separa o „brincador a paisana‟ e o brincador vestido com sua „figura‟,
desempenhando sua função no brinquedo, ser muito tênue quase imperceptível. O brincador
carrega uma „amostração‟ natural que é facilmente acionada por se tratar de „lugar‟ tão
próximo ao seu dia-a-dia. O ideal, então, talvez seja pensar o cotidiano e o extracotidiano em
termos complementares e não excludentes, como apontou Guaraldo (2010), o que nos faz
imaginar um corpo que ocupe esses dois lugares, um corpo „entre‟, que condense nele mesmo
o que seria cotidiano e extracotidiano. Pensar que o corpo do brincador popular ocupando esse
lugar, que se materializa no „entre‟, materializa-se na fricção entre esses dois territórios. Um
37
corpo que se faz grotesco, em seus transbordamentos cotidianos, acentuando o caráter
extraordinário, espetacular, do dia-a-dia, e que traz como vestimenta tatuada na própria pele a
ancestralidade materializada na relação entre as „figuras‟ no terreiro da brincadeira de um
tempo cultuado entre um gole e outro de azougue.
É nesse corpo que os atores-pesquisadores precisarão „habitar‟. Acredito ser possível
traçar similaridades entre esse corpo e a sua relação com a brincadeira com o corpo do artista
cênico e a sua relação com o treinamento e com o próprio jogo teatral. Nos depoimentos do
Mestre do Cavalo Marinho Estrela do Oriente (PE), Inácio Lucindo, e do ator do Lume,
Ricardo Puccetti, encontramos pistas de que forma a brincadeira repercute no corpo de
artistas cujas trajetórias se fazem diferentes, mas que encontram intersecções ao relacionarem
vida e arte:
Corpo livre, prazer de seguir os impulsos internos e a preocupação de se conectar
com o outro e com o espaço. Ver o mundo de ponta cabeça e estar aberto para
novas possibilidades de agir nesse mundo. Brincar é lidar com o caos e de dentro
dele fazer surgir em quem vê ou participa da brincadeira aquela vontade de
também estar jogando com o corpo todo (PUCCETTI in folder Conexão Cavalo
Marinho, 2011).

Uma brincadeira é um alegramento, uma fantasia, é um recurso, é uma vida


especial, é um tempo de memória, é um coração popular, é a gente ter ginástica no
corpo, saber bem se manobrar, é a gente ficar com saúde, poder se apresentar
(LUCINDO in folder Conexão Cavalo Marinho, 2011).

Acredito ser possível traçar similaridades, por exemplo, a partir da relação entre as
Sambadas e o treinamento do ator; pensando treinamento como „combustível‟39, ou seja, algo
que alimenta o seu „corpo-mente-espírito‟, onde ele (o ator) aprende a lidar com suas energias
sutis a fim de qualificar o momento do „estar em cena‟. Tanto o brincador quanto o artista
cênico tem em seu cotidiano práticas referentes à preparação do seu corpo (pensando aqui,
voz como corpo) para participar de um espetáculo ou, no caso dos brincadores, preparar-se
para um Cortejo. Tal qual a relação dos atores, guardando as devidas proporções, os
brincadores estabelecem nas Sambadas o „momentum‟ desse treinamento, desse
„esquentamento‟. Há, nas Sambadas, uma consciência do ato de jogar e um distanciamento
mais acentuados – pois, esse é o „lugar‟ de aprender e ensinar elementos da brincadeira – a
imaginação flui entre os brincadores e há o fator do imprevisível, dando como exemplo, as
disputas de loas que se dá entre Mestres de diferentes Maracatus e as disputas entre os
Caboclos de Lança, que dançam disputando lugar no terreiro. Contudo, apesar das Sambadas

39
Faço referência ao trabalho de treinamento desenvolvido pelo Lume, que considera o treino como o
combustível, o alimento do ator. Ainda nesse capítulo, abordo esse conceito, especificando-o detalhadamente.
38
também se caracterizarem como espaço de jogo40, nesse momento o brincador prepara seu
corpo aperfeiçoando suas manobras e loas, treina para os desfiles, Cortejos livres e oficiais,
como expliquei anteriormente.
Navarro (2009) aborda a construção do corpo nas danças populares e no teatro
contemporâneo, destacando a singularidade desse corpo para extrair fundamentos de
procedimentos técnicos de criação cênica. A relação entre os atores e o processo criativo
apontado por Navarro (2009) reverbera no processo do Cravo do Canavial:
Em toda a rede de manifestações da cultura popular seus intérpretes trazem uma
história de vida que revela a necessidade de resistir a muitos embates. Antes de
tudo são corpos guerreiros. Vivenciados como personagens, percebemos que o
corpo só se ajusta na linguagem quando adquire densidade – um tônus elevado que
apresenta elasticidade. Os significados vida-festividade se articulam através do
movimento, fazendo o corpo soltar-se, entregar-se, tendo como premissa o “tônus
da resistência” que se mobiliza com o “tônus de apoio” (RODRIGUES, 1997, p. 75
apud NAVARRO, 2009, p. 99-100).

E ainda dá uma pista de tal relação envolvendo os brincadores e os atores, como abordo a
seguir traçando uma relação entre o „esquentamento‟ presente nas brincadeiras populares e o
treinamento do ator.
O que é esperado do ator é que ele tenha condições de estar presente por completo
durante o trabalho que está estruturado na experiência presencial e que quer
trabalhar com dados, cujo desdobramento depende dessa qualidade de estar
presente como um jogador, tanto ao pesquisar o material, como ao acessá-lo em
laboratório de criação cênica e ainda no ato da apresentação (NAVARRO, 2009,
p.80).

1.3. „ENTRE‟ O ESQUENTAMENTO E O TREINAMENTO PRÉ-EXPRESSIVO

Ao Ator: Tradinari!

Antes de traçarmos similaridades entre o universo do brincador popular e o do artista


cênico é importante abrir um parêntesis para discutir a ideia de treinamento que será adotada
nessa pesquisa. O treinamento pode remeter à militarização, formatação, mas a própria
etimologia da palavra nos permite encontrar outra definição possível. Durante uma conversa
que acabou desencadeando numa entrevista, Ferracini41 aponta como uma das possibilidades
de leitura, o vínculo etimológico da palavra treinamento associado à ideia de „tradinari‟:

40
Citando mais uma vez, a visão apontada por Kosovski (2001) referente ao jogo, fazendo parte do cerne da
manifestação de teatralidade. Jogo abordado
41
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
39
„ensinar o falcão a caçar aquilo que ele comumente não caça‟. Ferracini ressalta que apesar de
existir uma leitura de treinamento como enquadramento, tal possibilidade não se faz única,
mesmo que esteja arraigada culturalmente, acentuando que não se trata de uma leitura errada,
mas que a partir da ideia de „tradinari‟, treinamento pode ser analisado também como a
intensificação de algo:
Etimologicamente dá uma ideia de potência também. No Lume nós utilizamos o
treinamento com a ideia de intensificar. Lugar de experimentar-se, de transbordar-
se, de um transbordamento que visa um aumento de potência não só do seu corpo,
mas também quando você estiver em cena, ou seja, um aumento de potência de
coletividade. Treinamento não é acúmulo de conhecimento, formatação ou
adestramento corporal, mas no nosso modo de entender e etimologicamente
também, existe um deslocamento de treinamento ser uma potencialização de si. No
sentido que o Foucault traz de cuidar de si, que é um espaço-tempo para você se
experimentar, enquanto cuidado de si mesmo42.

Nessa livre associação do falcão à figura do ator, „tradinari‟ seria então estabelecer
uma linha de fuga daquilo que você já é. Buscar, ampliar, transbordar aquilo que você já é.
Não significa esquecer algo e fazer outra coisa, mas intensificar aquilo que já se faz. O
treinamento seria „o combustível do ator‟, onde ele trabalha as energias sutis, prepara o seu
corpo, pondo a energia em trabalho, podendo se desenvolver por um processo que parte de
uma técnica sistematizada e codificada (técnica de aculturação), ou de uma busca individual:
conectando-se com suas próprias energias, o ator aprende a organizá-las no espaço e no
tempo. No Lume, o treinamento pré-expressivo estaria associado à técnica pessoal de
representação, onde o ator trabalha com suas energias potenciais (FERRACINI, 2003).
O “treinar” se confirma muito mais como uma postura ética na relação com o
corpo, com o espaço, com as relações sociais, com suas próprias singularidades.
Um atuador deve estar em constante treinamento ou, em outras palavras: um
performador deve estar na busca constante de fissurar seus limites de ação
procurando uma potência possível de expressão, seja em uma sala de trabalho, seja
no ensaio de um espetáculo, seja dentro do próprio espetáculo (FERRACINI, 2007,
p.03 apud GUARALDO, 2010, 54-55).

No trabalho do ator, fala-se muito sobre um „estado cênico‟ que o intérprete precisa
atingir quando em momento de representação. Um ator que não interpreta, mas representa.
Um ator que aprende a articular suas ações físicas e vocais no espaço, manipulando sua
energia a fim de trabalhar questões referentes à dilatação corpórea e à presença cênica. O ator,
segundo os princípios do Lume, compromete-se não apenas com o seu corpo, mas com o seu
corpo-em-vida, “um corpo em constante comunicação com os recantos escondidos, secretos,
belos, demoníacos e líricos de nossa alma” (FERRACINI, 2003, p.37). Para conquistar tal

42
Idem.
40
„estado‟, que está associado a questões de presença cênica e dilatação corpórea, o ator deve
aprender a manipular a execução de suas energias potenciais em relação às ações físicas e
encontrar caminhos corpóreo-musculares para que sua ação integre a sua pessoa dentro de
uma totalidade psicofísica (FERRACINI, 2003). E, é através do treinamento pré-expressivo
que esse ator „não-interpretativo‟43 aprende a manipular sua energia corpórea atingindo o que
seria um estado de corpo-em-arte.44 Mais uma vez estamos diante da relação dicotômica que
seria o corpo desse ator em estado cotidiano e o seu corpo em estado cênico, ou melhor
dizendo em estado extracotidiano.
Nessa perspectiva entre a vida e a arte, o cotidiano e o extracotidiano; a representação
cênica estaria a princípio vinculada ao estado que extrapola o cotidiano. Contudo em nome da
implosão destes dualismos em artes, Renato Ferracini cria o conceito de corpo subjétil (s.d).
O objetivo seria o de recriar um comportamento corpóreo que “habite um espaço „entre‟: nem
um corpo somente mecânico e formalizado, nem um corpo somente vivo” (FERRACINI,
2004, p. 119). Ou seja, um mesmo corpo que associe técnica e organicidade, forma e
conteúdo, habitado por comportamentos cotidianos e extracotidianos. Ao pensar em um corpo
integrado, Ferracini (s.d) diz ser necessário lançar o olhar para esse corpo em comportamento
cotidiano, “verificando nele uma certa potência artística, um campo de intensividades que
pode ser trabalhado e transbordado nele mesmo” (s.d, p. 119). Ou seja, ensinar o falcão/ator a
caçar algo que ele ainda não caça - potencializando o que ele já faz através do treinamento -
pressupõe intensificar o cotidiano e não ignorá-lo, a fim de eliminar no corpo desse
falcão/ator vícios e clichês: “Se o treinamento é um transbordamento de si mesmo do corpo,
para o corpo, no corpo, com o corpo e com o seu corpo enquanto linha força a gente só vai
poder transbordar e ir para um suposto extracotidiano se utilizarmos o cotidiano como
matéria” 45.
E é o trabalho nesse corpo, para esse corpo e com esse corpo que proporcionará seu
comportamento-em-arte, um corpo-em-vida. Posso dizer que essa pesquisa é a base
de investigação de todos as linhas de trabalho do Lume. Uma busca de
transbordamento das potencialidades e intensividades do corpo, no corpo e para o
corpo. Uma pesquisa helicoidal que busca transbordar o corpo nele mesmo
(FERRACINI, 2004, p.119).

43
Nos estudos do Lume, o Ator não-interpretativo seria àquele - “que se baseia em ações físicas e vocais
orgânicas e codificadas para sua criação, independente do texto dramatúrgico” (FERRACINI, 1999, p.45)
44
Vale ressaltar que o conceito de „corpo-em-vida‟ aproxima-se do conceito de corpo-em-arte e que ambos,
dizem respeito ao „corpo- subjétil‟, extracotidiano, como mencionarei mais adiante.
45
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.

41
Vale ressaltar que Luis Octavio Burnier, fundador do Lume, já trabalhava com os
princípios referentes ao treinamento pré-expressivo e posteriormente Renato Ferracini,
retoma-os reafirmando os parâmetros de atuação do Lume e criando seu conceito de corpo-
subjétil. O próprio nome subjétil carrega característica desse corpo integrado, cujo insight,
segundo Ferracini (s.d) vem da leitura da obra de Derrida chamada Enlouquecer o Subjétil,
que por sua vez retomou a palavra inventada por Artaud, “aquilo que está no espaço entre o
sujeito, o subjetivo e o objeto, o objetivo. Nem um nem outro, mas o espaço “entre”
(FERRACINI, s.d, p.120). Outro motivo teria sido a semelhança da palavra subjétil à projétil,
“o que nos leva à imagem de projeção, para fora, um projétil que, lançado para fora, atinge o
outro e também se auto-atinge” (p. 120).

Essa aproximação pode ser realizada já que “subjétil” é uma palavra intraduzível,
pois, como foi supostamente inventada por Artaud, não existe tradução possível em
outras línguas. É por essas questões que a imagem de corpo-subjétil surgiu-me de
maneira natural para dizer de um corpo em Estado Cênico, um corpo em arte, pois
o corpo-subjétil, estando primeiramente nesse “entre” objetividade – subjetividade,
dualidade que poderíamos facilmente levar para forma expressão ou mecanicidade
vs.“vida”, ou mesmo comportamento cotidiano vs. comportamento extracotidiano
(FERRACINI, s.d. p.120).

Associa-se assim corpo-subjétil ao conceito de rizoma, proposto por Guattari e Deleuze,


reconhecendo as multiplicidades, os movimentos, os devires que envolve o processo do ator
de teatro:

(...) e o corpo-subjétil, pensado como rizoma, nos dá algumas pistas importantes


para a reflexão. Uma delas, e que percebemos muito claramente, é que esse rizoma
e essa multiplicidade não suportam, nem ao menos, uma dualidade do tipo corpo
cotidiano e corpo-subjétil, ou seja, o corpo cotidiano e o corpo-subjétil são um só e
mesmo corpo que possuem, no máximo, alguns comportamentos diferenciadores e
são esses comportamentos que nos permitem caracterizar, dentro desse corpo
múltiplo, um corpo com comportamento cotidiano (corpo cotidiano) e esse mesmo
corpo ampliado e vetorizado com um comportamento intensivo (corpo-subjétil)
(s.d, p.121).

Trabalhar com procedimentos do treinamento pré-expressivo pressupõe dividir o


processo do ator em duas etapas: uma referente ao treinamento energético e a outra ao
treinamento técnico. O treinamento energético busca o desnudamento do ator, „quebrar‟ os
seus vícios e automatismos corporais, para que ele possa descobrir, ou re-descobrir suas
energias potenciais: “Luis Otavio Burnier, embasado nas pesquisas de Grotowski, acreditava
que a exaustão física poderia ser uma porta de entrada para essas energias potenciais, pois em
estado de limite de exaustão, as defesas psíquicas tornam-se mais maleáveis” (FERRACINI,
2003, p.138). Trata-se de um treinamento coletivo, onde a única regra é nunca parar,
42
constituído por movimentos aleatório, que ocupem todo espaço e englobe a coluna vertebral46,
mola propulsora para toda movimentação.
Hirson (2006) ressalta a importância e a dificuldade de compreensão de fazer com que
os movimentos partam da coluna vertebral, ao descrever seu processo de investigação junto a
Burnier e aos seus companheiros do Lume. “Impulsionada pelo abdômem, a coluna seria o
início do movimento, e os movimentos das extremidades, braços e pernas, uma consequência
desse movimento primeiro” (HIRSON, 2006, p.69). Burnier tomou como referência as
indicações dadas por Decroux:
(...) „A ação nasce da coluna vertebral‟ dizia com freqüência em suas aulas. Assim,
ele diferenciava os movimentos e os gestos que nasciam dos braços e das mãos,
daquelas ações que, nascendo da coluna vertebral, ecoavam nos braços e mãos.
Para Decrouux os braços, mão e rostos eram vistos como terminações,
prolongamentos do corpo. O tronco, a coluna vertebral, era o grande centro de
expressão do corpo e, portanto, merecedor de destaque (BURNIER, 2001, p.32
apud HIRSON, 2006, p.68).

Vale ressaltar, contudo, que é preciso com relação ao treinamento energético ter atenção
redobrada, pois uma vez cansados os atores começam a pré-meditar suas ações. “O ator deve
ter vontade suficiente para superar a si mesmo” (FERRACINI, 2003, p.139). Trocar com
outro dando e recebendo a energia dá combustível ao ator para não desistir.
(...) é muito importante o contato, a relação. Não de toque, mas de vibração. Isso
porque a relação se torna alimento para realização de ações desconhecidas. Se eu
me permito „ouvir‟ o outro e sua vibração, de alguma forma aquilo irá me
transformar e transformar a qualidade das minhas ações. Da mesma forma cada um
deve estar aberto a dar, doar, para que se possa estabelecer um diálogo (HIRSON,
2006, p. 68).

O que vai fazer com que se atinja o estado de exaustão, além do comprometimento dos
participantes, é trabalhar com uma condução que proponha a variação de intensidade dos
movimentos, ritmos diferentes, mudanças de dinâmicas que provoquem diferentes reações no
corpo do ator. Durante esse treinamento, paradas bruscas são provocadas pelo condutor, a fim
de que os atores segurem internamente a sensação. Apesar da imobilidade, eles devem
manter-se pulsando internamente, como uma „panela de pressão‟ prestes a estourar. “Esse é o
46
Navarro em sua tese associa a coluna vertebral a um „religare‟ entre o mundo divino e o terreno: ”A coluna
vertebral é abordada como sendo análoga ao mastro votivo no corpo de cada ator e o conjunto dos corpos é o
mastro votivo para todos os corpos. Para se fazer essa analogia da coluna vertebral com o religare de dois
mundos, como céu e terra, natural e sobrenatural, dentro e fora, conforme observado nas festas sagradas do
congado ou nos estados místicos do oriente, é necessário que se crie um universo a ser conectado enquanto
recurso para construção de uma linguagem poética, já que para o ator não haverá uma situação religiosa e sim
uma situação teatral, resguardando a diferença entre a primeira, que quando vivenciada provoca uma alteração de
status social para o indivíduo ou para o grupo que passou pelo ritual, e a segunda, pois na situação teatral não há
esta mudança de status. Portanto, se a coluna vertebral simboliza esse religare entre dois mundos, para o filho de
santo de um lado está o humano e de outro está o divino, já para o contexto cênico, de um lado está o ator e do
outro lado está um universo imaginário. Esse universo imaginário estará relacionado à memória (...)”
(NAVARRO, 2009, p. 101).
43
primeiro contato do ator com a variação de fisicidade, na qual ele omite os elementos externos
da ação, guardando sua sensação e sua corporeidade” 47 (FERRACINI, 2003, p.139).
Vejamos a seguir o depoimento da atriz Potyra Pinheiro:
Pronto! E o resto da lasquinha de pele de pé se vai! Sinal de trabalho corporal
iniciado! Sensação boa de fervilhar de ideias e corpo ativado. Será que vou dormir
essa noite? Vou sonhar em ritmo de Maracatu! E olhe que é só o começo! Final de
encontro e todos ofegantes, suados, extasiados. O fôlego havia ficado ali naquela
sala, entre os passos aprendidos, divididos e compartilhados. Ficou lá na
construção improvisada de ações, no eco das falas. Na exaustão. Apareceu de tudo,
de coronéis a malandros espertos, uns sofridos e, outros guerreiros brabos. Todos
em direção a sincronia do movimento com a alma (Relato da atriz POTYRA
PINHEIRO, sobre segundo dia de treinamento/‟esquentamento‟).

Encontrando-se limítrofe, do ator começam a emergir ações físicas vivas e orgânicas.


“O energético não é somente um treinamento inicial. Como seu objetivo é quebrar os vícios e
clichês pessoais, sempre que o ator estiver cristalizado, pode-se, e deve-se voltar a ele. Como
uma forma de „revitalização‟ orgânica e energética” (FERRACINI, 2003, p.142). E uma vez
que suas energias estejam dilatadas, passa-se para a etapa do treinamento técnico. Por meio de
uma técnica objetiva, o ator canaliza sua energia para “colocar-se no tempo e no espaço de
uma maneira extracotidiana”. Um ator que „possui técnica‟, nos estudos do Lume, passa a ser
àquele que possui a capacidade de operacionalizar sua „musculatura afetiva‟, sua
organicidade; associando forma e conteúdo, fisicidade e corporeidade (FERRACINI, 2003).
Esse treinamento técnico não dará ao ator uma técnica pronta de representação,
como no caso dos atores orientais. Aqui ele não aprenderá uma técnica
extracotidiana; mas tentará treinar e apreender, no corpo, os princípios que regem
essa „extracotidianidade‟. Com esses princípios incorporados, toda e qualquer ação
que se faça, em cena, será extracotidiana; isso, inclusive, independente da estética
cênica proposta. ”Deve-se incorporar os princípios, mas não as formas codificadas
(FERRACINI,2003, p.145).

Vale ressaltar ainda que o trabalho com os elementos do treinamento pré-expressivo


engloba os seguintes princípios: dilatação corpórea, manipulação de energia, base, foco
(olhos/olhar), variação de fisicidade, precisão e impulsos. E foi a partir dos princípios do
treinamento energético e técnico do Lume, associado aos elementos das brincadeiras
populares e a dinâmicas elaboradas para um maior contato com o universo do popular, que
iniciamos o processo em sala de ensaio. O Maracatu Rural engloba em sua manifestação
elementos de outras manifestações populares: cavalo marinho, pastoril e caboclinhos
(MEDEIROS, 2005). O Cavalo Marinho, especificamente, faz parte do conjunto de reisados 48

47
Tanto o conceito de corporeidade quanto o de fisicidade serão explicadas de maneira mais aprofundada no
subtítulo referente à Mímesis Corpórea.
48
“Os Reisados são formas de dramatização do cotidiano ou de transposição para a forma dramática de
romances e xácaras, formas literárias populares tradicionais em verso. Cada assunto dá origem a um episódio
44
e como encontramos alguns elementos desse folguedo no Maracatu Rural, tomo emprestado
dois termos („banco‟ e „esquentamento‟) desta brincadeira, para definir como se deu o
treinamento do ator no Cravo do Canavial. Neste sentido Guaraldo (2010) nos lembra:
(...) Quase todos os brincadores de cavalo marinho brincam maracatu rural. É
comum encontrar na fala dos brincadores uma forte relação de complementaridade
entre essas duas formas de samba. Em uma das possíveis leituras, o maracatu
relaciona-se com o Diabo, enquanto o cavalo marinho relaciona-se com o que é do
Divino (GUARALDO, 2010, p.22) 49.

Integro então o „banco‟ e o „esquentamento‟ ao treinamento proposto aos atores do


Cravo do Canavial. O Cavalo Marinho é uma brincadeira pernambucana do período natalino
dividida em três momentos: o „esquentamento‟: quando o „Banco‟ toca e as pessoas dançam,
o „mergulhão‟ (jogo em roda) e a parte teatral. Antes da entrada das figuras, os brincadores e
o público (os que quiserem!) fazem um „esquentamento‟, que é a evolução dos passos de
dança presentes nessa brincadeira, ao som dos músicos que sentam em um banco único e por
isso são chamados de: „Banco‟. O „Banco‟ toca e as pessoas esquentam o corpo numa
evolução coreográfica. O „esquentamento‟ do Cavalo Marinho é similar ao „esquentamento‟
que acontece durante as Sambadas de Maracatu Rural. Fora o fato dos músicos no Maracatu
Rural não sentarem num banco, a relação entre a música e a dança se dá de forma similar,
diferenciando-se pelo ritmo proposto, e pela presença da „figura‟ do Mestre como regente. No
trabalho com os atores em Cravo do Canavial, a música produzida pelo „banco‟ estava ligada
ao universo do Maracatu Rural e os passos da dança, aos movimentos também presentes nessa
brincadeira: que reúnem passos de Caboclinhos, Cavalo-Marinho, e até do próprio Frevo. No
segundo capítulo descrevo detalhadamente como se deu essa apropriação ao trabalharmos
com a música e as intervenções sonoras durante o processo.
Já o Mergulhão presente no Cavalo Marinho: Jogo que acontece em roda, onde uma
pessoa entra em quatro tempos chamando outra com o olhar e, ao sair, a que foi chamada
entra chamando outra; também foi adotado no processo do Cravo do Canavial. Esse jogo toca
em questões teatrais referentes ao foco, ritmo, precisão e à relação nos três níveis: em si,
espacial e com o outro. Pode-se, inclusive, introduzir gestos de personagens específicos e até
mesmo texto, nesse jogo, como desdobramento. O corpo do ator precisa estar preparado para
realizar um trabalho de composição, ou seja, o ator precisa ter um domínio de seu potencial de
energia, de suas qualidades energéticas. Para isso, o treinamento energético e técnico é
utilizado, para dilatar o corpo desse ator, para operacionalizar suas energias sutis. O ser

conciso que é representado em meio a uma série de episódios que, por sua vez, vêm constituir o folguedo”
(BENJAMIN, 1989 apud ACSERALD, 2002, p. 44).
49
O personagem Vendedor de Figuras do espetáculo Cravo do Canavial apresenta características das duas
brincadeiras, conforme relato no capítulo três.
45
humano não é somente corpo físico, mas um corpo físico vivo. O ator-pesquisador deve ter
esse corpo desenvolvido e preparado, ou seja, deve conhecer o seu universo humano e
energético.
Em suma, os corpos dos brincadores carregam essa característica do „entre‟, onde os
níveis cotidiano/extracotidiano se confundem, não existindo uma fronteira demarcada entre
eles. No corpo do brincador - sob o olhar do grotesco (LE BRETON, 2010) presente nas
festividades populares - há um transbordamento, fazendo com que ele (o corpo) ultrapasse a si
mesmo. Nem apenas cotidiano, nem tão somente extracotidiano. Um corpo integrado que para
despontar, no caso dos atores, torna-se necessário desautomatizá-lo. Nas manifestações
populares, onde sujeito e brincadeira se misturam, essa integração se dá de forma natural,
levanto então a hipótese desse treino proposto por Ferracini (s.d), cujo intuito é o despontar
desse estado subjétil, apareça sob o nome de „esquentamento‟ nas brincadeiras populares. Ao
refletir sobre o momento do „esquentamento‟ no universo dos brincadores populares,
Ferracini argumenta:
O brincador faz um uso poético do próprio cotidiano, do próprio corpo que ele tem,
no espaço tempo da brincadeira. O brincante já tem um corpo preparado pelo
trabalho. Utiliza o próprio trabalho como Intensificação de si. A ideia seria não
pensar no cotidiano do brincador ou da brincadeira como algo separado, mas dois
universos que se sobrepõem. Criam, dessa forma, um universo bem mais
interessante, poético, complementar 50.

O processo com os atores para aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea e a própria


concepção do espetáculo Cravo do Canavial dialogam com a „implosão de dualismos‟,
proposta por Ferracini (s.d.), ao caracterizar o que seria um corpo-subjétil. Durante o
processo, a busca por um estado de corpo-em-vida, em trabalho, entrou em consonância com
o corpo dos brincadores populares, que condensa cotidiano e extracotidiano, numa
brincadeira que pressupõe um momentum de „treinamento‟, que se faz complementar. Para
tanto, comunicar-se com os „recantos escondidos de nossa alma‟ (FERRACINI, 2003) - a fim
de atingir esse corpo-em-vida, relacionado com o corpo-em-arte, ou seja, um corpo que
condensa os contrários, passou a ser fundamental, para acessar o corpo do brincador popular,
num processo que pressupõe a busca de equivalências corporais, como veremos mais adiante.
Ensinar ao „ator-falcão‟ a caçar „aquilo que ele comumente não caça‟, no nosso processo,
seria então fazê-lo atingir um „estado de corpo‟, que irrompe do subterrâneo do Maracatu
Rural, em nome da poética cênica do canavial.

50
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.

46
1.4. A „POESIA DO ATOR‟ E AS ETAPAS DA MÍMESIS CORPÓREA

Da mesma forma que existem muitos teatros, existe também diversos processos, daquilo
que Bonfitto (2002) chama de „construção de Seres Ficcionais‟. O diferencial está na matriz
escolhida como ponto de partida e em como ela será utilizada para fomentar o trabalho do
ator. Pensando no „como‟, uma vez que a matriz é o Maracatu Rural – chegamos à Técnica da
Mímesis Corpórea. Tal qual sistematizada pelo Lume, é definida como corporificação e
codificação de ações físicas e vocais, o que estabelece um amalgamento entre a discussão do
conceito de ator-compositor (BONFITTO, 2002), e dos possíveis procedimentos adotados em
seu trabalho de composição, e a Técnica da Mímesis - pois a mesma tem também como eixo
condutor as ações físicas, só que, no caso, a recriação delas. Trata-se de um processo de
recriação da corporeidade percebida no cotidiano, numa tentativa de estudar „diferentes
estados‟ de um corpo vivo, em ação no mundo, não podendo então ser confundida com
simples „imitação‟ (FERRACINI, 2004). Adotar os procedimentos da Técnica da Mímesis - a
partir da aplicação de suas etapas: observação, codificação / memorização e teatralização -
seria uma tentativa de “recriar a corporeidade do ator ou criar uma nova corporeidade entre o
corpo do ator e o corpo estudado”, como aponta Ferracini em sua tese de doutorado „Corpos
em Criação, Café e Queijo‟ (2004, p. 211).
Por corporeidade, entende-se o uso particular ou específico que se faz do corpo, a
maneira como ele age e faz, a dinâmica e o ritmo de suas ações físicas e vocais, ou seja, como
ele intervém no espaço e no tempo (FERRACINI, 2004). “A corporeidade é a maneira como
as energias potenciais se corporificam, é a transformação destas energias em músculo, ou seja,
em variações de tensão. Esta transformação de energias potenciais em músculo é o que
origina a ação física”. (BURNIER apud FERRACINI, 2003, p.115). Pode-se estabelecer
então uma relação direta e complementar com o que seria a fisicidade: “parte mecânica pela
qual opera uma ação física”. “Enquanto a fisicidade é o corpo final e trabalhado da ação
física, a corporeidade é a sua alma” (FERRACINI, 2003, p.115). “Cabe ao ator a função de
“dar vida” a essa ação imitada, encontrando um equivalente orgânico e pessoal para a ação
física/vocal” (FERRACINI, 2003, p.202).
Tal discussão envolve a inter-relação corpo-mente-alma, apontada por Ferracini (2003).
Ao condensarmos questões referentes à fisicidade e a corporeidade, o ator consegue atingir
um estado de organicidade. Trata-se de “uma espécie de totalidade psicofísica”. Ou seja, da
fricção entre a fisicidade e a corporeidade, a ação é desenhada no espaço organicamente. Vale
47
ressaltar que, “por orgânico entende-se a capacidade de encontrar e dinamizar um
determinado fluxo de vida, uma corrente quase biológica de impulsos” (GROTOWSKI apud
FERRACINI, 2003, p.111). Organicidade está relacionada, então, a „verdade‟. Para ter
organicidade, o ator precisa estar pleno em cena. Mesmo tendo como ponto de partida uma
vivência externa – observação de terceiros ou de fotografias - a Mímesis propõe um mergulho
no subjetivo do ator, em seu imaginário.
Partindo do princípio de que a Técnica da Mímesis está diretamente ligada ao
entendimento do que seria ação física, eixo norteador dessa Técnica, atenho-me, por hora, à
sua conceituação e à de seus elementos constituintes. Não cabe aqui, contudo, fazer uma
descrição histórica, pois existem os registros bibliográficos do Lume 51 que dão conta dessa
demanda, sem falar que o próprio Bonfitto (2002) faz um relato, que vai de Stanislavski a
Barba, elencando os procedimentos do trabalho do ator que tem as ações físicas como fio
condutor de seu processo52. Burnier (2009) nomeia a ação física como a “poesia do ator”, a
menor célula representada pelo ator. O melhor esclarecimento do que seria a ação física,
contudo, parte do entendimento dos elementos que a antecedem e, por conseguinte a
constituem: intenção, élan, impulso/contra-impulso. Elementos esses que, fazem parte do
momento invisível da „célula mater‟, que é a ação física (FERRACINI, 2003).
A intenção nasce da musculatura, antes da ação se realizar no espaço. É como uma
vontade de agir sem ação. Podemos defini-la também, como uma tensão interna ou
um estado muscular em alerta. Para que essa tensão interna ocorra é necessário, no
mínimo duas forças de oposição. Essa oposição de forças, essa tensão interna, pode
ser chamada intenção (FERRACINI, 2003, p.102).

O élan seria: “Sopro de vida ou impulso vital, algo enigmático, conhecido, porém não
explicável que nos impulsiona à ação, à vida, por meio de ações.” Já o impulso usando Barba
e Grotovski como referências, Ferracini (2003) o descreve como algo interno, ainda invisível
externamente, algo que impulsiona a materialização no externo: “No caso do ator, a palavra
impulso toma um sentido particular de empurrar ou arremessar com força, de dentro. Esse
algo arremessado de dentro para fora vai posteriormente e imediatamente, tomar corpo e
transformar-se numa ação física orgânica” (FERRACINI, 2003, p.103).
Depois que os elementos que constituem a ação física (intenção, élan e impulso) passam
a ser trabalhados internamente acontece a materialização da ação no espaço, ou seja, o
movimento propriamente dito: “O acontecimento da ação no espaço, com itinerário e ritmo

51
Na bibliografia, encontram-se os títulos mais importantes referentes ao trabalho do Lume.
52
A relação autônoma do ator com o seu trabalho, proposta por Bonfitto (2002), permeará toda a experiência em
sala de ensaio com os atores-pesquisadores em Cravo do Canavial. O ator que é “autor de partituras em que
saber e fazer se harmonizam”. (2002, p. XV)

48
determinados. Por itinerário entende-se o „desenho da ação no espaço‟; e por ritmo, o
„desenho‟ dessa ação no tempo”(FERRACINI, 2003, p.105). E ainda sobre o movimento:
O movimento, então, seja enquanto “deslocamento espacial” seja enquanto
“elemento plástico”, e portanto moldável”, é constituído, de elementos que, uma
vez trabalhados, geram a ação. O movimento, nesse sentido, é um componente da
ação, o seu substrato. O movimento somente torna-se ação quando significa,
quando representa algo, quando se torna signo (BONFITTO, 2002, p. 108).53

Da intenção vem o élan e o impulso que se transforma em movimento numa relação


temporal e espacial, esse seria o caminho pelo qual nasceria a ação física. Contudo, para
preencher esse movimento o ator tem que desenvolver presença e uma dilatação corpórea que
corresponde a um contato com sua pessoa, sua alma, sua verdade e suas energias potenciais,
configurando-se assim uma ação física orgânica.
Essa organicidade deve gerar uma energia expandida e/ou dilatada, e finalmente,
todos esses elementos devem ser manipulados, pelo ator, de forma clara, objetiva e
precisa. Como visto, a conexão entre ação física e energia potencial do ator é
fundamental. É o que vai dar vida às ações físicas, transformando-as em ações
vivas, e a técnica, em técnica-em-vida. (FERRACINI, 2003, p.113)

A fim de evitar um resultado meramente mecânico das ações mimetizadas, utilizamos na


primeira etapa do processo, com os atores do Cravo do Canavial, dinâmicas que trabalhavam
com variação de fisicidades e diferentes qualidades de movimentos. Utilizei um exercício que
chamei de „dinâmica de ações‟ e seu desdobramento, „dançando as ações‟. Depois de um
treinamento energético, os atores se deslocavam pelo espaço realizando paradas bruscas,
conduzidas por mim, mantendo a energia internamente, a parada se materializava em forma
de ação. Para isso, precisavam „pensar‟ em verbos para que pudessem atingir o objetivo do
exercício. E à medida que o tempo de resposta era menor, a precisão de parada era maior.
Essa dinâmica associa o principio do treinamento energético do Lume à medida que trabalha
paradas bruscas de um movimento que vinha em fluxo livre e ininterrupto.
Repetimos esse processo algumas vezes, até que os atores tivessem uma sequência de
cinco ações. A partir delas, criava-se uma partitura que iria sendo realizada de maneira
fragmenta e depois com fluência fazendo a passagem, a ligação de uma para outra. Nós
trabalhamos depois várias qualidades de movimentos dessas sequências, variando as
fisicidades. Redução e o alargamento das ações originais, uma a uma, mantendo os vetores de

53
Ao fazer relato sobre ação física, Bonfitto também relata os “elementos que quando trabalhados geram ou
levam a ação: Stanislavski (circunstâncias dadas, objetivos); Meierhold (direção, força, pressão, tração);Laban
(fatores de movimento); Decroux (atitudes plásticas); Brecht (deslocamentos plásticos e espacial)”; Tchékov
(qualidades ou espécies); Barba (deslocamento plástico e espacial)”. Com relação ao deslocamento plástico e
espacial pensado por Barba, eles servirão de âncora para argumentar sobre a escolha por trabalhar em sala de
ensaio com os movimentos das danças populares a fim de compor partituras, associado-os a aplicação da técnica
da Mímesis.
49
movimentos da ação original, por exemplo. O objetivo de trabalhar as ações, variando
fisicidades é tornar a execução das mesmas orgânicas. Vivenciei um exercício similar durante
oficina ministrada por Raquel Scotti Hirson, em fevereiro de 2011.
Vale ressaltar que a Técnica da Mímesis Corpórea é uma linha de estudo do Lume,
independente, que além de permitir a recriação de ações físicas e vocais a partir da observação
do „outro‟, também permite a recriação de „ações estanques‟ (FERRACINI, 2003), originárias
de fotografias e quadros que podem ser ligadas organicamente. E no processo da Mímesis a
partir de fotografias - como é o caso do material instrumental dessa pesquisa, no primeiro
momento de trabalho com os atores – existe uma preocupação ainda maior com questões
referentes à organicidade a partir da repetição das ações codificadas. E a preocupação não
está apenas em o ator adquirir organicidade individualmente, o que por si só já seria
desafiador, mas estabelecer um diálogo de „imitações‟ entre os atores que passe também pela
questão do estar vivo.
Por isso se faz necessário durante a aplicação da Técnica pôr essas matrizes em jogo,
estabelecendo inter-relações em relação ao outro ator, que consiste na terceira etapa de
aplicação da Técnica: a Teatralização. Por ora, vale entendermos um pouco mais sobre os
princípios que a regem, deixemos a reflexão e a aplicabilidade dessas etapas para os capítulos
seguintes.
Faz-se importante frisar que a Técnica da Mímesis Corpórea não pressupõe uma
separação entre corpo e voz. Há um tratamento diferenciado, mas muitas das observações que
devem ser realizadas quanto à postura corpórea podem ser aplicadas a voz. Ao observar uma
ação física o ator deve atentar para o todo e o detalhe com precisão, através de seus
componentes constitutivos: a intenção, o impulso, o movimento (tempo, espaço, força e
fluência) e o ritmo. Já a voz, deve-se levar em conta o foco vibratório, a intensidade (força e
volume), altura, espacialidade e musicalidade. O processo da Mímesis Vocal na primeira
etapa com os atores ficou comprometido, como explicarei mais adiante, por uma questão de
tempo de trabalho e de maturação dos atores dos elementos trabalhados em sala. Como
precisávamos passar por um processo de treinamento anterior e também de mergulho no
universo do Maracatu Rural desconhecido para a maioria dos atores-pesquisadores, os treze
encontros - dos quais o ultimo foi aberto para apreciação externa do processo - não foram
suficientes, ficando para a segunda etapa relativa à montagem do espetáculo um
aprofundamento técnico vocal. Chegamos a trabalhar alguns exercícios referentes à
„embocadura‟ com o músico, ator, e diretor musical do grupo Clowns de Shakespeare, Marco
França. Contudo sua participação se fez mais efetiva no momento da montagem.
50
Burnier (2009) aponta essa Técnica como uma ponte entre o treinamento do ator e a
representação, propriamente dita, ressaltando que a sua utilização não pressupõe um trabalho
de composição „finalizado‟. Ou seja, a Mímesis Corpórea é descrita nos registros do Lume
como um processo capaz de gerar diferentes resultados e suscitar reflexões outras,
dependendo da matriz escolhida e do trabalho constituído em sala de ensaio, motivando ainda
mais do ponto de vista investigativo. Trata-se de uma postura de busca, onde a troca de
experiências, o processo, será fundamental para o desenvolvimento do Objeto de Estudo.
“Alimenta-se, tão somente, de uma relação que afeta e é afetada. Uma relação-em-arte, zona
intensiva, que recria a vida em sua imensa capacidade de beleza” (FERRACINI, 2004, p.233).
Nos dois próximos capítulos discorro sobre processo criativo junto aos atores e também
assumo a função de encenadora e dramaturga do espetáculo Cravo do Canavial. A descrição
desse processo está associada diretamente ao aporte teórico da minha pesquisa. Com relação à
metodologia aplicada no processo com os atores propriamente dito, utilizo da flexibilidade
que o próprio Ferracini aponta nas palavras de Burnier acima citadas de que a Técnica da
Mímesis Corpórea está aberta a outros elementos que não os do previsto no procedimento
sistematizado pelo Lume, visto que a mesma se reconfigura dependendo da matriz escolhida.
Deixo então que o Universo do Maracatu Rural com suas características ritualísticas, lúdicas e
musicais „contaminem‟ nosso processo.

51
CAPÍTULO 2

AS MATRIZES DE UM COTIDIANO „EXTRAORDINÁRIO‟:


„ENTRE‟ A MÍMESIS CORPÓREA E O PROCESSO COM OS ATORES EM
CRAVO DO CANAVIAL

Figura 11

Eu acordei, rumei naquela estrada


atrás de uma sambada
Eu vi o meu amor
Passou por mim lançou aquele riso
Que deu nesse improviso
Peguei minha fulô
Envergonhado mergulhei no azougue
Fui pro canavial
Cravado em minha dor
Suor salgado daquele movimento
Saboreei a cana
Alívio em meu tormento
Já era tarde o sol tava sumindo
A dor indo e eu vindo
Agora tudo é amor.
Cravo Rosa Mel e Flor...
Cravo do Canavial bagaço desse amor.

(LETRA VÂNIA BERTOLDO E MARCO FRANÇA)

52
2.1. ABRINDO O TERREIRO DA BRINCADEIRA: “MAIS DO QUE DEUS NINGUÉM”

Figura 12

Da mesma forma que as três pancadas de Molière marcam o início de um espetáculo


teatral, nos rituais da Jurema, pelo menos os quais tive acesso, a saudação „Mais do que Deus
Ninguém‟ representa a abertura da gira. Ao abrir a gira de Umbanda, o zelador puxa o „Pai-
Nosso‟ com todo o seu sincretismo e entrega os trabalhos à proteção divina. Esse
procedimento fica a critério de cada zelador, mas geralmente é assim que acontece. Ao som
dos atabaques abre-se, então, a gira no terreiro dessa brincadeira. Assumindo a figura de
zeladora declaro aberto o trabalho com os atores do Canavial. Gira, Gira! Gira!„Mais do que
Deus Ninguém‟.
O processo prático referente a essa dissertação se desenvolveu em duas etapas distintas,
porém complementares. A primeira tendo o trabalho de preparação do ator e da aplicação da
Técnica da Mímesis Corpórea como objetivos principais, resultando na criação de Matrizes,
que postas em relação ganharam um novo significado, criando uma dramaturgia espacial
própria. Já a segunda etapa do processo prático, deu-se ao associarmos tais Matrizes
resignificadas a uma dramaturgia „de‟ memórias, resultado do encontro da equipe de criação
do espetáculo com os brincadores em Nazaré da Mata, e de nossas memórias/vivências
pessoais, que em relação umas com as outras, fez-se coletiva. Trata-se da etapa referente à
montagem e a construção da dramaturgia cênica do espetáculo Cravo do Canavial, onde
friccionamos ficção e realidade, evocamos arquétipos e nos „contaminamos‟ com a condição
de violência que a mulher foi e em certo ponto ainda é submetida em Nazaré da Mata.
Nesse capítulo me detenho, contudo, a relatar o processo com os atores no primeiro
momento de trabalho, quando o grupo ainda era composto por nove integrantes. Depois
passaram a ser cinco. Sempre ímpar, conforme a exigência do Maracatu Cambinda Brasileira,
53
que segundo o brincador e administrador Zé de Carlos, seria para trazer consonância ao
brinquedo. Durante treze encontros com duração de quatro horas cada, desenvolvemos então a
primeira etapa do processo prático, cuja metodologia aplicada em sala de ensaio se deu
associando elementos presentes no Maracatu Rural (ritual, jogos, passos das danças, músicas -
loas) aos princípios do Treinamento Pré-expressivo e às etapas referentes à Técnica da
Mímesis Corpórea, propriamente dita. Preparamos os corpos dos atores através de um
„esquentamento‟, fizemos o que chamei de „alinhamento das almas‟54 e depois iniciamos o
processo destinado à observação, codificação/memorização e teatralização das fotografias
referentes às „figuras‟ do Maracatu Rural a serem mimetizadas.
Vale frisar que durante essa etapa do processo os atores ainda não haviam conhecido a
brincadeira in loco, apenas tiveram contato com material fotográfico, áudio e vídeo, atendo-se
especialmente as fotografias de cinco „figuras‟ específicas do Maracatu Rural: Burrinha,
Catita, Dama do Paço, Caboclo de Lança, Mateus. O nicho de cada „figura‟ era composto por
duas ou três imagens, registradas anteriormente por mim em pesquisa de campo no Engenho
do Cumbe, sede do Cambinda Brasileira, em fevereiro de 2011. Os protagonistas nessa etapa
do processo são os atores: Aldemar Pereira, Andressa Hazboun, George Holanda, José Maria,
Tatiane Tenório, Potyra Pinheiro, Vânia Bertoldo, Rodrigo Severo, Thais Schmidt.
Alguns dos exercícios aplicados fazem parte do treinamento energético e técnico,
elaborado pelo Lume, e selecionei outros a partir da minha vivência como atriz, preparadora
corporal e coreógrafa. Torna-se importante frisar que ainda neste capítulo abordo
características da estética, presente nas brincadeiras populares, onde o homo ludens dá lugar a
um homo performer, utilizando essa possível mudança de paradigma - em consonância com o
relato da experiência dos atores, agora sim, com a brincadeira in loco – a fim de acentuar
como tais características reverberaram na montagem do espetáculo Cravo do Canavial. De
que forma, esse deslocamento de olhar, calcado em moldes contemporâneos, influenciou na
condução dos atores e na construção da dramaturgia cênica do espetáculo. Cabe agora,
contudo, a descrição dos exercícios e das dinâmicas aplicadas em sala de ensaio, seus
desdobramentos; e análise da experiência com os atores.

54
Compartilhamos filmes, textos, imagens e músicas que tivessem relação com a temática das brincadeiras
populares, a fim de criarmos uma unidade. Essa ideia de „alinhamento de almas‟, dialoga, a meu ver, com o
„esquentamento‟ de um „ator-falcão‟ que precisa atingir um corpo- em -vida, que se faz complementar a um
corpo-em-arte (vide p.46). Faço essa ressalva, pela importância que esse „alinhamento‟ passou a ter na
concepção dramatúrgica e cênica do espetáculo.
54
2.1.1. „ESQUENTANDO‟ O TERREIRO: O PRÉ-EXPRESSIVO DO CANAVIAL

Acredito que cada ator pode descobrir sua técnica pessoal, desde que
embasada em princípios claros que determinem pontos de partida e assegurem a
continuidade da pesquisa, por tratar-se, sem dúvida de uma investigação que toma
uma vida.
(HIRSON IN TAL QUAL APANHEI DO PÉ)

Nas brincadeiras populares, o brincante tal qual o ator, ao se preparar para o seu ofício,
realiza o que eles chamam de „esquentamento‟ antes da brincadeira. Como mencionei no
primeiro capítulo, no Cavalo Marinho, por exemplo, o banco composto por músicos toca
enquanto os brincadores exercitam os movimentos do Mergulhão. No Maracatu Rural esse
treino se dá durante as Sambadas55. Como no processo com os atores em Cravo do Canavial
utilizo os exercícios dentro de um treinamento sistematizado pelo Lume, mas imersos no
universo da brincadeira popular, faço uma apropriação do termo „esquentamento‟ para
descrever o treinamento dos atores nesse processo específico. O trabalho com as energias
potenciais de cada ator é o ponto de partida, por isso se faz necessário desautomatizar o corpo
dos mesmos, livrando-os de vícios e clichês anteriores. O Lume para isso utiliza o
treinamento energético, que potencializa o ator corporalmente, dilatando-o. Segundo Ferracini
(1999) a dilatação corpórea está relacionada com a organicidade e a manipulação de energias
potenciais e pessoais do ator:
No Lume acreditamos que a dilatação corpórea esteja intimamente relacionada com
a organicidade e manipulação de energias potenciais e pessoais do ator em relação
às ações e as sequências de ações; e também na possibilidade do ator encontrar
caminhos corpóreo-musculares para que a ação possa estar interligada com sua
pessoa, dentro de uma totalidade psicofísica (FERRACINI, 1999, p.50).

Tal treinamento consiste em nunca parar:


Deitados no chão, os atores que já haviam feito um alongamento individual,
começaram a acordar cada parte do corpo, lentamente, com pequenos movimentos.
Apesar de cada um estar voltado para o seu acordar, era fundamental que todos
percebessem o outro, sem precisar olhá-lo diretamente. À medida que a minha
condução direcionava para uma agilidade dos movimentos e utilizando os apoios
para sair do chão, o grupo ia encontrando um ritmo mais acelerado. Cada vez mais
e mais acelerado até que o ritmo se fez frenético. Explosões e pausas abruptas
foram estimuladas, mas com a indicação de manter sempre um pulsar interno,
como uma „panela de pressão‟ interna. Mantinha-se a pausa por dez tempos e
depois reativavam o fluxo livre (Caderno de notas pessoal do processo).

55
Vide p. 34-35 dessa dissertação.
55
O conceito de energia, utilizado pelo Lume, vem do grego energon e significa „em
trabalho‟. Uma maneira de se pensar energia é enquanto “fluxo, um caminhar específico que
encontra resistências e as vai vencendo; ou então como radiação, ou seja, vibração, algo que
se propaga pelo espaço” (FERRACINI, 1999, p. 51). A ideia com o procedimento descrito
acima seria fazer com que os atores atingissem um estado de exaustão, a ponto de que os
movimentos gerados não passassem mais por algo pré-elaborado. Desenvolver as energias
potenciais do ator seria então pô-lo em trabalho, algo que passa pela tomada de consciência de
seu corpo e de como articulá-lo em relação com o espaço e com o outro. Utilizei também as
danças populares como estímulo tanto para qualificar esse estado energético, como também
para trabalhar os princípios definidos pelo Lume como fundamentais para que o ator, após
essa desautomatização consiga manter tal estado, aprendendo a qualificar as energias geradas.
Vale ressaltar que segundo Ferracini (1999), o princípio energético, abordado
anteriormente por Eugênio Barba, faz distinção entre energia masculina e feminina. Animus
(vigorosa), associado ao guerreiro forte vigoroso que o Lume trabalha, utilizando a figura do
Samurai. E a energia anima (calma e suave) que seria trabalhada através dos exercícios da
Gueixa. “Dois pólos opostos pelos quais podem caminhar todas as outras qualidades de
energia” (FERRACINI, 1999, p. 52). Associamos o que seria o trabalho com o animus à
„figura‟ do Caboclo de Lança, até mesmo por conta da relação deste dentro da própria
brincadeira com o arquétipo do guerreiro, com seus movimentos forte, precisos, retilíneos. Já
o desenvolvimento do trabalho referente à energia anima ficou para o processo de montagem
propriamente dito, quando o foco dos atores passou a ser composição do personagem Mulher.
A Mulher em Cravo do Canavial termina a história materializando a junção dessas duas
energias quando se torna a primeira Cabocla de Lança mulher do sertão: “Há quem diga que
foi numa quarta de fevereiro que um caboclo desconhecido, fez a marcha mais bonita que já
se viu. Dizem que algo estranho aconteceu nesse dia... Que esse tal caboclo se dividiu em
dois: metade homem, metade mulher (...)” 56.
Apesar de usarmos aqui uma descrição calcada em terminologias e conceitos criados
por Jung, vale frisar que isso se dá em termos teatrais, portanto não carrega toda
complexidade que envolve tais arquétipos dentro dos estudos do autor. As energias referentes
a esses arquétipos são usados apenas como uma forma do ator “dilatar o seu território”
(BARBA, 1993, p.93 apud FERRACINI, 1999, p.52). Trabalhamos em Cravo do Canavial com
essas polaridades de energia de forma complementar, tendo inspirado a montagem,
reverberando no próprio texto como cito acima, e também inspirando a concepção de cenas do

56
Texto do Brincante-Narrador, na peça Cravo do Canavial.
56
espetáculo. A cena „dançando com a sombra‟ serve como exemplo para evidenciar o quanto o
conceito de energia e o trabalho com suas polaridades, inevitavelmente nos conduziu a uma
relação com os arquétipos: “No meu trabalho, energia é a dança de fantasmas que emanam de
mim, que para mim são claros, mas que os outros não podem ver, nem entender; talvez sentir”
(HIRSON apud FERRACINI, 1999, p.52). As palavras de Hirson reforçam a relação com o
arquétipo da sombra evocado desde a introdução dessa dissertação, contudo cabe aqui apenas
traçar uma ponte do que será detalhado no próximo capítulo, a fim de entendermos melhor a
importância do princípio de energia desenvolvido pelo Lume.
A fim de despertar uma energia outra, limpa de vícios anteriores, o ator precisa ter
acesso a uma série de exercícios com o intuito de manter-se tecnicamente nesse estado. Faz-se
necessário listar os princípios técnicos que busquei atingir junto aos atores durante a aplicação
dos exercícios. Tais princípios fazem parte dos objetivos a serem alcançados pelo ator sob a
perspectiva do Lume, a partir de seu treinamento pré-expressivo. Os princípios são: dilatação
corpórea, base, equilíbrio, oposição, olhar/olhos, precisão, equivalência, variação de
fisicidade. Com base nos teatros de Decroux, Grotowski e Barba, exercícios foram
sistematizados pelo Lume, com o objetivo de preparar o ator. Usando um formato descritivo
já utilizado por Ferracini em suas obras (1999/2003), elenco os exercícios aplicados no
processo do Cravo do Canavial.

EXERCÍCIOS:

ENRAIZAR
Descrição: O trabalho se dá com a base mais flexionada possível. Enraizando o pé no chão
passando por todos os pontos até chegar ao calcanhar.
Desdobramentos: Trabalhar várias maneiras de tocar o chão com os pés, formas diferentes de
caminhar. Ir até o plano baixo na meia ponta, sem sentar no quadril e ir até o plano alto
também na meia ponta, com os joelhos esticados.
A condição, talvez a mais essencial para dilatação corpórea, seja a base de um ator,
determinada pela relação entre o chão, os pés, pernas e quadril. (...) descobrir uma
base de sustentação do corpo que possibilite uma segurança para o equilíbrio
precário e também para possibilitar uma liberdade para a coluna vertebral, que
assim poderá soltar-se sobre uma base segura e fixa (FERRACINI, 1999, p.50).

CENTRO E PERIFERIA
Descrição: Esse trabalho começa no chão. Mantendo-se conectados com o ponto abaixo do
umbigo, os atores descolam braços e pernas do chão. Um estímulo sonoro é produzido para
57
que a saída seja acionada. Nessa posição - que envolve sustentação, posições de desequilíbrio
e torção - o ator deve perceber como está sua respiração. Se prende a respiração ou respira
normalmente. Ele volta para a posição inicial com fluência em oito tempos controlando a
saída de ar, soltando som de „s‟. A ideia é que o som produzido seja contínuo. Essa volta pode
variar em oito, quatro, dois ou um tempo.
Desdobramentos: O exercício pode ser realizado em pé, acentuando ainda mais as questões de
equilíbrio precário. Vale ressaltar que o equilíbrio precário57 gerado por oposições musculares
de suas ações físicas, “criam resistências e tensões, intensificando o ator energeticamente e
por sua vez criando um maior tônus muscular” (FERRACINI, 1999, p.50).

BOLA DE BORRACHA / FOLHA DE PAPEL


Descrição: São exercícios que trabalham qualidades de energias opostas. O ator trabalha com
a imagem de que está dentro de uma bola de borracha, e de que quanto mais a suposta bola for
empurrada para longe de seu corpo, volta com mais resistência, podendo colar na pele do ator.
Os atores devem executar esse exercício com os joelhos semiflexionados, pois também
trabalham questões referentes à base. Já no exercício „folha de papel‟, o ator atinge um estado
de leveza, voando livremente experimentando inclusive a passagem por um furacão. Essa
mudança de qualidade de movimento propicia ao ator perceber o que precisa ativar em seu
corpo para atingir cada qualidade.
Desdobramentos: Referência de animais para trabalhar com as qualidades de energia, por
exemplo: elefante, borboleta, tubarão, calango.

PÊNDULO
Descrição: Esse exercício muitas vezes foi utilizado durante o processo, como treinamento
energético. Deitados no chão os atores abraçam os joelhos no peito. De um lado para outro
vão se movimentando até que as pernas e pés toquem o chão lateralmente. Quando isso
acontece o dedo do pé da perna que está por cima vai riscando o chão de um lado a outro de
maneira pendular. O objetivo é chegar ao plano alto, por isso os atores, utilizando os apoios,
vão se levantando numa movimentação fluente, ininterrupta. Ao chegar ao plano alto, saltam
e voltam ao chão, recomeçando a movimentação.
57
“Em todas as técnicas codificadas de representação encontramos uma postura, onde o corpo está quase sempre
fora de seu eixo de equilíbrio normal, ocasionando um equilíbrio precário e diferente do cotidiano comum. Esse
equilíbrio precário, ou de luxo, como coloca Decroux, determina uma forma de equilíbrio cênico ou
extracotidiano, resultando numa série de relações musculares e tensões dentro do organismo” (FERRACINI,
1999, p. 50).

58
Desdobramentos: O exercício do pêndulo pode ser associado ao de lançamento. Depois de
saltar o ator se desloca pelo espaço mantendo fluência no movimento, de repente freia e faz
um lançamento com alguma parte do corpo e olhar direcionado. Orientei para que
experimentassem partes outras que não apenas os braços. Como explicarei a seguir, o
lançamento deve partir do centro e não da periferia. Deve-se empregar a coluna vertebral no
movimento.

LANÇAMENTO
Descrição: Com a base baixa os atores começam a lançar fachos de luz, irradiando desde a
coluna passando pelos braços e saindo pelos dedos. Esse facho de luz, segundo indicações em
registros do Lume, cortaria o espaço acompanhado pelo olhar, fundamental para dar projeção
ao lançamento. “No lançamento, o ator deve buscar se lançar, procurando jogar para o espaço,
naquele ponto preciso, um pedaço de luz de sua alma. Se isso não acontecer, o trabalho torna-
se estéril e simplesmente muscular” (FERRACINI, 2003, p.169). O olhar é fundamental para
execução do lançamento uma vez que ele conduz a energia para o ponto de destino que o
lançamento está sendo direcionado. O que resulta num trabalho de precisão. Trabalha também
o principio de impulso e de contra impulso. Fazê-lo dentro de uma sala, às vezes faz com que
o ator tenha certa dificuldade em visualizar tal imagem, mas aos poucos as paredes vão sendo
rompidas e todo o corpo acaba sendo empregado no movimento.
Desdobramentos: Lançamento com diferentes objetos imaginários. À medida que o ator vai
tendo domínio do exercício, o lançamento pode resultar em algo imperceptível externamente,
reverberando apenas internamente58.
No caso do ator, a palavra “impulso” toma um sentido particular de empurrar ou
arremessar com força, de dentro. Esse algo arremessado de dentro para fora vai,
posterior e imediatamente, tomar corpo e transformar-se numa ação física orgânica.
(...) O equivalente a impulso, nos escritos de Barba, pode ser chamado de “Sats”.
Se, para Grotowski, esse elemento precede imediatamente a ação, para Barba, além
de preceder a ação, também faz com que a “energia possa ficar numa imobilidade
em movimento” (1994, p. 84), assim como na intenção (...) (FERRACINI, 2003,
p.103).

58
Durante o inicio do processo de montagem, paralelo à assessoria técnica de Raquel Scotti Hirson –
participamos de oficina que envolvia os princípios do treinamento pré-expressivo, associado as danças
populares, ministrado pelo ator-pesquisador do Lume, Jesser de Souza. Faço essa ressalva a fim de enfatizar sua
contribuição para o entendimento do procedimento e dos princípios que envolvem os exercícios de
lançamento.Como desdobramento, Jesser nos apresentou o exercício chamado de SAQUE (do verbo sacar), que
- ao contrario do lançamento, que parte do centro, envolvendo a coluna vertebral e passando pelas extremidades
– esse exercício se dá de fora para dentro,trazendo a energia para o centro.
59
PANTERA:
Descrição: Esse exercício trabalha uma energia instintiva. O ator em estado de alerta precisa
responder ao estímulo de forma imediata, diminuindo, o tempo estímulo/impulso/ação e
reação (FERRACINI, 2003). Vale ressaltar que mesmo parado esse estado de alerta precisa
estar ativado, trabalhando no ator a ideia já apontada no exercício anterior de que mesmo
parado ele precisa estar internamente ativo, uma „panela de pressão‟ pulsando internamente.
Com os joelhos flexionados, base aberta e olhos abertos voltados para frente, os atores ficam
atentos para atacar e/ou defender-se, evitando empregar muitos movimentos, concentrando
energia para o momento em que o movimento torna-se inevitável. O objetivo maior não é o
ataque nem a defesa, mas o estado de tensão que o jogo proporciona, dilatando a corporeidade
do ator.
Desdobramentos: Executar esse exercício de olhos fechados ou com a luz apagada,
aumentando o estado de tensão interna e o de prontidão.

DINÂMICAS:

- DINÂMICA DAS DANÇAS POPULARES


Descrição: Elenquei quatro movimentos, dois do Maracatu Rural e dois do Cavalo Marinho,
para desenvolver com os atores um aprofundamento na noção de base, e ainda trabalhar os
outros princípios que envolvem o treinamento técnico. Vale ressaltar que muitos dos passos
das Danças Populares foram catalogados pelo Balé Popular de Pernambuco, mas ainda existe
variação no nome de alguns deles. Nomeei os passos trabalhados com os atores de acordo
com o que aprendi no Balé e/ou ouvindo da boca dos próprios brincadores:
MARCHA DO CABOCLO
Esse movimento consiste das manobras que os Caboclos de Lança fazem com suas lanças
pelo terreiro. Executamos o movimento utilizando bastões. Tombando o corpo para frente,
numa espécie de desequilíbrio controlado, vai-se alternando as pernas chutando para trás. A
cada dois movimentos das pernas, a lança é projetada furando o espaço a frente em diagonal.
Vigoroso, trata-se de um movimento que remete a imagem de disputa de território, luta.
RODOPIO
Associado ao passo Marcha do Caboclo e suas evoluções individuais com as lanças, que vão
de brincador para brincador, o rodopio é um giro no próprio eixo para chegar ao plano baixo.
Alguns brincadores saltam executando o giro no ar. À medida que os atores foram
assimilando o movimento criaram maneira própria de girar no eixo.
60
RELÓGIO
Movimento do Cavalo Marinho. Em sua origem, este passo é subdividido em tempo,
contratempo, tempo. Dividi o movimento em dois tempos para que a execução fosse
apreendida pelos atores. O passo começa colocando uma das pernas para trás (tempo), esse
movimento funciona como uma espécie de alavanca. A perna que estava atrás volta chutando
para frente (contratempo) e logo em seguida é acompanhada pela outra que também chuta a
frente (tempo). Recomeça o movimento com a perna que acabou de chutar na frente indo para
trás. Geralmente esse movimento é executado em uma cadência bastante acelerada. Precisei
diminuir seu andamento para que os atores conseguissem executá-lo.
TRUPÉ
Vem da célula TA-GA-DÁ, batendo os pés alternadamente no chão (DED ou EDE). Como no
passo anterior, para execução do Trupé uma das pernas tem que fazer o movimento contrário
funcionando como alavanca. Só que ao contrário do relógio o pé não encosta no chão na
alavanca, ele já volta fazendo o movimento de deslocamento para frente, o TA-GA-DÁ. Os
atores não atingiram tal movimento e por isso passou a ser TA-GA, mas parecido com uma
brincadeira de amarelinha: alavanca para trás e os dois pés alternavam no chão.
Desdobramentos: A partir desses movimentos criei uma sequência coreográfica que foi
associada à „Dinâmica do Mestre e, posteriormente, a composição do personagem Vendedor
de Figuras. Dentro dos princípios que essa dinâmica atinge, vale ressaltar além do trabalho
com a base, o principio da precisão. O termo precisão está associado à exatidão, justeza. No
que diz respeito à ação física impressa pelo ator esse termo está relacionado ao ritmo,
impulso, trajetória, mas também, segundo Ferracini (1999) refere-se à qualidade e quantidade
de energia que alimenta a ação:
Tanto na precisão física/mecânica do movimento como na manipulação da energia,
é necessário que haja uma espécie de corte ou “parada”, antes que termine sua
linha de força, seu fluxo. Esse corte ou parada faz com que esse fluxo não se dilua
no espaço, dando uma sensação de propagação da energia despendida para
realização daquela ação, como um eco. (FERRACINI, 1999, p.53)

O processo de construção das matrizes e o de composição dos personagens do espetáculo


exigiu dos atores um trabalho pontual em termos da busca de precisão das ações. A própria
aplicação da Técnica Mímesis Corpórea, por si só, como descreveremos ainda nesse capítulo,
exige uma justeza, um rigor, uma perfeição nesse sentido. O ator para alcançar tal precisão
deve se concentrar no próprio olhar como um dos fatores determinantes na precisão de uma
ação física, na sua relação com o espaço: “Através dos olhos o ator pode abrir e fechar seu
campo de energia e criar uma relação com o espectador (...)” (FERRACINI, 1999, p.50).
61
- DINÂMICA DO MERGULHÃO:
Descrição: Baseado no jogo do Mergulhão do Cavalo Marinho. Dá-se em roda, onde um
brincador entra em quatro tempos convidando outra pessoa através do olhar direcionado para
entrar na roda. Como o movimento básico do mergulhão possui muitas subdivisões e
movimentações que devem ser executados durante o contratempo (TA-TA TAGADÁ TA),
iniciei o jogo com os atores com quatro tempos sem subdivisões e sem utilizar os
contratempos, resultando num simples caminhar. Para aumentar um pouco o grau de
dificuldade o primeiro passo passa a ser um desequilíbrio com os dois pés: „como se alguém
puxasse o nosso tapete‟, imagem que geralmente utilizo para explicar esse passo. Os passos
de número dois, três e quatro são um simples caminhar para frente quando se entra na roda, ou
para trás para sair da roda. O princípio do mergulhão é mantido, uma pessoa entra convidando
alguém em quatro tempos e nos quatro tempos de sua saída esse alguém já está entrando
convidando outra e assim sucessivamente, mantendo o direcionamento do olhar.
Desdobramentos: Executar a movimentação utilizando texto e/ou „vestindo‟ um personagem a
fim de trabalhar com o gestual do mesmo. Trabalhamos essa dinâmica não só durante o
treinamento, mas a célula do Mergulhão entrou efetivamente como movimentação dos
mascarados na cena do encontro entre A Mulher e o Vendedor de Figuras.

- DINÂMICA DO CORO59
Descrição: O grupo se aglutina no que chamamos de „posição de bolinho‟, a partir daí
executam movimentos cadenciados através de condução externa ou por um condutor proposto
pelo próprio grupo que vai variando a cada momento. A passagem de um condutor para outro
deve ser percebida pelo grupo através da mudança corporal do novo executante. Trata-se de
um exercício não verbal, onde o foco passa a ser o coletivo.
Desdobramentos: Uso de sons e/ou texto durante a movimentação, trabalhando noções de
complementaridade.

- DINÂMICA DO MESTRE
Descrição: O Mestre é uma das „figuras‟ presentes no Maracatu Rural, trabalhada pelos atores
no processo como um regente, puxador de sequência coreográfica realizada a partir dos
passos das danças populares (Marcha do Caboclo, Rodopio, Relógio e adaptação do Trupé) e

59
Tal exercício foi apreendido por mim a partir da vivência com os Privilegiados - dirigido na época (1996) por
Antonio Abujamra e João Fonseca.
62
de Loas repetidas pelos demais componentes do grupo. A „figura‟ do Mestre entrou no jogo
como coringa60: Todos os atores envolvidos no processo passaram por essa „figura‟ que usava
um apito regendo o momento de entoar suas loas e o momento em que os atores iriam
executar a sua evolução coreográfica, tal qual acontece nas Sambadas. Os atores
improvisavam motes rimados executados pelo mestre do dia, seguindo a métrica de pergunta
e resposta.
Desdobramentos: Criação de Loas. Durante o processo de montagem retornamos a essa
dinâmica, o que resultou na composição de Loas que entraram na cena da Mulher e do
Vendedor de Figuras:
- Orgulho é uma ilusão que sob o povo desaba
Quando ele se acaba, finda debaixo do chão.
- Finda debaixo do chão
- Essa Toada que foi feita de improviso
Apesar do meu Juízo, poesia não faltou.
- Poesia não faltou
(Letra da atriz VÂNIA BERTOLDO)

- DINÂMICA „BAIXIO DAS BESTAS‟


Descrição: Dinâmica que consiste em improvisações baseadas na temática do filme Baixio
das Bestas sob a direção de Claudio Assis. A história do filme que se passa em Nazaré da
Mata, conta a vida de Auxiliadora, uma menina criada pelo avô que ganha dinheiro
explorando sua neta, obrigando-a a tirar a roupa na frente de todos os homens do vilarejo onde
moram. Cícero, um jovem de família tradicional, assiste ao drama da menina e se apaixona
por ela. Contudo vê Auxiliadora com todo o ranço cultural de uma sociedade patriarcal e
acaba por estuprá-la.
O enredo desse filme foi trabalhado através de improvisações, onde os atores podiam
livremente associar a textos que de certa forma acreditassem dialogar com o universo

60
Augusto Boal criou o „sistema coringa‟ que pressupõe quatro procedimentos: “a desvinculação
ator/personagem (qualquer ator pode representar qualquer personagem, desde que vista a máscara
correspondente), perspectiva narrativa unitária (o ponto de vista autoral é assumido ideologicamente pelo grupo
que faz a encenação), ecletismo de gênero e estilo (cada cena tem seu estilo próprio - comédia, drama, sátira,
revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se transforma numa colagem estética de
expressividades), uso da música (elemento de ligação, fusão entre o particular e o geral, introdução do
ingrediente lírico ou exortativo no contexto mítico e dramático)”. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ, 2001) Disponível
em<(www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=conceitos_biografia&cd_
verbete=620)> Acesso em 02/04/2012 as 20.30 h.
No caso do processo com os atores em Cravo do Canavial, utilizei o termo apenas para definir uma rotatividade
entre ator/personagem. A „figura‟ do Mestre foi vestida então, durante o processo por todos atores, e a idéia
inicial seria que só no dia do processo aberto, os atores descobrissem quem iria desempenhar tal função no dia
do exercício prático aberto.

63
apontado por Claudio Assis e que em certa medida retrata a realidade da mulher no Interior de
vários estados do Nordeste 61.
Desdobramentos: Trabalho vocal onde criamos sonoridades que remetessem à crueldade
desse universo, associado a sequências de movimentos repetidos em ritmo frenético.
Traduzido nos sons e movimentação do mote referente ao estupro criado por Rodrigo Severo:

Figura 13

Cito também como desdobramento, o texto escrito pela atriz Vânia Bertoldo, que serviu de
estímulo para muitas das improvisações. Vale ressaltar que apesar de não fazer parte
diretamente do espetáculo, esse texto dialoga com o universo cênico-dramatúrgico proposto
em Cravo do Canavial:
Terra vermelha cor de brasa. Terra em brasa, recortada. Sabor de cana retorcida. A
mesma mão que corta a cana Violenta a inocência. Perversidade nos canaviais.
Tanta cor que chega a doer os olhos. É dor, folia e dor! Fodia e doía, e fodia mais.
É foda! Forte! Intensidade de paisagens coloridas. Vida sofrida, gozada. Menina
em transe, delírio e sufoco. Gritos internos, explosões em suas víceras, náuseas,
nojo! Estupidez! Filho da Puta! E as putas? Queria a coragem delas! (Texto da atriz
VÂNIA BERTOLDO)

O TREINAMENTO MUSICAL:
Esse trabalho foi conduzido pelo Ator e Diretor Musical, Marco França62, que trabalhou com
os atores princípios de emissão sonora e os fundamentos de ressonância associados à
exercícios de ritmo e precisão corpóreo vocal.

61
Relato mais adiante, vivência dos atores na AMUNAM, Associação de Mulheres em Nazaré da Mata.
62
Marco França é ator e diretor musical do grupo potiguar de teatro, Clowns de Shakespeare, onde desenvolve
relevante pesquisa ,envolvendo a música na cena teatral.
64
Figura 14

- RODA DE PALMAS E PAUSAS


Descrição: Em roda, passa-se uma palma para outro circulando num sentido previamente
escolhido. Quando chegar ao ator que começou o ciclo, este irá se associar ao segundo da
roda, batendo palmas juntos. Sempre que retorna para o ponto que o ciclo foi iniciado,
somasse mais um ator até chegar ao ponto de todos baterem uma palma coletiva. Então,
muda-se a referência da primeira pessoa. É importante manter a pulsação constante e o foco
direcionado para receber e mandar a palma.
Desdobramentos: O lugar da palma é preenchido com uma pausa, que a princípio Marco
França direcionou para que fosse um gesto coletivo e numa outra rodada cada ator trabalhou
com uma das matrizes, acionando os punctuns da matriz no espaço de tempo da pausa. Esse
desdobramento trabalha os princípios acima relacionados somados ao de variação de
fisicidades.

65
- SALTOS RÍTMICOS
Descrição: os atores se posicionaram em três filas, virados para o mesmo ponto. Os que estão
na primeira fila saltam simultaneamente em oito tempos, com todos contando em voz alta
esses tempos. No oitavo tempo saltam girando para a fila de trás que conta oito e que salta
girando novamente. E assim, sucessivamente. Quando chegar na última fila, volta o jogo com
quatro, depois dois e depois um tempo.
Desdobramentos: No último número da contagem, os atores passaram a saltar acionando os
punctuns, pontos de tensão de sua matriz.

DINÂMICA SONORA / „BAIXIO‟


Descrição: O grupo de atores foi dividido em subgrupos aproveitando elementos da Dinâmica
do Baixio das Bestas e da matriz Saudação a Jurema (vide p.23-24), trabalhados
anteriormente e que já foram relatadas no decorrer dessa dissertação. Elege-se uma sequência
que vai ser executada em rítmicas diferentes.
Desdobramentos: Noções de musicalidade, através de uma rítmica cíclica representada por
ações e sons. Com relação ao experimento apresentado no final dessa etapa, Marco França
criou, a partir dos exercícios que visavam à busca das sonoridades do canavial, um som que
correspondesse a cada matriz: colher batendo em copo de vidro (Burrinha), chocalho
(Caboclo de Lança), roi-roi (Catita), buzinas (Mateus), alfaia (Dama do Paço). Vale ressaltar
que o trabalho conduzido por Marco França estendeu-se também a composição da trilha
original do espetáculo em parceria com Vânia Bertoldo e colaboração minha e de Andressa
Haszboun. Finalizo então a descrição dessa primeira fase, que chamamos de „esquentamento‟,
com um relato da atriz Andressa Hazboun:
(...) na voz de Vânia "perversidade nos canaviais...". Perversidade e ludicidade?! O
grupo transita entre a sombra da brincadeira e o brinquedo. Ora denso, como as
cenas inspiradas na crueza do Baixio das Bestas, ora leve, como os caboclos que
dançam com lanças e roupas tão pesadas. Ora colorido e vibrante, ora negro e
violento. O Maracatu é milagre que une a guerra e a dança, a dor e a alegria, a
brincadeira e a seriedade (...) (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).

2.2. EM BUSCA DAS EQUIVALÊNCIAS


A Mímesis Corpórea seria uma espécie de segunda pele do ator. Trata-se de encontrar
em nosso corpo algo que entre em frequência com o corpo observado. A palavra-chave para o
trabalho de aplicação desta técnica seria: Equivalências. Buscar no corpo do outro, o seu
pulso, as suas dobras a fim de acessar, através da observação, a linha de ação desse corpo,
66
recriando-a, através de equivalentes corporais. Entendemos equivalência como o oposto da
imitação: “o ator que busca uma técnica extracotidiana de representação deve encontrar
tensões musculares que permitam uma nova relação de seus gestos e movimentos com o
tempo/espaço” (FERRACINI, 1999, p. 50). Acontece que nem sempre conseguimos encontrar
tais equivalências, mas para que elas possam surgir, só há um caminho:
Achar a equivalência significa experimentar. Qual o mapa de afeto que tem ali?
Quais as forças e tensões que tem ali? Experimentar aquele mapa de tensões no seu
corpo, que é diferente do corpo observado. Sobrepor com o seu mapa de tensões e
forças e vê que tensões geram no corpo. A partir daí pode-se criar equivalências.
Pode, mas nada garante. 63

Chamada de Matriz, a ação observada e devidamente codificada entrará em contato com


o subjetivo do ator, podendo ser reconstruída, “transformada em sua fisicidade no
tempo/espaço, tendo como condição manter o que lhe dá vida, o ponto de organicidade que é
a essência da ação/matriz, sua corporeidade” (FERRACINI, 2003, p.116). Segundo os princípios
para aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea é necessário que o ator seja afetado pela
relação com a „coisa‟ observada, ou seja, tem que existir identificação com a Matriz. Um
pretexto para a criação, passando pelo campo do subjetivo, a matriz é definida então como
“corporificação dos cataclismas emocionais do ator” pelo ator-pesquisador do Lume Carlos
Simioni (apud FERRACINI, 2003).
Contudo, existem parâmetros técnicos, objetivos, que dão suporte ao ator, ligados ao
trabalho de codificação dessas ações. Alinhar o trabalho de aplicação dessa Técnica de
equivalências com o subjetivo do ator - apesar de definida por um integrante do Lume como
„cataclisma emocional‟ - não significa dizer que a base deste procedimento é as emoções ou
os sentimentos. Ferracini cita Burnier (Apud FERRACINI, 2004) dizendo que, em relação às
emoções, “não podemos fixá-las nem evocá-las, mas simplesmente senti-las” (2004, p. 116).
Acrescento ainda, „senti-las na musculatura‟: “Há de se construir parâmetros objetivos,
corporeidades, e assim permitir que as emoções se movam provocando sensações musculares
que serão então sentidas e vividas pelo ator” (FERRACINI, 2004, p. 116). Antes de buscar
representar essa ou aquela emoção, estereotipando-as, o ator precisa fazer com que seu corpo
psicofísico esteja livre de todos os bloqueios, deixando fluir as emoções (in motions) através
de sua musculatura (BURNIER apud FERRACINI, 2004).
As emoções estão em constante movimento dentro de nós. Tentar fixá-las dentro de
um suposto cerco psicológico, ou defini-las dentro de uma forma muscular
preestabelecida, seria estagnar essa movimentação orgânica da emoção, realizando,

63
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
67
assim, um processo altamente inorgânico, falso e estereotipado (BURNIER apud
FERRACINI, 2004, p.116-117).

A ideia está em entrar em contato com a memória muscular - o corpo memória, ao qual
nos referimos no primeiro capítulo - chamada também por Ferracini (2004) como
corporeidade antiga, no sentido de um passado longínquo. Em vez de chamar de emoção,
chama-se de energia. Por exemplo, energia da dor, da sensualidade, remetendo ao contato
com as energias potenciais do ator. Assim os atores não entram na sala de trabalho para
buscar essa ou aquela emoção, mas se em sua busca interior encontram equivalências
orgânicas, devem vivenciá-la no corpo e na voz até o esgotamento desse elemento. O contato
com várias qualidades de emoções/energias dá ao ator uma gama de possibilidades de
manipulações corpóreas que serão seu material de trabalho (FERRACINI, 2004).64 Um
conjunto de Matrizes passa a ser então o vocabulário do ator, “seu vocabulário vivo de
comunicação cênica”:
Assim que essas matrizes nascem, em sala de trabalho, dentro do treinamento
cotidiano, (...) o ator codifica essas matrizes e as nomeia. Esses nomes são dados
pelos próprios atores, sem necessariamente conter qualquer caráter semântico. Os
nomes servem, somente, como pontos de referência, como imagens que podem
remeter a uma lembrança corpórea da matriz (FERRACINI, 2003, p.117).

Em Cravo do Canavial, os atores escolheram a „figura‟ a ser mimetizada a partir da


identificação com a fotografia exposta em sala de ensaio. Cada uma delas – Dama do Paço,
Catita, Burrinha, Mateus e Caboclo de Lança - compunha um nicho contendo duas ou três
fotografias. Ao observar a figura a ser mimetizada precisamos entrar na lógica da „criatura‟.
Entrar no estado de jogo proposto por ela (HIRSON, 2006). Para traçar um mapa de forças e
tensões pela observação a fim de recriá-lo no seu corpo, não basta, ao ator, simplesmente
matematizar, senão cria-se uma mecanicidade de observação 65. Por isso, a princípio, os atores
em processo passaram por todas as figuras e só depois escolheram com qual delas iriam se
aprofundar para que pudessem partir realmente da identificação com a Matriz.

64
Vale ressaltar que o Lume também trabalha com as emoções a partir do que eles chamam de dança pessoal:
“corporificadas, não de uma maneira realista, mas de uma maneira dilatada e, portanto extracotidiana. Estamos
buscando a presença do ator. O ator vive e experimenta ao máximo sua própria dor, sensualidade, alegria,
angústia, desespero, sexualidade, tristeza, medo e todas as emoções não nomeadas – de uma maneira dilatada.
Temos aí um monstro, isto é, a expressão no máximo de intensidade de emoções que o ser humano – por
exigências da sociedade – costuma conter. Com a dilatação de todas essas energias, o ator entra em outro estado
de trabalho, uma segunda etapa, à qual chamamos nível sutil. E nesse nível sutil a energia toma corpo. Não mais
corpo muscular, mas corpo energético, abrangendo tudo o que decorre desse “estado”. Agora o corpo muscular é
a “lenha” para gerar o fogo (corpo energético e energia sutil)” (FERRACINI, 2004, p. 116).
65
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
68
Figura 15

O material codificado será uma Matriz que o ator pode sempre recorrer, buscando
equivalências corporais que correspondam àquela fisicidade. O ator irá então repeti-las até
que sejam memorizadas. Ferracini (2003) define essa repetição como „repetição orgânica do
corpo memória‟, pois é preciso atentar para o fato de tal procedimento não passar por um
movimento meramente mecânico de repetição. “Há um trabalho físico-mecânico, mas
também o ator deve manipular as energias e a organicidade dentro dessas ações”
(FERRACINI, 2003, p.123-124).

Figura 16

E uma vez codificadas e memorizadas pode-se identificar nas Matrizes pontos disparadores de
tal intensividade, os Punctuns 66:

66
“O conceito de punctum, aqui, é emprestado de Roland Barthes, principalmente da obra A Câmara Clara
(1984). É utilizado por Barthes para nomear um „detalhe‟ na foto que chama a atenção daquele que olha.
Punctum, enquanto o que me punge, o que me toca. Claro que Barthes coloca esse conceito enquanto recepção
de um olhar na foto, um detalhe expansivo e metonímico que leva o receptor da foto para estados outros, um
estado-em-arte da foto” (FERRACINI, 2004, p. 166).

69
Esses pontos musculares eram como portas de entrada para esse estado intensivo
que, quando ativados se expandiam e recriavam a ação física ou o estado, tanto em
sua materialidade quanto em sua vida e organicidade, gerando tanto o estado atual
recriado desse estado físico (físico e muscular) como o próprio estado virtual da
ação enquanto intensividade (FERRACINI, 2004, p. 165).

Ferracini (2004) chama a atenção de que não somos arrebatados pelos punctuns. Ao
mesmo tempo, que os criamos, sabemos que os recriamos. Na verdade, estabelecemos uma
„zona de jogo‟ (FERRACINI, 2004). Segundo ele, os punctuns não são exclusivos do trabalho
com as Matrizes enquanto ações físicas codificadas. Eles se estendem a todo trabalho do ator,
mesmo os pré-expressivos. “A repetição de elementos técnicos e energéticos treinados, gera
vivências físicas, energéticas e intensivas que são armazenadas em estado virtual no corpo
cotidiano. Elas também acabam gerando punctuns por repetição dos elementos pré-
expressivos trabalhados e que podem ser ativados depois” (FERRACINI, 2004, p.169).
Pode se abrir para afetações, pode afetar, desviar o foco, brincar com o espaço,
„improvisar‟, e mesmo brincar com os próprios punctuns e matrizes. Uma zona co-
existente de criação e jogo, de controle e completo mergulho dentro dessa zona de
intensividades (FERRACINI, 2004, p. 169).

Ainda com o intuito de alcançar a organicidade dessas matrizes, utilizamos o principio


de variação de fisicidades, com dinâmicas de movimentos diferentes: ora alargando, ora
reduzindo as sequências, com maior ou menor velocidade e intensidade, usando parâmetros
corporais diversos. Caracterizando-se numa dança de matrizes.

70
Figura 17

Vale ressaltar que a fim de dançar essas matrizes é necessário precisão, não só no que
diz respeito ao desenho espacial, mas também na qualidade e quantidade de energia utilizada.
Segundo Ferracini (2003), há uma relação estreita entre energia e precisão. O ator deve ter
consciência técnica da fragmentação do seu corpo, para que além de proporcionar a limpeza
dos movimentos executados, consiga manipular a energia necessária para execução de cada
ação codificada:
(...) o ator deve aprender, depois de codificada a ação, fragmentá-la, diminuí-la,
omitir partes, aumentá-la no tempo, tendo como única regra nunca perder a vida, a
organicidade e o coração da ação. Podemos dizer que o ator deve aprender a
manipular a fisicidade da ação sem nunca perder sua corporeidade (FERRACINI,
1999, p.51).

Essa dança que consiste como mencionei acima na fragmentação, omissão, alargamento de
ações, dentre outras variações de fisicidades, proporciona uma diversidade de aplicações em
termos de composição, como veremos no terceiro capítulo, quando relatarei o processo de
criação/construção dos personagens do espetáculo.
Descrevo, por ora, o segundo momento da primeira etapa do processo, referente à
aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, propriamente dita, relacionando matriz e os atores
envolvidos. A relação de cada ator na construção de sua matriz, pontuando de que forma cada
uma delas foi resignificada no espetáculo para que no próximo capítulo essa análise seja
aprofundada. Vale ressaltar que um diferencial que utilizamos para aplicação da Técnica foi a
presença de dinâmicas (diferentes das aplicadas na primeira etapa do trabalho) antes do
contato dos atores com as fotografias. Dinâmicas, relacionadas com universo de atuação de
cada „figura‟ dentro do brinquedo, como descreverei a seguir.
2.2.1. ENCONTRO COM A MATRIZ DAMA DO PAÇO
ATRIZES: VÂNIA BERTOLDO E ANDRESSA HAZBOUN
DESDOBRAMENTOS: BÓIA-FRIA E DONA JOANA

71
Como expliquei anteriormente a Dama do Paço é a „figura‟ que carrega a Calunga e está
ligada diretamente a Jurema. Através da aplicação da „dinâmica do barro‟ relatada no
primeiro capítulo, propus estabelecer a conexão dos atores com o „lugar‟ referente à
ancestralidade (vide p.23-24). Em linhas gerais, a percepção desta dinâmica pelo ator
Rodrigo Severo:
Iniciamos a primeira parte do trabalho deitados no chão, com o corpo alinhado e as
palmas das mãos viradas para baixo. Trabalhamos com a imagem do barro
vermelho. O barro seco, mas que quer ganhar vida, se tornar frutífero, expressivo.
A metáfora do barro pode ser entendida como nosso corpo, nossos sentimentos
mais íntimos, nossas memórias, nossa pulsão de vida. Cada vez que Carla batia
palma, congelava no movimento e tentávamos compreender e armazenar
corporalmente as imagens. Ao total foram cinco imagens codificadas, que foram se
transformando em uma dança pessoal, dança das nossas memórias advinda da
imagem „barro vermelho ressecado‟.

E uma vez criada essa sequência que resultou no que chamamos de Saudação à Jurema,
dispus as fotografias da Dama do Paço no canto da sala de ensaio. Cada ator escolheu a sua,
iniciando o processo de observação. À medida que se sentiam à vontade, começavam a trazer
a forma dessa imagem, trabalhando as linhas de força do corpo observado, identificando os
pontos de tensão e acionando as equivalências corporais necessárias para materializá-la. Esse
nicho foi escolhido por duas das atrizes para um trabalho mais aprofundado. Andressa
Hazboun e Vânia Bertoldo se identificaram com essa „figura‟. Vânia desmonstrou uma
identificação com o universo que cerca a Dama do Paço desde o início, quando ela lhe foi
apresentada. Tanto que, desde o trabalho de criação da Saudação a Jurema, a partir da
„dinâmico do barro‟, as imagens já pareciam familiares para essa atriz.

Figura 18

72
O corpo de Vania respondia a cada som emitido pela alfaia e a cada indicação para atingir o
estado de barro, seu corpo respondia prontamente aos esímulos como se estivesse apenas
redescobrindo um lugar pelo qual já havia passado. Por isso, quando iniciou o processo de
observação da „figura‟ da Dama do Paço, Vânia já respirava na frequencia dessa Matriz. Os
seus vetores de força corporais íam dialogando com os vetores que Vania identificava na
fotografia, como se tivessem nascido um para outro.

Figura 19

A Dama do Paço me conquistou pela força do seu olhar e clareza dos movimentos.
Foi a matriz mais trabalhada no processo, por isso tive mais tempo de aprofundar.
O braço direito incomoda. E o pescoço de um lado só também. Mas quando o
movimento se tornou fluido, ficou mais cômodo fazer. A embocadura me deu
muito trabalho no momento de projetar a voz e articular, já que é uma embocadura
onde os sons são muito fechados e a tendência é falar para dentro ou para baixo. O
desenho do rosto dela se aproxima ao desenho do meu. Gostoso desenvolver o
andar, expressões, intensões, sons (...)” (Relato da atriz VÂNIA BERTOLDO).

Já com relação ao trabalho de Mimesis Vocal a princípio parecia um lugar


desconfortável. Não conseguiam emitir sons muito claros. Só depois de muito experimentar
caminhos de emissão desses sons, foi que eles começaram a se materializar no espaço. A
partir de sua matriz Dama do Paço, a atriz Vânia Bertoldo criou o personagem do boia-fria,
contudo a voz desse personagem foi trabalhada a partir da mimesis vocal de um outra matriz,
a do Mateus, que a atriz só experimentou depois de participar da pesquisa in loco, em Nazaré
da Mata.
73
De uma mesma sequencia de fotografias, a atriz Andressa Hazboun foi dando forma a sua
Matriz Dama do Paço, que posteriormente veio se tornar a personagem Dona Joana, a
matriarca do Cravo. Ressalto então como ponto fundamental percebido a partir do trabalho
com essa matriz, que partindo de um mesmo material, pode-se chegar a resultados
completamente diferentes em termos de composição. Os punctuns estabelecidos pelas atrizes
eram praticamente os mesmos, mas no corpo de Andressa essa matriz se materializa com
aspectos corporais de um idoso, trazendo um plexo retraído e curvado para frente, e joelhos
flexionados, que segundo a atriz era a forma como ela ajustou a imagem observada ao seu
corpo, por imaginar que tal figura tinha menos altura do que ela.

Figura 20

O seu corpo esguiu se diferenciava demais do corpo da Dama do Paço. Além dos lábios finos,
que fez com que a atriz descobrisse uma embocadura que acabou aproximando ainda mais de
um universo do corpo de uma velha. A atriz conseguiu não só encontrar as equivalências das
linhas de força da „figura‟ em relação às suas, como conseguiu transformar as fisicidades
codificadas em ações, e a cada dia sua relação com a Matriz se dava de forma mais orgânica
até o momento de composição da personagem Dona Joana, conforme descreverei no próximo
capítulo.

74
Figura 21

A escolha da fotografia da dama do passo foi algo intuitivo, desde o início senti
uma identificação com a figura, mesmo sendo, de certo modo, tão distante do meu
universo e até mesmo do meu corpo. Buscar as equivalências foi um trabalho
difícil, principalmente o rosto: as rugas, os lábios finos. Ao reproduzir no meu
corpo tais características, sentia uma mudança na sensação que observava na
fotografia e a que eu mesma experimentava. A sensação que a fotografia me
transmitia era a de „ranzinzes‟. A parte difícil foi tornar a fotografia uma ação.
Sentia-me muito rígida, presa aos detalhes e a precisão da forma e, com essa
preocupação, foi dífícil a maleabilidade de encontrar possibilidades para as ações.
No momento que as encontrei, com ajuda de exercícios e indicações da direção,
tive a sensação de que o corpo ia encontrando os próprios caminhos. A fala com
aquela embocadura, por exemplo, ajudou a encontrar uma voz diferente e as
dinâmicas que brincavam com a velocidade e amplitude do movimento também
trouxeram elementos que se misturavam à fotografia e ampliavam o leque de
possibilidades do trabalho (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).

Exemplos do que seria unir fisicidade à corporeidade, as atrizes Andressa Haszboun e


Vânia Bertoldo conseguiram encontrar um lugar próximo da resignificação das fotografias
codificadas ainda nessa etapa do processo. Por isso ao se depararem com o desafio de colocá-
las no contexto proposto no espetáculo, o caminho para a composição do gestual e das ações
físicas dos personagens: Dona Joana e Bóia Fria, respectivamente, estava fundamentado em
bases sólidas.

2.2.2. ENCONTRO COM A MATRIZ BURRINHA


ATRIZ: POTYRA PINHEIRO
DESDOBRAMENTO: FIGURA MÍTICA DO PRESENTE

Partimos da dinâmica que chamamos de dinâmica do espiral, cujo foco a princípio era o
desequilíbrio, para introduzir o trabalho com as fotografias da Burrinha. A bebida é uma
constante no universo dos brincadores rurais, e como a movimentação da Burrinha acontece,
75
muitas das vezes, em espiral, fizemos a associação desse hábito a essa figura específica. Os
corpos buscavam compensações naturais para chegar ao equilíbrio. Buscávamos encontrar a
sensação de estar fora do eixo. Os atores nessa tentativa começaram no chão deitados. Propus
que trabalhassem com a imagem de que internamente a mente estivesse em estado de
confusão e girasse, girasse, girasse continuamente. Ao começar a se movimentar cada ator
estava com tal sensação instaurada. A ideia a principio era tentar sair do chão e
posteriormente se deslocar pelo espaço. Oposições musculares orgânicas foram aparecendo,
dilatando os corpos dos atores:

As cabeças que giram por dentro em espiral. Os órgãos que pulsam irrigados pelo
líquido vermelho. Sinto náuseas, tento controlar... Não sei por que. Na dúvida me
deixo levar. Entro no universo da embriaguez, cambaleante pela sala agora, toda
bêbada. No jogo das matrizes, a burrinha chegou primeiro, com sorriso contagiante
de quem está tirando uma onda. (...) Porque por dentro, os órgãos estão em espiral,
como no inicio do trabalho, só que agora não é só a cabeça. O corpo todo é o
próprio espiral. Um espiral de felicidade(...)”(Relato da atriz VÂNIA
BERTOLDO).

Percebemos que ao invés da tentativa de desequilibrar, deveríamos tentar nos equilibrar,


para que o estado do desequilíbrio acontecesse corporalmente de maneira mais natural. Em
sequencia introduzimos giros em desequilíbrio e trouxemos o movimento do rodopio
trabalhado na etapa de esquentamento durante aplicação da dinâmica das danças populares.
Da mesma forma que o trabalho foi conduzido no processo com a matriz Dama do Paço todos
os atores passaram pela dinâmica e experimentaram tal „figura‟, mas a sequência das
fotografias foi escolhida apenas pela atriz Potyra Pinheiro. A atriz conseguiu uma
transformação corporal bem maior em relação aos outros atores, se pensarmos nela mesma
como parâmetro de comparação, quando iniciou o trabalho. Apesar de um corpo disponível,
as respostas de Potyra eram um pouco „tímidas‟ corporalmente, por isso foi uma surpresa
quando a atriz escolheu a Burrinha para ser sua Matriz, pois se trata de „figura‟ cujo corpo
está sempre para fora, cheio de protuberâncias como podemos ver nas fotografias abaixo. Um
corpo como aponto no primeiro capítulo que se faz grotesco por natureza.

76
Figura 22

A presença do grotesco, e dos seus transbordamentos, muito evidente nessa „figura‟, tornou-se
um desafio que dia-a-dia Potyra precisou vencer. O processo com essa matriz reverberou no
espetáculo, com a construção do personagem Figura Mítica do Presente.

Figura 23

77
2.2.3 ENCONTRO COM A MATRIZ CATITA

ATORES: JOSÉ MARIA, TATIANE TENÓRIO E ALDEMAR PEREIRA

DESDOBRAMENTO: FIGURA MÍTICA DO FUTURO

O nome Catita vem de rato, e como mencionei no primeiro capítulo tal figura tem a
função de arrecadar dinheiro durante as apresentações, mas também é capaz de passar a mão
na carteira de algum desavisado que esteja entretido no terreiro. A Catita dentro do universo
do Maracatu Rural tem uma característica de ser despudorada por isso trabalhei com os atores
o movimento da Umbigada, presente no coco de roda, antes do contato com as fotografias
deste nicho. O passo consiste em projetar o quadril para frente fazendo um movimento
côncavo. Intercalamos a Umbigada, com a imagem do rato com seus movimentos rápidos e
curtos.

Pedi aos atores que levassem saias para a aplicação dessa dinâmica, que acabou se
tornando parte do figurino proposto no experimento apresentado na finalização da primeira
etapa do processo, conforme descreve mais adiante. Depois de executarmos essa dinâmica
cujo foco era agilidade e „despudoramento‟, coloquei as fotos da Catita para que os atores
observassem e experimentassem no corpo. Se apenas um ator se identificou com a Burrinha,
com a Catita foram três: Aldemar Pereira, Tatiane Tenório e José Maria escolheram tal figura
para mimetizar. Faz-se interessante identificar a diferença de percepção de cada um dos
atores. De que forma cada um deles trabalhou os mapas de força da figura em seu corpo:

Figura 24
78
Figura 25

Podemos observar que cada ator trabalha os vetores de força dos braços de forma
diferenciada. O movimento que parte da coluna gera na figura original da Catita uma pequena
projeção do tronco. Pode-se observar também que a base do brincante não está alinhada, o que
também propicia essa projeção. O fato dos atores não estarem segurando um objeto, dificultou
o trabalho de codificação da matriz, por isso experimentamos utilizar uma espécie de peneira
redonda para substituir a „jerere‟ da Catita. Esse trabalho teve continuidade e desdobramentos
na montagem a partir do processo do ator Aldemar Pereira com a composição do personagem
Figura Mítica do Fututo.

2.2.4. ENCONTRO COM A MATRIZ MATEUS

ATOR: RODRIGO SEVERO

O trabalho de Mímesis com a Matriz Mateus foi desenvolvido pelo ator Rodrigo Severo,
que conheceu o brincador que veste essa figura numa vinda do Cambinda Brasileira à Natal.
Desde então Rodrigo já se sentia inclinado a escolher essa Matriz, segundo ele, pela empatia
que desenvolveu pelo brincador e por considerar que se trata da „figura‟ mais difícil de ser
mimetizada. Não só o Rodrigo, mas todos os atores consideraram o Mateus um grande
desafio, por se tratar de um palhaço às avessas. Um palhaço bufão que ri da própria condição
miserável, síntese de um povo que enfrenta as condições precárias da Zona da Mata.Contudo,
Rodrigo conseguiu passar pelas etapas da Mímesis e encontrar em seu corpo equivalências
com tal „figura‟. Seguem as fotografias do ator em processo:

79
Figura 26

O trabalho com essa matriz não teve a principio desdobramento na montagem por conta da
saída do ator Rodrigo Severo do processo, contudo ela voltou a ser trabalhada pelas atrizes
Andressa Hazboun, resultando na composição da personagem Figura Mítica do Presente;
Thais Schmidt, resultando na composição da personagem Boia Fria e na Mímesis Vocal
empregada por Vânia Bertoldo também no personagem Bóia-Fria.

2.2.5. ENCONTRO COM A MATRIZ CABOCLO DE LANÇA


ATORES: GEORGE HOLANDA E THAIS SCHMIDT

O Caboclo de Lança é a „figura‟ mais emblemática do Maracatu Rural, associado ao


Orixá Ogum carrega a imagem do arquétipo do guerreiro. Por isso o trabalho com essa
„figura‟ se deu diluído em vários momentos do processo prático com os atores de Cravo do
Canavial, inclusive durante o processo de montagem. Presente desde o „esquentamento‟
quando trabalhamos as danças populares sob o olhar dessa „figura‟ e também na „dinâmica do
Mestre‟ que ao entoar sua Loa se colocava em relação com os Caboclos de Lança, vestido
pelos atores, que precisavam responder os versos cantados pelo Mestre. Quase passou a ser
mais um coringa, dentro da brincadeira do canavial, como aconteceu com a „figura‟ do
Mestre.
Não partimos da aplicação da Mímesis para a criação desta matriz, mas de uma partitura
composta por cada ator, a partir da construção de uma sequência de movimentos, baseada no
mote: ritual, crença e luta em relação com três ações pré-fixadas: cobrir a cabeça, molhar
cravo do azougue, colocar cravo na boca. Utilizei também algumas músicas do universo
popular como estímulo e eles foram experimentando. Os atores Thais Schmidt e George
80
Holanda desenvolveram o trabalho com essa matriz que partiu da construção dessa partitura.
A atriz Thais Schmidt relata, contudo, a dificuldade em construir essa Matriz a partir desse
procedimento:
(...) mas restava ainda a última figura que iríamos trabalhar, o Caboclo de Lança.
Este teve um processo diferente. Não partimos das fotografias. (...) fizemos uma
leitura, particular, da pesquisa sobre o azougue e usando lenços na cabeça,
buscamos uma figura interna, esse caboclo internamente. Algo difícil de construir,
senti muito dificuldade de acessar essa figura. Para mim, foi a figura mais
impalpável (Relato da atriz THAÍS SCHMIDT).

Acredito que esse trabalho de criação de uma partitura para construir a Matriz do Caboclo de
Lança, tenha se dado de forma pouco concreta, por conta de na ocasião os atores ainda não
terem entrado em contato diretamente com os brincadores e com o brinquedo. A pesquisa de
campo aconteceu na etapa seguinte do processo, na etapa de montagem. Por isso, o acesso à
materialização de um imaginário, que correspondesse ao universo arquetípico dessa „figura‟,
tornou-se pouco palpável como relata a atriz Thais Schmidt. No capítulo seguinte, veremos a
associação do processo da Mímesis com o que se chamou de „dança das memórias‟
(HIRSON, 2012), tornando a construção e o acesso a essas imagens mais palpável.

2.3. DANÇANDO AS MATRIZES NUM TERREIRO IMPROVISADO

Figura 27

No escuro, transformamos sentimentos em movimentos, para depois interagirmos


uns com os outros. Houve troca. Elegemos músicas e cores em alguns encontros
(...), aprendemos movimentos do caboclo de lança (...), criamos partituras.
Conhecemos várias figuras, que por associação própria, trouxeram à tona pedaços
do que somos. Tudo tinha sua função e exercia o que devia. Tudo se completava e
somava. O CRAVO se entranhou em mim! Tudo agora é referencia para o
81
CRAVO! Mesmo antes, quando meus devaneios criativos me levaram a ideias
cenográficas, afinal não podia deixar o que eu tinha. (...) Afinamos a luz e ela
faltou. Olha só que brincadeira! (Relato da atriz THAIS SCHMIDT)

Iluminados por faróis de carros e em meio a uma terra avermelhada se deu a finalização
da primeira etapa do processo prático de Cravo do Canavial. Tanto os faróis quanto o espaço
não foram planejados, anteriormente. No horário previsto para apresentação do experimento
faltou luz no prédio do Teatro-Laboratório Jesiel Figueiredo e acabei motivando os atores a
vivenciarem a demonstração ao ar livre. Poucos minutos antes da apresentação, a luz voltou
mas já estávamos instalados na areia e com esteiras improvisadas para receber uma pequena
plateia prevista. E a terra vermelha acabou se transformando no barro avermelhado e rachado
do Engenho do Cumbe em nossos imaginários. Quase fui capaz de ver Dona Joaninha na
janela abençoando a brincadeira:
A apresentação foi viva, verdadeira e única. Aquele lugar nos trouxe outro estado
de emoção e outra atmosfera, brincamos como os brincantes do maracatu, de pés
no chão. Sentimos a terra, fizemos a terra subir com nossas danças e assim
fechamos essa etapa do processo. (Relato da atriz TATIANE TENÓRIO)

Foi bonito ver como todos trabalharam para que a apresentação acontecesse. Pessoas até
que não tinham ligação tão direta com o projeto. O técnico de luz que trabalhou conosco nos
ensaios do teatro ajudou a colocar todo o material lá fora e depois a puxar fiação para que
pudéssemos ligar microfone e o som. Chegou até um percussionista extra. Percebi que apenas
uma alfaia ao ar livre não iria trazer a pressão que precisava para o momento da saudação a
Jurema. Por isso, tratei logo de convocar mais um que estava de passagem pelo terreiro. Por
sorte, com a volta da luz, pudemos ao menos usar a trilha composta pelo músico Marco
França para o experimento. O microfone onde os atores iriam dizer fragmentos de alguns
textos que havíamos trabalhado estava ligado e a base gravada para os atores cantarem a
música „Cravo do Canavial‟ estava garantida. Já tínhamos desafio demais com a mudança de
espaço:
Ofegantes, tomamos nossos lugares no banco e tentamos cantar. Meu Deus! Como
estava desafinado! Não havia fôlego... Aí todo mundo espremeu o que restava de ar
no pulmão e ficou ainda mais audível aquele canto desafinado. Ok, pensei! Então
sejamos as vozes exaustas dos cortadores de cana, cansados depois de uma jornada
de trabalho, depois de uma sambada! Findada a música, erguem-se as matrizes,
caminham, passam por suas fotografias, brincam com as dinâmicas, fluem, e por
fim, congelam. Silêncio. Só se movimenta a poeira como continuação dos nossos
movimentos (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).

Só o fato de nunca termos ensaiado em local aberto por si só já nos colocava em risco.
Mas a sensação era de que a brincadeira estava pedindo para estar em seu lugar de origem,
pedindo para respirar. Os dois dias anteriores de ensaio dentro do teatro da UFRN tinha nos
82
deixado, „mofinos‟. Apesar de não termos conversado sobre isso parecia que a nossa
brincadeira estava meio „desmantelada‟, em meio àquele aparato de luz e espaço fechado.
Tínhamos na cabeça a ideia de que tal apresentação não se caracterizaria num espetáculo, mas
um experimento aonde didaticamente o processo iria se revelar. Contudo nos últimos dias de
trabalho houve um cuidado e uma preocupação, tanto minha, quanto dos atores, de que tal
experimento primasse de alguma forma pelo artístico. Tive que lutar muito contra a minha
necessidade de acabamento, de querer precisão milimétrica no roteiro criado para essa
apresentação.
Os atores se atrapalharam um pouco com o novo espaço, mas o fator risco deixou-os vivos,
presentes, mais atentos do que nunca ao jogo criado. Sem falar que a atmosfera do próprio
lugar nos remeteu ao terreiro onde as brincadeiras populares acontecem em sua origem:
E fomos ao barro, iluminados pelos faróis dos carros, cercados de gente, iniciar o
ritual do lenço. Meu lenço já carregado de areia batizou meu corpo. De lança na
mão, cortando o espaço, pusemos na boca nossos cravos. Som da alfaia, e os
caboclos de lança se armaram. A cortina de areia que se ergueu criou um clima
diferente. Misterioso como o Maracatu (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).

Com o espaço novo perdemos tecnicamente em termos de precisão e qualidade vocal,


mas ganhamos momento criativo vivo, orgânico. Durante a apresentação pude observar
também dificuldades apresentadas pelos atores no que diz respeito à resignificação das
matrizes e a relação dessas matrizes com um texto. Independente das pendências, considerei a
experiência importante tanto para mim quanto para os atores, chamando a atenção para
questões referentes à presença e para discussão sobre representação e não representação que
evidenciou-se a partir daí no processo. Ou seja, a mudança no espaço de apresentação nos deu
de presente uma nova poética67, redimensionando as ações dos atores e muitas das ideias de
estrutura cênica68 que havia pensado até então.
Tenho em mente que as perdas técnicas que tivemos com a apresentação ali foram
muito inferiores ao que ganhamos, pois tivemos um algo a mais naquele local, uma
energia diferente, algo de espiritual, decorrente do contato com aquele barro e todo
o significado que ele possui para o maracatu (Relato do ator GEORGE
HOLANDA).

67
A poética sempre existiu em toda história do espetáculo, levando-nos à Aristóteles, que primeiro expôs quais
eram os ideais artísticos para realização teatral ( ALMEIDA,1995 ).” A reproposição da cena teatral como sendo
ma questão poética, antes que estética, surge como ação fundamental quando se pretende que o teatro seja aquele
lugar onde o indivíduo se revela ao próprio indivíduo, onde ser é acrescentado ao ser”.(...) “Assim interessa
saber, o que constitui esse saber-fazer poético do teatro. Trata-se de promover uma investigação sobre a
especificidade da experiência teatral, sobre aquilo que, nesta, permite um determinado tipo de gozo poético,
singular e irreprodutível em outro lugar, a partir de outra estrutura. Um gozo sinssígnico” (NETO, 1981, p. 23
apud ALMEIDA, 1995, p. 7).
68
Trata da descoberta de como os elementos constituintes do fazer teatral serão organizados, a fim de definir a
poética do espetáculo Cravo do Canavial. De como tais elementos serão articulados, estruturados.
83
Em nenhum momento dentro da sala de trabalho os atores haviam atingido um corpo
com tamanha potência. Dilatados. Inteiros. Em estado de Jogo. Um corpo brincante que
brincou levantando poeira. A partir dessa vivência eles entenderam no corpo o que os
exercícios e dinâmicas aplicadas em sala poderiam gerar em termos de potência cênica:
Acho que hoje, o desafio foi colocar esse corpo por inteiro. O corpo de cada um e o
corpo coletivo. E que para isso, é preciso abrir os sentidos, ouvir, ver, sentir o pulso
da cena, estar de prontidão para mantê-lo, com precisão, para receber e dar,
comprometendo todo o corpo, buscando ajuda no grupo quando há problemas.
(Relato da Atriz ANDRESSA HAZBOUN)

Figura 28

E ainda no relato da atriz Thais Schmidt:


Não precisei mais pensar: agora é isso. Meu corpo respondia. Apesar de ter sentido
dessa maneira, ainda me encontro com determinadas “travas” que empacam os
movimentos, impedindo uma maior organicidade. A poeira subiu e a terra se
espalhou entre meus dedos dos pés. A luz enfatizou as cores e fluímos do início ao
fim. Só resta fazer mais „mei‟ mundo de cravinhos de sacola com fio colorido, que
é pra vê se enfeita o mundo (Relato de THAIS SCHMIDT).

Quando os atores começaram a cantar a musica tema do processo Cravo do Canavial


sentados num banco ao fundo iluminados pelos faróis dos carros, pensei: É isso... A essência
da brincadeira está aí! Resta saber como ela poderia se materializar no processo de montagem
do espetáculo. No próximo capítulo relato como se deu essa fusão. Sem dúvida o risco com a
mudança de espaço foi compartilhado, dando solidez ao grupo, gerando ainda mais
cumplicidade em cena. Alcançamos um caráter ritualístico com o colorido das saias que
faziam contraste com a areia vermelha e a luz vinda dos faróis dos carros que nas palavras da
atriz Vânia Bertoldo, em relato: “iluminavam e nos protegiam ao mesmo tempo”. Natureza e
interior se fundiram durante o experimento. Características típicas de uma brincadeira
popular, onde se instaura fissura temporal abrindo espaço para o lugar do „extraordinário‟.
84
2.4. A ESTÉTICA DE UM COTIDIANO „EXTRAORDINÁRIO‟

Figura 29

Ajustei um casamento com a nêga dum bordel, pensando que era uma moça e era o
diabo duma veia. Tombo no martelo tombador. Tombo no martelo militar! Me
casei com esta veia pra livrar da fiarada. A danada dessa veia, teve dez numa
ninhada (...) Desses dez que nasceram Um deu pra ladrão de bode. Deu no tango e
deu no mango, Dos dez só ficaram nove (...) Desses seis que ficaram Um deu pra
ladrão de pinto E deu no tango e deu no mango Dos seis só ficaram cinco (...)

(DOMÍNIO PÚBLICO)

E no „tombo do martelo tombador‟, dos nove ficaram cinco. A etapa de montagem do


espetáculo começou com a ida da equipe de criação para Nazaré da Mata. Agora não seria só
eu que voltaria com os pés coloridos de vermelho, que escutaria o assobio da cana se
confundir com o apito do Mestre, que teria o coração batendo no compasso do Terno de
Maracatu. É verdade que Dona Joaninha, não estaria mais debruçada na janela para receber os
atores curiosos, ansiosos e cheios de perguntas; mas trazíamos na bagagem uma matriz que
aos poucos ia se transformando na nossa matriarca, na matriarca do Cravo do Canavial, uma
homenagem a eterna protetora do Cambinda Brasileira que leva todos os integrantes do
brinquedo a ficar com os olhos marejados numa terra onde a água é escassa.
Ao chegarmos nessa terra do „entre‟ onde cotidiano e extracotidiano, teatralidade e
espetacularidade são complementares, os atores-pesquisadores que trabalharam arduamente
na proposta de mimetizar as figuras vistas por fotografia foram inundados com a presença dos
brincantes e de seu cotidiano. A essa altura os cinco: Andressa Hazboun, Vânia Bertoldo,
85
Thais Schmidt, Potyra Pinheiro e Aldemar Pereira já tinham estabelecidos os punctuns de
suas matrizes, podendo acioná-las sempre que convidadas, já tinham as colocado em relação,
já tinham até experimentado pisar numa terra vermelha nos „quintais‟ da UFRN com os olhos
ofuscados por faróis de carro. Mas quando chegaram à Nazaré da Mata em maio de 2012:
Foi no terreiro do Cambinda que eu ouvi o terno pela primeira vez. Vestido de
metais, ganzá, porca, caixa, chocalhos, zabumba e gonguê (...) não tem espaço para
ficar parado. Fomos para um lado e para o outro chacoalhando, pinotando,
levantando poeira e vibrando com o som. (...) Vi a Burrinha, Mateus, os Caboclos,
a Catita, Dama do Paço, o Mestre, a palhoça, a casinha onde tudo começou, o
canavial, a estrada, a jaqueira, os mistérios, a terra de barro rachado, a
encruzilhada, a experiência, a malícia, o cansaço, o desgaste, a juventude oca, o
compromisso, a alegria, as contradições, as tradições, a esperança.... Lembro que
fui dormir carregada, cheia de sensações, vontades, inquieta, transbordando com
toda energia vivida ali. Ali eu embarquei no sonho. No sonho de querer
transformar tudo, da nossa maneira, e contar para o mundo o que eu tinha vivido
naqueles três dias (Relato da atriz POTYRA PINHEIRO).

Figura 30

Foram três dias de trabalho onde o espetáculo começou a se desenhar. Havíamos


levantado bastante material até então, é verdade, e todo ele foi aproveitado na montagem. Mas
a partir desse encontro as matrizes passaram a ter „gosto de terra‟. Como mencionei no
decorrer dessa dissertação, os procedimentos do treinamento sob os moldes do Lume estão
para fazer com que o artista trabalhe não só questões referentes à mecanicidade, mas também
aprenda a trabalhar com suas energias potenciais que, inevitavelmente, estão ligadas a sua
história, ao seu corpo-memória. Apesar de estrangeiros, ali estávamos em casa. Mas ainda
assim éramos estrangeiros, filhos pródigos de uma herança distante, adormecida em nossos
corpos. Segundo Hirson (2006) ao trabalhar suas potencialidades, o ator pode encontrar algo
86
que entre em frequência com o corpo observado. Parte-se da percepção, do „filtro‟, de cada
ator. O que seria a principio uma observação mecânica, vai sendo resignificada, a partir deste
olhar singular, pessoal, e a medida que o material é posto em relação com outros atores, a
Matriz vai surgindo.

O Maracatu antes era brincadeira de guerra, agora se fazia guerra de brincadeira, mas
mesmo assim, os atores precisaram entrar no combate para serem aceitos no terreiro.
Precisaram carnavalizar seus corpos, encontrar as protuberâncias de um grotesco mencionado
por mim no primeiro capítulo dessa dissertação. É verdade que Zé de Carro nos recebeu com
sorriso no rosto, mas daí a entrarmos numa Sambada junto com os brincadores do Cambinda
Brasileira, era necessário assumir o lugar de brincante mesmo que de um „brincante
estrangeiro‟:

Logo, começou uma amostração geral e, quanto mais nós tentávamos e queríamos
nos misturar, fazer parte, mais eles demarcavam seu território. Não no sentido de
um distanciamento xenófobo, mas de uma autovalorização, afirmação da
identidade do brincante, um nativismo que deve aflorar nos momentos de
confronto. (...) Aquele bando de estrangeiros dizendo “olhe pra mim! Eu sou um
brincante do maracatu!” ativou o “Ah é? Quero ver fazer como eu faço, agora!”.
Essa dinâmica do “desafio” (...) foi o momento em que o jogo entre nós se
instaurou (...) (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).

Na contemporaneidade o artista recria, resignifica. A arte começa a ceder lugar ao


processo de comunicabilidade, relacionando-se nas mais variadas fronteiras. As informações
não estão mais em „lugares‟, mas em „relações‟. Ou seja, pensar nas relações entre corpo e
cultura a partir dessas reflexões é reconhecer que a preservação de limites é uma ficção. O
corpo é a matriz da comunicação. É com esta noção atual de corpo como mídia de si mesmo,
que precisamos lidar (GREINER, 2008). O corpo do ator não mais como recipiente, mas
como presença, um corpo-processo, constituído por uma coevolução com o ambiente, que ao
“entrar em contato” contamina e é contaminado, influencia e é influenciado (GREINER,
2008, p.28). É com esse corpo que criamos relações, intervimos. Um corpo que é
corporeidade/existência/percepção (MERLEAU-PONTY, 1999 apud ALVES, 2010, p. s.n):

Aqui importa-nos delinearmos nosso texto em torno da compreensão de um corpo


encarnado presente na cena contemporânea, pois “o corpo não pode ser pensado
como um recipiente que nos contém, nem como uma muralha que nos isola; é o
que se forma na trama da vida, num devir no tempo que vai formando uma
organização que leva no corpo sua história” (NAJMANOVICH, 2002, p.101-102
apud ALVES, 2010, p. s.n.). (...)

87
Figura 31

Como citei, anteriormente, usando as palavras de Ferracini (2004), a Técnica da


Mímesis Corpórea pressupõe „criar uma nova corporeidade entre o corpo do ator e o corpo
estudado‟. Caracteriza-se por uma postura de busca, por isso apresenta uma metodologia de
trabalho em construção e não um método fechado, imutável - aberta para intersecções
inclusive com novos conceitos – estabelecer, então, diálogo com o tipo de linguagem e
subjetividade que o corpo, sob o olhar contemporâneo da „presentação‟ possa vir a produzir,
abre um leque de possibilidades e de reflexão. Essa discussão diz respeito ao corpo de um
artista que se faz sujeito. Um corpo em consonância com discussão em arte aliada aos moldes
contemporâneos deixando cair por terra o corpo do artista como algo „desencarnado‟
(ALVES, 2010) 69.
Ferracini (2003) fala em „dar vida as ações‟, de „técnica em vida‟. Hirson (Apud
FERRACINI, 2003) fala que a organicidade de tais ações é conseguida através da alquimia
entre a sua pessoa e o meio, „qualquer objeto externo a mim‟ (HIRSON apud FERRACINI,
2003, p.112). Nessa perspectiva ao refletir sobre o corpo em estado de dança, Alves (2010),
por sua vez, aponta também a necessidade de não desvinculá-lo de seu estado de vida. “(...)
percebendo suas sutilezas memoriais e suas reverberações na relação com o outro e a cena.

69
Alves (2010) explica o que seria o encarne apontando para o corpo do artista que, a partir do século XX,
“recebeu a marca de sujeito e objeto do ato artístico, tendo o artista se colocado como produtor e performer”:
“(...) implica em dizermos que temos encarnados em nós mesmos elementos da nossa história, de nossa cultura e
natureza que embora não determinem, influenciam nossas formas de criação, de percepção, de construção e
expressão da/na arte” (ALVES, 2010, p. s.n)

88
Talvez possamos atribuir a esse corpo a sua condição „re-ligare‟ que busca restabelecer a
ligação perdida com o mundo que o cerca” (p. s.n).

Figura 32

A pesquisa de campo foi divida em três momentos: conversa na Associação de


Mulheres de Nazaré da Mata (AMUNAM), responsável pela fundação do primeiro Maracatu
Rural composto só por mulheres, o Maracatu Rural Coração Nazareno; entrevista com Zé de
Carro e Sambada no Engenho do Cumbe (participação de alunos da graduação da UFRN e do
professor-orientador Robson Haderchpek) e a ida a Encruzilhada da Bringa, local onde,
contam os brincadores de maracatu, caboclos mataram ou morreram disputando território, e
os que morreram foram enterrados com a própria vestimenta de caboclo naquele local.
Vivo ou morto? - Quem? - O Caboclo! - Vixe... Acabou em morte. - Vida-morte-
vida. Vocês lembram da gente, nesse mesmo lugar, há alguns atrás? Bem aqui,
nessa encruzilhada? - Aí é a tal da Bringa? (Texto CRAVO DO CANAVIAL).

Saber dessas histórias contadas pela boca dos próprios brincadores, ter acesso as suas
memórias e vê-las se materializando através de seus corpos retorcidos em meio à Sambada
improvisada no Engenho do Cumbe, foi fundamental para construção dramatúrgica do
espetáculo e para concepção estética das cenas, como descreverei no próximo capítulo. Por
sua vez, havia a ideia de que os atores „vestissem‟ os brincantes-narradores que iriam narrar
um conto dos canaviais, e para isso eles precisavam trazer para o corpo o estado da
brincadeira que não está apenas no momento da brincadeira em si, mas no orgulho do
brincador ao falar do brinquedo, na crença ao esconder o mistério do Maracatu e também nas
decepções e desesperanças de viver um tempo em que as dificuldades financeiras acabam por
desmantelar o brinquedo. Era preciso fazer com que os atores vivenciassem isso
corporalmente se deixando „contaminar‟, influenciar, por esse cotidiano.
89
Figura 33

Segundo Gumbrecht (2010) os fenômenos culturais só conseguem ser descritos se


incluirmos a dimensão da presença, e onde seria impossível manter o foco apenas na questão
do sentido. Seguindo esse raciocínio, é importante trazer para discussão o conceito de
presença trabalhado por Gumbrecht (2010), que defende a experiência estética como o
momento privilegiado de tensão entre „efeitos de presença‟ e „efeitos de significado‟,
explorando a possibilidade de um campo não hermenêutico. Não se trata de uma total
suspensão da interpretação pela cultura de presença, mas a defesa de uma experiência pautada
não exclusivamente pelo significado. Pensar a presença significa pensar o corpo em sua
materialidade não expressiva, ou seja, em sua potência presencial (GUMBRECHT, 2010).
Evidencia-se, nos moldes contemporâneos a manifestação do efeito presença. O corpo e
os processos de atuação postos em prática pelo ator sob a égide contemporânea envolvem um
horizonte técnico e expressivo mais alargado, sem estabelecer hierarquias. A consonância no
que diz respeito à simetria entre a representação dramática e a presentação, nos moldes que se
denomina pós-dramática, está na necessidade de construir partituras sejam elas: fixas,
montadas a partir de improvisações ou em constante transformação. O que irá caracterizar
essas partituras são os materiais oriundos de diferentes graus de abstração e subjetividade,
podendo reinventar códigos e convenções culturais, relacionadas mais diretamente com a
exploração de processos perceptivos, ou seja, de experiências em diversos níveis
(GUINSBURG e FERNANDES, 2010, p. 88). As possíveis diferenças entre o ator dramático
e o pós-dramático estão, então, nos modos de elaboração, articulação e reinvenção de tais
elementos. A diferença está no “como”.
90
Na perspectiva contemporânea é na linguagem da performance, que a crise da
representação reverbera de maneira mais contundente, no estado limítrofe que se encontra o
ator durante uma performance, onde ao mesmo tempo expressa um „não eu‟ e ao mesmo
tempo recusa o „não eu‟. (DAWSEY, 2005, p. 22). Um possível desdobramento dessa
discussão seria pensar o corpo do brincador popular não só como „homo ludens‟, de Huizinga,
mas também como „homo performer‟. Dawsey (2005) levanta essa discussão quando defende
que o cotidiano dos „bóias-frias‟ já é performático por natureza, pondo em cheque mais uma
vez a separação do que seria o cotidiano e o extracotidiano, que o autor passa a chamar de
„extraordinário‟.

Figura 34

Por se tratar de bóias-frias (trabalhadores dos canaviais) torna-se impossível não


encontrar similaridades entre o universo desses cortadores de cana-de-açúcar de Piracicaba
(SP), pesquisado por Dawsey (2005) com os de Nazaré da Mata (PE). Tendo como referência
a antropologia da performance de Victor Turner70, Dawsey (2005) defende que não existe um
cotidiano natural nesse universo, e o que seria performance social estaria ligada a
performance estética . O autor levanta então a hipótese de que em carrocerias e caminhões, os
bóias-frias viveriam em estado performático. Trata-se de um “metateatro do cotidiano, um
estranhamento no cotidiano” (DAWSEY, 2005, p. 30). Os bóias-frias viveriam um cotidiano
extraordinário ou extraordinário cotidiano, que se configuraria na experiência de um susto ou
pasmo diário. Esse suposto estranhamento nos faria repensar, segundo Dawsey (2005),
relações entre drama estético e drama social.

70
“Para Victor Turner as raízes do teatro estão no drama social, vê a antropologia da Performance como uma
parte essencial da antropologia da experiência. Para ele todo tipo de performance cultural, seja ela ritual, teatro,
carnaval, ou poesia, seria explanação ou explicação da própria vida”. (DAWSEY, 2005, p 73-74).

91
(...) uma etnografia em canaviais e caminhões de turma sugere a possibilidade de
que o cotidiano de certos grupos, tal como o dos “bóias-frias”, apresente os traços
de um estado performático. Se Turner nos leva a entender a vida social a partir dos
momentos de suspensão dos papéis, seria difícil imaginar um caso em que esse
princípio metodológico seja mais relevante do que o dos “bóias-frias”. Se em
carrocerias e canaviais encontramos o Homo ludens, ali também nos
surpreendemos com a manifestação exuberante do Homo performans (TURNER,
1987a, p. 81 apud DAWSEY, 2005, p. 22).

O diálogo com o discurso contemporâneo da não representação em nome de uma


presença, bem como a articulação apresentada por Dawsey (2005) de um brincador que se faz
homo performer em seu cotidiano trouxe elementos para condução dos atores durante o
processo de montagem, que resultou na composição dos brincantes-narradores, vestidos por
cada ator durante o espetáculo. Os atores transitam entre o representar e o não representar ao
contar a história da Mulher ao longo espetáculo. Somado a isso, a concepção da dramaturgia
cênica conta com elementos característicos da perfomance71 através da fragmentação da
narrativa e da simultaneidade de signos em cena. Partimos então da análise dos
procedimentos do „esquentamento‟ e da aplicação da Mímesis Corpórea, tocando no cerne
dessa Técnica que é a construção de matrizes corpóreo-vocais, a partir da busca de
equivalências corporais, para chegarmos a ideia de uma proposta cênica, que emerge de um
cotidiano „extraordinário‟.

71
No teatro pós-dramático, a ideia de narrativa e a unidade de ação são postas em jogo. Não existe mais o
sentido de totalidade da obra ciência. A polifonia entra em cena e com ela a abundância e a simultaneidade de
signos, em que sensação vale mais que sentido, possibilitando que as imagens criadas gerem inúmeros
significantes, deixando espaços vazios para que o espectador esteja presente na obra. (GUINSBURG e
FERNANDES, 2010).

92
CAPÍTULO 3.

CRAVO DO CANAVIAL:
CONSTRUINDO UMA DRAMATURGIA „DE‟ MEMÓRIAS

Figura 35

Nazaré da Mata, interior de Pernambuco. A terra do barro rachado, dos canaviais, a terra dos
Maracatus. Terra avermelhada massacrada pelos períodos de seca, onde a cor das pessoas se
confunde com a cor da terra. Sede de um grupo de brincantes de Maracatu Rural, cortadores de
cana-de-açúcar. Esses BRINCANTES-NARRADORES se reúnem no terreiro para contar a história do
Cravo do Canavial, que narra os desencontros entre o céu e a terra, entre o mar e o sertão, entre o
que é vivo e o que o morto. Entre o que havia sido perdido e o precisa ser reencontrado para fazer
fulôrar história, desse não-lugar.
O feminino e o masculino mais uma vez se dividem.
Uma MULHER igual a tantas outras inicia seu processo de individuação, de autodescoberta. Nega
sua identidade, sua marca de nascença, o seu feminino. Tem na figura do PAI um opressor, que
aniquilou o poder de fala de todas as mulheres de sua família. Das paredes da casa do Engenho,
escorre o sangue dessas mulheres guerreiras „lorquianas‟, que tentam se libertar da figura desse PAI.
Um Barba-Azul que as trancafia no porão de suas almas, matando os seus desejos, suas pulsões.
DONA JOANA, figura lendária da região, avó da mulher, conta para ela a história da „mulher
esqueleto‟. Uma moça que havia sido empurrada do penhasco pelo pai, sem saber o motivo. Com
medo que algo semelhante acontecesse a ela, a MULHER decide fugir desse desenlace.
E, Negando sua identidade, peregrina pelas curvas do sertão.
A cada cruzamento da estrada, a cada encruzilhada, vai encontrando respostas, e mais perguntas, que
a levam ao entendimento do ciclo natural da vida-morte-vida.
A figura do brincante, contador dessa história, é sempre presente.
Eles vestem as „figuras‟ que essa MULHER vai encontrando pelo caminho.
O primeiro encontro é com uma CURANDEIRA DE POUCA FÉ que apaga sua imagem num ritual às
avessas.
93
E nesse conflito entre interior e exterior, entre a águia e a serpente, surgem as TRÊS FIGURAS
MÍTICAS,
em seu segundo Encontro.
Entre o barro rachado e a poeira ao sabor do vento, A MULHER sai, então, para guerrear, lutando
contra tudo, se negando a tudo. E como uma „Quixote do Sertão‟ vê os seus piores inimigos em
simples moinhos de vento, em seu terceiro encontro, com o VENDEDOR DE FIGURAS. As cicatrizes
da batalha se tornam sua vestimenta, o seu escudo protetor, que a fazem lembrar quem ela é. Tal qual
a sua avó, ela aprende a devorar os demônios, aprende a se alimentar deles, a crescer com esses
demônios,
em seu quarto encontro com os BÓIAS FRIAS.
E apesar de trazer sempre na memória a figura de sua avó, relembrando/contando a história da
„mulher-esqueleto‟, de uma mulher que ela não quer se tornar, a heroína se vê emaranhada pelas
linhas da vida, presa ao anzol do destino. E, como todas as mulheres, que já passaram por essas
estradas, acredita que a sua salvação está no outro. Igual a tantas Ofélias, Desdemônas, Marias que
se perderam em desmedida, ela se vê frente a frente com o que será o seu quinto encontro: o seu
DUPLO. A escolha pelos „sapatos vermelhos feitos a mão‟, ao invés da „carruagem dourada‟ faz com
que a MULHER se coloque de novo diante do tabuleiro de xadrez, lutando por sua cabeça. Escolhe
por fim, se colocar no jogo, dançando com a própria sombra.
De volta ao seu lugar de origem, de onde, na verdade, nunca havia saído.
A MULHER reencontra sua família. Agora sem a figura de DONA JOANA que foi brincar maracatu
no céu.
Com a morte da matriarca, assume o lugar da avó - respeitando como ela o ciclo „vida-morte-vida‟.
E se torna a primeira Cabocla de Lança mulher da região.
Os BRINCANTES-NARRADORES encerram a brincadeira,
anunciando a sambada de amanhã, onde mais uma peregrinação se inicia.

(Argumento Dramatúrgico do Espetáculo CRAVO DO CANAVIAL)

A responsabilidade em dirigir meu primeiro espetáculo associou-se ao objetivo de


construir com ele uma dramaturgia. Por ter partido de matrizes resultantes do processo de
aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, trabalhamos a priori com esse material posto em
relação num caminho trilhado pelo próprio Lume, em diálogo com o processo de outros
artistas-pesquisadores que também seguiram tais procedimentos. Ou seja, partimos do
princípio de que a inferência de significado a partir do jogo entre as matrizes independe da
existência de uma dramaturgia pré-concebida. Okamoto (2004) defende essa ideia citando o
cineasta Eisenstein, ao relatar que para ele da aproximação de duas imagens nasce
inevitavelmente uma terceira significação. Mas, apesar de termos constatado a potência de
significado resultante do jogo entre as matrizes, o processo do Cravo do Canavial ocupou um
lugar diferente dos trabalhos relatados a partir da aplicação da Mímesis, onde a própria
relação entre as Matrizes definem a poética cênica sem interferência maior de um texto ou de
um encenador.
94
Não há como negar, e nem pretendo, que as minhas opções poéticas sofreram
interferência viva dos atores, que participaram ativamente de todo processo de concepção do
espetáculo. A experiência relatada por Okamoto (2004) de que aprendeu práticas de trabalho
úteis no primeiro momento de montagem de seus espetáculos cujo enfoque foi “a construção
de personagem a partir da síntese dos materiais e o entendimento da criação dramatúrgica em
interação com o trabalho de encenação- dramaturgismo” (2004, p. 66) foram fundamentais
para o encaminhamento da nossa montagem: “Os atores improvisavam livremente
combinações de sequências de ações, relação entre personagens, conflitos. O que nos parecia
interessante, era registrado” (p.65). Okamoto (2004) ressalta então que antes de se tornar
palavra escrita, materializava-se uma dramaturgia espacial. Processo similar aconteceu na
montagem do Cravo do Canavial, pois as ideias das cenas iam sendo construídas em
consonância com o trabalho em sala - que consistia no jogo entre as matrizes e em
improvisações acerca de motes específicos, baseados no argumento dramatúrgico que havia
escrito.
A construção do que seria essa dramaturgia espacial, apontada por Okamoto (2004),
iniciou-se com o trabalho de assessoria técnica da atriz-pesquisadora do Lume, Raquel Scotti
Hirson que nos deixou bastante material, reverberando plasticamente em várias cenas do
espetáculo. Mas a história da Mulher que resolveu negar sua condição e que acabou se
tornando a primeira Cabocla de Lança do sertão começou a nortear nossas escolhas e as
articulações feitas com este material. Ao escrever o argumento dramatúrgico do espetáculo,
comecei o trabalho de materializar esse texto em motes e depois em cenas a fim de contar
uma história, invertendo o binômio „jogo entre matrizes/ texto‟ para „texto/ jogo entre as
matrizes‟. O processo, no entanto não se deu de maneira excludente, mas complementar. As
cenas foram sendo criadas numa dança entre esses dois binômios, ora um em evidência ora o
outro. O próprio Burnier (2009), fundador do Lume, define a Técnica da Mímesis Corpórea
como algo que se encontra entre a preparação do ator e a montagem em si de um espetáculo
(BURNIER, 2009), o que me fez ficar a vontade para experimentar este caminho.
Colocar as matrizes em jogo, a meu ver, não dava conta do universo que envolve a
brincadeira do Maracatu Rural e mais, da conflitante complexidade que envolve a realidade
dos que brincam em Nazaré da Mata, principalmente se fizermos um recorte no papel da
mulher dentro da brincadeira. Vi-me mais uma vez „movida‟ pela história da empregada
doméstica Maria José Marques dos Santos, que conseguiu em 2004 vestir a figura de uma
Cabocla de Lança pela primeira vez em um Maracatu Rural. Essa inquietante sensação de que
algo ainda precisava ser dito, juntamente com a fala do professor orientador dessa dissertação
95
de que a montagem do espetáculo seria uma possibilidade de „mostrar minha alma‟, me
fizeram intuir, que talvez o material que estávamos levantando, apesar de resultar em imagens
fortes e cheias de teatralidade, precisava estar a serviço de uma ideia, uma história, mesmo
que não linear.
Fiquei um tempo maturando o que seria „mostrar a minha alma‟ e como isso seria
possível. Como poderia escrever com o corpo do outro e ao mesmo tempo me colocar nessa
escrita cênica, sem „atravancar‟ o processo dos atores. Ao ter trabalhado com algo tão
palpável como o processo de aplicação da Mímesis Corpórea, „mostrar a minha alma‟ parecia
apesar de poético, abstrato demais. Como atriz essa colocação seria um pedido concreto, mas
como poderia materializar tal objetivo através da condução dos atores, que a essa altura já
tinham se despido de grande parte de suas amarras, tendo as suas „almas‟ a mostra. Até então
o processo estava girando em torno do ator-pesquisador, do acesso a suas memórias, do seu
potencial criativo, por mais que existisse a minha condução, por mais que minhas escolhas
interferissem na síntese e na articulação do material produzido em sala de ensaio, eles
estavam à frente do jogo.
Recorri as minhas anotações sobre o processo inicial com os atores, e as anotações
referentes ao primeiro capítulo dessa dissertação. Esbarrei no conceito abordado por Sánchez
(2010) sobre dramaturgia da memória e de sua análise a respeito da dinâmica psíquica do
„criador-executante-bailarino-dramaturgo‟, que reconhece através de um corpo em sua
totalidade expressiva os sinais de seu inconsciente associando elementos, manipulando-os e
trazendo para o consciente como conteúdo do seu processo criativo: “Nesse sentido corpo e
alma não se separam e é preciso então que o artista tenha uma percepção sutil de si mesmo e
do mundo” (SÁNCHEZ, 2010, p. 83). E ao relatar sobre o processo criativo da coreógrafa
alemã Pina Bausch, vinculando-o ao que a autora descreve como dramaturgia da memória,
Sánchez (2010) esclarece como os arquétipos são mobilizados dentro do processo de
construção dessa dramaturgia. “A mobilização intencional do espaço arquetípico, dá-se no
fato de a reflexão provocar analogias sucessivas dos conteúdos das memórias que passam por
uma manipulação consciente do próprio artista, e não de um terapeuta” (SÁNCHEZ, 2010,
p.110).
O interesse de Pina Bausch, citado por mim na introdução dessa dissertação, pelo o que
„move‟ as pessoas, estaria fundamentado em uma dramaturgia da memória baseada “na
organização vital, nos símbolos altamente articulados do mundo, que são os arquétipos”
(SÁNCHEZ, 2010, p.108). Trata-se então de uma dramaturgia entendida como um processo
criativo, associando memória e inconsciente, inconsciente que, segundo Jung “guarda
96
vestígios vivos da vida vivida” (Apud SÁNCHEZ, 2010, p.83). Ou seja, se é da „alma‟72 que
extraímos os conteúdos do inconsciente e também a imaginação movida pelos desejos,
pulsões, mobilizando dessa maneira os arquétipos, deveria partir então da ideia bauschiana da
criação a partir do que me move enquanto artista criadora para acessar essa „alma‟, a fim de
mostrá-la. Na verdade, desde o início da pesquisa eu já estava mobilizando o universo
arquetípico em nome da construção/condução desse processo, precisava apenas continuar a
fazê-lo ao escrever cenicamente a poética do Cravo do Canavial.
Algo que foi recorrente no meu processo como atriz passava pela reflexão do „como‟ a
mulher vem se posicionando socialmente nos últimos anos, e como tal mulher foi/é descrita
ao longo da dramaturgia universal. As minhas inquietações73 se moviam em direção da
Cabocla de Lança, Maria José. Na primeira fase do processo prático trabalhamos com o
arquétipo do guerreiro na „figura‟ do Caboclo de Lança com enfoque no princípio de energia
animus, conforme relatei no capítulo anterior. Agora caberia trabalhar com os atores outro
tipo de energia: a anima. Os arquétipos da anima, referem-se às características femininas
presentes no homem, e do animus, denota as características masculinas observadas nas
mulheres. Trata-se da ideia de que cada indivíduo se constitui de características do sexo
oposto74. Vale ressaltar que a intenção em partir da figura do feminino, não foi acentuar a
separação entre os sexos, mas pelo contrário, a saga da „Mulher dessa história‟ retrata o trajeto
do ser humano em seu processo de individuação. A partir do arquétipo do feminino associado
ao arquétipo do guerreiro na figura do Caboclo de Lança, a Mulher passaria a personificar
então a junção animus/anima, tornando-se uma síntese do ser humano.
Segundo Jung (2000) é o Self que integra e equilibra todos os aspectos do inconsciente,
esta unidade proporcionaria estabilidade à personalidade. “Jung o comparava a um impulso
para a auto realização, para a harmonização, a completitude e o total desenvolvimento das
75
habilidades individuais” . O Arquétipo da Sombra seria o Self sombrio, fragmento do
primitivo da natureza do individuo que insiste em se apresentar mesmo quando não é

72
“(...) promovemos a vivência poética e simbólica, aproximando e integrando, na escrita cênica, as polaridades
conscientes e inconscientes, passado e presente, dentro e fora, corpo e alma, percorrendo em um movimento
espiralado ciclos da dramaturgia da memória” (SÁNCHEZ, 2010, p.107).
73
“O que move o artista é a inquietude, a vontade de manipular algo que se materialize, pois não existe processo
artístico sem produto. Nessa manipulação, o artista busca conexões remotas associadas a um tema da sua vida,
em um movimento que trata da restituição ao mundo daquilo que o criador quer expressar concretamente. Esse
trabalho está no campo dos elementos vivos, não na execução de técnicas ou em exercícios explícitos; está na
sensibilidade de ele perceber e redimensionar seu próprio ritmo junto a um pensamento cultural e ancestral,
como se as ações dessem forma à própria vida” (SÁNCHEZ, 2010, p. 110).
74
(PSICOLOUCOS, s.d). Disponível em < http://www.psicoloucos.com/Carl-Jung/os-arquetipos.html >
08/01/2013, às 10.31h
75
(PSICOLOUCOS, s.d). Disponível em < http://www.psicoloucos.com/Carl-Jung/os-arquetipos.html >
08/01/2013, às10.31 h.
97
convocada, mas que possui seu lado positivo, “responsável pela espontaneidade, pela
criatividade, pelo insight e pela emoção profunda, características necessárias para o total
desenvolvimento humano” 76. Evocado por mim desde o inicio da escrita dessa dissertação, o
arquétipo da Sombra não poderia ter estado fora do processo prático. Não à toa que o
descrevo na introdução, materializando-o na figura de um Caboclo de Lança vindo
desgovernadamente em minha direção nas ladeiras de Olinda. Nas palavras de Simone de
Bouvier: “A natureza na sua totalidade apresenta-se-lhe como uma mãe; a terra é mulher, e a
mulher é habitada pelas mesmas forças obscuras que habitam a terra” (BOUVIER apud
VASCONCELOS, 2012, p.33).
O arquétipo funciona como uma espécie de memória matriz comum a toda humanidade,
e decidir falar sobre o arquétipo do feminino significaria falar sobre mim mesma e também
sobre cada ator envolvido no processo, toda equipe de criação, ou seja, falar da humanidade:
”Vivemos arquetipicamente e somos guiados por arquétipos” (JUNG apud L. P. GRINBERG
apud SANCHEZ, 2012, p. 109). A ideia seria então construir uma dramaturgia articulando o
material levantado a partir da Mímesis Corpórea, trazendo minhas memórias, misturada com a
dos atores, evocando os arquétipos:
Evocar os arquétipos é buscar o porquê das relações entre as pessoas e o mundo
que as cerca, expondo estruturas da personalidade humana, modos de
comportamentos, rituais e sentimentos, que, por sua vez, são ecos dos imperativos
sociais e culturais, das convenções e suas imposições ao comportamento do
individuo pela memória da humanidade (SÁNCHEZ, 2010. p. 108-109).

Essas heranças comportamentais se encontram armazenadas num inconsciente que Jung


(2000) chama de inconsciente coletivo, que segundo ele independem de pertencerem a
diferentes culturas e ao investigar criações artísticas de civilizações antigas sem nenhuma
influência direta, descobriu símbolos e arquétipos em comum (JUNG, 2000). Refere-se aos
Arquétipos como „divindades do inconsciente‟: “A mobilização do arquétipo se dá a partir das
emoções que são associadas aos acontecimentos da vida considerados como acontecimentos
de passagem como, por exemplo, o nascimento, casamento, morte, dentre outros” (JUNG,
2000, p. 109). E a Mulher da nossa história inicia seu trajeto na peça, prestes a passar por um
„acontecimento‟ desses, quando decide fugir da casa do pai e enveredar pelas encruzilhadas
do sertão.
O universo arquetípico está relacionado com o mito, com o ritual, e desde o primeiro
capítulo descrevo o quanto isso norteou a vivência com os atores. Trago como exemplo a
„dinâmica do barro‟, citada no referido capítulo, cuja aplicação se deu na tentativa de

76
Idem.
98
despertar nos atores uma relação com a „divindade‟, que se caracterizou em uma Saudação a
Jurema. A Saudação foi criada pelo próprio grupo, a fim de evitar qualquer tipo de tentativa
de deslocamento do ritual, tal qual ele acontece nos terreiros de Umbanda. Tratamos de não
tentar deslocar a religiosidade presente nos subterrâneos da brincadeira para o palco, o que
poderia resultar em mera imitação; mas de encontrarmos elos de cada um dos atores com o
divino, dialogando com o que seria a Saudação a Jurema dos brincadores de Maracatu Rural.
Para concepção da encenação e da escrita dramatúrgica, parti desse mesmo principio.

Cabe aqui uma reflexão referente à escolha por mimetizar as ações físicas e vocais das
„figuras‟ do Maracatu Rural e não dos brincadores em si. Acabei, mesmo que
inconscientemente a priori, aproximando o processo ainda mais do universo arquetípico a
partir desta escolha. Ao partir das fotografias do Mateus, Burrinha, Catita, Dama do Paço e
do Caboclo de Lança caminhamos em direção do universo simbólico e do mito, por se
tratarem de figuras arquetípicas dessa brincadeira. Talvez por isso o processo tenha tomado
rumo e proporções diferentes, desembocando em escolhas cênicas que acentuaram a
singularidade da Matriz Maracatu Rural. Como citei anteriormente, Jung (2000) ao investigar
criações artísticas de diferentes culturas, encontrou similaridades que de alguma forma
acessam o inconsciente, despertando heranças comportamentais de um coletivo. Articular o
material resultante da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, cuja matéria-prima partiu
de figuras arquetípicas do universo popular, pode ter colaborado para a construção de uma
cena, onde questões referentes ao ritual e a propulsão de signos são evidenciados, tendo como
argumento dramatúrgico um processo tão amplo, como o de individuação.

Vale ressaltar ainda que alguns motes como a relação com a Calunga, o Cravo, o
Azougue, o significado do número ímpar, a Jurema Sagrada, elementos que carregam forte
simbologia no Universo do Maracatu Rural, entraram na peça resignificados. E também o
estado de jogo existente na brincadeira, a ludicidade presente na relação entre as „figuras‟ e a
realidade cruel da violência contra mulher nessa região, representada no capitulo anterior pelo
texto perversidade dos canaviais da atriz Vânia Bertoldo (vide p. 65), e pelo filme „Baixio da
Bestas‟, que fez parte de nosso material de pesquisa.

Mobilizar esse universo simbólico, associando a ideia contida no argumento


dramatúrgico era um desafio para mim na condição de encenadora e dramaturga. “Vivencias,
memórias, narrativas, oralidades são características principais do maracatu de baque solto,
transparecendo dentro dessas representações simbólicas a presença feminina”
(VANCONCELOS, 2012, p. 71).
99
Ao escrever a poética cênico-dramatúrgica do espetáculo optei pela simultaneidade de
signos, fragmentação e repetição de movimentos, presença do coro e da narrativa. E a fim de
ativar o ritmo da energia dos arquétipos com os atores, iniciamos o trabalho de montagem
com a apresentação de workshops baseados no conto „Mulher Esqueleto‟, do livro „Mulheres
que correm com os Lobos‟. A autora Estés (1999) utiliza lendas e histórias antigas de culturas
diversas para definir o que ela chama de „mulher selvagem‟, uma mulher em busca de sua
individuação. No conto da „Mulher Esqueleto‟, especificamente, Estés (1999) aborda o ciclo
vida-morte-vida a partir dos relacionamentos amorosos, definidos pela autora como “ciclos
naturais de progresso e de desgaste” (ESTÉS, 1999, p.180). A morte vista como transição
necessária para que mudanças aconteçam. Como mencionei no primeiro capítulo, para
entendermos a morte: “Em vez de considerar os arquétipos da morte e da vida como opostos,
devemos encará-los juntos como o lado esquerdo e o direito de um único pensamento. (...)
Enquanto um lado do coração se esvazia o outro enche. Quando uma respiração termina, outra
se inicia” (ESTÉS, 1999, p 172).

Vale ressaltar que apesar de Estés (1999) abordar esse ciclo, vinculando-o às relações
amorosas, ele se refere a todos os processos da vida, como a própria autora explica. Os atores
deveriam então voltar ao trabalho em sala de ensaio apresentando um workshop, aonde iriam
contar essa história, ora narrando, ora vestindo os personagens que nela aparecem. Deixei-os
bem livres, no que diz respeito a associar fragmentos do material resultante da primeira etapa
do processo.

E, a fim de fazê-los mergulhar ainda mais na linguagem arquetípica e simbólica pedi


também para que assistissem ao filme „Pina‟, do diretor Win Wenders, documentário sobre a
obra da coreógrafa alemã, que mostra fragmentos de seus vários espetáculos. Sem muitas
respostas, nem fórmulas prontas, respirei fundo e reiniciei o processo com os atores agora em
busca da construção do espetáculo para não dizer da materialização dessa alma coletiva, ou
sombra, quem vai saber?

Figura 36
100
Resolveu então voltar para casa com o que tinha. E o que tinha? Apenas memória
tatuada na pele e o lenço com o Cravo, dado pela avó, Dona Joana. (Texto da peça
CRAVO DO CANAVIAL).

3.1. „A MULHER DESSA HISTÓRIA‟

A mulher esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu
uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,
e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, onde ela
bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos. Enquanto estava deitada a
seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu
coração, aquele tambor forte. (...) enquanto marcava o ritmo ela começou a cantar
em voz alta: carne, carne, carne! E quando mais ela cantava mais seu corpo se
revestia de carne (ESTÉS, 1999, p. 170).

A princípio apenas considerava a possibilidade dos cinco atores „vestirem‟ essa figura,
como se fosse uma espécie de personagem coringa. Demoramos a encontrar o seu „rosto‟, pois
partimos da ideia de que essa Mulher deveria ter uma abrangência universal, representando o
indivíduo, que independente do sexo passa pelo processo de autodescoberta, de individuação. E
apesar de se tratar de uma personagem chamada Mulher, não haveria separações: Homem e
Mulher. Queríamos falar de complementaridade, do Tao (CAPRA, 1983). Um personagem
coringa que representasse a voz do coletivo, vestido com a capa de herói, ou melhor, com seu
vestido cortado no formato de avental frente única coberto de rosas amarelas. Figurino assinado
por Irapuan Junior, que tão bem assimilou a proposta de composição: “Uma rosa amarela que
77
sonha ocupar a boca dos caboclos da região” . A personagem sonha em ser cravo e não uma
rosa amarela como as irmãs e as mulheres que estão a sua volta, associando a flor amarela à
imagem de submissão imposta as mulheres nessa região e o cravo à liberdade, à transgressão.
„Ocupar a boca dos caboclos do sertão‟ é quebrar com antigos paradigmas.

77
Texto do Brincante-Narrador, na peça Cravo do Canavial.
101
Figura 37

Por termos partido de uma ideia tão abrangente foi o personagem que tivemos mais
dificuldade de compor. Para conseguir escrever as falas dessa Mulher, que seria a protagonista
da história, ou seja, que conduziria toda a trama aproximei-a de mim e de cada um dos
envolvidos no processo, num primeiro momento - friccionando fatos reais com ficção - para
depois distanciá-la. Até que descobrimos que apesar de ainda precisarmos codificar gestos
comuns para que essa heroína dentro do espetáculo representasse a mesma Mulher, ela já
carregava a memória de cada um nós.
O nosso „esquentamento‟ para composição desse personagem se deu a partir de exercícios
associando movimentos leves, sinuosos, circulares, estimulando a energia da anima, associados a
dinâmicas que retomavam a energia do guerreiro, referente à figura do Caboclo de Lança, já
relatados no capítulo anterior. Em paralelo, partimos do conflito que o próprio conto, „Mulher
Esqueleto‟, nos apresentava. Estés (1999), em seu livro, evidencia a mulher, associando a sua
imagem à de uma loba em busca de sua matilha, do seu „lugar‟, dos „seus‟: “quem não sabe
uivar, não encontra sua matilha!”, diz a autora. Uma mulher em processo de individuação, em
busca do que Estés (1999) chama de „encontro com sua natureza selvagem‟. No conto „Mulher
Esqueleto‟, essa mulher havia sido jogada do penhasco pelo pai, mas não sabia o motivo. E por
conta disso passou anos no fundo do mar até que um pescador pescou-a por engano:
Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais
lembrasse, do que havia feito. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos,
atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. (...)
Um dia um pescador veio pescar. Bem na verdade em outros tempos muitos
costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado de sua
colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de
que a enseada era mal-assombrada (ESTÉS, 1999, p. 168).

102
A ideia de ter sido banida do convívio dos seus, pela figura paterna, sem ao menos saber o
motivo, fez com que a Mulher da nossa história se identificasse com a „Mulher Esqueleto‟. A
nossa Mulher sofria abusos do Pai e sentindo-se vitimizada por sua condição, resolve romper
“antes, de que acontecesse a ela, o mesmo que aconteceu com a mulher esqueleto” 78. Partimos
então do processo de identificação da Mulher com o mito e a partir dessa identificação a
iniciativa de rompimento, que desencadeia a transformação: “Uma coisa que se revela nos mitos
é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a
verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a
luz” (CAMPBELL, 1990, 41).
Contada diversas vezes pela Avó Dona Joana, fazendo alusão à oralidade presente na
Cultura Popular, a história do mito da „Mulher Esqueleto‟ desencadeia o rompimento da Mulher
com sua posição de vítima e inicia um processo que irá transformá-la em autora de sua própria
condição:
De uma tola com olhos vidrados passo a ser uma mulher que anda com a força a sua
frente. Não quero ser a heroína de uma tragédia, quero ser autora de minha condição.
Não quero mais viver amargos silêncios defensivos. Não tenho mais espaço, não deixo
vagas. Quero estar sempre inteira e é da garra, que se faz o meu silêncio (Texto da
MULHER, em Cravo do Canavial).

Ao cair nas encruzilhadas do sertão, a Mulher dá inicio a „jornada do herói‟, representada por
Campbell (1990) pelo conflito entre a águia e a serpente: uma ligada ao voo espiritual e a outra
ligada a terra, que ao se fundirem transformam-se na imagem do dragão, uma serpente com asas
(CAMPBELL, 1990). “A serpente representa o poder da vida, engajado na esfera do tempo, e o
da morte, não obstante eternamente viva. O mundo não é senão a sua sombra – a pele rejeitada”
(CAMPBELL, 1990, 49). Trago então escritos antigos de minha autoria sobre „rejeição‟,
„orfandade‟, para dialogar com o processo:

Mal abri os olhos e me vi órfã. Talvez uma escolha. Inconsciente certamente porque
ninguém devidamente saudável pode desejar a repulsa do mundo. Mal abri os olhos e
a primeira luz já anunciou a minha orfandade. O abandono foi imediato, frio, como
cheiro de hospital. Tudo tão claro! A luz fria escondendo o ponto escuro do abandono.
Ponto escuro, permanente, irrevogável. Mal abri os olhos e me vi órfã. Órfã de pai,
mãe, órfã de mundo. O mundo com sua luz artificial, fria, me recebeu
displicentemente. O cheiro de éter fica. É o meu cheiro. Cheiro de hospital. (...)

A Alusão ao cheiro de éter escrito por mim em um de meus cadernos de poemas e reflexões
passou a caracterizar o odor, que para „A Mulher da nossa história‟, era característico de seu pai
opressor:

78
Fragmento do texto do Brincante-Narrador, em Cravo do Canavial.
103
Eu abri a porta, ele vai me jogar do penhasco! É como se eu fosse uma árvore sem
raiz. Agora eu tenho rugas por todo corpo. Buracos, inchaços. Seu maldito cheiro
de éter insiste em me entorpecer, me enlouquecer. Ímpar. (...) (Texto da MULHER,
em Cravo do Canavial).

E ao trazer luz a uma Mulher que se encontra em condição de cárcere sexual pelo próprio
pai, abre-se na peça a possibilidade de discussão da realidade de muitas mulheres de Nazaré da
Mata, interior de Pernambuco, e de outros interiores do nordeste do país. Realidade relatada por
Eliana Rodrigues, fundadora e coordenadora da AMUNAM, que durante pesquisa in loco dos
atores, que nos afirmou ser alto o índice de violência e de abusos sexuais contra a mulher dentro
da própria família, algo recorrente na região. Realidade que é abordada no filme Baixio das
Bestas de Claudio Assis, que fez parte da primeira etapa do processo montagem, quando ainda
éramos nove. O texto que a atriz Vânia Bertoldo escreveu, que fala sobre a perversidade dos
canaviais (vide p.65) voltou a fazer parte da atmosfera dos ensaios.
A atriz Potyra Pinheiro veste a Mulher nessa primeira etapa da saga da heroína,
representando a mulher em condição de submissão. Para compor o gestual dessa Mulher, a atriz
utilizou matrizes resultantes da dinâmica „Mímesis dos Monumentos‟, trabalho desenvolvido por
Raquel Scotti Hirson, durante assessoria técnica o qual detalharei mais a frente, no subtítulo
„Memórias que os Brincadores Contam‟. Potyra trabalhou associando a sua matriz do
monumento à da atriz Thais Schmidt, resultando em ações resignificadas, que se transformaram
na representação do „estupro permanente‟ sofrido pela Mulher. Dei como referência tanto para
ela, quando para o ator Aldemar Pinheiro, que veste a figura do Pai, o mito do „Barba Azul‟79 e
associei a relação familiar da Mulher com a que se encontra na peça „A casa de Bernarda Alba‟,
de Federico Garcia Lorca:
BERNARDA - (...) Oito anos que dure o luto não há de entrar nesta casa o vento da
rua. Faremos de conta que tapamos com tijolos portas e janelas. Assim se passou
na casa de meu pai e na de meu avô. Enquanto isso, podem começar a bordar o
enxoval. Tenho na arca vinte peças de linho para os lençóis e fronhas. Madalena
pode bordá-los.
(...)

MADALENA - Nem os meus nem os de vocês. Sei que não vou me casar. Prefiro
levar sacos ao moinho. Tudo menos estar sentada dias e dias nesta sala escura.

BERNARDA - É o que cabe às mulheres.

MADALENA - Maldita sejam as mulheres.

BERNARDA - Aqui se faz o que eu mando. Já não me podes intrigar com teu pai.
Linha e agulha para as mulheres. Chicote e mula para o varão.

79
No subtítulo referente ao trabalho de composição do personagem PAI, aponto quais as relações com esse mito.
104
A personagem Mulher, prisioneira de sua condição, usa uma armação da saia da baiana,
único destino de mulheres que queriam brincar Maracatu Rural, antes de Maria José desbravar
um lugar que era tipicamente masculino no brinquedo. Relegadas a condição de baianas e suas
derivações: princesas, rainha do maracatu, no máximo teriam privilégio de segurar a calunga o
que em Cravo do Canavial cabia à „figura‟ da avó Dona Joana. O som dos chocalhos -
característicos do surrão do Caboclo de Lança, amarrados na saia de metal, que a aprisiona,
lembram à Mulher os seus sonhos. Chocalhos que se intercalam com pequenas chaves de um
Barba Azul, o Pai, que trancafia no porão de sua alma, as pulsões dessa Mulher.

Figura 38

“Felicidade. Nunca vi palavra mais doida inventada pelas nordestinas que andam por aí aos
montes” 80. A mulher que poderia ser uma „Macabéia‟, uma dessas que se vê aos montes: cheia
de ingenuidade, mas dona de uma força que não sabe, ao certo, de onde vem; rompe e decidi sair
em peregrinação: “saio discretamente pela porta dos fundos”. Incapaz de confrontar o Pai, ela
rompe e sai, mas sai pelos fundos. Foge se misturando a uma troça de carnaval, confundindo-se
com foliões:

Foi pegando carona numa troça de carnaval que aquela mulher, ora mulher, ora
menina, travestida de folgazã caiu na estrada fugindo do pai. Ela precisava negar
seus talentos para não ser mais reconhecida nessas terras, negar sua condição de
feminino, como um dia fez Diadorim num sertão de veredas. Era fevereiro, sol a
pino em meio aos canaviais... Como toda heroína de qualquer história, e aqui nessa
terra de ninguém não poderia ser diferente, ela precisava viver um ritual de
80
(LISPECTOR, 1993, p. 25) Fragmento do livro A Hora da Estrela da autora Clarice Lispector inserido na peça
Cravo do Canavial, como fala da personagem Mulher.
105
passagem para iniciar sua jornada. Foi quando ela encontrou no seu caminho uma
Curandeira de Pouca Fé. (Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do
Canavial).

Quem veste a figura da Mulher no momento em que ela encontra a Curandeira de Pouca Fé
(atriz Vânia Bertoldo) é a atriz Thais Schmidt. Envolta em ataduras para esconder o que ela mais
teme, a sua condição de feminino, a Mulher suplica para que o ritual promovido pela Curandeira
aniquile o que para ela se faz um fardo. Assim temos a imagem de mulher apagada, uma
„Diadorim‟ de um sertão de veredas, que acha a solução para sobreviver numa sociedade
patriarcal na negação do seu feminino. A composição dessa personagem pela atriz e seu posterior
desdobramento, a Ofélia do Mangue - que representa a desmedida da mulher, conforme irei
explicar mais adiante - tem grande referência do seu olhar de artista visual, das relações que
desenvolveu ao longo de sua graduação, referentes à performance e à experiência em realizar
instalações. O trabalho de composição da Mulher no encontro com a Curandeira - cena carregada
de elementos simbólicos - foi baseado no quadro O Grito, do pintor expressionista, Edvard
Munch, associado a um fragmento do poema de Vinicius de Moraes: “De manhã escureço. De
dia tardo. De tarde anoiteço. De noite ardo” 81.

Figura 39

Essa matriz foi construída pela atriz durante a disciplina Elementos do Treinamento Pré-
Expressivo, ministrada pelo professor Robson Haderchpek, onde eu fiz meu estágio docência.
Como havia presenciado o trabalho da atriz durante a disciplina, achei que a matriz poderia
dialogar com o momento vivido pela Mulher no encontro com a Curandeira. Utilizamos então
fragmentos desta Matriz, variando questões relativas à fisicidade: reduzimos a intensidade em

81
Poética, de Vinicius de Moraes.
106
50% e a concentramos em partes do corpo específicas, em alguns momentos da cena. Além
disso, associamos ações compostas pelos atores coletivamente, oriundas de dinâmica em que a
partir de verbos de ação (relacionados ao universo da Mulher da nossa história), os atores iam
construindo uma partitura corporal. Esse mesmo trabalho, com os verbos transformados em
ações físicas, foi o que fundamentou o trabalho da atriz Vânia Bertoldo, quando ela veste essa
„figura‟ na cena das Três Figuras Míticas, que representam: passado, presente, futuro. A Mulher
de Vânia é a Mulher que questiona, que reflete sobre quem é e sobre o seu lugar de origem.

Eu sempre estou buscando alguma coisa que eu não sei o que é. E como essa coisa
não se aproxima, eu entro em depressão. Eu sinto que tenho que ir para tantos
lugares. Eu estava sem ar lá! E tinha também aquele cheiro de éter, de hospital...
Eu precisava cair na estrada, Existe um mistério no meu nascimento. Eu não sei de
onde eu vim! (Texto da MULHER, em Cravo do Canavial).

Cantarolando a música tema do espetáculo, “eu acordei rumei naquela estrada atrás de uma
sambada eu vi o meu amor (...)” e em meios as Três figuras Míticas, que carregam as „cores‟ do
carnaval - com seu caráter grotesco e cheio de protuberâncias, típicos de um corpo carnavalizado
(vide p. 26-27), a ambiguidade dessa Mulher é revelada. Ora mulher, ora menina, evocamos a
sensualidade das mulheres rodrigueanas como referência para composição da Mulher dessa cena.

Figura 40

No final dessa cena, a atriz, ainda com o figurino da mulher, distancia-se do conflito vivido com
as Três Figuras Míticas, quebrando a quarta parede82 e em tom de depoimento, traz para cena um
fragmento do livro A Ilha sob o Mar, de Isabel Allende, que ao ser deslocado para o contexto do
espetáculo, acaba por trazer mais informações sobre nossa heroína:

82
A „quebra da quarta parede‟ acontece em alguns momentos do espetáculo, estando vinculada aos Brincantes-
Narradores e também a personagem Mulher.
107
As minhas primeiras lembranças de felicidade quando era uma pirralha magrela e
desgrenhada, é a de mexer ao som dos tambores. Bato no chão com as solas dos pés e
a vida sobe pelas minhas pernas percorre meus ossos apodera-se de mim acaba com a
minha tristeza e adoça minha memória, levando minhas aflições (ALLENDE, 2010,
contracapa).

Este é o retrato de uma Mulher acostumada a ver a brincadeira no terreiro de sua casa, a dançar
com avó ainda menina, a ouvir o som dos tambores como se fosse um som natural: “Ela estendeu
a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte” 83.
Após essa cena, a linha dramatúrgica da peça sofre uma quebra, utilizando como
ferramenta para essa finalidade o flashback e a fragmentação de movimentos. Utilizamos esses
recursos para que a Avó da Mulher reapareça na história. O texto da Mulher sobre as suas
lembranças de infância, citado acima, traz à memória da Mulher, àquela que é a referência de sua
origem. Com os pés voltados para trás, por ainda estar presa ao passado, a Mulher, vestida então
pela atriz Andressa Hazboun, que, nessa cena, ora assume o papel da Avó, ora o da Mulher, ora o
do Brincante-Narrador, relembra o que a fez cair na estrada84.

Figura 41

A Mulher se encontra então com o Vendedor de Figuras, que representa a brincadeira popular.
A concepção dessa cena partiu de elementos do Cavalo Marinho e do próprio Maracatu

83
Trecho do conto „Muller Esqueleto„(ESTÉS, 1999, p. 17).
84
O „cair na estrada‟ na peça Cravo do Canavial além de significar a concreta saída de casa em busca de
respostas, pode estar associado também ao que Estés (1999) chama de mergulho na „selva subterrânea‟, que
seria o mundo oculto do conhecimento feminino.Ӄ um mundo selvagem que fica subjacente ao nosso. Enquanto
estamos lá, ficamos impregnadas do conhecimento e da linguagem instintivos. A partir desse ponto privilegiado,
compreendemos o que não conseguimos compreender com tanta facilidade a partir da perspectiva do mundo
objetivo” (ESTÉS, 1999, p. 480).
108
Rural85. A Mulher, durante esse encontro, que representa o terceiro na linha cronológica da
história, ainda está aprisionada ao que lhe aconteceu no passado, impedida de construir algo
novo:

MULHER - Se eu dou demais, fico sem nada! Se não me preocupo com isso, as
pessoas me roubam... Querem o que é meu direito de nascença. Faço um circulo86
ao meu redor (marcando o chão), aqui ninguém chega. Resisto. Quem vive sabe,
mesmo sem saber que sabe. Por causa do meu pai fiz um pacto infeliz com o „coisa
ruim‟ que ocupa o lugar entre o mar e o sertão, que mora entre aquilo que é vivo e
o que é morto, entre o que foi perdido e o que há de ser reencontrado.

BRINCANTES-NARRADORES - Você deve engolir seus próprios demônios, e se


alimentar deles.

MULHER- Só eu sei quais são os meus moinhos de vento!

(Cena do Encontro entre a MULHER e o VENDEDOR DE FIGURAS)

Figura 42

85
Utilizamos o material levantado nas Dinâmicas das Danças Populares, na Dinâmica do Mestre e na Dinâmica
do Mergulhão, referentes à etapa anterior do processo; inclusive para composição do gestual e das ações físicas
da Mulher nessa cena, conforme relatarei mais adiante.
86
Refere-se a um „circulo de proteção mágica‟ (ESTÉS, 1999, p. 497).
109
O Vendedor, referindo-se as suas mercadorias, afirma: “Eu tenho pra vender, você quer
comprar?”. Oferece a Mulher figuras em forma de Loas, e ao aceitar cantar, a Mulher
reconhece que o „predador‟87, uma vez longe do Pai, pode estar dentro dela mesma. Pode ser a
sua sombra, representando suas pulsões reprimidas, querendo vir à tona:

A minha sina é a sombra que me assombra um lobo que me ronda quer me devorar.
Ainda sinto o cheiro forte que sufoca chaves trancando portas não pode ser par.
Um jardim de rosas amarelas não sou como elas que só sabem girar (Loa cantada
pela MULHER, em Cravo do Canavial).

Ao aceitar a cantar sua primeira Loa, a Mulher começa a se transformar naquilo que tanto
deseja. Não era a transformação a partir de procedimentos mágicos, como a Curandeira de
Pouca Fé a fez acreditar, mas uma transformação interna; capaz de identificar a sua própria
sombra, aceitando-a e sabendo trabalhar com ela. A Mulher vestida a essa altura novamente
pela atriz, Potyra Pinheiro, está prestes a ser coroada cavaleira. “Está pronta para a batalha,
cavaleira do sertão?”, pergunta um dos Brincantes-Narradores. Está prestes a integrar natureza
e interior, a completude do animus/anima: “Minha pele e minha carne são o resultado de
minhas experiências no universo, é o universo” (OHNO apud. LUISI e BOGÉA, 2002, p. 80).

Figura 43

87
Essa relação do personagem Pai, associado a um predador interno, presente na própria psique da Mulher, será
explicado mais adiante.
110
Nesse momento a Mulher adquire dois elementos: o chapéu representando a coroa e um
bastão de figuras que herda do Vendedor. A idealização desse chapéu partiu da carcaça de um
chapéu de Caboclo de Lança do Cambinda Brasileira, presenteada por Zé de Carlos, quando
realizamos pesquisa de campo. O adereço contém um dispositivo que acende tanto o interior
do globo, quanto a parte da frente da aba do chapéu (vide Figura 37 p. 94).
Munida desses dois elementos, a Mulher é, então, posta a prova no encontro com os
bóias-frias. O texto apresenta uma „peripécia‟, referente à história da „Mulher Esqueleto‟, que
reaparece na peça agora com seu desfecho relatado. Até então a informação que a Mulher
tinha, e também o espectador, era de que uma mulher foi empurrada pelo pai de um penhasco
sem saber o motivo, até ver seus ossos presos no anzol de um pescador desavisado:
BÓIA-FRIA 1 : O pescador não percebeu que ela estava presa na sua vara de
pescar, então ele saiu do barco olhou pra trás e ela tava lá, começou a correr pela
aldeia e ela o acompanhou... Aquele cadáver branco vinha atrás do pescador, com
uma fome... Claro! Fazia tempo que ela não comia nada! Bom... eu só sei que essa
mulher foi devorando tudo que via no caminho. quando o pescador entrou na sua
casa e acendeu a lamparina e viu as fuças da mulher esqueleto até que achou ela
bonitinha. (...)
BÓIA-FRIA 2 : É uma história de amor, não é uma tragédia.
BÓIA-FRIA 1 :Você está muito acostumada a viver tragédias.

(Texto da cena dos BÓIAS-FRIAS, em Cravo do Canavial)

Ao se deparar com a informação de que o desfecho da história da „Mulher Esqueleto‟


não foi trágico, a Mulher mais uma vez se identifica com esse mito, só que, dessa vez,
desejando a mesma sorte: “(...) e depositou nos olhos do pescador todos os seus sonhos.
Naquele momento pouco importava se seria para sempre uma rosa amarela ou se seria um
88
cravo. Passou a existir nos olhos do outro” . A Mulher escolhe fazer um „pacto infeliz‟
(ESTÉS, 1999), esquecendo-se de si mesma, por isso perde a coroa de cavaleira e o bastão de
figuras. E se vê de frente com ela mesma em seu quinto encontro: o encontro com o seu
duplo.
A palavra da moda pra mim é fé. Ouvi um dia desses a parábola do filho pródigo
na rádio. Volto? Acho que não. Gosto de morar nas estradas. Prefiro vaguear
perdida por um tempo em busca de afinidades do ficar cheirando a hospital por
todo o meu inferno. Paro de me curvar e de me dobrar para assumir formas que não
são minhas. Vou à procura do que necessito mesmo que não saiba o que é. O
mistério do meu nascimento me coloca na posição de enjeitada e os enjeitados não
desistem nunca. As minhas mãos vermelhas, são mãos de sobrevivente. Por que eu
tenho que negar a minha raiva, e me sentar à mesa de jantar, segurando garfos e
facas gordurosos? Porque tenho que me perder nos olhos do outro? Não quero
aquela mão da cadeira de balanço passeando entre as minhas pernas novamente.
Deve existir alguma forma de amar sem se perder! (Texto da MULHER, em Cravo
do Canavial)
88
Texto do Brincante-Narrador, em Cravo do Canavial.
111
Figura 44

Rompe-se a linha cronológica, onde passado, presente e futuro se apresentam de


maneira linear. A Mulher do presente se encontra com a mulher do passado ou será que é a do
passado que se vê a frente de sua jornada? Abrem-se, então, várias possibilidades de reflexão
na esfera espaço-tempo.
O encontro é interrompido pela entrada de um carteiro:

CARTEIRO - Com licença você é a mulher dessa história?

MULHER - No momento sou sim, por quê?

CARTEIRO - Aqui diz: (lendo o envelope) „A Mulher Dessa Historia‟ . Se você é


ela, estas cartas são para você.

A cena do carteiro revela mais uma fissura tempo-espaço na narrativa da cena, que vai ser
acentuada com a entrada da personagem Ofélia do Mangue, gerando na Mulher o
reconhecimento de um „pacto infeliz‟ 89 e as consequências de cair em desmedida 90. A Ofélia
da nossa história traz como pano de fundo a leitura de bilhetes suicidas de mulheres reais. O
encontro com seu duplo e a entrada da Ofélia faz a Mulher resolver voltar para casa. Uma
casa agora sem Dona Joana. E ao ter que assumir o legado deixado por sua avó, militando
forças do visível e do invisível, a Mulher assume a autoria de sua condição:

89
“Reação autodestrutiva em termos psicológicos, é muito mais frequente que ela se torne um divisor de águas,
um evento que proporciona ampla oportunidade para restauração da força da natureza instintiva” (ESTÉS, 1999,
p.489).
90
Associo o significado de desmedida à hybris do herói trágico, conforme explico mais adiante.
112
As pessoas não conseguem lembrar ao certo como tudo aconteceu. Só se sabe que a
Mulher conseguiu enganar o próprio tempo, conseguiu engolir os seus demônios lá
numa encruzilhada conhecida aqui nas redondezas como encruzilhada da bringa,
onde os caboclos mais machos da região mataram ou morreram. E os que
morreram tão enterrados por lá até hoje.
(Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do Canavial).

O ator, Aldemar Pereira, veste então a personagem da Mulher: “Você bem sabe que aqui isso
é função de homem”. E quando está prestes a receber a coroa e manto de caboclo, o duplo
novamente aparece vestido pela atriz Andressa Hazboun, que toma a sua posição. As duas
Mulheres dançam, como se uma fosse a sombra da outra. Animus e anima se fundem na cena
que nomeei de „dançando com a sombra‟.

Figura 45

Fazendo o caminho inverso do que a personagem da Mulher se tornou no espetáculo


para o inicio do processo de montagem, posso ver claramente que a „Mulher dessa história‟
foi sendo construída a partir do feminino de cada um dos atores, do meu e do levantamento de
material a partir de pesquisa baseada em algumas personagens mulheres da história e da
dramaturgia91. Uma alquimia de memórias. A saga de uma mulher, que poderia ser qualquer
um de nós e ao mesmo tempo a síntese de todos nós. Encontrei-me na mulher da história e

91
Fizemos um trabalho durante o processo de montagem com a mímesis de fotografias de personalidades femininas
para auxiliar no trabalho de composição da personagem Mulher. Trabalhamos com imagens de Frida Kahlo, Joana
D‟arc, Camille Claudel, Janis Joplin e Marillyn Moroe. Esse trabalho não ajudou apenas na composição da Mulher,
como também resultou em desdobramentos na construção de outros personagens, como relatarei mais adiante.
113
acabei encontrando Vânia Bertoldo, Thais Schmidt, Andressa Hazboun, Aldemar Pereira e
Potyra Pinheiro. Tudo isso friccionando a realidade das mulheres da Zona da Mata de
Pernambuco, mulheres que estão conseguindo seu espaço socialmente e politicamente, graças
a Associações como a AMUNAM e também na brincadeira, onde masculino e feminino estão
se encontrando cada vez mais com os mesmos propósitos:
“Desde a idade de sete anos, tinha aquela vontade de brincar, mas era um tempo
muito atrasado. Meu pai não deixava, dizia que esta brincadeira é só para homens,
e era. Até as baianas do maracatu eram homens” (Entrevista com Maria José apud
VASCONCELOS, 2012, p. 60-61).

Maria José ao desbravar um terreno tipicamente masculino que é o do Maracatu Rural seguiu
sua história sendo hoje a fundadora do Maracatu Rural Leão da Mata, “que participou com
outros 36 maracatus rurais no grupo de acesso para o segundo grupo e foi campeão, em 2012”
(VASCONCELOS, 2012, p. 71). A Mulher da nossa história também segue seu caminho. O
conto dos canaviais fala da história de uma simples Mulher que decidi se tornar „autora de sua
condição‟. E ao assumir as rédeas de sua história, faz-se mito. Cravo do Canavial trata então
do surgimento de um mito:
Há quem diga que foi numa quarta de fevereiro que um caboclo desconhecido, fez
a marcha mais bonita que já se viu. Dizem que algo estranho aconteceu nesse dia,
que esse tal caboclo se dividiu em dois, metade homem, metade mulher.Quem sabe
não era ela? Pela hora do meio dia, A mulher, ilha desconhecida, fez-se enfim a
primeira Cabocla Mulher do Sertão. As pessoas garantem que é verdade e que é só
isso que sabem (Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do Canavial).

Figura 46

114
3.1.1. A MATRIARCA DONA JOANA

“Um Conto dos canaviais cantado pela minha mãe, avó, bisavó, tataravó”.
(TEXTO CRAVO DO CANAVIAL)
Figura 47

Detentora da sabedoria, dos mistérios. A Dona Joana


do Cravo do Canavial representa os carnavais antigos, a memória dos brincantes que com
muita nostalgia contam a história de um maracatu rural que segundo eles vem se perdendo no
92
tempo. “A nossa vida é um carnaval a gente brinca escondendo a dor (...)” . Dona Joana
seria a lembrança de uma quarta de cinzas que deixa o folião desolado ao ter que se despedir
do carnaval: “tocaram cinzas no meu coração, tocou o silencio em todos os clarins, caiu a
máscara da ilusão dos pierrôs e arlequins” 93. Mas também representa o novo, a preparação
para o próximo carnaval, quando o brinquedo irá evoluir novamente nas ruas. A celebração da
Morte e da Vida, a materialização deste ciclo, abordado por Estés (1999), no conto „Mulher
Esqueleto‟. É a partir da morte de Dona Joana, do reconhecimento do ciclo vida-morte-vida,
que a total transformação da mulher acontece. “Dá-me a morte que preciso” (ESTÉS, 1999, p.
173).
A única música que não foi composta para o espetáculo (Turbilhão, autoria de Moacir
Franco) é resignificada na poética cênica do Cravo do Canavial, revelando a morte numa
quarta de cinzas e um renascimento em outro fevereiro. É a música que toca na rádio do

92
Letra da Música Turbilhão de Moacir Franco.
93
Idem.
115
terreiro quando a Matriarca aparece em sua evolução, evocando o inicio do nosso processo
prático, como se ali também estivesse o nosso momento nostálgico. Dançando as fotografias
em stacatto de sua Matriz Dama do Paço, a atriz Andressa Hazboun, veste a personagem da
Matriarca. Surge o carnaval com seu poder de suspender tempo e espaço, carregado com
atmosfera transgressora, onde limites corporais transbordam, revelando um corpo provisório,
que condensa energias visíveis e invisíveis. Dona Joana carrega os ensinamentos do visível e
também do invisível: cuida do mistério do maracatu. É ela quem cuida da Calunga, e quem dá
o Cravo, guardado em um lenço branco, à Mulher. “E tome tento, que é tu, quem vai cuidar da
boneca quando eu for dançar maracatu no céu”, revela a sua neta.
“Os delírios dos gritos de amor, nessa orgia do som e de dor”. A Dona Joana da nossa
história conjuga alegria e dor. Contradição talvez presente em Dona Joaninha do Cumbe, que,
ao mesmo tempo, zelava pelo Maracatu - aconselhando os brincadores e instaurando a
consonância no brinquedo (ACSELRAD,2002) - mas, também, guardava por ele frustração
por nunca ter podido dar condições melhores aos filhos, pois tudo que ela e marido juntavam
ia para o Cambinda94.
No primeiro capítulo traço similaridades entre os princípios da Bança Butô e o corpo do
brincante, que conjugam contrários: alegria e dor, céu e terra. Ambos carregam o caráter de
resistência. Compartilhei com a atriz Andressa Hazboun imagens da personagem La
Argentina, do Kazuo Ohno (vide figura7, p. 25). O diretor de teatro Antunes Filho analisa
essa personagem e a relação do bailarino Butô com sua dança da seguinte maneira:
A imagem de La argentina é poderosa para ele, assim como sua relação com sua
mãe. Para usar um conceito de Jung: o lado feminino é muito forte no anima dele.
É a natureza em todo seu vigor, em toda sua personalidade, a precariedade da
condição humana face à natureza. A morte e o renascimento bem próximos. Eu o
vejo dançar e tenho a impressão de coisas míticas e arquetípicas (...) vendo Kazuo,
fui capaz de perceber a legião de arquétipos que um único ator é capaz de encarnar.
Essa revelação transformou para sempre o meu teatro (Apud, LUISI E BOGÉA,
2002, p. 107).

Como relatei no capítulo dois, a construção da personagem Dona Joana pela atriz
Andressa Hazboun partiu da matriz Dama do Paço que, desde a primeira etapa do processo
prático, caminhava em direção da „corporeidade de uma velha‟. Logo surgiu a ideia de prestar
uma homenagem ao Cambinda Brasileira, trazendo para nossa história uma matriarca que
tivesse o peso similar que Dona Joaninha tinha para o brinquedo deles. E, durante a pesquisa
in loco, Andressa imbuída com esse objetivo capturou mais momentos com a brincante Maria
de Lourdes que veste a Dama do Paço, no Cambinda Brasileira. Esse aumento de repertório

94
Entrevista com o administrador do Maracatu Rural Cambinda Brasileira Zé de Carlos, em maio de 2012.
116
associado a referência dada por mim da personagem do bailarino Kazuo Ohno foi delineando
espacialmente a Matriarca de nosso terreiro. Sigo com mais um comentário do diretor
Antunes Filho sobre o bailarino:
Ele atualiza a potencialidade do jogo, porque lida com a vida e com a morte
permanentemente. Sabe o valor das metáforas, e se permite brincar: é como uma
criança pura. Trabalha o mesmo tempo em três níveis: o consciente, o inconsciente
e o subconsciente. Não tem mais sexo: é homem, mulher, uma coisa só. (...) O butô
vem da morte. Ele não existiria se não fosse a bomba atômica (...), Ohno nos
oferece esse mesmo universo do final dos tempo de modo yin – maternal, pleno de
amor e esperança (LUISI E BOGÉA, 2002, p. 104-105).

Dona Joana é Vida e Morte, a completude de um ciclo. A Avó aparece em apenas três
momentos para desencadear a mudança na personagem Mulher. O primeiro se dá no inicio da
história quando conta para a neta e para todos os vizinhos a história da „Mulher Esqueleto‟.
Uma história contada e recontada por ela da janela de sua casa (vide figura 3, p. 16). A
segunda aparição acontece em flashback como sonho/visão da Mulher, lembrando a heroína
de que mesmo depois do rompimento ela continua presa ao passado, com os „pés virados para
trás‟(vide figura 41, p.112). A terceira aparição de Dona Joana é na sua morte, quando passa o
seu legado para neta, „de nome também Joana‟. Só aí é revelado que a personagem que até
então era chama de Mulher tem o mesmo nome da Avó. A letra da música „Divina Joana‟ é
utilizada como narrativa da cena, trazendo essa informação:
Foi pro céu, divina Joana. Matriarca, mulher, menina. Ora cravo, ora rosa, na terra
deixou legado. Gira de um baque, ginga chocalho silencio de tambor bagaço de
cana. Melaço avermelhado, barro rachado, silencio de tambor, bagaço de cana. Da
neta cabocla de nome também Joana, espiava na janela a dona da boneca. Calunga
de terreiro girando se fez guerreira (Letra da Música DONA JOANA, em Cravo do
Canavial).

Figura 48

A ancestralidade tatuada no corpo de Dona Joana passaria a sua neta como herança. A
partir da sua morte, a Mulher precisou assumir o legado da avó conduzindo os mistérios do
Maracatu, sem precisar esquecer quem é. Assumiu seu legado, a partir da afirmação de uma
117
identidade, encontrando a Unidade dentro dela mesma. A morte da avó deflagrou o encontro
com o seu Self. A partir daí a saga continua tendo a mulher como mito, ao se tornar a primeira
mulher Cabocla de Lança do sertão. Retomo, então, a citação que utilizei no início desse
subtítulo: “Dá-me a morte de que preciso”.

BRINCANTE- NARRADOR / DONA JOANA - (...) na vida nós somos artistas de


uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os
participantes desse teatro: na verdade nunca morremos quando acontece a morte.
Só morremos como artistas. 95

MULHER - Preciso acreditar que você morreu dessa morte vó. Sua morte é só
parte de um show. Quero aplaudir logo para te ver novamente de pé, me contando
histórias e dizendo que tudo dará certo no final. “Meu mundo é feito de pessoas
que são as minhas – e eu não posso perdê-la sem me perder” 96.

3.1.2. O PAI

Figura 49

Eu gosto mais do final que diz que como ele era o próprio „coisa ruim‟ na
figura de gente, resolveu voltar pra casa e agora tá queimando no quinto dos
infernos.

(Texto do BRINCANTE-NARRADOR em Cravo do Canavial)


A constante menção ao cheiro de éter; a luva de plástico em uma das mãos, referência
aos exames ginecológicos invasivos; as chaves de um „Barba Azul‟, a presença do Coro que
duplica a voz do pai; o „pálio‟, de uma aristocracia decadente. A cena do Pai carrega diversos
signos que são apresentados simultaneamente como referência de um personagem que exerce
função „moralizante‟ da peça. Apesar de ter apontado três possíveis finais para essa „figura‟

95
(MOSER, 2009, 521) Fragmento de texto da autora Clarice Lispector no livro „Clarice,‟, de Benjamin Moser,
inserido no texto da peça Cravo do Canavial.
96
(LISPECTOR, 1993) Texto da personagem Macabéia ,em A Hora da Estrela, inserido no texto da peça Cravo
do Canavial.
118
no texto, todos eles falam da derrocada deste, que parece ser o vilão da nossa história. No
entanto, pensando essa „figura‟ como arquétipo do masculino, podemos fazer a análise da
presença deste pai, para além do crivo do que seria bem e mal. Estés (1999) apresenta-nos o
„predador natural‟, uma entidade na psique humana voltada „contra a natureza‟ do individuo
(ESTÉS, 1999). Segundo a autora esse predador se manifesta na mulher quando a mesma tem
uma energia do animus pouco trabalhada:

Quanto mais forte e amplo o animus (pense no animus como uma ponte), com
maior estilo, capacidade e desenvoltura a mulher manifestará suas ideias e seu
trabalho criativo no mundo exterior de modo concreto. Uma mulher com um
animus pobremente desenvolvido tem muitas ideias e pensamentos, mas é incapaz
de manifestá-los para o mundo lá fora. Ela sempre pára a um passo da organização
ou da implementação das suas imagens maravilhosas (ESTÉS, 1999, p. 85).

Quando a energia do animus é saudável, segundo a autora, ela irá ajudar a mulher na
busca de sua consciência. A princípio, a Mulher da nossa história se vê resignada, impotente
diante da violência do Pai, que seria para muitas mulheres “a ponte entre os mundos internos
do pensamento e do sentimento e o mundo exterior (...), trata-se de uma energia intrapsíquica,
que ajuda a mulher a realizar” (ESTÉS, 1999, p.85). A presença do pai, então, pode ser
entendida como a materialização do próprio animus dessa Mulher que por ser pouco
desenvolvido ao contrário de proteger, transforma-se em seu predador.

Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse


conhecimento, a mulher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de
sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se
um animal maduro pouco vulnerável a ingenuidade, inexperiência ou insensatez
(ESTÉS, 1999, p.65).

Não se trata então de utilizar a figura masculina como vilão da nossa história, mas como
persona necessária para que a Mulher viva sua primeira derrocada, para que ela enverede
pelas estradas do sertão, pela „selva subterrânea‟97, dando inicio ao seu processo de
individuação.
Ainda tendo como parâmetro de discussão, a „figura‟ do Pai representando a
materialização de um „animus doente‟ da própria mulher, tornando-se, portanto, seu predador;
associei o conto do „Barba Azul‟ apresentado por Estés (1999) a relação da „Mulher da nossa
história‟ com o este Pai e a partir desta associação fui construindo essa „figura‟ junto com o

97
Segundo Estés (1999) a perda, a traição, a violência sofrida são os primeiros passos de um processo iniciático
que nos lança na „selva subterrânea‟. “Na floresta subterrânea a mulher que passou pela queda da própria
inocência é considerada especial, em parte por ter sido ferida, mas muito mais porque persistiu, porque está se
esforçando para entender, para descascar as camadas das suas percepções e defesas a fim de ver o que está
subjacente. Nesse mundo, sua perda da inocência é um rito de passagem” (ESTÉS, 1999, p.489).
119
ator Aldemar Pereira, trazendo elementos para sua composição. No conto Barba Azul vemos
uma mulher que cede aos encantos de um homem que aparentemente nada tem de estranho, a
não ser uma barba azul. Casa-se com ele, e descobre que na verdade esse homem é um
assassino de mulheres e que os cadáveres delas estão no porão de seu castelo, fechado à chave
(ESTÉS, 1999).
Trata-se de um antagonista debochado e assassino que nasce dentro de nós e,
mesmo com a criação parental mais cuidadosa, sua única função é a de tentar
transformar todas as encruzilhadas em ruas sem saída. (...) Quando termina seu
trabalho destrutivo, ele deixa a mulher com os sentimentos entorpecidos, sentindo-
se frágil para seguir adiante na vida (...) a história do Barba Azul trata disso
(ESTÉS, 1999, p. 57-58).

O Barba Azul proíbe a Mulher de abrir a porta do porão onde estão os cadáveres de suas
ex- esposas, impedindo que ela descubra a verdade sobre ele. “(...) proíbe a jovem de usar a
única chave que a traria de volta a consciência” (ESTÉS, 1999, p.71).

Na interpretação psicológica, recorremos a todos os aspectos do conto de fadas


para nos ajudar a representar o drama interno à psique de uma única mulher. O
barba azul simboliza um complexo profundamente recluso que fica espreitando às
margens da vida da mulher, observando a espera de uma oportunidade para atacar.
Embora ele possa se apresentar de modo semelhante ou diferente nas psiques
masculinas, ele é um inimigo ancestral e contemporâneo dos dois sexos (ESTÉS,
1999, p. 63).

Para a construção da figura desse Pai desloquei o signo da chave, que na nossa história, tranca
todas as portas, impedindo que a Mulher se liberte de sua condição. Tranca a porta de saída.
Vale frisar, mais uma vez que essa proibição e a violência que sofre é o que desencadeia, na
Mulher, o leitmotiv (COHEN, 2004) de rompimento. “Devemos abrir as coisas com chaves ou
à força para ver o que está dentro delas. Devemos usar nosso insight e nossa capacidade de
suportar o que vemos. Devemos proclamar nossa verdade em alto e bom som. E devemos ser
capazes de usar nossa inteligência para fazer o que for necessário a respeito do que vemos”
(ESTÉS, 1999, p. 97). A Mulher abriu a „porta da consciência‟ e resolveu fazer algo para
mudar a sua realidade (vide p. 107).

A história do Barba Azul nos apresenta a imagem de um homem elegante, cortejador de


mulheres. Trabalhei essa imagem com o ator Aldemar Pereira, fazendo alusão a um homem
que na sociedade se comporta de uma maneira e entre quatro paredes se comporta de outra.
Representando a aristocracia canavieira decadente, o figurino desse Pai é um casaco surrado,
criação de Irapuan Junior que dialoga perfeitamente com a ideia de composição do
personagem. Ele carrega o pálio do Maracatu, elemento presente, tanto no Maracatu Nação,
120
quanto no Rural 98, levado pela figura de um escravo ou pajem, para proteger o Rei e a Rainha
do sol durante o cortejo. Esse elemento que foi resignificado no espetáculo, ora reafirma a
ideia do aristocrata decadente, quando o mesmo é segurado pelo próprio personagem Pai, ora
tenta mascarar o subterrâneo da relação deste Pai com sua filha: um dos Brincantes-
Narradores assumindo a função de pajem conduz o palio, dançando como acontece em um
cortejo de Maracatu, encobrindo a cena que representa o estupro, escondendo a relação
incestuosa.
BRINCANTE-NARRADOR - Primeira máscara, primeiro medo, primeiro sorriso
mentiroso daquela Mulher, ainda menina.

MULHER – Aqui, a gente tem que rir desde cedo, isso é muito triste.

Figura 50

O Pai é acompanhado de um Coro, que duplica sua fala e em outros momentos a


duplica, na tentativa de dar uma ideia de multiplicidade, representando a voz de uma maioria,
situação de violência que ainda se faz regra em alguns lugares do país e não exceção.

Eu queria ter tido filhos homens! Que drama! Gira minha filha, gira pro papai!
Gira... Que na „gira da vida‟, essa é a sua condição! (Texto do PAI, em Cravo do
Canavial).

A mulher ingênua, que se casa com o Barba Azul, diz: “Bem, até que a barba dele não é
tão azul assim” (ESTÉS,1999, p.69). Ao consentir assumir a máscara de um „sorriso
mentiroso‟, a Mulher da nossa história, assume que talvez seja esse o destino de todas as

98
A corte de um maracatu é constituída de rei, rainha, príncipes, vassalos e damas. E apesar de estarem
presentes no Maracatu Rural e no Nação, eles não são originários do Rural , tendo sido incorporados à
manifestação devido imposição da Federação Carnavalesca de Pernambuco (MEDEIROS, 2005).
121
mulheres de sua família, cujas irmãs vivem na mesma situação, acreditando não ser esta, uma
situação tão ruim assim.

Cravo do canavial é uma história de desmedidas. A história de uma mulher que se


desfez numa casa de sombras por causa de uma simples mão que ao escorregar
pelas pernas da criança levou por terra toda a felicidade da descoberta. Escorreu
pelas pernas da menina uma vida inteira (Texto do BRINCANTE-NARRADOR,
em Cravo do Canavial).

Imaginei esse Pai um personagem de uma peça do Nelson Rodrigues. Mais uma vez
minhas referências vinham dialogar com o processo, interferindo na composição. A imagem
da peça O Casamento, dirigido por Antonio Abujamra. O personagem do ginecologista nessa
montagem, que bolinava as suas pacientes, fez-se trazer a referência da luva plástica do Pai.
Já cheiro de éter, que veio compor as características dessa figura - apesar da ideia ter partido
de um caderno de poemas e reflexões de minha autoria - foi resignificado trazendo a
referência da cachaça, bebida típica entre os brincadores. Todos esses elementos tornaram-se
engrenagens dessa cena, que contou com a letra da musica de Marco França, contribuindo
para narrativa da cena. Intercalando-se entre os momentos de texto e a entrada do coro, a
música tema do Pai fez com que a cena do estupro, ocupasse um lugar de plasticidade e
poesia.
Peia, palma, pedra.
Pau, peia, pó de terra.
Palma da, palma da mão.
Mão, nua, lua não.
Contra a mão o não se encerra.
Caixão, chão de mar, caixão.

A composição do gestual e das ações físicas, realizadas pelo ator Aldemar Pereira partiu
de um trabalho realizado pela atriz-pesquisadora do Lume, Raquel Scotti Hirson durante
assessoria técnica, alguns dias depois de nossa volta da pesquisa de campo. Apresentada a nós
como „Mímesis de Monumentos‟, Raquel conduziu uma dinâmica que associava
micropercepções resultantes de nossa pesquisa em Nazaré da Mata, materializando-as no
corpo e na voz do ator. Essas micropercepções poderiam ser o mofo de uma parede, uma
rachadura, ou as raízes de uma jaqueira, material trabalhado por Potyra Pinheiro, por
exemplo. Os atores iriam dançar a memória deste „lugar‟. “Memória micro: o movimento do
cupim na madeira do piso da casa da Vovó Zenaide. O papel velho e amarelado dos livros da
Tia Acidália. O som das vozes ainda mais baixo. As paredes têm ouvidos. Os tijolos,
memória. A sensação primeira era de que essa memória tinha um lugar” (HIRSON, 2012, p.
52). Como explicarei com mais detalhes no próximo subtítulo, essa dinâmica aplicada por
Raquel, faz parte de sua pesquisa de doutorado, onde a atriz-pesquisadora tentou acessar o
122
que chamou de „personagem-memória de Alphonsus‟, o seu avô poeta; associando a técnica
da Mímesis Corpórea a uma „dança de memórias‟ (HIRSON, 2012).
O ator Aldemar Pereira durante a aplicação dessa dinâmica utilizou memórias de sua
vivência na Encruzilhada da Brinca, lugar onde existem ruínas de um cemitério, em contrates
com a vegetação da cana de açúcar. Partindo dessa imagem o ator construiu sua Matriz que
ora associava a movimentação de se autoflagelar, ora impostava as mãos, como se estivesse
pedindo perdão (vide figura 50, p.125). Ao colocar esse material em relação com a cena
proposta, a matriz passou a dialogar com ela e à medida que os elementos iam sendo
introduzidos: a luva de plástico, as chaves e o próprio palio associado a ideia de homem
elegante que ia se transformando num predador, potencializaram o corpo do ator. E a medida
que a relação entre A Mulher, vestida nessa cena por Potyra Pinheiro e o Pai foi se
materializando a Matriz que partiu da memória das ruínas e do canavial foi resignificada no
gestual e em ações de um Pai violento. A última menção sobre o Pai, na peça, está na fala de
um dos Brincantes-Narradores:
BRINCANTE-NARRADOR- (...) à medida que a Mulher deixou de dar
importância para ele, ele evaporou! Virou poeira. Mais um grãozinho de barro de
uma dessas estradas. Ou então com todo àquele cheiro de éter pode estar misturado
em alguma aguardente da região. As coisas têm a importância que damos a elas.

3.2. MEMÓRIAS DE NAZARÉ DA MATA: AS HISTÓRIAS QUE OS BRINCADORES CONTAM

Memória de morte, de mortos. Sou levada a dançar a terra, os ossos na terra,


esfarelando-se, com cheiro de vida meio morta, estagnada. Onde encontro esse
pessoal? Esse meu pessoal, meu povo, minha ancestralidade? Memória que está
na terra e foi demolida junto com a casa. Está tudo ali no solo, debaixo do prédio
(HIRSON, 2012, p. 53).

A experiência vivida na pesquisa de campo pelos atores foi fundamental para que eu
pudesse fazer escolhas de „como‟ articular o material para montagem do espetáculo. Eu que já
havia ido algumas vezes a Nazaré da Mata e ao Engenho do Cumbe, depois de presenciar o
contato dos atores com os brincadores, descobri um „novo lugar‟, através dos olhos deles.
Encontrei-me, diversas vezes, observando-os interagir com o „lugar‟, perdendo-me nas
imagens que iam surgindo no meu imaginário a partir daquele encontro. No capítulo anterior
descrevi a pesquisa de campo, elencando o que vivenciamos em cada dia e relatando as
impressões dos atores. Retomo-a aqui, portanto, com o intuito de elucidar como esse „novo‟
material foi articulado no espetáculo. Parto então do trabalho realizado pela atriz-
pesquisadora do Lume, Raquel Scotti Hirson, que deu início a articulação do material bruto
123
coletado pelos atores, associando-o com as matrizes codificadas, referentes às dinâmicas
aplicadas e à Técnica da Mímeses Corpórea, na primeira etapa do processo prático. Raquel
acabara de defender sua tese, onde relacionou a Técnica das Mímesis com o que chamou de
„dança de memórias‟ (HIRSON, 2012). Começo esse subtítulo, portanto, falando do trabalho
que ela realizou conosco, chamado por ela na ocasião de „Mímesís de Monumentos‟.
Durante nossa visita à Nazaré, fomos a uma encruzilhada, já citada aqui na dissertação.
Fomos à Bringa, guiados por Zé de Carlos. Lugar onde os caboclos matavam ou morriam e os
que morriam eram enterrados com a vestimenta de seu caboclo. Lá vimos ruínas de um
cemitério, numa das estradas que se cruzavam. O lugar onde ficavam os túmulos estava todo
coberto de mato. Uma capela com restos de velas mostrava que o local não estava de todo
abandonado. Talvez algum familiar distante tenha resolvido acender vela para um caboclo
morto. Havia uma claraboia para entrar um pouco de luz. A porta emperrada rangia quando
um de nós entrava. O resto era canavial, verde, que contrastava com o barro vermelho e com
esse prédio cheio de rachaduras e paredes mofadas.
Observei o cemitério e sua capela. As marcas nas paredes, as rachaduras, os
escombros e mato alto no cemitério pareciam querer falar comigo, por isso escutei
intimamente uma fala sem voz que me dizia para onde olhar e o que fazer em
silencio solitário (Relato da atriz THAIS SCHMIDT).

Em meio a esse lugar inóspito, a voz de Zé de Carlos soava em nossos ouvidos. Ele
falava dos mistérios que envolvem o maracatu. Falava da religião, do peso da Jurema, da
energia do caboclo que ainda estava viva ali, bem ali, nas rachaduras das paredes. Durante os
três dias que passamos em Nazaré da Mata, Zé de Carlos nos contou várias histórias do
brinquedo, contou de seu pai e de como entrou para brincadeira:
Cresceu admirando o pai, caboclo temido e famoso, que com suas vestes de luzes
coloridas, atraíam-no feito mariposa. A surpresa, aos 15 anos, da fantasia dada pelo
pai, mostra um saudosismo daquela tradição, do mistério, do caboclo, do segredo
da Jurema, dos espíritos que envolvia o Maracatu (Relato da atriz ANDRESSA
HAZBOUN).

Parecia que todas as histórias se cruzaram bem no meio daquela encruzilhada: “Aí no meio eu
não piso não”, dizia Zé de Carlos. Não à tona, a lona do nosso espetáculo, possui três
encruzilhadas onde as Figuras e os Brincantes-Narradores transitam para contar a história do
Cravo do Canavial. Não à toa temos um personagem que representa o Zé Pelintra, entidade
cultuada na Jurema, vestida pela atriz Thais Schmidt, cujo processo de composição será
abordado mais adiante.
No ultimo dia, antes de voltar para casa encontramos seu Zé de Carlos que nos
levou ao Cruzeiro da Bringa, uma encruzilhada que é protegida pelo Exú, pois tem
um cemitério em uma das esquinas. O Cruzeiro da Bringa foi o lugar que mais me
tocou. Seu Zé de Carlos me tomou em uma conversa sobre a religião, escutei como
124
uma aprendiz. Naquele lugar me entreguei às explicações sobre a religião da
Jurema, como se a mesma fosse minha (Relato da atriz THAIS SCHMIDT).

Em meio a tantos olhares atentos, Zé de Carlos aproveitava para dar mais peso as
histórias que contava e quase em tom solene falou de um caboclo da região chamado Zé de
Rosa que segundo ele tinha feito um pacto com o „coisa ruim‟ e por isso era muito temido,
capaz de ficar invisível para não ser apanhado. Ele acendia uma vela para Deus e outra para o
diabo. Contou-nos que havia o mistério do cravo branco, mas que nada poderia falar sobre
isso.

No meio de tantas histórias, uns silêncios, vagueadas, umas entreolhadas e volta e


meia, um cheiro de cravo – mistério – tomava conta do ambiente. (Relato da atriz
ANDRESSA HAZBOUN)

Essa experiência redimensionou o olhar dos atores sobre a brincadeira. A partir desses
„encontros‟ em Nazaré da Mata, eles puderam compreender por outro viés o que havíamos
trabalhado na primeira etapa do processo. Ali o sensível de cada um se misturou, numa
coevolução com o lugar. E dessa relação - que pressupõe uma via de mão dupla,
contaminando e deixando-se contaminar - os corpos dos atores puderam intervir no universo
dos brincadores da mesma forma que o contrário se deu. Um corpo que é
corporeidade/existência/percepção (MERLEAU-PONTY, 1999 apud ALVES, 2010, p. s.n), como
foi mencionado, no capítulo anterior.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço (BONDÍA, 2002, p.24 apud HIRSON, 2012, p. 63).

Compartilhamos memórias. Memórias que não são isoladas, referentes a um único


indivíduo, mas que representam o coletivo daquele grupo social, influenciada pelo meio em
que eles vivem. “São os indivíduos que lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos
sociais que determinam o que é memorial e também como será lembrado” (BURKE, 2000,
p.70 apud VASCONCELOS, 2012, p. 72). “Nessa perspectiva, a memória social é enfatizada,
envolvendo a influência do meio nas diversas recordações que o individuo tem do passado”
(VASCONCELOS, 2012, p.72). Tratava-se então, a memória, de uma ponte por onde
podíamos entender o que é o Maracatu Rural, e quais as relações que podíamos traçar a partir
dele para construção cênico-dramatúrgica do espetáculo.
125
Ao conduzir o trabalho da „Mímeses de Monumentos‟, Raquel Scotti Hirson utilizou
como ponto de partida a memória dos atores durante experiência na Encruzilhada da Bringa,
com exceção da atriz Potyra Pinheiro, que realizou dinâmica a partir das lembranças das
raízes de uma jaqueira antiga, do Engenho do Cumbe, como mencionei anteriormente. Raquel
foi conduzindo a dinâmica para que a memória fosse ativada, chamando atenção às
micropercepções, para que os atores se concentrassem nos detalhes do lugar. Partindo do
princípio de que a Mímesis, independente de se tratar da observação de corpos humanos ou
não, está ligado à percepção que se tem, Raquel conduzia-os na tentativa de aguçar suas
percepções, transformando o que poderia parecer imperceptível em algo percebido. “Mesmo
que a memória materialize ações reduzidas, deve haver necessariamente impulsos que as
façam vibrar no espaço macro” (HIRSON, 2012, p.54).
Há a atenção aos pontos macro de entrada em fluxo de jogo (punctuns), que são as
grandes articulações, já separadas em cabeça, peito, ombros, quadril, pernas e
braços, mas há também pontos mais precisos como vértebras ou os músculos do
abdome, perceptíveis separadamente. O abdome pode ser percebido como um
bloco que desperta o cinturão do centro do corpo (koshi) e suas memórias, mas
pode receber impulsos diferenciados em cada feixe de músculo que compõe este
bloco (HIRSON, 2012, p73-74).

Chamava a atenção para a rachadura que poderia haver numa das paredes, ao espaço
ocupado por cupins na porta da capela, ao mofo, a possível entrada de luz do lugar. Não se
tratava de mimetizar a forma, mas induzir sinais dessa forma (HIRSON, 2012). Os atores
foram materializando essas memórias no corpo a principio com movimentos bem pequenos,
até que Raquel trabalhou a variação das fisicidades, ora alargando-as, ora aumentando seus
volumes, fazendo com que os atores antes de olhos fechados se deslocassem pela sala. Um
som característico de cada memória acessada também foi pedido. Foi então dançando essas
memórias que os atores foram introduzidos na „Mímeses de Monumentos‟.

Ao associar a Técnica da Míimesis Corpórea com o que Hirson (2012) chama de „dança
de memórias‟ na tentativa de criar ações utilizando memória, imagens de fotografias e poemas
de seu bisavô, a atriz pesquisadora descreve seu processo. Trago recorte dessa descrição, a
fim de esclarecer melhor como se deu essa verticalização na pesquisa da técnica da Mímesis:
Observei minhas memórias e permiti que se transformassem em um mundo de
sensações e desejos que nomeei e cataloguei segundo a lógica do corpo (...) A
mímesis corpórea, assim como a memória, pode abrir fissuras no cotidiano e levar
o ator a lugares de incerteza e sonho, ou seja, levá-lo a visitar espaços “entre” não
tão objetivos como nos levam a pensar os primeiros escritos de Luís Otávio
Burnier sobre esta metodologia de pesquisa, em sua tese de Doutorado defendida
em 1994 (HIRSON, 2012, p.145)

126
Segundo Hirson (2012) Burnier já havia feito tal associação quando propôs que a „dança
pessoal‟ (vide cit. 28 p. 22 / cit.63 p. 69) seria um estimulo para a técnica: “desse o suporte
vibracional necessário para que o ator sustentasse um estado de presença enquanto dançava
uma imitação, fosse de uma pessoa, fosse de figuras estáticas. Ele estava preocupado em fugir
da mecanicidade” (HIRSON, 2012, p. 146).

O trabalho de assessoria técnica resultou em outras matrizes, que também foram


elaboradas pelos atores a partir de suas memórias da experiência em Nazaré da Mata. Ressalto
as seguintes: Matriz cabeças penduradas no teto, Matriz dos cumprimentos, Matriz bebendo
Azougue. As três entraram no espetáculo, inseridas no contexto de cenas específicas. A
Matriz bebendo azougue foi inserida na cena das Três Figuras Míticas, resultando em célula
rítmica que envolve movimento e som. Durante a assessoria técnica, Raquel havia conduzido
os atores para que cada um tivesse forma característica de beber o azougue. A Matriz cabeças
penduradas no teto: memórias dos atores dos chapéus dos Caboclos de Lança perdurados no
ateliê do Cambinda Brasileira (vide figura 33, p. 92). Essa Matriz foi desmembrada em dois
momentos, ambos executados pelos Brincantes-Narradores no espetáculo. Logo no inicio
aparecem os Brincantes olhando para cima tentando tocar em algo que a principio o público
não sabe o que é. Apenas na cena da coroação da Mulher, quando os atores retomam a
movimentação com um deles segurando no alto o chapéu do caboclo (vide figura 43, p. 114)
fica claro para onde estavam olhando anteriormente.

A solução de como articular a Matriz dos cumprimentos me chegou, em sonho. Essa


matriz consiste numa sequência de movimentos, comandado pelo ator Aldemar Pereira,
registro que o ator trouxe na memória da maneira como ele foi recebido por alguns dos
brincadores durante pesquisa de campo. Todos os outros atores repetem ao mesmo tempo a
sequência, que é desencadeada a partir do texto: “Opa, Tudo bom?”. Introduzi essa Matriz na
cena em que Dona Joana conta a história da Mulher esqueleto para neta, e os brincantes,
aproximam-se de sua casa para ouvir a história também. Os atores então executam a Matriz
em direções diferentes para uma pessoa imaginária. Foi quando tive um insight de repeti-la
durante o enterro da avó, reduzindo a Matriz para um cumprimento direcionado a Mulher. Ou
seja, a ideia é que a primeira inserção dessa Matriz seja um presságio da morte da avó.

Esse tipo de trabalho e manipulação de material pode fazer com que aconteçam
costuras mil; são células que podem ser colocadas em diferentes ordens, criando
diferentes leituras. Os caminhos para a composição de uma obra cênica a partir de
estruturas técnicas codificadas e sistematizadas da arte de ator, são muito
específicos. O fato de se ter um conjunto considerável de ações delineadas e
memorizadas, permite a mistura, o corte, enfim, um trabalho de verdadeira
composição, como se tivéssemos em mãos pedaços inteiros, fragmentos, e com este
127
material começássemos a compor o mosaico que formará a obra (Burnier, 2001,
p.171-172 apud HIRSON, 2012, p. 140).

A concepção de alguns adereços cenográficos também partiu das histórias contadas


pelos brincadores. Como a ideia seria que os atores vestissem os personagens na frente do
público sem sair de cena, precisávamos de um local para que os figurinos e adereços ficassem
organizados, compondo o espaço cênico. Os cabideiros, em forma de peixe, associado à
origem do nome Cambinda (peixe de água doce) resolveram a questão. Outro impasse estaria
na forma como a Mulher sairia em peregrinação. Pensei em algo que lembrasse um carro de
boi, que os próprios atores pudessem manusear. Acontece que precisava dar outras funções
para ele, visto que se tratava de um elemento cênico grande. Ocorreu à ideia de que esse carro
poderia se transformar em um santuário, lugar onde a calunga ficaria, quando não estivesse
com Dona Joana, e até na própria cadeira da Matriarca. E como a brincadeira original se faz a
céu aberto (não consegui esquecer a experiência do final da primeira etapa do processo
prático, quando apresentamos ao ar livre nos quintais da UFRN), resolvi que precisávamos de
um céu estrelado. Junto com o iluminador Rogério Ferraz conseguimos viabilizar essa ideia
com lâmpadas de tamanhos diferenciados dispostas em linhas de energia.

3.2.1. O VENDEDOR DE FIGURAS: MEMÓRIAS DE UMA CULTURA POPULAR

“Se você anda na rua a essa hora e nesse lugar é que você deseja alguma coisa
que você não tem. E essa coisa eu posso fornecê-la a você”.

(KOLTÉS in Na Solidão dos Campos de Algodão)

O trabalho de concepção da cena do Vendedor de Figuras e de composição deste


personagem, vestido pela atriz Vânia Bertoldo, partiu da dinâmica do Mestre, associada às
dinâmicas do Mergulhão e das Danças Populares, aplicados na primeira etapa do processo.
Utilizamos como ponto de partida o Mestre que compõe e canta Loas, que no caso do
personagem do espetáculo também vende figuras99, máscaras “de todas as cores, tamanhos,
texturas e volumes”. A compra de uma figura está associada à composição de uma Loa. Quem
compra, canta. A cena toda se caracteriza em um grande desafio entre o Vendedor e a Mulher
a fim de que ela „bote‟ sua Loa na roda, no jogo.

99
Baseado na figura do Mestre Ambrósio do Cavalo Marinho que vende e compra figuras.
128
Figura 51

VENDEDOR DE FIGURAS- Então Bote! Já que você não quer comprar é por que
tem pra vender! Bote sete das suas aqui!

MULHER - E por que tem que ser sete? Por que não seis, quatro, duas?

VENDEDORDE FIGURAS - Você bem sabe que por essas paragens tudo tem que
ser ímpar. Alguém já deve ter te dito isso!

MULHER - Sim. Um alguém de quem não quero me lembrar!

A tentativa nesse encontro ainda é que a Mulher se livre do passado. Ao oferecer novas
figuras, novas máscaras, o Vendedor oferece a ela nossos caminhos, novas possibilidades. E
para mostrar que as coisas não precisam ser iguais em todos os lugares, depende da percepção
que se tem, o coro composto dos Brincantes-Narradores que, nessa cena, vestem máscaras
contam a história do peixe, cavalo marinho:
VENDEDOR DE FIGURAS - Apois, aqui a ordem e a sorte estão invertidas!
Mesmo no ímpar! Você sabia que é o cavalo marinho macho quem fica grávido por
essas bandas?!

BRINCANTE-NARRADOR – (mascarado) O cavalo-marinho é um peixe.


Existem mais de 40 espécies do animal pelos oceanos de todo mundo. Eles nascem
com poucos centímetros e quando ficam adultos podem ter até 60 centímetros. A
fêmea põe os ovos em uma bolsa no macho e ele fica grávido.

129
E a cada negativa da Mulher o vendedor vai cantando suas Loas e desafiando a Mulher
novamente, utilizando sempre o jargão: “Eu tenho pra vender, você que comprar?”Até que a
Mulher aceita e „bota‟ a sua primeira Loa, como relatei no subtítulo referente a „Mulher Dessa
História‟.

Figura 52

VENDEDOR DE FIGURAS - Quando esse sol de dentro do seu peito alumiá o


terreiro tudo vai transformar. Irá traçar o caminho do guerreiro onde as cores da
guiada surgirão pela estrada. Será sua sorte se atinar pra isso não corra mais o risco
de adiar o despertar.

Os movimentos do Trupé do Cavalo Marinho estão presentes nessa cena, executados


pelos Brincantes-Narradores. As Loas, tal qual foi proposto anteriormente na dinâmica do
Mestre, são compostas de pergunta e reposta e acontecem depois do apito de Vendedor.
Utilizamos chocalhos na cena, fazendo menção novamente a figura do Caboclo de Lança. Já
as movimentações da sequência coreográfica executada pela atriz Vânia Bertoldo partiu de
sua pesquisa, em DVDs documentários referente à brincadeira do Cavalo Marinho.
Vale ressaltar que como extensão do Vendedor de Figuras, introduzimos nessa cena os
Brincantes-Narradores de máscaras, remetendo a personagens que passam pelo grotesco, às
figuras demoníacas e primitivas presentes na mitologia grega. Representa as pulsões
reprimidas da Mulher, a própria sombra materializada dizendo o que ela não quer ouvir:
“você deve aprender a devorar seus próprios demônios e se alimentar deles”. E mais: “sem
movimento o sangue apodrece”. Ou seja, reprimir o ciclo vida-morte-vida é impedir o fluxo
natural do rio, é impedir o crescimento, a transformação.

130
3.3. DE MATRIZES MIMETIZADAS A PERSONAGENS

3.3.1. A CURANDEIRA DE POUCA FÉ


MATRIZ DAMA DO PAÇO – ATRIZ VÂNIA BERTOLDO

Figura 53

O primeiro encontro da Mulher ao iniciar sua peregrinação pelas encruzilhadas do


sertão se dá com uma Curandeira. A Mulher se sente ferida e acredita precisar de um ritual
que a cure dos danos causados pela violência que sofrera do Pai. Contudo, quem cruza o seu
caminho não é uma curandeira qualquer, mas uma „de pouca fé‟. Apresentando um ritual às
avessas, a feiticeira realiza o desejo da Mulher, apagando a sua imagem, seu retrato, sua
identidade. Esse encontro representa a negação da condição do feminino, um rito
simbolizando uma mudança imediatista e não uma transformação interna. A mulher, afirma:
“Estou disforme”. Acreditando que, a partir desse „procedimento mágico‟ (JUNG, 2000), tudo
será esquecido e ela poderá sobreviver nas estradas.
CURANDEIRA DE POUCA FÉ - Qual a casca de uma semente, preservo a tua
vida, escondendo o que pra ti se faz mortal. O fogo continua a ser o elemento vivo
em teu peito que irá te fazer lembrar a condição de teu feminino. Mesmo que todos
te olhem, não poderão te ver. Mesmo que sintam o cheiro de sangue escorrendo de
tuas entranhas não conseguirão associá-lo a ti. Apago a tua imagem.

MULHER - Estou disforme.

Trata-se, então, de um procedimento onde a transformação é produzida, pré-elaborada, e


não vivenciada. (JUNG, 2000, p.133). Segundo Jung (2000), existe quatro formas de acessar
uma transformação pessoal. Através da identificação com um grupo: “quando muitas pessoas
se reúnem para partilhar uma emoção comum, emerge uma alma conjunta que fica abaixo do
131
nível de consciência de cada um” (2000, p.130). Contudo essa mudança não perdura, gerando
um ciclo viciante de dependência: “a pessoa depende continuamente da embriaguez da massa
a fim de consolidar a vivência e poder acreditar nela” (p. 130-131). A transformação técnica
como a Yoga, por exemplo: “São técnicas, no pleno sentido da palavra, derivadas da
reelaboração de processos e transformações naturais” (JUNG, 2000, p.134). E as
transformações referentes à identificação com o mito (identificação com o mito da Mulher
Esqueleto), a um procedimento mágico (encontro com a Curandeira) e o que Jung (2000)
chama de transformação natural:
Todas as ideias acerca do renascimento fundamentam-se neste fato. A própria
natureza exige morte e renascimento. (...) Há processos naturais de transformação
que nos ocorrem, quer queiramos ou não, saibamos ou não. (...) Trata-se de um
processo demorado de transformação interna e do renascimento em um outro ser.
Este “outro ser” é o outro em nós, a personalidade futura mais ampla, com a qual já
travamos conhecimento como um amigo interno da alma (JUNG, 2000, p.134-
135).

Partindo então do que seria um processo de transformação baseado em um


„procedimento mágico‟, a Curandeira faz o seu feitiço e assume a condição de
„interdependência‟ do universo, associando o legado da Mulher ao seu: “figura disforme,
incompleta. Mas a sua morte é também a minha. A partir da negação do teu cheiro passo
agora a não existir. Eu não sirvo mais pra nada”. E completa: “Eu já estive nesse seu lugar.
Lugar de uma rosa amarela que quer ocupar a boca dos caboclos da região”. A Mulher ao
invés de se colocar em busca de uma transformação natural, interna, vê no encontro com a
Curandeira, a possibilidade de redenção sem dor, como seria em um conto de fadas. A
feiticeira atende ao pedido da Mulher, mas sabe que àquilo de nada irá adiantar. E quando a
Mulher a indaga: “Se nem você acredita, como é que eu posso acreditar?” A Curandeira
retruca: “Quem tem que acreditar é você. Além do mais, não é preciso acreditar em alguém ou
em alguma coisa, basta acreditar”.

Figura 54
132
Para compor essa cena, associei as matrizes da Saudação a Jurema, levantadas pelos
atores na etapa anterior, ao material de composição do personagem elaborado pela atriz Vânia
Bertoldo, que partiu da matriz Dama do Paço. Tal matriz precisou ser rearticulada no espaço,
através de redução de intensidade, de velocidade e de volume no que consiste às ações
codificadas, para que atingíssemos o que chamamos de „estado de pouca fé‟. A falta de
motivação da Curandeira para realizar sua mandinga de transformação, não poderia resultar
num corpo da atriz sem tônus e impreciso. Para chegarmos a este „estado‟ sem interferir em
sua presença cênica, foi preciso reduzir e muito a velocidade das ações codificadas e deixá-las
com mais peso e volume, repetindo-as diversas vezes no espaço, depois da execução de um
trabalho energético direcionado.
Vale ressaltar, que o gestual e ações da Curandeira contaram também com elementos da
Matriz Camille Claudel elaborada pela atriz, que se deu a partir da observação e codificação
de fotografias de esculturas da artista. Esse material foi justaposto ao da Matriz Dama do
Paço. Cinco fotografias foram selecionadas para as etapas de observação,
codificação/memorização e posterior trabalho de fisicidade para que elas se tornassem
orgânicas. Destaco aqui duas das imagens trabalhadas:

Figura 55

Ao som de atabaque africano, a atriz veste a figura da Curandeira com sua partitura
executada a 100%, até que, um dos Brincantes-Narradores a lembram, que se trata de uma
Curandeira de Pouca fé, a atriz então reduz sua partitura a metade da intensidade original.
Imediatamente o som do atabaque é substituído por uma sanfona, que permeia toda a cena a
parir de então. O elemento do barro foi inserido ao ritual e ao final do procedimento a Mulher
está toda atada e com a terra escorrendo entre os dedos (vide figura 39, p. 109). Construímos
também para essa cena, uma música que se caracterizaria por uma espécie de mandinga
sonora, cantada pela atriz como se fossem resmungos:
133
Casca, cascudo, entranhas, semente. Cheiro, disforme, estiagem, bagagem,
desdém, ninguém. Tombo, bombo, miolo, caolho, cabra capada, alada,
taquara. Amolada na calunga, amolada seriguela. Cacimba, mandinga,
xexéu, bedéu. Carambola, radiola, desmedida, não medida. Moela, ferida,
chocalho, banguela.

A mandinga é interrompida pelo vocalize sequenciado, característico das Três Figuras


Míticas.
3.3.2 AS TRÊS FIGURAS MÍTICAS

MATRIZES: BURRINHA, MATEUS E CATITA


ATORES: POTYRA PINHEIRO, ANDRESSA HAZBOUN E ALDEMAR PEREIRA

Figura 56

Foi? É? Será?
Vixe. Ahh! Xiii!

(Estalo de chicote. Vocalize das figuras).


.
O chicote estala e as Três Figuras aparecem emitindo sons harmônicos. Com a estrutura
dos diálogos construída em tempos verbais diferentes, dando pistas que se tratam de
representantes do tempo: passado, presente e futuro; as três figuras míticas se apresentam à
Mulher e a plateia, através de movimentações rápidas e precisas, um corpo único, quase
inseparável, cúmplice. Dois filmes influenciaram a ideia de construção dessas personagens:
„A pessoa é para o que nasce‟, do diretor Roberto Berliner, documentário que conta a história
de três irmãs cegas tocadoras de coco de roda; e as irmãs cantoras, do filme „As Bicicletas de
Belleville‟, longa-metragem de animação franco-belga-canadense, dirigido por Sylvain
Chomet. Trabalhei com os atores a busca de uma sonoridade, associada a movimentos
precisos que pudessem ser inseridos em momentos específicos da cena, célula rítmica que foi
repetida exaustivamente, funcionando como uma espécie de „gague‟ do trio. É durante esse
134
encontro que a Mulher é convidada a passar sua vida a limpo. Falar o que lhe aflige, se abrir,
como se estivesse num consultório de um terapeuta.
No Maracatu Rural são as figuras da Catita, Mateus e da Burrinha que abrem o terreiro,
responsáveis por deixar tudo em consonância e depois recolher uns caraminguás da plateia.
Em Cravo do Canavial elas não abrem o espetáculo, mas carregam o grotesco (LE BRETON,
2011), o caráter expressionista, cheios de uma „amostração‟, típicos dos brincadores ao vestir
suas figuras no brinquedo. No final da cena, assume a persona dos ceguinhos que pedem
esmolas nas cidades do interior, em frente à igreja; cantando um coco-de-roda, composto para
o espetáculo. Introduzimos também em termos musicais um aboio, cuja letra também dá
pistas de quem são essas figuras emblemáticas:
EEEEEE tempo...
Tempo que dói, tempo corrói, tempo constrói.
EEEEEE vida...
Vida sem vida, vida vivida, vida-morte-vida.
EEEEEEEE boiiiiii ...

Para construção do gestual e das ações físicas de cada uma dessas figuras utilizamos matrizes
trabalhadas na etapa anterior, referentes à Burrinha, Mateus e Catita, que foram resignificadas
a partir do jogo cênico proposto. Optamos por manter os adereços característicos do próprio
brinquedo: chicote, guiada pequena e jererê. A cena se caracteriza pela comicidade, utilizando
brincadeiras que lembram cenas de palhaço, com objetos imaginários.

FIGURA MÍTICA DO PRESENTE

Figura 57

Regente do trio, essa figura vestida pela atriz Potyra Pinheiro, carrega um chicote dado
a ela pelo próprio brincador que veste a burrinha no Maracatu Rural, o Seu Dedé. A cena
começa com a atriz se relacionando com a plateia, utilizando para isso a mimesis vocal deste
135
brincador, que acaba por se tornar um gromelô, gerando um „estranhamento‟. Como
representa o presente, esse personagem conduz a cena, fazendo um contraponto com a
Mulher, a quem precisa ensinar o ciclo vida-morte-vida. Lembrando-a que é necessário se
livrar do peso do passado, para que o novo se instaure.
Mostre-se, algo sempre pode ser aproveitado. Se não quer gerar mais sofrimento
para você e para os outros, se não quer acrescentar um tantinho assim de
sofrimento do passado que ainda vive em você, não crie mais tempo.

FIGURA MÍTICA DO PASSADO

Figura 58

A Mulher se identifica com essa figura vestida por Andressa Hazboun por ela
representar o passado, do qual ela não consegue se libertar. “Você é tão parecido comigo”, diz
ela. Tentando alertá-la do risco que corre com essa identificação a personagem avisa:
“Tempo! Você não abriu o olho, passaram-se cinco anos como se você tivesse visto um
filme”. Por não ser compreendido pela Mulher, sempre em tom de brincadeira, caracterizando
a comicidade proposta na cena, o personagem assume então o papel de terapeuta, tendo na
figura mítica do futuro uma aliada nesta „farsa‟.
FIGURA MITICA DO PASSADO - O mundo tal qual foi construído e você não
falavam a mesma língua. Foi complicado porque eu teria que ter descoberto qual
era a língua do mundo e ter falado a língua do mundo. Precisaria ter conhecido as
línguas todas, primeiro. Todos os idiomas... E ter encontrado uma forma de ter
acessado isso no mundo.

MULHER - Mas eu só quero me enquadrar!

136
E continua:
Você não apresentava uma cartografia estável. Precisava ter aprendido a conjugar
sua luz e a sua sombra. Você ora estava no céu, ora no inferno. Você trazia um
retrato de picos. Internamente você era um turbilhão de coisas. As coisas
reverberavam em você de maneira tal que (...).

O trabalho de composição da Andressa Hazboun, que também tem formação em


Psicologia, acabou acontecendo na própria etapa de montagem. Ela não tinha trabalhado com
as fotografias referentes ao Mateus, na etapa anterior e só a partir da ida a Nazaré da Mata que
coletou o material necessário para a codificação das ações físicas e vocais dessa matriz. O
trabalho de embocadura, no entanto, precisou ser reestruturado por conta da similaridade entre
a voz encontrada para a personagem Dona Joana e a dessa figura mítica. Um trabalho vocal
direcionado por Marco França precisou acontecer para descoberta dessa nova embocadura.

FIGURA MÍTICA DO FUTURO

Figura 59

“Você aceitará um golinho de azougue, minha filha?”. Essa frase intercorta o diálogo
proposto para cena em diversos momentos, como uma intervenção do personagem Figura
Mítica do Futuro. Personagem que convida a Mulher a brindar, a celebrar o novo. A Mulher
sempre recusa a proposta dessa figura que acaba entrando na brincadeira da figura mítica do
passado, de fazer do jogo, uma seção de terapia, assumindo função de auxiliar desse
„terapeuta‟: ora fazendo anotações em um bloco de papel imaginário, ora fazendo mímica.
Baseado na Matriz da Catita trabalhada pelo ator na etapa anterior, esse personagem assim
como os outros dois, foi se moldando a partir do jogo que surgia entre eles e a Mulher,
durante o levantamento da cena.
Vale ressaltar, que durante a cena das Três figuras Míticas, aparece uma personagem,
vestida pela atriz Thais Schmidt, que representa uma entidade das encruzilhadas. O trabalho
137
de composição desse personagem, espécie de „aparição‟ na cena, pois só se faz visível pelos
outros em um único momento, partiu da Matriz Janis Joplin, elaborada pela atriz. Não havia
nenhum intuito de fazer tal associação, mas uma vez levantada a Matriz, não havia como
negar esse encaixe. Thais ainda propôs a utilização de um charuto, o que vinculou ainda mais
a Matriz Janis Joplin a representação de um possível caminho de composição para essa
entidade das ruas.

Figura 60

3.3.3. BOIAS – FRIAS

MATRIZES: DAMA DO PAÇO E MATEUS


ATRIZES: VANIA BERTOLDO E THAIS SCHMIDT

“O demônio que você puder engolir transferirá a você o poder dele, e quando
maior a dor da vida, maior a resposta da vida” (CAMPBELL,1990, p. 171).

Sirene lembrando campo de concentração. Vozes de brincadores na rádio. Barulho de


caminhão. Os bóias-frias entram em cena, conduzidos por um dos Brincantes-Narradores que
assume o papel de motorista de caminhão, segurando uma placa de automóvel com os faróis
acesos, carregando os trabalhadores para o local aonde irão „devorar‟ suas marmitas. Associei
a imagem do bóia-fria, a ideia que se tem do „homem da seca‟. Resolvi brincar com essa
associação a fim de questionar a visão que se tem deste nordestino, que na peça Cravo do
Canavial, comporta-se como canibal devorando tudo o que encontra, ao som de uma sirene.
138
“De tanto dizerem isso da gente, a gente acabou virando isso mesmo”, explica um deles. O
encontro com os Boias-Frias traz a ideia de que „as coisas nem sempre são como aparentam
ser a primeira vista‟ (ESTÉS, 1999). A partir desse encontro, como mencionei anteriormente,
revela-se à Mulher e ao público, o verdadeiro desenlace da história da „Mulher Esqueleto‟.

Figura 61

A composição desses personagens partiu da Matriz Dama do Paço para Vânia Bertoldo,
associado a Mímesis Vocal da Matriz Mateus, material coletado durante pesquisa de campo.
E a atriz Thais Schmidt também utilizou a Matriz Mateus, para composição vocal e corporal.
Esse seria mais uma exemplo de que uma mesma Matriz pode resultar em diferentes
composições, dependendo da maneira como esse material é articulado. Depois que o material
foi devidamente codificado e memorizado, estabelecemos então a seguinte dinâmica: As
atrizes ativavam os punctuns das Matrizes e quando ouvissem uma sirene deveriam começar a
devorar tudo o que vissem pelo caminho, como canibais, sem esquecer, dos pontos ativadores
da Matriz. Quando a sirene voltasse a tocar, os movimentos compulsivos seriam
interrompidos.

Descobrimos com o jogo que seria mais interessante manter essa volta num tempo mais
lento. As Matrizes, então, passaram a ser executadas com menos intensidade, mais leveza,
quando não estavam na condição de canibais. Descobrimos aos poucos a cumplicidade entre
essas duas criaturas, resultando quase numa relação maternal, onde a Boia-Fria da atriz Thais
Schmidt, tornou-se quase um filhote da Boia-Fria vestida por Vânia Bertoldo. Como
referência, indiquei aos atores a peça „O arquiteto e o imperador da Assíria‟, de Fernando
Arrabal.
139
3.4. O GRITO DO CONTEMPORÂNEO: A OFÉLIA DO MANGUE E OS BRINCANTES-NARRADORES

Ao me deparar com o mote dramatúrgico que representaria a reflexão sobre a


desmedida da Mulher, trouxe para dialogar com nossa heroína um ícone universal no que
concerne a representação do feminino na dramaturgia. Entre a loucura e a razão, entre o
suicídio e a morte, a personagem shakespeariana, Ofélia – “combinação de inocência e
histeria culminando num personagem cheio de erotismo” (MIYOSHI, s.d., p. 82) - inúmeras
vezes, retratada por artistas de diversas áreas; traz associada a sua imagem a oportunidade de
contemplar “a fantasia ameaçadora da sexualidade feminina descontrolada, sobretudo quando
a loucura leva à morte” (MIYOSHI, s.d. p.81). „Ao se perder nos olhos do pescador‟ (vide
p.115), a Mulher da nossa história esquece o que conquistou até então e, ao ter que encarar o
seu duplo, revela: “não quero ser a heroína de uma tragédia, quero ser autora de minha
condição”. A Mulher nega-se, portanto, a entrar em desmedida. A personagem Ofélia entra
em cena para que através do desenlace de sua morte, a Mulher, nesta cena ocupando lugar de
espectadora, possa viver seu momento catártico e de redenção sem precisar vivenciar na pele
uma desmedida.
Tomo emprestado o termo hybris, presente na mitologia grega, para explicar o que seria
então essa desmedida em Cravo do Canavial:
A palavra grega hýbris literalmente significa injúria, insulto, blasfêmia, ofensa.
Mas, segundo Brandão (1987), o uso desta palavra na mitologia grega em geral vai
designar um ato de violência física ou moral realizado pelo herói, relacionado ao
orgulho excessivo e à índole insolente de um homem dotado de poderes
extraordinários demais para a sua essência humana (LEITE, s.d., p. 2).

Associado a um campo simbólico de ambivalência, a hybris, pode se manifestar tanto


em uma desmedida criminosa, ou configura-se como função renovadora (LEITE, s.d.). Esse
caráter ambivalente do herói grego, segundo Leite (s.d.) foi preservado nos heróis ocidentais,
inclusive nos contemporâneos. Trata-se do que Brandão (Apud LEITE, s.d.) chama de
„complexio oppositorum‟, que envolve a vida e a personalidade do herói pelo fato dele ser
meio homem, meio deus. Contudo, essa relação entre divino e humano na mitologia grega, era
resultante da “ausência de um conceito de subjetividade e de arbítrio individual na cultura
grega arcaica” (LEITE, s.d., p.6). Por isso, a Mulher da nossa história, se recusa a ser heroína
de uma tragédia. Ela quer ter a possibilidade de decidir e de determinar qual caminho irá
seguir, e não ficar refém dos desígnios de um destino, que sucumbia o herói grego.
Ao pensar a hybris como uma “transgressão da norma, uma transposição do cotidiano,
um desvio dos padrões culturais e individuais”; e que sua utilidade está associada a ser fonte
140
geradora de mudanças de padrão na consciência individual ou coletiva (LEITE, s.d.), faz-se
necessário que a nossa Mulher assista à cena da tragédia shakespearena, onde Ofélia morre
afogada, a fim de atingir a „redenção‟ por meio dessa tragédia.”Todo poder de transformação
envolve uma paixão descomedida. O autoconhecimento reside lá onde o sujeito se perde de si
mesmo, transborda a sua humanidade e toca no númen dos arquétipos, transpondo assim os
portais e renovando os modelos de existência” (LEITE,s.d., p.13).
Ao compartilhar com os atores a ideia de estabelecer esse diálogo com a personagem
Ofélia, associando-a a desmedida do herói, recebi dois materiais, que foram fundamentais
para elaboração da cena Ofélia do Mangue: pinturas retratando esta personagem, pesquisa
realizada pela atriz Thais Schmidt; e uma tese de psicologia que continha, em seus anexos,
bilhetes suicidas de mulheres reais, trazida por Andressa Hazboun. Optei então por construir a
movimentação da cena da morte de Ofélia, a partir da leitura desses bilhetes, que no
espetáculo acontecem em off. Selecionamos alguns deles, gravamos em estúdio, e uma vez
em sala de trabalho, experimentamos em que disposição eles encaixariam de acordo com a
partitura previamente elaborada. A gravação desses bilhetes serviu, então, como „trilha
sonora‟ para partitura de movimentos executada pela atriz Thais Schmidt, ao vestir a
personagem Ofélia.

Figura 62

141
A rádio da cidade anuncia:
“Queridos irmãos, já tens água de sobra; não lhes darei mais lágrimas”.100 Começa
agora na sua radio cravo do canavial o programa que é líder de audiência na sua
noite melancólica de sertão: Correio do Amor!! Para aquele coração em desmedida,
solitário, que anseia por navegar em águas profundas. Vai! Fala coração! (Texto da
RÁDIO, em Cravo do Canavial)

Enquanto isso, Ofélia entra em cena com o cravo da Mulher nas mãos, segurando-o como se
representasse um buquê de casamento, a trilha sonora dos bilhetes suicidas toma conta do
espaço cênico, intercalado com fragmentos da cena dos coveiros (peça Hamlet), que trata do
enterro de Ofélia. Um dos Brincantes-Narradores realiza a cena levando água numa jarra até
Ofélia do Mangue que agora tem uma bacia nas mãos. A água vai caindo na bacia e a atriz
fazendo movimentos descontrolados de lavar mãos e depois os pés, revelando uma água turva
conseguida com argila. A inserção de bilhetes suicidas, representando mulheres que não se
encaixaram socialmente e acabaram tomando atitudes fora dos padrões, por não conseguirem
„acessar a língua do mundo‟, fazendo alusão ao texto da Figura Mítica do Passado à Mulher
(vide p. 141); abre possibilidades múltiplas de discussão.
O trabalho de composição da atriz Thais Schmidt partiu de uma fotografia do quadro do
pintor romântico inglês, John Everett Millais:

Figura 63

100
Fala de Laertes na peça Hamlet, de William Shakespeare.
142
Tínhamos então a imagem da morte que associada ao jogo proposto na cena: relação com a
Mulher lendo as cartas, que na verdade estavam sendo anunciadas na rádio; os Brincantes-
Narradores assumindo os personagens de coveiros; somado aos elementos bacia, argila e
cravo; foram desenhando caminhos para composição da cena e da personagem em si.

Essa opção pela simultaniedade e multiplicidade de signos, presentes na cena da Ofélia


do Mangue e no espetáculo de uma maneira geral, dialogam com a cena contemporânea a
medida que modificam o olhar diacrônico da cena, evidenciando uma tentativa de operar
„pensar/devir sincronico‟ (COHEN,2004, p. 24). Associar esses elementos: fragmentação,
inserção textuais, multiplicidade e simultaniedade de signos foi minha tentativa de dialogar
com premissas contemporaneas, um grito ainda tímido sem dúvida, nesse lugar novo dentro
da minhas vivências artísticas que é o de encenadora-dramaturga. Essas escolhas dialogam
com um corpo auto suficiente. Um corpo que não se contenta a ocupar mais o lugar de
portador de sentido, um corpo presença.

O limite entre representação e não representação faz-se tênue, no que diz respeito aos
Brincantes-Narradores, que contam a história dos canaviais. A quebra da quarta parede,
associado à estrutura de um texto em narrativa e ao fato dos atores uma vez vestidos de
brincantes terem que vestir outras figuras, levou-nos a pensar como caminho de composição
para estes personagens narradores um „lugar‟ próximo a não representação. Durante todo
processo, desde a primeira etapa relatada no capitulo anterior, trabalhamos na direção de um
corpo que consegue manipular suas energias potenciais, um corpo que brinca, dilatando-se em
presença. Partimos, então, do „estado de jogo‟, presente na memória dos atores a partir da
experiência in loco com os brincadores, associado ao que instaurávamos no nosso
„esquentamento‟ diário. “O encenador contemporâneo depara-se como dialogismo entre a
repetição, reiteração, evocação de presença – premissas do teatro – e edição-ficção-figuração,
premissas da linguagem” (COHEN, 2004, p. 111).

Depois de onze apresentações, principalmente, depois da apresentação que fizemos em


Nazaré da Mata para alguns brincadores do Cambinda Brasileira, acredito que o espetáculo
está começando a ser redimensionado, no que diz respeito inclusive, à dilatação do „estado de
jogo‟, entre os atores, necessário principalmente para a contação da história. Ou seja, a
relação entre os Brincantes-Narradores que depende de questões relativas à presença, pois a
composição dessas figuras estaria mais próxima da não representação, da „presentação‟, irá
aos poucos a partir da troca com público, a meu ver, potencializando-se. Caminho então para
alargar essa pesquisa, no que diz respeito à análise da recepção do espetáculo. Mas isso é
143
história para outros canaviais. Cabe então aos Brincantes-Narradores finalizarem, anunciando
a sorte da Mulher. As luzes vão se apagando e só o céu estrelado permanece aceso.

Figura 64

“As pessoas garantem que é verdade e que é só isso que sabem”.

144
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É numa „terça-feira gorda‟, que tesso as últimas linhas dessa dissertação, que começou
lá atrás, nas minhas memórias atravessadas por àquele Caboclo de Lança, nas ladeiras de
Olinda, em 1992. Começou durante um carnaval e não podia terminar em outro período.
Embuída de uma nostalgia típica de uma quarta de cinzas que se anuncia, faço algumas
considerações não com intuito de fechar resultados ou apresentar respostas. Minha intenção
ao descrever o processo Cravo do Canavial, referente a concepção de uma dramaturgia cênica,
associando a Técnica da Mímesis Corpórea ao universo lúdico e religioso do Maracatu Rural -
friccionando memórias: as minhas, as dos atores e dos brincadores - foi a de refletir sobre
uma metodologia de pesquisa que possa vir a auxiliar artistas-pesquisadores, uma possível
ferramenta na construção de seus processos. A medida que me lancei em direção aos
subterâneos da brincadeira para construir a poética cênica do espetáculo, pude descobrir
formas outras de articulação de um procedimento técnico, que foi „contaminado‟ pela
presença (GUMBRECHT,2010) efetiva dos brincadores populares. Foi no espaço do „entre‟
que se deu esse processo. Esse „entre‟ situa-se entre o corpo do brincador popular que
condensa teatralidade/espetacularidade (BIÃO, 2007), fazendo do cotidiano, algo da ordem
do „extraordinário‟ (DAWSEY,2005); e o corpo do ator que busca, através de um
treinamento, nessa dissertação chamado de „esquentamento‟, manipular suas energias
potenciais, dilatando seus limites corpóreos (FERRACINI,2003).

Vale destacar, que a minha percepção da Técnica da Mímesis Corpórea foi


redimencionada durante o processo. Não esperava que a articulação do material resultante
desse procedimento técnico pudesse me levar para um lugar tão proximo de mim mesma e ao
mesmo tempo dos atores e artistas que dividiram o processo comigo. Acredito que o grande
diferencial da Mímesis esteja nos espaços vazios, no espaço entre uma ação cotidificada e
outra, nas respirações. Hirson (2012) aponta tal caracteristica quando ressalta que não é
apenas descobrir os puctuns do que está sendo observado que importa para ativar uma Matriz,
mas também as micropercepções, e os espaço entre eles. Esses espaços – instaurados a partir
de uma técnica „generosa‟, que apresenta uma metodologia aberta ao diálogo com outros
procedimentos de criação (FERRACINI, 2004) - coube aos atores do cravo e a mim,
preencher; com nossa respiração, com nossas pulsões.

A organicidade conquistada a partir do jogo entre as matrizes exige sim precisão, uma
rede de princípios técnicos que precisam ser trabalhos pelos atores. Sem isso articular esse
material seria impossível. Sem isso esse material seria perdido no tempo e no espaço. Mas a
145
Técnica da Mímesis só se faz completa quando há um comprometimento de alma. Há de se ter
101
a percepção do invisível (HIRSON, 2012). Dessa forma acredito que atendi a fala do meu
orientador: minha alma se fez retratada no espetáculo, vestida pelas almas dos atores; como
também aqui, nestas linhas, tentei deixar impressa minha pele. Esse processo que consistiu na
construção de uma escrita cênica e também acadêmica, revelou-se na integração corpo/alma,
natureza/interior, onde precisei equilibrar energias dionisíacas e apolíneas, na tentativa de
organização do meu caos criativo.
Ao conduzir os atores, em direção a uma percepção corpórea diferenciada a fim de
desenvolver a primeira etapa do proecsso prático, referente a aplicação da Técnica da
Mímesis Corpórea, precisei estabelecer um distanciamento crítico do objeto de pesquisa. O
conceito de „corporeidade‟, foi amplamente discutido em pesquisas de diversas áreas, e
fundamental para a aplicação dessa técnica, pois a organicidade desse material se dá quando o
ator condensa fisicidade e corporeidade (FERRACINI,2003), apesar de ter sido vivenciado
em meus processos como atriz, pareceu-me distante na perspectiva da escrita, referente a
análise da primeira etapa do processo. Enquanto percebia a transformação do corpo dos atores
que dançavam, a essa altura, suas matrizes de maneira „orgânica‟, „viva‟; a escrita através da
qual esse processo ia sendo relatado parecia endurecida, sem preenchimento, mera forma.
Confesso que, só quando precisei sair do meu lugar de organizadora/condutora do processo
dos atores, a quem chamei de protagonistas, para assumir a potência criativa da função de
encenadora e dramaturga me senti realmente „encarnada‟(ALVES, 2006) para articular
prática/reflexão/escrita.
O foco ao longo dessa pesquisa continuou a ser o trabalho de composição do ator, mas
foi além dele; na perspectiva de que passou a ser o trabalho de composição de um „ator-
falcão‟- a medida que relacionamos treinamento à tradinari102 - articulado a elementos
caracteristicos de uma montagem teatral. Na dissertação „Cravo do Canavial: „Entre‟ o
Maracatu Rural e a Mímesis Corpórea - A Construção de uma Dramturgia Cênica‟ tento
relatar, neste espaço arduo que é o da escrita acadêmica, esse processo onde assumi a função
de condutora-encenadora-dramaturga. Talvez não tenha conseguido promover „movimento
puro‟ nestas linhas, que ora revejo e sinto-as ainda endurecidas; mas acredito que algum deva

101
“Não me interessa somente a mimese precisa da fotografia, mas, além disso, a captura precisa dos punctuns que
possam me transportar para o plano do invisível, pois as ações são moldadas também em sua invisibilidade e vão
sendo adensadas e codificadas no desenrolar da pesquisa e da criação. A cada nova descoberta tomam novos
sentidos e fazem desabrochar as ligações possíveis que se transformarão em sequências e posteriores cenas teatrais.”
(HIRSON, 2012, p. 80)
102
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
146
existir. Meu corpo tão acostumado ao movimento frenético do frevo, imponente do maracatu
nação, saltitante do coco de roda e impetuoso nos movimentos de um caboclo de Lança, se vê
inseguro em despertar as sombras dessa escrita que mesmo tendo compromisso em se
encaixar nos moldes acadêmicos, precisa sim, transbordar as dobras de um papel. Outra
potência, outro processo, outro treinamento, como aponta Hirson (2012):
Vou aos poucos descobrindo como despertar os fantasmas que conduzem para o
devaneio da escrita. É outro treinamento, mas um pode “dar uma mão” para o
outro. A experiência do corpo existe enquanto pré-impulso e é repleta de
memórias. O fluxo do devaneio pode ser o mesmo, desde que se possa adestrar a
saída do impulso criativo, encontrando, na respiração, as imagens que serão
transpostas para a palavra escrita (HIRSON, 2012, p. 12).

Discorrer sobre os dois pilares de sustentação teórica-prática de minha pesquisa: o


Maracatu Rural e a Técnica da Mímeses Corpórea me fizeram traçar relações com conceitos e
teorias, referentes as brincadeira populares e sua relação com o jogo (HIUZINGA, 2004) e o
ritual (ARAUJO, 2005) - dando luz a um corpo brincante tido como grotesco (LE BRETON,
ano), um corpo característico das festas de carnaval e que integra contrários: dor e alegria, céu
e terra, evocados com a „presença‟de Kazuo Ohno, nessas linhas (TIBÚRCIO, 2009). Em
paralelo, desenhou-se na intenção de atingir o subjectil (FERRACINI, s.d.) de um corpo, que
clama por encontrar equivalências corporais em suas Matrizes, todo um processo prático, cujo
eixo condutor se fez a partir da codificação de ações fisicas-vocais, articuladas a uma
dramturgia „de‟ memórias (SÁNCHEZ, 2010). E a articulação dessas memórias nos conduziu
ao plano do inconsciente coletivo e dos arquétipos (JUNG, 2000), terreno fértil para
construção de uma dramaturgia cênica.
Fica ainda um destaque referente a um aprofundamento da discussão sobre os modos de
atuação sob o olhar contemporâneo, o qual foi trazido para a dissertação a partir do conceito
de homo performer (DAWSEY,2005) e a questão da presença, que no espetáculo se tentou
materializar a partir da estrutura fragmentada das cenas, simultaneidade e multiplicidade de
signos e da utilização da narrativa e fragmentos/inserções de textos de outros autores,
articulados em nome da poética do Cravo.
Com relação a análise da recepção do espetáculo, visto que há espaços a serem
preenchidos pelo público, que poderão vir a resignificar as escolhas cênico-dramatúrgicas,
redimencionando-as. Não coube nessas linhas a análise dessa recepção, faz-se necessário uma
nova tomada de fôlego. Talvez agora, que iremos „recortar a pele do sertão‟ numa pequena
turnê por cidades do Nordeste, novamente contando com um prêmio da Funarte para tanto
(agora o de circulção do espetáculo), resulte de novo fôlego na produção de um escrita
analisando tal processo. O que posso dizer com relação a essa recepção no momento está
147
ligada a emoção de ver o Cravo do Canavial romper as paredes de uma sala de espetáculo,
numa apresentação aberta bem em frente a casa de Dona Joaninha, no Engenho do Cumbe.
Observar Zé de Carlos assistir a nossa brincadeira,com seu jeito contido se divertindo com a
nossa história, que também é dele. Reservo-me o direito de apenas sentir nesse momento.
Agora só quero ficar com um sorriso de etapa cumprida. Na ânsia de que o público procure
„entender‟ pelos sentidos, “deixando-se levar pela corrente das visões simbólicas ressonantes,
desencadeadas pela obra” (SÁNCHEZ, 2010, p. 120).
Eu que dei passos tão solitários, pois meu processo como atriz-pesquisadora nunca
esteve vinculado a um grupo por um longo periodo de tempo. Ele é resultado de um somatório
de processos com grupos, com pessoas, relacionando-me há 23 anos, nessa „selva
subterrânea” (ESTÉS, 1999). Me vejo hoje atravessada mais uma vez pela memória da minha
prova pública, em Recife, a fim de adquirir meu registro profissional. Lá, interpretei; sim,
porque na época eu não representava, muito menos „vestia‟ personagem, ou figuras.
Interpretei Maria, uma mulher que havia ficado louca depois de ter sido abandonada na igreja,
personagem da peça Sindicato dos Mendigos, de Joracy Camargo. Acho que deve ter sido a
primeira mulher em desmedida no meu caminho, além de mim mesma. Não se trata de fazer
apologismo feminista, no espetáculo Cravo do Canavial, apenas como artista mulher que sou,
reflito sobre o lugar que ocupo hoje, o lugar que as mulheres ocupam hoje: “De uma tola de
olhos vidrados, quero ser autora de minha condição”.
Em suma, a articulação de todo esse material que resultou na escrita da dissertação e
também no espetáculo Cravo do Canavial fez parte de uma engrenagem que não contou
apenas com o visível, contou, fundamentalmente, com o invisível. Talvez tenha sido a força
da Jurema ou o misterioso cheiro de cravo que substituiu o de orfandade. 103 São muitas as
suposições dentro da espera deste invisível, que se transformou em algo concreto, palpável
que foi o espetáculo e essa produção acadêmica. O que posso dizer é que colocamos a nossa
„energia em trabalho‟ (FERRACINI, 2003) caminhando juntos, eu e todos os envolvidos no
processo, uma multiplicidade de mãos e almas, durante dois anos, mas que já estava sendo
concebido desde que eu era uma „pirralha magrela e desgrenhada‟, dançando ao som dos
tambores (ALLENDE, 2010), desde que me perdi pela primeira vez nos olhos do outro,

103
“Eu tenho pouco a dizer sobre magia. Na verdade eu acho que nosso contato com o sobrenatural deve ser
feito em silêncio e numa profunda meditação solitária. A inspiração, em todas as formas de arte, tem um toque
de magia porque a criação é uma coisa absolutamente inexplicável. Ninguém sabe nada a propósito dela. Não
creio que a inspiração venha de fora para dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que ela emerge do mais
profundo “eu‟ de uma pessoa, do mais profundo inconsciente individual, coletivo e cósmico” (MOSER, 2009,
p.509/ Entrevista com Clarice Lispector)
148
saindo discretamente pela porta dos fundos, desde que mergulhei na selva subterrânea
(ESTÉS , 1999) pela primeira vez.
Fui tessendo esse „manto de combate‟ compartilhando cicatrizes, como prova da
resistência, das derrotas e das vitórias, dos envolvidos nesse processo como individuos
(ESTES, 1999). Esse capote que acabou por tomar forma de matulão de Caboclo de Lança,
precisou ser vestido por mim durante esses dois anos. Despeço-me agora então deste manto.
Tiro-o e deixo pendurado bem próximo, na tentativa de lembrar das marcas deste combate
Sigo apenas com minhas memórias tatuadas na pele e um lenço com um cravo, dado por
minha avó, Dona Edna.

149
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- Entrevistas em vídeo com o administrador do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, Zé de


Carlos, em seu ateliê em Nazaré da Mata, em fevereiro de 2011 e em maio de 2012.

155
ANEXOS

Figura 65. Cartaz do Espetáculo Cravo do Canavial

156
Figura 66. Programa do Espetáculo Cravo do Canavial

157

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