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CravoCanavialMaracatu Martins 2013
CravoCanavialMaracatu Martins 2013
NATAL/RN
2013
CARLA PIRES MARTINS
CRAVO DO CANAVIAL:
Dissertação apresentada em
cumprimento às exigências legais para
obtenção do título de mestre pelo
PPGArC.
Natal – RN
2013
ix
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
x
À Matriarca dos Pires, a minha voinha,
Dona Edna.
xi
AGRADECIMENTOS:
Aos artistas e técnicos que contribuíram na criação do espetáculo Cravo do Canavial, desde a
primeira fase do processo prático. Em especial aos atores: Aldemar Pereira, Andressa Hazboun,
Potyra Pinheiro,Thais Schmidt e Vânia Maria Bertoldo que desbravaram junto comigo esse canavial
de sonhos. E aos cúmplices: Irapuan Junior, Gustavo Henrique, Marco França, Rogério Ferraz,
Ronaldo Costa, Pablo Pinheiro, Allan Marlon, Paul Moraes e Leila Bezerra.
Aos Brincadores do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, que nos acolheram, compartilhando
generosamente suas memórias para que pudéssemos nos alimentar delas. Sem vocês - Zé de Carlos,
Dona Maria de Lourdes, Seu Dedé, Seu Severino, Dona Biu, Seu Zé Pequeno, Dona Joaninha (in
memória) - o nosso brinquedo não existiria! À AMUNAM (Associação de Mulheres de Nazaré da
Mata), que tanto nos inspirou com tamanho comprometimento às causas femininas.
Ao professor orientador dessa pesquisa, Robson Carlos Haderchpek, pela confiança, paciência,
cumplicidade e parceria em todos os momentos do processo.
Aos professores Karenine Porpino, Larissa Tibúrcio e Vera Rocha por terem contribuído, através do
conteúdo de suas disciplinas com o aporte teórico dessa pesquisa e por serem educadoras que
realmente se preocupam com o aluno dentro da Instituição. E a Teodora Alves pelo apoio e pelos
comentários assertivos na minha banca de qualificação.
xii
RESUMO
Essa dissertação se deu a partir de uma investigação sobre a aplicação da Técnica da Mímesis
Corpórea, sistematizada pelo Lume, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Unicamp, associada à matriz do Maracatu Rural, especificamente do grupo Cambinda
Brasileira (Nazaré da Mata – PE), a fim de fomentar o treinamento e o trabalho de
composição do ator. A partir de uma metodologia empírica, que se utilizou da análise de
experiências práticas – processo de aplicação da Mimese Corpórea e montagem de espetáculo
teatral – associada à pesquisa bibliográfica, pude investigar caminhos de possível
resignificação desta Técnica, utilizando elementos referentes ao ritual e ao jogo presentes na
manifestação popular em questão e experimentar através da concepção do espetáculo Cravo
do Canavial tais caminhos.
ABSTRACT
The present dissertation has begun with an investigation about the application of the
Technique of the Corporeal Mimesis, systematized by the Lume, Interdisciplinary Center for
Theatrical Research of Unicamp, associated with the matrix of Rural Maracatu, specifically of
the group Cambinda Brasileira (Nazaré da Mata – PE), with the purpose of promote the
training and the composition work of the actor. Starting from an empirical methodology,
which used the analysis of practical experiences – the application process of the Corporeal
Mimesis and the construction of a theater play – associated with bibliographical research, I
could investigate possible ways of re-signification of this technique, using components related
to the ritual and the game present in the popular event in question, and experience such paths
through the conception of the play Cravo do Canavial.
xiii
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1.
DO MARACATU RURAL E DO TREINAMENTO DO ATOR
CAPÍTULO 2.
AS MATRIZES DE UM COTIDIANO „EXTRAORDINÁRIO‟:
„ENTRE‟ A MÍMESIS CORPÓREA E O PROCESSO COM OS ATORES
EM CRAVO DO CANAVIAL
xv
ÍNDICE FOTOGRÁFICO
FIGURA 2 DETALHE DOS MEUS PÉS E DOS DE UM CABOCLO DE LANÇA DO MARACATU RURAL
CAMBINDA BRASILEIRA, REGISTRADO EM FEVEREIRO DE 2007. 14
FIGURA 3 CENA DA PERSONAGEM DONA JOANA NA JANELA DE SUA CASA. ALUSÃO A DONA
JOANINHA DO CUMBE. 176
FIGURA 6 DETALHE DAS MÃOS DA PERSONAGEM MULHER NA CENA DAS TRÊS FIGURAS
MÍTICAS, DO ESPETÁCULO CRAVO DO CANAVIAL. 24
FIGURA 7 DA ESQUERDA PARA DIREITA: KAZUO OHNO (PERSONAGEM „LA ARGENTINA‟); SEU
ZÉ PEQUENO, CABOCLO DE LANÇA DO MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA; E A
ATRIZ VÂNIA BERTOLDO, EM PROCESSO. 25
FIGURA 12 SEQUÊNCIA DE CINCO FIGURAS (ESQ. PARA DIR.): BURRINHA, CATITA, DAMA DO
PAÇO, CABOCLO DE LANÇA E MATEUS. MARACATU RURAL CAMBINDA BRASILEIRA. 52
xvi
FIGURA 13 ATOR RODRIGO SEVERO EM PROCESSO. PRIMEIRA ETAPA DO PROCESSO PRÁTICO,
REFERENTE A APLICAÇÃO DA DINÂMICA „BAIXIO DAS BESTAS‟. 63
FIGURA 19 IDEM 72
FIGURA 23 IDEM 76
FIGURA 25 DA ESQUERDA PARA DIREITA: ATORES ALDEMAR PEREIRA, JOSÉ MARIA, TATIANE
TENÓRIO MIMETIZANDO MATRIZ CATITA (REFERENTE A FOTOGRAFIA ANTERIOR). 78
FIGURA 28 IDEM. 83
FIGURA 37. PERSONAGEM MULHER CABOCLA DE LANÇA, COM CRAVO NA BOCA. 101
FIGURA 41 PERSONAGEM MULHER, VESTIDA POR ANDRESSA HAZBOUN, CENA DOS „PÉS
VOLTADOS PARA TRÁS‟. 107
FIGURA 47 PERSONAGEM DONA JOANA, VESTIDA PELA ATRIZ ANDRESSA HAZBOUN. 114
FIGURA 51 PERSONAGEM VENDEDOR DE FIGURAS, VESTIDO PELA ATRIZ VÂNIA BERTOLDO. 128
xix
FIGURA 54 CENA DO ENCONTRO ENTRE A CURANDEIRA DE POUCA FÉ E A PERSONAGEM
MULHER. 131
FIGURA 62 CENA OFÉLIA DO MANGUE, VESTIDA PELA ATRIZ THAIS SCHMIDT. APRESENTAÇÃO
NO ENGENHO DO CUMBE, EM OUTUBRO DE 2012. 140
xx
Figura 1
Resolveu então voltar para casa com o que tinha. E o que tinha? Apenas
Memória Tatuada na Pele. E o lenço com o Cravo, dado pela Avó, Dona
Joana.
xxi
INTRODUÇÃO
COMPARTILHANDO O SENSÍVEL
Devagar. Hora a hora. Dia a dia. Como se o tempo fosse um banho de acidez,
vou vendo com mais funda nitidez o negativo da fotografia. (...) Dois homens num
só rosto! Uma espécie de Jano sobreposto, inocente, impotente e condenado a este
assombro de se ver forrado dum pano de negrura que desmente a nua claridade do
outro lado (MIGUEL TORGA IN CÂMARA ESCURA).
Desde sempre a minha sombra se fez presente, querendo tomar forma, pulsando.
Mesmo quando não a evocava ela se manifestava nas minhas relações, no meu trabalho.
Detive-me a tentar entender o que causava tanto incômodo, por que sentia tanta inquietação
durante meus processos como atriz, tanto quando me preparava para um espetáculo
específico, como nos meus momentos de ócio nem sempre criativo. Nessa constante tentativa
de conviver com minha sombra, aprendi o que talvez faça lugar comum para muitos: ao
olharmos para nós mesmos podemos ver o outro. E falando de mim mesma, quem sabe posso
ter voz de coletivo. “Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
que a coisa produza em nós” (BARROS, 2006). Ao pensar, então, a sombra como o centro do
inconsciente pessoal, o núcleo do material que foi reprimido do inconsciente, como definiu
Jung, podendo dessa forma conter forças vitais e positivas - devemos assimilá-la na nossa
experiência ativa, e não reprimi-la. Assim como todos os arquétipos, a sombra se origina no
inconsciente coletivo1 e pode permitir acesso individual a grande parte do valioso material
inconsciente (JUNG, 2000). Encará-la como um possível recipiente de energia instintiva,
espontaneidade e vitalidade, seria ativar a fonte principal de nossa criatividade. Ou seja,
pensar a matéria artística como corporificação dos sentidos é ter que se debruçar sobre a
sombra, por isso desnudar as minhas „dobras barrocas‟ (DELEUZE, 1991) passou a ser a
minha obsessão pessoal, obsessão pelo processo, pelo „como‟. Não se trata de produzir
1
“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de
que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o
inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto,
desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo
nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência
apenas à hereditariedade” (JUNG, 2000, p.53). Os conteúdos do inconsciente coletivo são os Arquétipos, cuja
forma de expressão é encontrada fundamentalmente no mito e no conto de fada (JUNG, 2000). No terceiro
capítulo dessa dissertação traço um paralelo entre o processo criativo do espetáculo Cravo do Canavial e os
conceitos de inconsciente coletivo e Arquétipos.
1
verdades, mas da necessidade de investigar o que me move e por sua vez o que move as
pessoas, fazendo alusão à frase da diretora e coreógrafa alemã Pina Bausch. Como
percebemos o mundo a partir dos nossos afetos, faço da minha vontade de partilhar o sensível
- através do encontro de subjetividades em sala de ensaio com atores e aspirantes da UFRN e
em posterior processo de montagem do espetáculo Cravo do Canavial - a tentativa de dar
movimento puro2 à „escritura‟ de minha dissertação de mestrado.
O Maracatu Rural é o meu cravo do canavial, remetendo aos cravos que os Caboclos de
Lança - um dos personagens deste brinquedo - usam na boca durante as apresentações.
Arquétipo do guerreiro, essas „figuras‟ do canavial defendem um território marcado
historicamente pela desigualdade social. Desse mote temos o caráter de resistência presente
nessa manifestação, originária da Zona da Mata de Pernambuco, onde os cortadores de cana-
de- açúcar são os brincadores ou brincantes. Pode-se dizer que foi um contato quase trágico, o
meu, com um Caboclo de Lança e se deu nas ladeiras de Olinda no carnaval de 1992, durante
o cortejo de um Maracatu Nação, manifestação popular que, diferente do Rural, tem sua
origem vinculada à coroação dos reis do Congo, sendo desdobramento das Congadas. Eu
participava do desfile na ala das baianas. De uma hora para outra, tivemos que abrir passagem
para algumas „figuras desgovernadas‟ que desciam a ladeira com uma espécie de cravo na
boca, dançando de modo aparentemente desconexo e portando lanças enormes, cheias de fitas
e bastantes pontiagudas, diga-se de passagem. Em sinal de respeito, ou de medo, nosso cortejo
abriu espaço para o desfile daquele grupo, visto por mim, na época, com estranhamento.
Aqueles Caboclos evoluíam com tamanho entusiasmo, força, exuberância que me deixaram
hipnotizada por alguns instantes. O desmantelo foi tamanho que o meu recuo acabou não
acontecendo e por isso quase me vi com uma lança daquelas „enfiada no bucho‟. Lança que,
anos mais tarde, um brincador conhecido como Seu João me cedeu gentilmente para que eu
pudesse segurar e averiguar seu peso. Pesada, realmente! Ao perguntar o porquê de aos 84
anos continuar brincando Maracatu, o mesmo Seu João me fez entender o significado e a
seriedade que envolve essa misteriosa brincadeira: “O Maracatu é minha vida. A única coisa
que eu quero quando morrer é continuar dançando Maracatu no céu” 3.
Foi sobressaltada pela minha sombra, materializada na figura daquele Caboclo de
Lança, que o objeto de minha pesquisa começou a se figurar. A pesquisa Cravo do Canavial
trata da recriação de ações físicas e vocais a partir do registro das „figuras‟ (personagens)
2
Fazendo alusão a frase da escritora Clarice Lispector: “Quero escrever movimento puro” (LISPECTOR, 2005,
p.41).
3
Brincador João da Silva, Caboclo de Lança do Maracatu Rural Leão Formoso. Entrevista realizada por Carla
Martins durante Carnaval (fevereiro de 2007), em Cidade Tabajara, Olinda-PE.
2
presentes na brincadeira do Maracatu Rural, dialogando com a Técnica da Mímesis Corpórea,
sistematizada pelo Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp - que
aponta caminhos de recriação e codificação destas matrizes corpóreo-vocais. Por Mímesis
Corpórea, entende-se recriação de corporeidades - uso particular que se faz do corpo -
percebidas no cotidiano, numa tentativa de estudar „diferentes estados‟ de um corpo vivo, em
ação no mundo, não podendo então ser confundida com simples „imitação‟ (FERRACINI,
2002). Em linhas gerais, o processo prático com atores e aspirantes se deu a partir da
aplicação das etapas da Mímesis Corpórea (observação, codificação/memorização e
teatralização) associada a elementos presentes no Maracatu Rural, com o objetivo de
observação e reflexão sobre caminhos encontrados durante processo em sala de ensaio na
elaboração e recriação dessas matrizes; e a análise da teatralidade gerada através de
montagem teatral, partindo desse material posto em relação e em diálogo com um processo de
construção cênico-dramatúrgico específico.
Vale ressaltar que no início do processo não pretendia montar um espetáculo, queria
apenas realizar um exercício aberto ao público. Contudo, ao sermos contemplados com o
prêmio Myriam Muniz (FUNARTE), em 2011, o objetivo acabou por transfigurar-se. Um
grupo formado por atores e estudantes de artes, conduzidos e dirigidos por mim participou da
primeira etapa do processo referente à aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, associada a
elementos do Maracatu Rural, resultando em exercício aberto, em dezembro de 2011. Com a
premiação da Funarte o trabalho pode ter continuidade com o objetivo de montarmos um
espetáculo de teatro, experiência relatada no terceiro capítulo dessa dissertação. A concepção
deste espetáculo evidenciou a singularidade da matriz escolhida, abrindo possibilidades outras
de articulação do material resultante da aplicação da Mímesis com a composição da cena e,
por conseguinte, com o trabalho de composição dos atores.
O Maracatu Rural pode ser analisado por diversos ângulos: religioso, étnico, lúdico,
musical, entre outros. E como essa brincadeira evoca forças primitivas que a caracterizam em
seu aspecto ritualístico - presente na relação direta dos Caboclos de Lança com a Jurema4; no
azougue, bebida que contém pólvora tomada em homenagem a Zé Pilintra5; e na calunga de
cera, boneca que faz a ligação do maracatu com o divino, dentre outros – tornou-se
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, relacionar os elementos da brincadeira em
seus subterrâneos, não só em suas dimensões e em seu volume. Ou seja, o trabalho de
recriação das ações físicas e vocais integrado a alguns elementos específicos da brincadeira –
4
Sistema de crenças envolvendo elementos místicos indígenas e o Candomblé.
5
Entidade cultuada na Jurema.
3
referentes ao ritual e ao jogo, principalmente – resultou em material diferenciado, à medida
que interferiram na aplicação da própria técnica, por conta da associação de exercícios e
dinâmicas referentes ao universo popular, e também na construção do espetáculo.
Os cortadores de cana-de-açúcar são os brincadores do Maracatu Rural, cuja tradição
vem da segunda metade do século XIX é uma fusão de vários folguedos que existiam nos
engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata: Cavalo Marinho, Caboclinhos e do Pastoril.
No livro „Maracatu Rural: Luta de Classes ou Espetáculo‟, de Roseana Borges de Medeiros,
encontram-se várias informações sobre o Folguedo como um todo, utilizado como fonte de
consulta e como referência durante o processo prático em sala de ensaio e na escritura dessa
dissertação. Pode-se dividir o folguedo em dois momentos singulares: o das Sambadas e o dos
Cortejos. Os Cortejos são desfiles que acontecem durante o período do carnaval e as
Sambadas, acontecem geralmente a partir de setembro, e são consideradas o „esquentamento‟6
para saída no carnaval, onde os que não conhecem a brincadeira passam a ter acesso às suas
danças e aos detalhes da Manifestação. Na ocasião, os Mestres, figuras centrais da Sambada,
criam suas loas, disputando entre si em improviso (VIEIRA apud MEDEIROS, 2005).
Desde 2007 realizo trabalho de campo – tanto durante as Sambadas como nos Cortejos
– observando e/ou registrando através de fotografias a brincadeira, tendo decidido focar
especificamente no Maracatu Cambinda Brasileira em 2011, devido à vivência no Engenho do
Cumbe, por conta da minha relação com tais brincadores; mas, principalmente, por se tratar
do Maracatu mais antigo de Pernambuco e um dos que mantém as raízes da brincadeira
vivas. O mote da minha investigação prática tem aí sua origem. Daí parte o estímulo para o
trabalho prático com os atores em sala de ensaio, do universo do Maracatu Rural Cambinda
Brasileira, que serviu não apenas como fonte de inspiração, mas dividiu o lugar de
protagonista com os atores no trabalho desenvolvido a fim de encontrar caminhos,
sistematizando-os, para o trabalho de composição do intérprete e para posterior processo de
montagem.
Vale frisar que o meu processo de reconhecimento de „como‟ utilizar os elementos
presentes nas manifestações populares em trabalhos de composição, tornou-se consciente em
1996, quando fui convidada para compor a equipe técnica e de criação do espetáculo „O Auto
da Compadecida‟, do Grupo F... Privilegiados, então dirigido por Antonio Abujamra e João
Fonseca. Assinando a preparação corporal e as coreografias ao lado de Johayne Hildelfonso,
percebi o trabalho de apropriação da linguagem popular que se deu tanto pela composição dos
6
No primeiro capítulo dessa dissertação, explico a origem do termo „esquentamento‟ e sua relação com o
trabalho prático dos atores.
4
atores como pela concepção cênica. Os atores a partir dos movimentos do Maracatu Nação,
Caboclinhos, Coco de Roda e Frevo, desenvolveram o gestual dos seus personagens, alguns
de forma mais sutil, outros numa relação mais direta. Destaco o trabalho do ator Nello
Marrese, que interpretava o Padre João; cuja vinheta musical do seu personagem era
associada a um passo de Maracatu Nação resignificado. Foi a partir dessa experiência que
percebi a relação entre o trabalho com a cultura popular e o trabalho de composição do ator.
Não apenas como treinamento físico, mas como repertório de composição.
Com o passar do tempo, fui associando também dinâmicas presentes em algumas
brincadeiras para trabalhar princípios teatrais específicos. Como por exemplo, o „Mergulhão‟
presente no Cavalo Marinho: Jogo que se dá em roda, onde uma pessoa entra em quatro
tempos chamando outra com o olhar. Nos quatro tempos de saída, a pessoa chamada entra
chamando outra pessoa. Simplifiquei a célula rítmica do Mergulhão para iniciar o trabalho
com atores. Esse jogo toca em questões teatrais referentes ao foco (olhar), variação de
fisicidades7, precisão e a relação nos três níveis: em si, espacial e com o outro. Pode-se,
inclusive, introduzir gestos de personagens específicos e até mesmo texto, nesse jogo.
O contato e a apreensão do trabalho do Lume se deram na minha graduação em Artes
Cênicas na UNIRIO. Contudo, deu-se de forma indireta através de aulas com terceiros. A ida
a Barão Geraldo (interior de São Paulo) aconteceu só em fevereiro de 2011, quando participei
da oficina ministrada pela atriz-pesquisadora, Raquel Scotti Hirson. Durante oito dias,
fizemos aulas partindo do treinamento pré-expressivo para darmos conta do processo da
Mímesis. Foi lá que conheci o Joca. Um homem de 45 anos que morava na rua, ganhava uns
trocados ajudando a estacionar carros, desenhava imagens „pornográficas‟ (assim ele as
definia!) e escrevia letras de música. Baseei-me nesse „personagem das ruas‟ para construir
minha Matriz. As dificuldades em acessar as equivalências corporais8 e a „embocadura‟ para
compor a Mímesis Vocal de Joca, vejo-as refletidas no processo do Cravo do Canavial.
Passei a entender melhor esse procedimento junto com os atores, durante o processo de
aplicação da Técnica, e quando tivemos a oportunidade de contar com a assessoria técnica da
própria Raquel, ao iniciarmos o trabalho de montagem do espetáculo.
Acredito que o grande desafio como pesquisadora e também como artista veio
exatamente na etapa de montagem, quando precisei assumir a função de encenadora e de
7
Segundo Ferracini (2003), fisicidade é a “parte mecânica pela qual opera uma ação física” (2003, p.125).
Variação de fisicidades seria trabalhar essa ação segmentando, variando e ocultando partes dela, a fim de que o
ator passe a executá-la com organicidade (FERRACINI, 2003).
8
Entendida como oposto a imitação. O ator, nos estudos do Lume, “deve encontrar equivalentes orgânicos em
detrimento de qualquer ação que possa remeter ao clichê pessoal e cotidiano, recriando, reconstruindo e
redimensionando a ação física” (FERRACINI, 2003, p.148).
5
dramaturga do espetáculo Cravo do Canavial. Minhas experiências como atriz acabaram por
reverberar nesse processo, onde utilizei memórias pessoais e o prévio contato com o universo
arquetípico ao trabalhar nas montagens dos espetáculos: „O Grande Teatro do Mundo‟, onde
representei a personagem, A Morte; e no „Taj Mahall‟, onde entrei em contato com o mito
indiano do amor eterno. Meus questionamentos recorrentes, sobre o lugar da mulher no
cenário social e também a maneira como o feminino tem sido retratado na dramaturgia ao
longo dos anos. Inquietação que reverberou na minha graduação em Artes Cênicas na
UNIRIO, quando realizei um exercício para disciplina de interpretação, onde escrevi o
encontro entre Ofélia e Desdêmona9 depois de mortas, para refletir sobre os crimes passionais
contra as mulheres e suas desmedidas. Meu arrebatamento ao saber que uma mulher havia
conseguido vestir a figura de Cabocla de Lança pela primeira vez, em 2004. E o livro de
cabeceira que me acompanha desde 2005: „Mulheres que correm com os Lobos‟, da autora
Clarissa Pinkola Estés. Tudo isso de alguma forma reverberou durante o processo criativo de
composição dessa dramaturgia. Essas memórias foram associadas às memórias dos
protagonistas do processo, os atores, e juntamente com o material levantado através do
trabalho da Mímesis Corpórea, em associação com elementos do Maracatu Rural, resultaram
na construção cênica e dramatúrgica do espetáculo Cravo do Canavial.
O ator-dramaturgo (OKAMOTO, 2004) escreve com o corpo sua dramaturgia, uma
atriz ao se colocar como encenadora-dramaturga escreve sua poética cênica, com o corpo do
outro: “recolocando suas vivências, na cadeia mito-história-escrita cênica” (SÁNCHEZ, 2010,
p. 84). A escrita dessa dissertação andou em consonância com o seu processo prático, estando
os aportes teóricos e os relatos e análise do processo com os atores desenvolvidos ao longo de
três capítulos.
No primeiro capítulo dessa dissertação, Do Maracatu Rural e Do Treinamento do Ator,
abordo os dois pilares de sustentação da minha pesquisa: o Maracatu Rural e a Mímesis
Corpórea, focando a princípio no treinamento do artista cênico. Aponto questões ritualísticas,
presentes no Maracatu Rural e que estão associadas à crença da Jurema e abordo a relação das
„figuras‟- personagens – do brinquedo com o jogo cênico. A importância dos rituais como
fonte de inspiração para inúmeros processos de criação cênica e como nas brincadeiras
populares, aspectos rituais e teatrais podem conviver em nome de um jogo dramático são
temas de discussão. A partir desses aspectos - fundamentais para o entendimento do
brinquedo e da relação que estabeleci com os atores em sala de ensaio - o foco passa a ser o
corpo do brincador popular, trazendo o conceito de grotesco de Le Breton (2011) para refletir
9
Peças Hamlet e Othelo, respectivamente. Ambas escritas pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
6
sobre esse corpo. Um corpo que se faz grotesco, com seus transbordamentos e protuberâncias
um corpo „carne levamem‟, carnavalizado. Um corpo que se faz integrado em oposição ao
corpo da modernidade que evidencia a separação do cosmos. É a partir dessa relação de
inteireza que estabeleço diálogo com os princípios da Dança Butô, trazendo referência à
bibliografia de autores que encontram eco de tais princípios em seus processos criativos e
relatos do dançarino Kazuo Ohno, um dos precursores desta dança japonesa do pós-guerra.
O corpo da Dança Butô que fala da conjunção de contrários, apresenta similaridades
com o corpo do brincador popular. Similaridades presentes no caráter de resistência, na
ligação com o tempo ancestral, ritualidade e universo arquetípico. Por que não dizer, por
exemplo, que há similaridades entre a relação do brincador seu João, citado anteriormente, ao
afirmar que quando morrer quer continuar dançando maracatu no céu, com a relação que
Kazuo Ohno estabelece com sua arte. Ambos empregam todo seu ser em seu processo
artístico. Vida e arte são complementares, uma não existe sem a outra:
Quando a pessoa envelhece, o corpo envelhece e morre. Mas o espírito segue
dançando com a energia do universo. A morte não é o fim, é um novo começo.
Quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo. Vou continuar
dançando (...) (OHNO apud LUISI e BOGÉA, 2002, p.98).
Vale ressaltar que a ideia foi utilizar os princípios da Dança Butô no trabalho com os atores a
fim de despertar um corpo que se faz memória. Exemplifico essa relação a partir da „dinâmica
do barro‟, desenvolvida durante o processo com os atores e que resultou no movimento
„Saudação à Jurema‟ e em seu desdobramento no espetáculo: a cena do encontro entre os
personagens Mulher e a Curandeira de Pouca Fé. Dessa relação de corpo que traz tatuado em
sua memória de pele sua herança ancestral, trago para discussão o conceito habitus,10 de
Bourdieu (apud ALVES, 2010). A necessidade em entender o corpo desse brincador se dá
pelo fato de que durante o processo da Mímesis Corpórea o ator precisa encontrar
equivalências em seu corpo a fim de „vestir‟ tais figuras, além de precisar compreender
corporalmente o universo da brincadeira, como dito anteriormente. Passo então a estabelecer,
ainda no primeiro capítulo, pontes entre o treinamento desse ator e o processo de „treino‟ dos
brincadores populares. Vinculo as Sambadas como o momento em que esse treinamento se
faz mais efetivo, e utilizando um termo da brincadeira, chamo esse treinamento de
„esquentamento‟. Esse „esquentamento‟ associaria alguns elementos do treinamento
energético e técnico sistematizado pelo Lume a elementos referentes às manifestações
populares.
10
Esse conceito será retomado no primeiro capítulo dessa dissertação.
7
Desde o início deixo claro nessa dissertação que o termo „treinamento‟ sob os moldes
do Lume está ligado à ampliação de potencialidades, afastando qualquer vínculo com
militarização ou formatação de um corpo. E é a partir desse treinamento que o ator atingiria
um estado cênico, uma dilatação corpórea que associa no mesmo corpo: o cotidiano e o
extracotidiano, trazendo para discussão o conceito de Ferracini (s.d.) de corpo- subjétil. O
corpo desse ator que, a partir do treinamento consegue atingir uma potencialização de si,
passando a ocupar o lugar do „entre‟, em diálogo com o corpo do brincador popular que
também ocupa tal lugar uma vez que o que seria extracotidiano nesse universo está presente
no dia-a-dia do brincador. Teatralidade e Espetacularidade11 no universo dos brincadores
populares são territórios complementares.
No segundo capítulo descrevo os exercícios do treinamento energético e técnico do
Lume associado a outros, vivenciados e elaborados por mim durante minha vivência com a
Cultura Popular e como atriz, preparadora corporal e coreógrafa. Além de descrever e de
relatar os desdobramentos associados a cada exercício, relaciono tais exercícios aos princípios
considerados nos estudos do Lume como fundamentais para preparação de um artista cênico.
São eles: dilatação corpórea, olhar, impulso, variação de fisicidades, base, energia, precisão.
Alguns desses exercícios foram vivenciados por mim durante oficina com Raquel Scotti
Hirson em Barão Geraldo, em fevereiro de 2011 e outros fazem parte das minhas andanças na
UNIRIO e em outros processos criativos. Há também aqueles idealizados para o processo do
Cravo do Canavial especificamente, como a „dinâmica do Mestre‟ e a „dinâmica do barro‟,
por exemplo.
O objetivo dessa fase, desse „esquentamento‟, foi preparar o corpo e a voz para próxima
etapa do processo, a partir do princípio discutido por Eugenio Barba, que aponta as dinâmicas
de alteração de equilíbrio e de oposição física como condição para atingir a dilatação
necessária a um corpo cênico, expressivo. E também „alinhar‟ as almas dos atores-
pesquisadores no que diz respeito ao entendimento do universo da brincadeira. Vale ressaltar
que a fim de apresentar a atmosfera da brincadeira aos atores também nos concentramos no
aprendizado de alguns passos da dança, no contato com a música (loas e toadas), na exibição
de vídeos sobre a brincadeira e na leitura de textos. Destaco a dinâmica a partir da
11
A teatralidade seria aplicada às pequenas interações rotineiras, nas quais as pessoas agem para o olhar do
outro de modo consciente e ao mesmo tempo sem tanta consciência ou nas palavras de Bião (2007) „confuso‟,
onde não há uma distinção clara entre „atores e espectadores‟, por desempenharem todos simultaneamente os
dois „papéis‟(BIÃO, 2007). Já a espetacularidade é aplicada “às maiores interações extraordinárias, quando
coletivamente a sociedade cria fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm consciência
clara como atores e espectadores” (BIÃO, 2007, p. 35).
8
improvisação sobre a temática do filme „Baixio das Bestas‟12, que trouxe desdobramentos
presentes inclusive no exercício aberto e na montagem do espetáculo. No segundo momento,
visando à construção das Matrizes, elenquei as três etapas previstas pelo Lume para aplicação
da Técnica da Mímesis: Observação, Codificação/ Memorização e Teatralização. Partimos da
observação das fotografias das „figuras‟ do Maracatu Rural Cambinda Brasileira que foram
previamente estruturadas em cinco nichos: Catita, Burrinha, Mateus, Caboclo de Lança e
Dama do Paço.
Durante treze encontros, nove atores trabalharam o processo da Mímesis Corpórea ou
da Recriação de Corporeidades, com autonomia. Propus uma rotatividade entre os nichos para
que os participantes experimentassem o material referente a cada „figura‟. Fez-se importante
manter elementos do „esquentamento‟ nessa fase do processo mesmo que de forma
condensada. A partir da relação de equivalência entre o corpo do ator e o corpo observado as
Matrizes foram codificadas. E uma vez que as equivalências das corporeidades observadas já
estavam memorizadas, chegou o momento de „deixar de lado‟ o material observado para que a
Matriz encontrada se tornasse de fato „material vivo‟ para fase da teatralização. „Dançar
Matrizes‟ significa fluir de uma ação para outra sem rompimentos, experimentando a
sensação dessa dinâmica, observando de que forma essa dança interfere na „Matriz original‟.
O trabalho com dinâmicas enfatizando a variação de fisicidades ajudou aos atores a
memorizarem as ações apreendidas. Fragmentar, diminuir, omitir partes, variar no tempo
foram pontos trabalhados. Questões sobre corporeidade e organicidade levantadas no
primeiro capítulo foram vivenciadas na prática com os atores. A organicidade é um ponto
fundamental apontado pelo Lume a ser alcançado para comprovar a eficácia da aplicabilidade
da Técnica. Por isso, fala-se em recriação de corporeidades e não de fisicidades, termos que
abordo de forma mais aprofundada ao longo da dissertação.
A busca de equivalências para mimetizar as ações físicas13 e vocais do corpo desse
brincador, faz com que o entendimento do „lugar‟ desse corpo que ocupa o „entre‟, seja
fundamental para aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea. Proponho um „corpo-memória‟
que irá mimetizar outro „corpo-memória‟, tendo como princípio norteador o fato de que a
Mímesis dentro dos parâmetros do Lume está distante de ser simples imitação. A Técnica da
12
Filme de Cláudio Assis, „Baixio das Bestas‟ conta a história de uma menina explorada pelo avô em Nazaré da
Mata, interior de Pernambuco. Alguns personagens dessa história são brincadores de Maracatu Rural.
13
Nos estudos do Lume Ação física “é a passagem, a transição entre a pré-expressividade e a expressividade. Ela
corporifica os elementos pré-expressivos de trabalho (...) é o cerne, a base e a menor célula nervosa de um ator
que representa. É por meio dela que esse ator comunica sua vida e sua arte” (FERRACINI, 2003, p.113). O
conceito de ação física bem como os seus elementos constitutivos, serão desenvolvidos, durante o primeiro
capítulo dessa dissertação, bem como o termo pré-expressividade e a relação do ator que representa em
contraposição ao ator-interpretativo, segundo os princípios adotados pelos atores-pesquisadores do Lume.
9
Mímesis Corpórea integra fisicidade e corporeidade, tendo as ações físicas como eixo
norteador do ator. O que se procura é estabelecer equivalências corporais. Para isso é
necessário que o ator integre elementos que dizem respeito a si, abrindo uma janela a
discussão contemporânea sobre presença. Um „corpo-sujeito‟ que faz relação com o brincador
que mais do que homo ludens (HUIZINGA, 2004) se faz homo performans (DAWSEY,
2005). Finalizo o capítulo com uma reflexão do trabalho de composição do ator sob o olhar
contemporâneo: de que maneira se dá o processo do ator inserido nesses moldes – levantando
questões sobre a „presentação‟, no lugar do que seria a representação - e como tais princípios
dialogaram com a montagem do espetáculo Cravo do Canavial.
Vale abrir um parêntesis, que durante um workshop com a Diretora Judith Malina (The
Living Theater) cujo objetivo era problematizar a participação ativa do espectador na cena
teatral, desenhei meus primeiros passos em direção a um possível entendimento do que seria a
não representação, em nome da „presentação‟. Na ocasião estava trabalhando o personagem
Dealer do texto „Na solidão dos Campos de Algodão‟, de Bernard- Marie Koltès, para
montagem de espetáculo, dirigido por Alexandre Rudáh. A cena apresentada para Malina
tinha dez minutos e era composta dramaturgicamente por recortes do texto da peça. Não
tínhamos, eu e o outro ator, uma partitura fechada, apenas um roteiro e a indicação do diretor
da montagem de que o embate dos dois personagens - Dealer e Cliente - se daria a partir dos
movimentos de imobilização utilizados na técnica do Jiu-Jitsu, incluído enquanto discurso
corporal. Judith Malina fez várias intervenções na cena e no nosso processo de atuação,
evidenciando a questão da presença do ator e a importância de uma relação viva com o
espectador, que, por sua vez, deveria ser estimulado a ter uma postura ativa na experiência. A
sensação era de absorção, a minha, ao realizar a cena. Precisava ter uma atenção e
concentração no jogo cênico maior do que o habitual, pois não sabia qual seria o desfecho.
Tinha um objetivo enquanto personagem, que poderia ser atingido ou não, de acordo com o
resultado, a atitude seria diferenciada. A sensação era de „corpo potência‟, vivo, pulsante.
Refletindo agora sobre essa experiência, posso associar o que senti ao partilhar o sensível com
Malina, com o momento em que estou no meio de um maracatu dançando, jogando,
brincando.
Por isso o ímpeto em abordar questões relativas à presença no processo do Cravo do
Canavial. Os atores experimentaram um pouco do que seria esse estado de aqui e agora,
durante a apresentação do exercício aberto ao público, que marcou a finalização da primeira
etapa do processo. Por conta da falta de energia elétrica, ao invés de apresentarmos parte do
processo em local fechado, apresentamos ao ar livre. Essa experiência foi potencializada com
10
a pesquisa in loco dos atores, em Nazaré da Mata, em maio de 2012 - cujo relato foi
desmembrado nos dois últimos capítulos - e com assessoria técnica da atriz-pesquisadora do
Lume, Raquel Scotti Hirson.
No terceiro capítulo que está relacionado à criação da dramaturgia cênica do espetáculo
Cravo do Canavial, descrevo como se deu o processo de montagem - a partir de um
argumento dramatúrgico - onde o binômio texto/jogo entre as Matrizes foi evidenciado. Inicio
o capítulo, contudo, reafirmando que ao colocar as Matrizes em relação nasce uma terceira,
carregada de significado e teatralidade, prática constatada pelo próprio Lume e por outros
artistas-pesquisadores que caminham utilizando tais parâmetros de criação. Estabeleço então a
necessidade de falar do que move, fazendo alusão mais uma vez a frase da coreógrafa alemã
Pina Bausch, que, segundo Sánchez (2010), trabalhava com uma dramaturgia da memória14,
cujo processo consiste na manipulação de arquétipos. Relaciono então os arquétipos à
construção da poética cênico-dramatúrgica do espetáculo Cravo do Canavial, cujo
protagonista passa a ser o arquétipo do feminino, inspirada pela figura da empregada
doméstica Maria José Marques dos Santos que, em 2004, conseguiu pela primeira vez na
história do Maracatu Rural, vestir a figura de um Caboclo de Lança, motivação mencionada
anteriormente. Partimos, então, de um conto chamado „Mulher Esqueleto‟, do livro „Mulheres
que correm com os lobos‟, onde a autora aborda a relação vida-morte-vida, associando esse
ciclo à temática do feminino (ESTÉS, 1999).
Configura-se no espetáculo, a estrutura presente no mito do herói (CAMPBELL, 1990)
em busca de sua individuação (JUNG, 2000), conceitos que serão desdobrados ao longo da
dissertação. É a partir da saga desse herói - em Cravo do Canavial, personificado na
personagem Mulher – que se desenvolve a poética cênico-dramatúrgica do espetáculo, em
articulação com o material levantado na primeira etapa do processo com os atores, referente
às Matrizes resultantes da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea e articuladas com os
elementos presentes no universo do Maracatu Rural. E ao friccionar memórias pessoais com a
dos atores para construção dessa poética cênica, a dramaturgia da memória (SÁNCHEZ,
2010) passa a ser dramaturgia „de‟ memórias como a própria Sánchez define, pois o processo
se deu na interação com a memória de um „diretor-criador-dramaturgo‟, que além de
manipular os conteúdos materializados pelos atores, manipulou suas próprias memórias
14
Ao desejar criar, a memória é acionada concomitantemente. A memória movimenta-se a partir da intenção da
criação, expressão do pensamento artístico vinculado a um estimulo (SANCHEZ, 2010). “Assim, o que vem à
tona no pensamento vem de forma natural, mas não é totalmente involuntário porque nela se insemina vontade
de conceber” (SÁNCHEZ, 2010, p. 92).
11
(SANCHÉZ, 2010). Daí o titulo desse capítulo: Cravo do Canavial: Construindo uma
Dramaturgia „de‟ Memórias, onde descrevo o processo de criação de cada personagem, que
compõe a peça e o trabalho com os atores.
O ator de Cravo do Canavial „veste‟ figuras tal qual o brincador popular. Partindo da
personagem A Mulher, fui desenvolvendo, junto com eles, toda a estrutura de criação dos
demais. A Avó, Dona Joana, surge da relação da Mulher com o ciclo vida-morte-vida.
Representando a nostalgia dos brincadores dos carnavais antigos, Dona Joana condensa nela
mesma, os contrários que se completam: Céu e Terra, Alegria e Dor (TIBÚRCIO, 2009),
trazendo de volta a discussão do primeiro capitulo sobre o corpo do brincador popular, com
seu caráter de inteireza. Já o Pai da Mulher, carrega o teor moralizante do mito. Ambos, Dona
Joana e Pai, podem ser entendidos como parte existente, dentro de um mesmo indivíduo. As
Matrizes da Dama do Paço, Burrinha, Catita e Mateus, trabalhadas na etapa anterior à
montagem, apareceram resignificadas nas „figuras‟ dos Bóias-Frias, Curandeira de Pouca Fé e
nas Três figuras Míticas. Já a Matriz do Caboclo de Lança passou a ser a Mulher, que assume
o arquétipo de guerreiro, conjugando animus/anima (JUNG, 2000) dentro de si, em harmonia.
Ou seja, ao encontrar-se com seu Self (JUNG, 2000), a Mulher se transforma no mito da
primeira Cabocla de Lança do Sertão, representado no espetáculo, pela cena „dançando com a
sombra‟.
A opção pela retomada de elementos, princípios, conceitos, discutidos no primeiro
capítulo, deu-se pela singularidade da matriz escolhida, reafirmando o fato de que elementos
referentes ao ritual e ao jogo, presentes Maracatu Rural - evidenciado no universo simbólico
presente na relação do brincador com o brinquedo ou no corpo do próprio brincador -
potencializaram o processo como um todo. Optei pela fragmentação, simultaneidade de signos
e linguagem expressionista em algumas cenas e no trabalho de composição de alguns
personagens. Tal escolha se deu a partir da relação com o conceito de homo performer
(DAWSEY, 2005), que se refere ao cotidiano „extraordinário‟ dos brincadores populares,
articulado no capítulo dois. Essa discussão que me levou a refletir sobre modos de atuação e
de composição da cena contemporânea reverberaram no espetáculo nas escolhas de
articulação desses elementos cênicos e também na opção pelo uso da narrativa, presente nos
personagens dos Brincantes-Narradores.
Em suma, a opção pelo uso de linguagem simbólica desencadeia significados outros,
suscita associações. O espectador fica diante de uma cadeia de possibilidades, onde sua
percepção irá depender da interpretação do sensível apresentado. Compartilho então o
sensível com os espectadores. Essa abordagem me deixa à vontade no caminho das escolhas
12
e descobertas associadas às minhas andanças, aos meus questionamentos com relação à minha
sombra, ao meu processo. É olhando para mim que vejo o outro e é refletida no outro que
vejo minha sombra. A fricção entre a minha persona15 e sua obscura equivalência, a sombra,
me trouxe até aqui ao se materializar naquele Caboclo de Lança. Sigo então com esse animal
de quatro patas à minha espreita,16 e em meio aos meus desmantelos fui dando forma ao cravo
desse canavial. Onde, o que acabou prevalecendo foi uma escrita cênica17 em que atores
contam um conto dos canaviais, vestem figuras, cantam, dançam, friccionando suas
memórias, e as minhas, com a memória de Nazaré da Mata, nas histórias que os brincadores
contam.
15
O termo deriva da palavra latina para máscara usada por atores na época clássica. Persona se refere à máscara
ou face que uma pessoa põe para confrontar o mundo. Durante toda uma vida, muitas personas serão usadas e
diversas podem ser combinadas em qualquer momento específico (RUBEDO, 2003). Disponível
em:<(http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/persona.htm)> acesso em 13/04/2012 ás 23 h.
16
Referência a relação do arquétipo da sombra com a mulher selvagem que a autora Clarissa Pinkola Estés faz
em seu livro Mulheres que correm com os lobos.
17
“A convergência do trabalho dramatúrgico e do trabalho espetacular dá como resultado a concretização do
diretor, isto é, a interpretação ou leitura que entrega o diretor a seu publico” (DE TORO, 1987, p.140 apud
ALMEIDA, 1995, p.5-6).
13
CAPÍTULO 1
Figura 2
18
Nas Brincadeiras Populares, „vestir uma figura‟ significa representar um personagem, por isso usarei o termo
„figura‟ todas as vezes que me referir aos „personagens‟ do Maracatu Rural.
19
“O Desmantelo é sinônimo de desafinação, desagregação, descontrole. Pode abalar o desenvolvimento de uma
brincadeira, assim como o da própria vida” (ACSELRAD,2002, p.36).
15
Essa „mecânica‟ tem ligação com questões referentes ao ritual e ao jogo presentes no
brinquedo que, durante muitos anos, teve na figura de Dona Joaninha a responsável por
manter a harmonia necessária à brincadeira. De sua janela, aconselhava os brincadores, sendo
detentora dos mistérios que envolviam o Cambinda. Em 2011, na minha visita ao Engenho do
Cumbe para o levantamento do material fotográfico e em vídeo dos brincadores e das suas
respectivas „figuras‟ - que iria utilizar na primeira etapa do processo com os atores - a
Juremeira de confiança do Mestre João Padre já não estava mais entre nós. “Olho sempre pra
janela procurando Dona Joaninha. Ela sempre me aconselhava. Sinto falta dela, mas a vida é
passageira e o maracatu continua”.20 Contudo, antes de partir para “dançar maracatu no céu” -
fazendo minhas às palavras de seu João, a quem citei na introdução dessa dissertação – ela
passou os seus saberes e a feitura dos preparos que fazem o mistério da brincadeira para
Dona Biu: “Eu passei três dias e três noites na casa dela. Aprendendo a fazer o preparo do
maracatu. Juntei as coisas dela com as minhas e (...)” (VIEIRA e NOGUEIRA, 2006, p. sn),
interrompe Dona Biu para conservar o mistério referente aos ingredientes do preparo.
20
Entrevista com Zé de Carlos, realizada por Carla Martins, na sede do Cambinda Brasileira, em fevereiro de
2011.
16
Figura 3
21
“Etimologicamente, dizem que é de origem africana, proveniente da palavra maracatucá ou muracatucá,
expressão que significava vamos debandar, muito utilizada nos finais das danças ocorridas em frente a igreja do
Rosário, como uma senha combinada entre os integrantes, para avisar a aproximação de policiais com o intuito
de reprimir a dança. (...) Diz-se também que é de origem indígena, fruto da fusão de duas palavras: maracá –
instrumento musical ameríndio e catu – bonito, significando nesse caso dança bonita. Também dentro da origem
indígena, apontam quem Mara significava guerra e com a junção de catu, indicava que seria uma guerra bonita.
E por fim, é também veiculada a hipótese de que o termo é de origem africana, existindo ainda uma dança
intitulada de maracatu praticada pela tribo dos bondos, os quais viviam na época da ocupação portuguesa, numa
região cerca de cinqüenta quilômetros ao norte de Luanda-Angola na África” (MEDEIROS, 2005, p.77).
22
(RAIZ, 2006). Disponível em < http://revistaraiz.uol.com.br/portal/índex.php?option=com> acesso em
05/11/2011 as 20 h.
17
descrito pelos juremeiros como um reino encantado, os encantos ou as cidades da
jurema, explica o antropólogo Sandro Guimarães 23.
Há um mistério envolvendo o Maracatu Rural que por mais que os integrantes revelem parte
dele, o „como fazer os preparos‟, os ingredientes, são mantidos em segredo. “Certo mesmo de
nós preparar a jurema com a força de caboclo é setembro. É na mata... o lugar onde se salvou
os nossos índios. Salve a Jurema sagrada! (...) No dito pelo não dito, todo maracatu faz
preparo por mode da brincadeira não sair descoberta” (VIEIRA e NOGUEIRA, 2006, p. sn).
A ligação ritualística presente no Maracatu Rural gira em torno da Jurema que está na
relação da Dama do Paço com a Calunga, no azougue bebido pelos Caboclos de Lança e até
na vestimenta desta „figura‟, cuja indumentária, chamada surrão, carrega uma armação de
24
chocalhos, confeccionado em número ímpar, para não atrair azar. “Tem que ser ímpar” .
Dizem inclusive que os brincadores que vestem a „figura‟ de Caboclo de Lança não tomam
banho durante o carnaval para não ficar vulneráveis a qualquer mal, guardam abstinência
sexual por pelo menos quinze dias antes do brinquedo ir para rua e mantém distância de
qualquer bebida que não seja o azougue: feita de cachaça, limão e pólvora (MEDEIROS,
2005). Tomada em homenagem ao Zé Pilintra (entidade cultuada pelos juremeiros), trata-se
de bebida necessária, dizem, para aguentar sustentar o peso de suas roupas:
(...) calça e camisa de chitão, gola em formato de poncho toda bordada de
lantejoulas, a cabeleira de celofane e o surrão – uma estrutura de madeira presa às
costas do caboclo, coberta de couro de carneiro ou de material sintético, onde são
pendurados vários chocalhos. Mais ou menos 25 quilos. O rosto tingido de urucum
ou outra tinta e os óculos escuros 25.
22
(AGERP, 2010). Disponível em< http://www.unicap.br/webjornalismo/brincante/index2.php?id=guarda >
acesso em 02/04/2012 às 17.35 h.
24
Entrevista realizada com o administrador do Cambinda Brasileira, em pesquisa de campo, realizada pela
equipe de criação do espetáculo Cravo do Canavial, em maio de 2012. Essa frase, resignificada, é dita pelo
personagem PAI no espetáculo.
25
(RAIZ, 2006). Disponível em: <http://revistaraiz.uol.com.br/portal/índex.php?option=com>Acesso em: 17/11/2011
às 15 h.
18
Figura 4
Medeiros (2005) cita a tese do historiador Olimpio Bonald Neto que defende a ideia do
lanceiro ser a transfiguração do orixá Ogum, o deus da guerra. “Antigamente as festas eram
sangrentas. Eram confrontos violentos, hoje apenas simbolizam as disputas de território a
partir da evolução dos caboclos” (2005, p. 123). Contudo, como mencionei anteriormente, o
mistério que envolve o brinquedo não fica restrito a essa „figura‟.
A Calunga, também chamada de bruxa ou boneca, e que fica sob a proteção da Dama
do Paço, também carrega o mistério do brinquedo. Elemento presente tanto no Maracatu
Nação quanto no Rural tem significado de proteção. Feita de madeira ou de pano, cera e
plástico representa geralmente o orixá que protege o maracatu.
No Maracatu Nação a Calunga é preparada nos terreiros de candomblé. No Rural, ela está
ligada à linha da Umbanda, à corrente da Jurema. A Calunga é conduzida pela Dama da
Boneca, ou Dama do Paço, que se localiza, durante o cortejo, no centro do maracatu. A Dama
do Paço leva a boneca. Sua figura tem status de feiticeira (MEDEIROS, 2005). Percebe-se,
então, que aspectos ritualísticos estão presentes na relação dos brincadores com o brinquedo
como um todo, tido como uma „brincadeira séria‟ pelos que dela participam. Relação que se
estende ao cotidiano desses homens e mulheres que passam o ano se preparando para o
carnaval seguinte. Esse preparo vem junto com a memória de um tempo ancestral, tatuada na
parede da casa de Dona Joaninha, e que é evocado nos passos da dança, na música, nas
„mandingas‟ de proteção, nos encontros entre os brincadores.
Ao longo da historiografia cênica, teóricos, pesquisadores e artistas da cena vêm
aproximando a construção de um corpo cênico à ideia de ritual como meio de atingir sentidos
outros, atingir um estado de corpo que irrompe, transborda. O ritual é tido como “gerador de
presença fazendo dos corpos seres mais integrados a vida (...). É provável que essa eficácia se
dê por conta de promover um diálogo entre natureza e cultura , entre interioridade e
exterioridade, operando na constante construção da corporalidade e corporeidade do grupo”
(ARAÚJO, 2005, p. 151). A aproximação entre teatro e ritual, considerando que a própria
representação já tem inúmeros conteúdos rituais, ou seja, levando em conta o cotidiano
teatral, a fricção com atividades ritualísticas tem sido de grande importância para o
desenvolvimento do processo de criação cênica:
Como o mito é uma das modalidades pelas quais o sagrado se manifesta ao
homem, e são atualizados através dos rituais, acredito no poder que a encenação
ritualística tem de provocar nos sujeitos um novo papel a desempenhar na vida,
20
após cada cerimônia/ atuação. Nesse sentido, o ritual atua como facilitador ou
mediador, com as dimensões mais sutis, complexas e desconhecidas da realidade
(ARAÚJO, 2005, p. 150).
Não à toa que os rituais presentes em diferentes culturas têm sido fonte de inspiração para
muitos mestres de teatro, como Grotowski e Eugênio Barba26 por exemplo. E sem tentar fugir
de tamanha referência, não à toa o potencial mítico-religioso presente nos rituais que
envolvem o Maracatu Rural reverberou no processo em sala de ensaio com os atores de Cravo
do Canavial, bem como na construção do espetáculo, relatados no segundo e terceiro
capítulos, respectivamente.
Reforço escolha por relacionar tais elementos em sala de ensaio, trazendo a discussão
levantada por Mariz (2008) de que o conceito do que seria teatro se tornaria ainda mais
abrangente - trazendo perspectivas outras sobre a construção da presença cênica, a concepção
do espaço e da relação ator/espectador - se as manifestações que hoje são vistas como
manifestações teatrais ritualizadas, como é, segundo a autora, o caso dos rituais indígenas e
das festas populares tradicionais, se a análise fosse feita não a partir da perspectiva
„rituais/teatralizados‟, mas, inversamente, „teatrais/ritualizados‟:
Olhar o teatro sob uma perspectiva não-evolucionista, que abarque a pluralidade
cultural que caracteriza as diferentes sociedades, significa restituir-lhes sua
verdadeira vocação de metáfora universal, de metacomentário da humanidade.
Considerado como a arte da representação, como manifestação performática, o
teatro está longe de se restringir a um tipo específico de teatralização. Tal como a
humanidade, ele é plural e culturalmente diversificado, o que impede
generalizações universalizantes. O que parece ser generalizável é que o teatro
contém estruturas rituais, do mesmo modo que o ritual possui elementos teatrais
(MARIZ, 2008, p. 14).
Para a autora, os fatores aos quais se devem a familiaridade entre a linguagem do teatro e a do
ritual estão ligados à origem do próprio teatro (cerimônias religiosas em celebração aos ritos
agrários ou de fecundidade) - onde se supõe não haver distinção entre o ator e a plateia - e aos
que dizem respeito à própria linguagem do ritual. No primeiro caso, ”ambos eram partífices
de um mesmo culto – no caso do teatro grego, por exemplo, o culto ao deus Dionísio27, no
caso do mito japonês, a dança de Uzume” 28 (MARIZ, 2008, p. 77). Já para explicar a relação
26
“A busca de uma linguagem ritualizada – ainda que esteticamente ritualizada -, bem como a utilização de
símbolos arquétipos e de mitologias diversas, por parte de grupos teatrais de pesquisa como os de Grotowski,
Barba e Antunes Filho, parece evidenciar aquilo que Antunes define como a „busca da essência, da essência das
realidades‟, e que Grotowski considera a „experiência de uma verdade comum‟” (MARIZ, 2008, p.13).
27
“Na Grécia, a tragédia parece ter surgido dos ditirambos, do culto ao Dionísio. (...) Dionísio possui o dom da
metamorfose. Para fugir à fúria dos titãs, metamorfoseia-se em bode. Devorado por eles, ressuscita na forma de
um bode divino: o mesmo que será ritualmente imolado para purificação da polis” (MARIZ, 2008, p.15-16).
28
Trata-se de um mito no Japão, que fala da origem do teatro. “Nele, Amaterasu, deusa do sol, enfurecida com
as travessuras de seu irmão, confina-se em uma gruta escura, privando o mundo de luz. A escuridão reinante traz
consigo inúmeras desgraças. Preocupados os deuses se reúnem com os representantes dos clãs. Trazem uma
21
com o ritual, Mariz (2008) traz para discussão a definição de Tambiah do ritual enquanto “um
ato comunicativo performativo”:
(...) as situações rituais como as situações de representação teatral, possuem uma
relação tempo/espaço alterada, com conotação e simbolismos diferentes daqueles
cotidianos. De acordo com Tambiah, a própria forma de ritual tem significações,
tem um significado, tem uma força. Há uma construção metonímica do tema ritual
através da repetição ritual embutida em sua forma (MARIZ, 2008, p.78).
Deste modo, pensando a brincadeira como uma espécie de jogo, ou comentário sobre o
meio social, torna-se possível aproximá-la do fenômeno teatral. E sendo um tipo de jogo
também abre fissuras no tempo e no espaço. Na brincadeira as fronteiras se rompem. Quando
ela começa, promove uma suspensão tempo-espaço, que independente do lugar onde se esteja,
quer seja o de observador ou de brincante instaura-se um „espaço outro‟, caracterizando-se
árvore Sakaki florida ( a árvore sagrada em que habitam os deuses) e a ornamentam com trajes azuis e brancos e
fios de pedras preciosas, lapidadas em forma de lua. Por e entre os galhos, prendem um enorme espelho. Alguns
deles trazem consigo instrumentos sagrados, enquanto outros recitam canções mágicas. A deusa Uzume, por sua
vez, prendendo suas mangas com gavinhas, amarra uma faixa em torno da testa e colhe um feixe de bambus
gigantes. Feito isso, pega um barril, vira-o de cabeça para baixo, e põe-se a dançar sobre ele, batendo os pés com
vigor. Possuída por um espírito, Uzume entra em êxtase e desnuda os seios e os genitais. Os deuses, ao verem
aquilo, soltam estrondosa gargalhada. Curiosa, Amaterasu aparece na entrada da gruta para ver do que os deuses
estão rindo e se surpreende com sua imagem ofuscante e luminosa refletida no espelho. Ela sai da gruta, e
palavras mágicas impedem que retorne”(MARIZ, 2008, p.8).
22
por uma fissura na realidade. Durante a brincadeira o homem encontra uma maneira de lidar
com sua condição ordinária, transpondo-a por meio do lúdico. Há uma resignificação da vida,
que subverte a hierarquia instaurada. Acselrad (2002) afirma que “como uma espécie de jogo
ou comentário sobre o meio social pertencente, a brincadeira teria como um de seus maiores
atributos a capacidade de abrir um parêntesis na vida cotidiana, suspendendo-a
temporariamente, para em seguida a ela voltar de forma renovada” (ACSELRAD, 2002, p.
32). Ao se jogar no terreiro da brincadeira, aquele que brinca lança-se em direção ao ponto de
embricamento entre sua subjetividade e a realidade, friccionando a fronteira entre o mundano
e o sagrado, o real e o imaginado.
A partir dessa relação: jogo, ritual, território dramático, brincadeira, foram aplicadas
diversas dinâmicas com os atores durante o processo em sala de ensaio. Dinâmicas cujo
objetivo foi o despertar de uma presença cênica e o entendimento a nível psicofísico do que
seria esse universo referente ao Maracatu Rural e também ao corpo desse brincador,
especificamente, antes da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, propriamente dita. Vale
ressaltar que tais dinâmicas foram associadas ao treinamento pré-expressivo, sistematizado
pelo Lume, fazendo parte do que denominamos de „esquentamento‟. Tais conceitos, como
também o procedimento metodológico detalhado será abordado mais adiante. Por hora, trago
como exemplo a „dinâmica do barro‟, que resultou em uma sequência de movimentos, uma
dança pessoal29, originando a matriz „Saudação à Jurema‟ de cada ator, utilizada
posteriormente na concepção de cena do espetáculo referente à personagem: Curandeira de
Pouca Fé. Tratou-se do ritual de reverência ao sagrado, da criação de um „lugar‟ de ligação
dos atores com um tempo ancestral, que não passasse por movimentos pré-concebidos.
Utilizei como fonte de inspiração princípios da Dança Butô, que trabalha a relação dos
contrários como algo único, por exemplo: céu e terra, vida e morte.
A terra está longe do céu... e tão perto. Íntimos, amorosos, terra e céu se casam.
Paraíso e inferno se casam. Há vida nisso. Quando você dança ou vive, você se
alimenta. Na morte há vida, na vida há morte. Quando se cresce no útero materno,
a mãe dá vida para o feto. Todos nós nos alimentamos da vida materna. Então, (...)
o seu corpo veste o universo (OHNO apud BAIOCCHI, 1995, p. 49).
A presença dos contrários existindo em todas as coisas, a frase do bailarino Kazuo Ohno
”minha dança nasceu da lama” e a imagem da terra como a grande mãe e seu útero serviram
como estímulos para condução da dinâmica. Hirson (2006), atriz-pesquisadora do Lume,
relata em seu livro „Tal qual apanhei do pé‟ sua experiência com Natsu Nakajima, dançarina
29
A Dança Pessoal, nos estudos do Lume, busca “realizar uma intersecção entre a vida e o corpo, ou seja, entre o
subjetivo e o objetivo” (FERRACINI, 2003, 143). Busca-se dentro de si uma relação corpórea nova, para uma
vez mergulhado nela, o ator possa explorar novas possibilidades (FERRACINI, 2003).
23
japonesa de Butô, que a pôs em contato com as coreografias de seu mestre Tatsumi Hijikata 30
que eram baseadas em imagens:
Essas imagens eram elementos externos ao corpo, mas se desdobravam em ações
físicas. As imagens propostas por Hijikata tinham um dado fundamental, que era a
possibilidade de transformação interna a partir da própria sugestão da imagem. (...)
Quando eu me punha a fazê-la, além da imagem proposta e de outras que a
principal me sugeria, procurava respirar de modo diferente, como se a cada
inspiração eu recebesse a complexidade desta imagem e fosse levada ao mundo
dela, virtual, portanto real, mas não palpável, já que formalizado em imagem.
Algumas outras imagens propostas por ela davam suporte para se chegar a esta
respiração. Por exemplo, fazer toda e qualquer ação em estado de neblina. Não
somente estar em meio à neblina, mas também fazer com que a própria ação seja
correspondente à qualidade de ser e de se mover da neblina. Deixar-se adentrar
nesta qualidade, também com a presença do terceiro olho 31 é alterar por completo
o estado geral do corpo e da respiração (HIRSON, 2006 p. 63-64).
30
“Tatsumi Hijikata (1928-1986) e Kazuo Ohno (nascido em 1906) foram os precursores e fundadores de uma
arte do corpo que transgredia convenções, gramáticas, didatismos, formas e estéticas comprometidas com o
Japão tradicional e conservador e, por outro lado, com os novos padrões de modernidade impostos pela
americanização, que começavam a emergir com o final da segunda guerra mundial. Tanto Hijikata, quanto Ohno,
sempre preferiram a vida metafórica, virtual e imagética ao formularem suas definições, ou melhor, suas
digressões sobre a vida” (BAIOCCHI, 1995, p.18).
31
“O terceiro olho consiste em imaginar um olho no centro da testa, entre as duas sobrancelhas. Os olhos estão
fechados e o ator tenta „ver‟ e se orientar com o terceiro olho. Num segundo momento os olhos podem ficar
abertos, desde que não se olhe com os olhos reais, mas com o terceiro olho. Esse trabalho busca desenvolver
uma visão mais interior e uma espécie de relação direta entre o interior e o exterior. Isso resulta numa qualidade
particular dos olhos do ator, que sugere olhos que sonham” (BURNIER apud HIRSON, 2006, p 63).
24
brincador com tal ritual32. Essa frase seria dita por cada ator durante a execução das partituras.
Os atores atingiram assim um „estado de barro‟ compondo sua dança pessoal, cheia de
respiração e pulsões, e à medida que foram postas em relação, gerou uma dança pessoal-
coletiva. Nesse momento introduzi mais um elemento ao jogo: a fotografia da calunga,
ligando-os ainda mais a questões referentes à ancestralidade, interferindo de certa forma na
relação entre eles.
Ao mesmo tempo em que a dança pessoal-primitiva acontecia, Carla colocou no
centro da sala uma fotografia da Calunga e pediu que nos reuníssemos em torno da
foto. Ficamos olhando os mínimos detalhes e as impressões que ela repercutia em
nosso corpo, em nossa memória muscular-ancestral (Relato do ator RODRIGO
SEVERO).
32
Seguem as frases dos atores: “Jurema, entidade que protege minha identidade” (Andressa Hazboun); “Quero
me render aos teus encantos Jurema!” (José Maria); “Com ela ninguém me toca, com ela eu to encantado”
(George Holanda), “Minha conexão com o divino” (Rodrigo Severo), “Minha planta é sagrada e venerada por
diferentes povos e culturas do mundo” (Vânia Bertoldo); “Jurema, me proteja!” (Potyra Pinheiro).
25
Figura 7
Figura 8
A transgressão está presente então nessa festa, onde os limites corporais transbordam,
revelando uma “espécie de corpo provisório, sempre a ponto de transfigurar-se, sem repouso”
(LE BRETON, 2011, p. 48). Segundo Le Breton (2011), inaugura-se um estado de
comunidade, onde a ideia de espetáculo, de distanciamento, ou de apropriação só pelo olhar é
apartada dessa festividade. Os homens zombam de coisas da religião, falam de assuntos
referentes ao seu dia-a-dia, questionam as leis vigentes. O riso é característica sempre
presente, numa festa onde os corpos se misturam indistintamente. “O espírito presente nas
tradições populares seria o de vincular o homem a todas as energias visíveis e invisíveis que
percorrem o mundo que mantém o contato natural sem ter adquirido características
individualizadas” (LE BRETON, 2011, p.62). Le Breton (2011) a fim de entender o corpo
moderno propõe uma volta a essa festa popular, reportando-se ao período medieval. A análise
do autor se dá identificando a necessidade de distanciamento de referências atuais para
entendermos esse corpo específico do período carnavalesco que, segundo o autor, faz-se
grotesco:
O corpo grotesco é formado de relevos, de protuberâncias, ele transborda de
vitalidade, está mesclado à multidão, indiscernível, aberto, em contato com o
cosmo, insatisfeito com os limites que ele não cessa de transgredir. É uma espécie
de “grande corpo popular da espécie” (Bakhtin), um corpo eternamente renascente:
grávido de uma vida a nascer ou de uma vida a perder, para renascer ainda (LE
BRETON, 2011, p.47).
O corpo da sociedade medieval não se encontra separado do que seria o corpo grotesco
carnavalesco. Eles estariam ligados, existe um vínculo entre eles, que se complementam. Já
27
“na modernidade haveria uma separação do cosmos, marcando dessa forma também a
distinção entre um homem em relação ao outro. O individualismo ocidental levaria o homem
a esquecer a sua relação com a comunidade e o respeito às tradições, tornando-se um
„domicilio autônomo‟ conduzido por suas escolhas e valores“ (LE BRETON, 2011, p. 61).
Até meados da década de 70, o Maracatu Rural ainda era pouco conhecido e ainda era
considerado um brinquedo perigoso e violento que envolvia magia e por isso causava medo e
gerava distanciamento: “Segundo os próprios maracatuzeiros, quando saíam para brincar o
carnaval no sábado, não sabiam se voltariam na terça-feira. Os caboclos portavam facas na
cintura e até armas de fogo. Nas suas apresentações, registravam-se muitas brigas, com
feridos e até mortos” (MEDEIROS, 2005, p.62).
O espírito contraventor dessa brincadeira estava presente, sem haver uma preocupação
em seguir regras que não fossem as do próprio brinquedo. Apesar de hoje ser uma brincadeira
oficial, por imposição da Federação Carnavalesca de Pernambuco, percebe-se no Maracatu
Rural a preservação do caráter de resistência, característico de uma brincadeira constituída
por cortadores de cana-de-açúcar que falam , cantam e dançam as dificuldades de se viver
numa região onde a seca impera e o meio de subsistência se encontra em declínio. É fato que
“a manifestação cultural do trabalhador da cana-de-açúcar, passou de algo desconhecido,
selvagem, primitivo, assustador, misterioso, para o símbolo do carnaval pernambucano e de
pernambucanidade, em menos de duas décadas” (MEDEIROS, 2005, p.28).
Figura 9
28
O corpo grotesco, diz Bakhtin, não é demarcado do resto do mundo, não é fechado,
consolidado, nem totalmente pronto, mas ultrapassa-se a si mesmo, supera seus
próprios limites. Enfatizam-se as partes do corpo onde este está, seja aberto ao
mundo do exterior, seja ele mesmo no mundo, isto é, nos orifícios, nas
protuberâncias, em todas as ramificações e excrementos: bocas abertas, órgãos
genitais, seios, falos, intestino grosso, nariz (BAKHTIN, s.d, p.35 apud BRETON,
2011, p.47).
33
No conto, a Mulher Esqueleto é fisgada por um anzol e se vê emaranhada na linha da vara de pescar do
pescador. Esse conto será abordado no capítulo três, pois o mesmo serviu de estímulo para construção da
dramaturgia do espetáculo Cravo do Canavial.
30
popular, nos direcionamos a um contato ainda maior com questões referentes à ancestralidade,
ritualidade e ao universo arquetípico.
Em suma, as características do grotesco, da relação de inteireza, e da relação arquetípica
com a morte, fomentaram a discussão e a reflexão em sala de ensaio com os atores à medida
que encontramos traços similares entre tais princípios e os presentes no universo da
brincadeira popular. Por isso experimentei alguns desses princípios materializados em
dinâmicas durante o processo em sala de ensaio com o objetivo de atingir lugares outros que
dizem respeito a um corpo que se faz memória. Por exemplo, o fato do Butô se inspirar em
“imagens arquetípicas, que nos ligam ao sagrado, ao cosmos, que nos ligam à nossa origem,
ao útero da terra, da mãe”, me fez idealizar a „dinâmica do barro‟, relatada anteriormente.
Outra relação que se pode traçar entre os princípios do Butô e o processo do Cravo do
Canavial está na própria imagem que se tem do brincador que aos setenta, oitenta anos,
vestem suas „figuras‟ com tamanha leveza e desenvoltura, acentuando ainda mais a percepção
da relação tempo-espaço diferenciada na brincadeira. Na Dança Butô, temos a referência de
Kazuo Ohno, um dos nomes de maior expressividade dessa manifestação artística:
Mostrar em cena um corpo de um dançarino como Kazuo Ohno, que com mais de
90 anos, com uma idade talvez avançada para dançar na nossa concepção
cronológica do tempo, ainda pode trazer a leveza e a agilidade do gesto, é uma
lição legada pelo butô, ao revelar a possibilidade de dançar, mesmo que não
sejamos tão jovens na idade cronológica. Também nos deixa o legado de que a vida
continua a vibrar, desde que estejamos disponibilizados a nos abrir ao mundo, a
abdicarmos do enclausuramento na apatia, no isolamento, na mesmice. É possível
mudar, por mais que a maturidade avance. Sempre há tempo para inovar,
transformar de alguma maneira a nossa condição existencial. São nesses possíveis
que o butô se debruça e se constitui (TIBÚRCIO, 2009, p.7).
31
Figura 10
É preciso dançar com a alma. Quando ficamos velhos, não quer dizer que se
acabam as experiências de vida. E, mesmo sendo jovens, podemos ter profundas
experiências. Não adianta ficar pensando, preocupando-se com o que vai dançar.
Sinta a vida dentro de você. Dance a partir desse sentimento. (OHNO apud LUISI
e BOGÉA, 2002, p. 98)
Uma criança aos oito anos, já caboclo mirim, sabe o seu papel na brincadeira, os passos que
precisa executar para evoluir na coreografia e respeita a seriedade que a envolve. Tradição,
que herdou do pai, do avô. Está na memória, memória de um corpo que brinca Maracatu
Rural, no caso do Cambinda, há mais de cem anos, que carrega a ancestralidade tatuada em
seu corpo de uma herança indígena e africana. Um corpo-memória. Reforço importância de
traçar tais relações, pois para mimetizar as „figuras‟ vestidas pelos brincadores populares é
preciso entender o corpo desse brincador, a sua relação com esse corpo e com a brincadeira
em si:
Não se pode analisar um fenômeno cultural separado do meio em que surgiu. As
manifestações populares expressam uma ideologia, uma visão de mundo e,
portanto, negar isso é supor que existe arte sem participação dos autores que
expressam nela a sua relação com o mundo, os seus conflitos (GUARALDO, 2010,
p. 53).
É um corpo brincante que canta, dança, toca e veste „figura‟, um corpo que se faz memória e
que será „vestido‟ por outro corpo que também carrega todo um referencial em sua memória
muscular. A fim de aprofundar essa reflexão trago à tona o conceito central da obra do
sociólogo Pierre Bourdieu. Àquilo que o autor chama de habitus: “processo de registro e
renovação de tudo o que nós e nossos antepassados vivemos” (ALVES, 2006, p. 45). De um
lado a história que se acumula nas coisas durante o tempo, por exemplo, em monumentos, em
livros, etc; e de outro a história incorporada em habitus que reaviva e atualiza a „história feita
coisa‟:
O princípio da ação histórica – a do artista, do erudito ou do governante, assim
como a do operário ou do pequeno funcionário – não é um objeto que se confronta
32
com a sociedade como um objeto constituído pela exterioridade. Ele não reside
nem na consciência, nem nas coisas, mas na relação entre dois estados do social, ou
seja, entre a História objetivada das coisas, na forma de instituições e a História
encarnada nos corpos, sob a forma desses sistemas de disposições duráveis que
chamamos habitus. O corpo está dentro do mundo social, mas o mundo social está
dentro do corpo (...) (BOURDIEU, 1982, p. 40 apud ALVES, 2006, p.46).
Baseada na obra de Bourdieu, Alves (2006) aborda o habitus como um dos fios
condutores da sua pesquisa, tomando como referência a hexis corporal, que diz respeito ao
gestual, a postura. Diz respeito à como se coloca no meio, suas relações incorporadas
inconscientemente ao longo de sua trajetória, de sua história (ALVES, 2006). Ou seja, ao
longo da história de sua vida, de geração em geração, o individuo vai tatuando seu corpo e
revelando tais marcas nas ações de seu cotidiano: “Seria então o que há de comum entre o
passado e o presente, em termos de gestos, crenças, rituais, saberes, costumes, disposições
adquiridas, e que estão presentes na individualidade de cada sujeito individualcoletivo. Logo
entendemos que a corporeidade de cada um é também constituída pelo „habitus‟
individualcoletivo” (ALVES, 2006, p. 47).
Sobre isso, lembramos de Vaz (2001, p.59), quando diz que “memória e história se
recolocam também no corpo. Seja nos gestos miméticos que nos inscrevem numa
tradição, seja nas marcas pessoais e intransferíveis que carregamos em nossos
corpos”. Trata-se de um sistema mutável, como produto da história ao entrar em
contato com experiências novas faz-se afetado por elas (ALVES, 2006, p. 47).
Desde o primeiro dia de trabalho com os atores a condução foi direcionada para esse
encontro da memória de pele de cada um, da história de cada um34, para que de algum modo
tal história confluísse com a pele das „figuras‟ que seriam posteriormente mimetizadas.
Partimos do princípio de que encontrar equivalências dessas „figuras‟ do Maracatu Rural no
corpo do ator, a fim de desenvolver a aplicação da Mimese, pressupõe um despertar corpóreo
da própria ancestralidade desse ator. Um dos atores que participou da primeira etapa do
processo, George Holanda, apresentou o seguinte relato escrito depois do primeiro dia de
trabalho:
(...) Fomos criando um estado de jogo em que os olhares e os contatos foram se
tornando confidentes, e que, ainda que muitos já se conhecessem de outros
momentos, passamos a construir uma nova relação. E a cultivar uma energia
comum. É verdade que esse nosso brincar é diferente do gozado pelos senhores que
dançam o maracatu, afinal, era a nossa maneira de brincar, mas também sinto que
de alguma forma também era similar, ou melhor, havia uma equivalência entre o
que experimentamos e o que vivenciam aqueles senhores que dançam o maracatu,
como nos explicou Carla. Após criarmos esse estado, nos voltamos ainda mais para
nossa história individual. Carla havia nos pedido que levássemos um objeto que
34
No terceiro capítulo abordo o processo de construção da dramaturgia cênica do espetáculo Cravo do Canavial,
relacionando a sua composição a uma dramaturgia „de‟ memórias, que envolvem as minhas, as dos atores e as
dos brincadores do Cambinda Brasileira.
33
fosse precioso para nós e que fizesse parte da nossa história de pele. Mergulhamos
na nossa história para trazer, através de movimentos, as lembranças impregnadas
nestes objetos. (...) Como para aqueles cortadores de cana, o maracatu faz parte da
história deles desde a infância, para nós, na mesma ideia de equivalência, aqueles
objetos nos remetem a nossa história (Relato do ator GEORGE HOLANDA).
Contudo antes de aprofundar essa linha de discussão que envolve o corpo do brincador e
o corpo do ator, que também se faz pesquisador, vale ressaltar mais algumas características
presentes no Maracatu Rural para que determinadas questões fiquem mais claras
posteriormente. Características que irão fomentar ainda mais discussões relativas à relação do
corpo desse brincador com o brinquedo em si, referente ao cotidiano desses brincantes que se
faz extraordinário (DAWSEY, 2005) por natureza.
35
Entrevista com Zé de Carlos, administrador do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, realizada por Carla
Martins. Fevereiro de 2011. Ateliê do Cambinda Brasileira. Nazaré da Mata.
35
disse Zé de Carlos, reclamando da falta de incentivo e da ida de muitos pesquisadores que
„garimpam‟ o que precisam e não voltam mais. A fim de me precaver, caso Zé de Carlos, o
administrador, tenha mandando uma „indireta‟ para essa pesquisadora, tratei logo de prever no
projeto, ao ser contemplado com o prêmio Myriam Muniz, uma apresentação lá no Engenho
do Cumbe. Só por via das dúvidas36.
Vale ressaltar, no entanto, que se por um lado o crescente número de agremiação
preocupa os brincadores, por outro o crescente apoio à brincadeira possibilitou que fosse
criado, em Nazaré da Mata, um grupo de Maracatu Rural composto só por mulheres. Numa
brincadeira onde era proibida a participação feminina cuja função era direcionada apenas
para confecção das indumentárias das „figuras‟, junto com os homens, e para fazer a comida
dos brincadores durante as festividades, trata-se de mudança bastante significativa 37.
Depois desse parêntesis, voltemos às Sambadas e aos Cortejos. Apesar de podermos
analisar tais momentos separadamente por possuírem características tão específicas, pode-se
dizer que tanto as sambadas quanto os cortejos fazem parte do dia-a-dia dos brincadores,
configurando-se em desdobramentos de seu cotidiano e até se confundindo com ele. Os
corpos dos brincadores se transfiguram no momento da brincadeira fruto não de um
descolamento, mas de um desdobramento desse cotidiano. A separação e/ou amalgamento
entre cotidiano e extracotidiano tem sido bastante discutida não só na área das Ciências
Sociais, mas também na área das Artes Cênicas, reverberando em questões referentes à
teatralidade e à espetacularidade, e como veremos, no segundo capítulo: performance social e
performance estética.
A Etnocenologia aponta duas noções distintas de jogo social: a teatralidade e a
espetacularidade, sendo a primeira relacionada ao cotidiano e a segunda ao que extrapola o
dia-a-dia, como as competições de Maracatu Rural que acontecem durante o carnaval, por
exemplo. Alguns autores utilizam o instrumental teórico da etnocenologia para abordar as
brincadeiras populares. Guaraldo (2010), ao tratar da relação do corpo do artista cênico com o
corpo do sambador de cavalo-marinho, relaciona o pensamento proposto por Bião38, para
afirmar o caráter complementar entre a teatralidade e a espetacularidade:
36
Desdobramentos no terceiro capítulo.
37
Ressalto essa informação referente à existência de um Maracatu Rural composto só por mulheres, devido
relevância de tal informação para o processo de construção do espetáculo Cravo do Canavial , embora na
ocasião da conversa citada não houvesse nenhum intenção de que isso fosse ocorrer.
38
Segundo Bião (2007) a experiência e a expressão de artistas provenientes de diversas formas de espetáculos e
de culturas distintas somada à experiência de sistematização desses processos de trabalho relacionados ao
ambiente acadêmico servem de suporte teórico para a etnocenologia. “Esse horizonte também pode se beneficiar
das contribuições da antropologia teatral, dos estudos de performance e das ciências humanas e sociais aplicadas,
particularmente em suas vertentes dedicadas à antropologia do imaginário (...) (BIÃO, 2007, p. 33-34).
36
Segundo Bião, a teatralidade é o resultado da tradição vivida de uma comunidade.
Diz respeito a ritos rotineiros de interação que incorporam todas as mudanças
sociais. Vive-se dessa forma, não se pensa mais nisso. Nós interpretamos nossos
papéis e é tudo. É o trágico, o destino e a fatalidade. A espetacularidade, por sua
parte, representa todas as tentativas de manipular a sociedade, de organizá-la, de
compreendê-la, na qual os resultados são formas espetaculares de interação social.
É a cena dramática, o universo da ação humana sobre o mundo. É, enfim, o cômico
e a moeda de troca que se dispõe para negociar com as duas formas de jogo social.
É o que epifaniza o substrato lúdico da vida social (OLIVEIRA, 2006, p. 40 apud
GUARALDO, 2010, p. 23).
A teatralidade seria aplicada às pequenas interações rotineiras, nas quais as pessoas agem para
o olhar do outro de modo consciente e ao mesmo tempo sem tanta consciência ou nas palavras
de Bião (2007) „confuso‟, “onde não há uma distinção clara entre „atores e espectadores‟, por
desempenharem todos simultaneamente os dois papéis” (BIÃO, 2007, p.35). Já a
espetacularidade é aplicada “às maiores interações extraordinárias, quando coletivamente a
sociedade cria fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm
consciência clara como atores e espectadores” (2007, p. 35).
Pode-se identificar fricção entre esses dois territórios - o da teatralidade e o da
espetacularidade – ao analisar tanto o momento das Sambadas quanto o dos Cortejos. Nas
Sambadas e até certo ponto durante os Cortejos, sem caráter competitivo - apesar do último,
apresentar uma separação maior entre quem brinca e quem observa - „ator e espectador‟ estão
misturados em uma mesma fissura espaço-temporal; mas ao mesmo tempo os brincadores
carregam nesses momentos, certa espetacularidade, uma vez que o brincador não se encontra
desprovido de uma „amostração‟ de quem está sendo observado. Há uma intencionalidade de
realizar uma ação que é de certa forma observada (GUARALDO, 2010, p.23). Já durante os
Cortejos de cunho competitivo o caráter de espetacularidade se faz mais acentuado.
A fronteira entre o teatral e o espetacular, entre o cotidiano e o extracotidiano, no
universo das manifestações populares, encontram-se redesenhadas. O estado de jogo
característico da brincadeira está tão „arraigado‟ no cotidiano desses brincadores, a ponto da
linha que separa o „brincador a paisana‟ e o brincador vestido com sua „figura‟,
desempenhando sua função no brinquedo, ser muito tênue quase imperceptível. O brincador
carrega uma „amostração‟ natural que é facilmente acionada por se tratar de „lugar‟ tão
próximo ao seu dia-a-dia. O ideal, então, talvez seja pensar o cotidiano e o extracotidiano em
termos complementares e não excludentes, como apontou Guaraldo (2010), o que nos faz
imaginar um corpo que ocupe esses dois lugares, um corpo „entre‟, que condense nele mesmo
o que seria cotidiano e extracotidiano. Pensar que o corpo do brincador popular ocupando esse
lugar, que se materializa no „entre‟, materializa-se na fricção entre esses dois territórios. Um
37
corpo que se faz grotesco, em seus transbordamentos cotidianos, acentuando o caráter
extraordinário, espetacular, do dia-a-dia, e que traz como vestimenta tatuada na própria pele a
ancestralidade materializada na relação entre as „figuras‟ no terreiro da brincadeira de um
tempo cultuado entre um gole e outro de azougue.
É nesse corpo que os atores-pesquisadores precisarão „habitar‟. Acredito ser possível
traçar similaridades entre esse corpo e a sua relação com a brincadeira com o corpo do artista
cênico e a sua relação com o treinamento e com o próprio jogo teatral. Nos depoimentos do
Mestre do Cavalo Marinho Estrela do Oriente (PE), Inácio Lucindo, e do ator do Lume,
Ricardo Puccetti, encontramos pistas de que forma a brincadeira repercute no corpo de
artistas cujas trajetórias se fazem diferentes, mas que encontram intersecções ao relacionarem
vida e arte:
Corpo livre, prazer de seguir os impulsos internos e a preocupação de se conectar
com o outro e com o espaço. Ver o mundo de ponta cabeça e estar aberto para
novas possibilidades de agir nesse mundo. Brincar é lidar com o caos e de dentro
dele fazer surgir em quem vê ou participa da brincadeira aquela vontade de
também estar jogando com o corpo todo (PUCCETTI in folder Conexão Cavalo
Marinho, 2011).
Acredito ser possível traçar similaridades, por exemplo, a partir da relação entre as
Sambadas e o treinamento do ator; pensando treinamento como „combustível‟39, ou seja, algo
que alimenta o seu „corpo-mente-espírito‟, onde ele (o ator) aprende a lidar com suas energias
sutis a fim de qualificar o momento do „estar em cena‟. Tanto o brincador quanto o artista
cênico tem em seu cotidiano práticas referentes à preparação do seu corpo (pensando aqui,
voz como corpo) para participar de um espetáculo ou, no caso dos brincadores, preparar-se
para um Cortejo. Tal qual a relação dos atores, guardando as devidas proporções, os
brincadores estabelecem nas Sambadas o „momentum‟ desse treinamento, desse
„esquentamento‟. Há, nas Sambadas, uma consciência do ato de jogar e um distanciamento
mais acentuados – pois, esse é o „lugar‟ de aprender e ensinar elementos da brincadeira – a
imaginação flui entre os brincadores e há o fator do imprevisível, dando como exemplo, as
disputas de loas que se dá entre Mestres de diferentes Maracatus e as disputas entre os
Caboclos de Lança, que dançam disputando lugar no terreiro. Contudo, apesar das Sambadas
39
Faço referência ao trabalho de treinamento desenvolvido pelo Lume, que considera o treino como o
combustível, o alimento do ator. Ainda nesse capítulo, abordo esse conceito, especificando-o detalhadamente.
38
também se caracterizarem como espaço de jogo40, nesse momento o brincador prepara seu
corpo aperfeiçoando suas manobras e loas, treina para os desfiles, Cortejos livres e oficiais,
como expliquei anteriormente.
Navarro (2009) aborda a construção do corpo nas danças populares e no teatro
contemporâneo, destacando a singularidade desse corpo para extrair fundamentos de
procedimentos técnicos de criação cênica. A relação entre os atores e o processo criativo
apontado por Navarro (2009) reverbera no processo do Cravo do Canavial:
Em toda a rede de manifestações da cultura popular seus intérpretes trazem uma
história de vida que revela a necessidade de resistir a muitos embates. Antes de
tudo são corpos guerreiros. Vivenciados como personagens, percebemos que o
corpo só se ajusta na linguagem quando adquire densidade – um tônus elevado que
apresenta elasticidade. Os significados vida-festividade se articulam através do
movimento, fazendo o corpo soltar-se, entregar-se, tendo como premissa o “tônus
da resistência” que se mobiliza com o “tônus de apoio” (RODRIGUES, 1997, p. 75
apud NAVARRO, 2009, p. 99-100).
E ainda dá uma pista de tal relação envolvendo os brincadores e os atores, como abordo a
seguir traçando uma relação entre o „esquentamento‟ presente nas brincadeiras populares e o
treinamento do ator.
O que é esperado do ator é que ele tenha condições de estar presente por completo
durante o trabalho que está estruturado na experiência presencial e que quer
trabalhar com dados, cujo desdobramento depende dessa qualidade de estar
presente como um jogador, tanto ao pesquisar o material, como ao acessá-lo em
laboratório de criação cênica e ainda no ato da apresentação (NAVARRO, 2009,
p.80).
Ao Ator: Tradinari!
40
Citando mais uma vez, a visão apontada por Kosovski (2001) referente ao jogo, fazendo parte do cerne da
manifestação de teatralidade. Jogo abordado
41
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
39
„ensinar o falcão a caçar aquilo que ele comumente não caça‟. Ferracini ressalta que apesar de
existir uma leitura de treinamento como enquadramento, tal possibilidade não se faz única,
mesmo que esteja arraigada culturalmente, acentuando que não se trata de uma leitura errada,
mas que a partir da ideia de „tradinari‟, treinamento pode ser analisado também como a
intensificação de algo:
Etimologicamente dá uma ideia de potência também. No Lume nós utilizamos o
treinamento com a ideia de intensificar. Lugar de experimentar-se, de transbordar-
se, de um transbordamento que visa um aumento de potência não só do seu corpo,
mas também quando você estiver em cena, ou seja, um aumento de potência de
coletividade. Treinamento não é acúmulo de conhecimento, formatação ou
adestramento corporal, mas no nosso modo de entender e etimologicamente
também, existe um deslocamento de treinamento ser uma potencialização de si. No
sentido que o Foucault traz de cuidar de si, que é um espaço-tempo para você se
experimentar, enquanto cuidado de si mesmo42.
Nessa livre associação do falcão à figura do ator, „tradinari‟ seria então estabelecer
uma linha de fuga daquilo que você já é. Buscar, ampliar, transbordar aquilo que você já é.
Não significa esquecer algo e fazer outra coisa, mas intensificar aquilo que já se faz. O
treinamento seria „o combustível do ator‟, onde ele trabalha as energias sutis, prepara o seu
corpo, pondo a energia em trabalho, podendo se desenvolver por um processo que parte de
uma técnica sistematizada e codificada (técnica de aculturação), ou de uma busca individual:
conectando-se com suas próprias energias, o ator aprende a organizá-las no espaço e no
tempo. No Lume, o treinamento pré-expressivo estaria associado à técnica pessoal de
representação, onde o ator trabalha com suas energias potenciais (FERRACINI, 2003).
O “treinar” se confirma muito mais como uma postura ética na relação com o
corpo, com o espaço, com as relações sociais, com suas próprias singularidades.
Um atuador deve estar em constante treinamento ou, em outras palavras: um
performador deve estar na busca constante de fissurar seus limites de ação
procurando uma potência possível de expressão, seja em uma sala de trabalho, seja
no ensaio de um espetáculo, seja dentro do próprio espetáculo (FERRACINI, 2007,
p.03 apud GUARALDO, 2010, 54-55).
No trabalho do ator, fala-se muito sobre um „estado cênico‟ que o intérprete precisa
atingir quando em momento de representação. Um ator que não interpreta, mas representa.
Um ator que aprende a articular suas ações físicas e vocais no espaço, manipulando sua
energia a fim de trabalhar questões referentes à dilatação corpórea e à presença cênica. O ator,
segundo os princípios do Lume, compromete-se não apenas com o seu corpo, mas com o seu
corpo-em-vida, “um corpo em constante comunicação com os recantos escondidos, secretos,
belos, demoníacos e líricos de nossa alma” (FERRACINI, 2003, p.37). Para conquistar tal
42
Idem.
40
„estado‟, que está associado a questões de presença cênica e dilatação corpórea, o ator deve
aprender a manipular a execução de suas energias potenciais em relação às ações físicas e
encontrar caminhos corpóreo-musculares para que sua ação integre a sua pessoa dentro de
uma totalidade psicofísica (FERRACINI, 2003). E, é através do treinamento pré-expressivo
que esse ator „não-interpretativo‟43 aprende a manipular sua energia corpórea atingindo o que
seria um estado de corpo-em-arte.44 Mais uma vez estamos diante da relação dicotômica que
seria o corpo desse ator em estado cotidiano e o seu corpo em estado cênico, ou melhor
dizendo em estado extracotidiano.
Nessa perspectiva entre a vida e a arte, o cotidiano e o extracotidiano; a representação
cênica estaria a princípio vinculada ao estado que extrapola o cotidiano. Contudo em nome da
implosão destes dualismos em artes, Renato Ferracini cria o conceito de corpo subjétil (s.d).
O objetivo seria o de recriar um comportamento corpóreo que “habite um espaço „entre‟: nem
um corpo somente mecânico e formalizado, nem um corpo somente vivo” (FERRACINI,
2004, p. 119). Ou seja, um mesmo corpo que associe técnica e organicidade, forma e
conteúdo, habitado por comportamentos cotidianos e extracotidianos. Ao pensar em um corpo
integrado, Ferracini (s.d) diz ser necessário lançar o olhar para esse corpo em comportamento
cotidiano, “verificando nele uma certa potência artística, um campo de intensividades que
pode ser trabalhado e transbordado nele mesmo” (s.d, p. 119). Ou seja, ensinar o falcão/ator a
caçar algo que ele ainda não caça - potencializando o que ele já faz através do treinamento -
pressupõe intensificar o cotidiano e não ignorá-lo, a fim de eliminar no corpo desse
falcão/ator vícios e clichês: “Se o treinamento é um transbordamento de si mesmo do corpo,
para o corpo, no corpo, com o corpo e com o seu corpo enquanto linha força a gente só vai
poder transbordar e ir para um suposto extracotidiano se utilizarmos o cotidiano como
matéria” 45.
E é o trabalho nesse corpo, para esse corpo e com esse corpo que proporcionará seu
comportamento-em-arte, um corpo-em-vida. Posso dizer que essa pesquisa é a base
de investigação de todos as linhas de trabalho do Lume. Uma busca de
transbordamento das potencialidades e intensividades do corpo, no corpo e para o
corpo. Uma pesquisa helicoidal que busca transbordar o corpo nele mesmo
(FERRACINI, 2004, p.119).
43
Nos estudos do Lume, o Ator não-interpretativo seria àquele - “que se baseia em ações físicas e vocais
orgânicas e codificadas para sua criação, independente do texto dramatúrgico” (FERRACINI, 1999, p.45)
44
Vale ressaltar que o conceito de „corpo-em-vida‟ aproxima-se do conceito de corpo-em-arte e que ambos,
dizem respeito ao „corpo- subjétil‟, extracotidiano, como mencionarei mais adiante.
45
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
41
Vale ressaltar que Luis Octavio Burnier, fundador do Lume, já trabalhava com os
princípios referentes ao treinamento pré-expressivo e posteriormente Renato Ferracini,
retoma-os reafirmando os parâmetros de atuação do Lume e criando seu conceito de corpo-
subjétil. O próprio nome subjétil carrega característica desse corpo integrado, cujo insight,
segundo Ferracini (s.d) vem da leitura da obra de Derrida chamada Enlouquecer o Subjétil,
que por sua vez retomou a palavra inventada por Artaud, “aquilo que está no espaço entre o
sujeito, o subjetivo e o objeto, o objetivo. Nem um nem outro, mas o espaço “entre”
(FERRACINI, s.d, p.120). Outro motivo teria sido a semelhança da palavra subjétil à projétil,
“o que nos leva à imagem de projeção, para fora, um projétil que, lançado para fora, atinge o
outro e também se auto-atinge” (p. 120).
Essa aproximação pode ser realizada já que “subjétil” é uma palavra intraduzível,
pois, como foi supostamente inventada por Artaud, não existe tradução possível em
outras línguas. É por essas questões que a imagem de corpo-subjétil surgiu-me de
maneira natural para dizer de um corpo em Estado Cênico, um corpo em arte, pois
o corpo-subjétil, estando primeiramente nesse “entre” objetividade – subjetividade,
dualidade que poderíamos facilmente levar para forma expressão ou mecanicidade
vs.“vida”, ou mesmo comportamento cotidiano vs. comportamento extracotidiano
(FERRACINI, s.d. p.120).
Vale ressaltar, contudo, que é preciso com relação ao treinamento energético ter atenção
redobrada, pois uma vez cansados os atores começam a pré-meditar suas ações. “O ator deve
ter vontade suficiente para superar a si mesmo” (FERRACINI, 2003, p.139). Trocar com
outro dando e recebendo a energia dá combustível ao ator para não desistir.
(...) é muito importante o contato, a relação. Não de toque, mas de vibração. Isso
porque a relação se torna alimento para realização de ações desconhecidas. Se eu
me permito „ouvir‟ o outro e sua vibração, de alguma forma aquilo irá me
transformar e transformar a qualidade das minhas ações. Da mesma forma cada um
deve estar aberto a dar, doar, para que se possa estabelecer um diálogo (HIRSON,
2006, p. 68).
O que vai fazer com que se atinja o estado de exaustão, além do comprometimento dos
participantes, é trabalhar com uma condução que proponha a variação de intensidade dos
movimentos, ritmos diferentes, mudanças de dinâmicas que provoquem diferentes reações no
corpo do ator. Durante esse treinamento, paradas bruscas são provocadas pelo condutor, a fim
de que os atores segurem internamente a sensação. Apesar da imobilidade, eles devem
manter-se pulsando internamente, como uma „panela de pressão‟ prestes a estourar. “Esse é o
46
Navarro em sua tese associa a coluna vertebral a um „religare‟ entre o mundo divino e o terreno: ”A coluna
vertebral é abordada como sendo análoga ao mastro votivo no corpo de cada ator e o conjunto dos corpos é o
mastro votivo para todos os corpos. Para se fazer essa analogia da coluna vertebral com o religare de dois
mundos, como céu e terra, natural e sobrenatural, dentro e fora, conforme observado nas festas sagradas do
congado ou nos estados místicos do oriente, é necessário que se crie um universo a ser conectado enquanto
recurso para construção de uma linguagem poética, já que para o ator não haverá uma situação religiosa e sim
uma situação teatral, resguardando a diferença entre a primeira, que quando vivenciada provoca uma alteração de
status social para o indivíduo ou para o grupo que passou pelo ritual, e a segunda, pois na situação teatral não há
esta mudança de status. Portanto, se a coluna vertebral simboliza esse religare entre dois mundos, para o filho de
santo de um lado está o humano e de outro está o divino, já para o contexto cênico, de um lado está o ator e do
outro lado está um universo imaginário. Esse universo imaginário estará relacionado à memória (...)”
(NAVARRO, 2009, p. 101).
43
primeiro contato do ator com a variação de fisicidade, na qual ele omite os elementos externos
da ação, guardando sua sensação e sua corporeidade” 47 (FERRACINI, 2003, p.139).
Vejamos a seguir o depoimento da atriz Potyra Pinheiro:
Pronto! E o resto da lasquinha de pele de pé se vai! Sinal de trabalho corporal
iniciado! Sensação boa de fervilhar de ideias e corpo ativado. Será que vou dormir
essa noite? Vou sonhar em ritmo de Maracatu! E olhe que é só o começo! Final de
encontro e todos ofegantes, suados, extasiados. O fôlego havia ficado ali naquela
sala, entre os passos aprendidos, divididos e compartilhados. Ficou lá na
construção improvisada de ações, no eco das falas. Na exaustão. Apareceu de tudo,
de coronéis a malandros espertos, uns sofridos e, outros guerreiros brabos. Todos
em direção a sincronia do movimento com a alma (Relato da atriz POTYRA
PINHEIRO, sobre segundo dia de treinamento/‟esquentamento‟).
47
Tanto o conceito de corporeidade quanto o de fisicidade serão explicadas de maneira mais aprofundada no
subtítulo referente à Mímesis Corpórea.
48
“Os Reisados são formas de dramatização do cotidiano ou de transposição para a forma dramática de
romances e xácaras, formas literárias populares tradicionais em verso. Cada assunto dá origem a um episódio
44
e como encontramos alguns elementos desse folguedo no Maracatu Rural, tomo emprestado
dois termos („banco‟ e „esquentamento‟) desta brincadeira, para definir como se deu o
treinamento do ator no Cravo do Canavial. Neste sentido Guaraldo (2010) nos lembra:
(...) Quase todos os brincadores de cavalo marinho brincam maracatu rural. É
comum encontrar na fala dos brincadores uma forte relação de complementaridade
entre essas duas formas de samba. Em uma das possíveis leituras, o maracatu
relaciona-se com o Diabo, enquanto o cavalo marinho relaciona-se com o que é do
Divino (GUARALDO, 2010, p.22) 49.
conciso que é representado em meio a uma série de episódios que, por sua vez, vêm constituir o folguedo”
(BENJAMIN, 1989 apud ACSERALD, 2002, p. 44).
49
O personagem Vendedor de Figuras do espetáculo Cravo do Canavial apresenta características das duas
brincadeiras, conforme relato no capítulo três.
45
humano não é somente corpo físico, mas um corpo físico vivo. O ator-pesquisador deve ter
esse corpo desenvolvido e preparado, ou seja, deve conhecer o seu universo humano e
energético.
Em suma, os corpos dos brincadores carregam essa característica do „entre‟, onde os
níveis cotidiano/extracotidiano se confundem, não existindo uma fronteira demarcada entre
eles. No corpo do brincador - sob o olhar do grotesco (LE BRETON, 2010) presente nas
festividades populares - há um transbordamento, fazendo com que ele (o corpo) ultrapasse a si
mesmo. Nem apenas cotidiano, nem tão somente extracotidiano. Um corpo integrado que para
despontar, no caso dos atores, torna-se necessário desautomatizá-lo. Nas manifestações
populares, onde sujeito e brincadeira se misturam, essa integração se dá de forma natural,
levanto então a hipótese desse treino proposto por Ferracini (s.d), cujo intuito é o despontar
desse estado subjétil, apareça sob o nome de „esquentamento‟ nas brincadeiras populares. Ao
refletir sobre o momento do „esquentamento‟ no universo dos brincadores populares,
Ferracini argumenta:
O brincador faz um uso poético do próprio cotidiano, do próprio corpo que ele tem,
no espaço tempo da brincadeira. O brincante já tem um corpo preparado pelo
trabalho. Utiliza o próprio trabalho como Intensificação de si. A ideia seria não
pensar no cotidiano do brincador ou da brincadeira como algo separado, mas dois
universos que se sobrepõem. Criam, dessa forma, um universo bem mais
interessante, poético, complementar 50.
50
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
46
1.4. A „POESIA DO ATOR‟ E AS ETAPAS DA MÍMESIS CORPÓREA
Da mesma forma que existem muitos teatros, existe também diversos processos, daquilo
que Bonfitto (2002) chama de „construção de Seres Ficcionais‟. O diferencial está na matriz
escolhida como ponto de partida e em como ela será utilizada para fomentar o trabalho do
ator. Pensando no „como‟, uma vez que a matriz é o Maracatu Rural – chegamos à Técnica da
Mímesis Corpórea. Tal qual sistematizada pelo Lume, é definida como corporificação e
codificação de ações físicas e vocais, o que estabelece um amalgamento entre a discussão do
conceito de ator-compositor (BONFITTO, 2002), e dos possíveis procedimentos adotados em
seu trabalho de composição, e a Técnica da Mímesis - pois a mesma tem também como eixo
condutor as ações físicas, só que, no caso, a recriação delas. Trata-se de um processo de
recriação da corporeidade percebida no cotidiano, numa tentativa de estudar „diferentes
estados‟ de um corpo vivo, em ação no mundo, não podendo então ser confundida com
simples „imitação‟ (FERRACINI, 2004). Adotar os procedimentos da Técnica da Mímesis - a
partir da aplicação de suas etapas: observação, codificação / memorização e teatralização -
seria uma tentativa de “recriar a corporeidade do ator ou criar uma nova corporeidade entre o
corpo do ator e o corpo estudado”, como aponta Ferracini em sua tese de doutorado „Corpos
em Criação, Café e Queijo‟ (2004, p. 211).
Por corporeidade, entende-se o uso particular ou específico que se faz do corpo, a
maneira como ele age e faz, a dinâmica e o ritmo de suas ações físicas e vocais, ou seja, como
ele intervém no espaço e no tempo (FERRACINI, 2004). “A corporeidade é a maneira como
as energias potenciais se corporificam, é a transformação destas energias em músculo, ou seja,
em variações de tensão. Esta transformação de energias potenciais em músculo é o que
origina a ação física”. (BURNIER apud FERRACINI, 2003, p.115). Pode-se estabelecer
então uma relação direta e complementar com o que seria a fisicidade: “parte mecânica pela
qual opera uma ação física”. “Enquanto a fisicidade é o corpo final e trabalhado da ação
física, a corporeidade é a sua alma” (FERRACINI, 2003, p.115). “Cabe ao ator a função de
“dar vida” a essa ação imitada, encontrando um equivalente orgânico e pessoal para a ação
física/vocal” (FERRACINI, 2003, p.202).
Tal discussão envolve a inter-relação corpo-mente-alma, apontada por Ferracini (2003).
Ao condensarmos questões referentes à fisicidade e a corporeidade, o ator consegue atingir
um estado de organicidade. Trata-se de “uma espécie de totalidade psicofísica”. Ou seja, da
fricção entre a fisicidade e a corporeidade, a ação é desenhada no espaço organicamente. Vale
47
ressaltar que, “por orgânico entende-se a capacidade de encontrar e dinamizar um
determinado fluxo de vida, uma corrente quase biológica de impulsos” (GROTOWSKI apud
FERRACINI, 2003, p.111). Organicidade está relacionada, então, a „verdade‟. Para ter
organicidade, o ator precisa estar pleno em cena. Mesmo tendo como ponto de partida uma
vivência externa – observação de terceiros ou de fotografias - a Mímesis propõe um mergulho
no subjetivo do ator, em seu imaginário.
Partindo do princípio de que a Técnica da Mímesis está diretamente ligada ao
entendimento do que seria ação física, eixo norteador dessa Técnica, atenho-me, por hora, à
sua conceituação e à de seus elementos constituintes. Não cabe aqui, contudo, fazer uma
descrição histórica, pois existem os registros bibliográficos do Lume 51 que dão conta dessa
demanda, sem falar que o próprio Bonfitto (2002) faz um relato, que vai de Stanislavski a
Barba, elencando os procedimentos do trabalho do ator que tem as ações físicas como fio
condutor de seu processo52. Burnier (2009) nomeia a ação física como a “poesia do ator”, a
menor célula representada pelo ator. O melhor esclarecimento do que seria a ação física,
contudo, parte do entendimento dos elementos que a antecedem e, por conseguinte a
constituem: intenção, élan, impulso/contra-impulso. Elementos esses que, fazem parte do
momento invisível da „célula mater‟, que é a ação física (FERRACINI, 2003).
A intenção nasce da musculatura, antes da ação se realizar no espaço. É como uma
vontade de agir sem ação. Podemos defini-la também, como uma tensão interna ou
um estado muscular em alerta. Para que essa tensão interna ocorra é necessário, no
mínimo duas forças de oposição. Essa oposição de forças, essa tensão interna, pode
ser chamada intenção (FERRACINI, 2003, p.102).
O élan seria: “Sopro de vida ou impulso vital, algo enigmático, conhecido, porém não
explicável que nos impulsiona à ação, à vida, por meio de ações.” Já o impulso usando Barba
e Grotovski como referências, Ferracini (2003) o descreve como algo interno, ainda invisível
externamente, algo que impulsiona a materialização no externo: “No caso do ator, a palavra
impulso toma um sentido particular de empurrar ou arremessar com força, de dentro. Esse
algo arremessado de dentro para fora vai posteriormente e imediatamente, tomar corpo e
transformar-se numa ação física orgânica” (FERRACINI, 2003, p.103).
Depois que os elementos que constituem a ação física (intenção, élan e impulso) passam
a ser trabalhados internamente acontece a materialização da ação no espaço, ou seja, o
movimento propriamente dito: “O acontecimento da ação no espaço, com itinerário e ritmo
51
Na bibliografia, encontram-se os títulos mais importantes referentes ao trabalho do Lume.
52
A relação autônoma do ator com o seu trabalho, proposta por Bonfitto (2002), permeará toda a experiência em
sala de ensaio com os atores-pesquisadores em Cravo do Canavial. O ator que é “autor de partituras em que
saber e fazer se harmonizam”. (2002, p. XV)
48
determinados. Por itinerário entende-se o „desenho da ação no espaço‟; e por ritmo, o
„desenho‟ dessa ação no tempo”(FERRACINI, 2003, p.105). E ainda sobre o movimento:
O movimento, então, seja enquanto “deslocamento espacial” seja enquanto
“elemento plástico”, e portanto moldável”, é constituído, de elementos que, uma
vez trabalhados, geram a ação. O movimento, nesse sentido, é um componente da
ação, o seu substrato. O movimento somente torna-se ação quando significa,
quando representa algo, quando se torna signo (BONFITTO, 2002, p. 108).53
53
Ao fazer relato sobre ação física, Bonfitto também relata os “elementos que quando trabalhados geram ou
levam a ação: Stanislavski (circunstâncias dadas, objetivos); Meierhold (direção, força, pressão, tração);Laban
(fatores de movimento); Decroux (atitudes plásticas); Brecht (deslocamentos plásticos e espacial)”; Tchékov
(qualidades ou espécies); Barba (deslocamento plástico e espacial)”. Com relação ao deslocamento plástico e
espacial pensado por Barba, eles servirão de âncora para argumentar sobre a escolha por trabalhar em sala de
ensaio com os movimentos das danças populares a fim de compor partituras, associado-os a aplicação da técnica
da Mímesis.
49
movimentos da ação original, por exemplo. O objetivo de trabalhar as ações, variando
fisicidades é tornar a execução das mesmas orgânicas. Vivenciei um exercício similar durante
oficina ministrada por Raquel Scotti Hirson, em fevereiro de 2011.
Vale ressaltar que a Técnica da Mímesis Corpórea é uma linha de estudo do Lume,
independente, que além de permitir a recriação de ações físicas e vocais a partir da observação
do „outro‟, também permite a recriação de „ações estanques‟ (FERRACINI, 2003), originárias
de fotografias e quadros que podem ser ligadas organicamente. E no processo da Mímesis a
partir de fotografias - como é o caso do material instrumental dessa pesquisa, no primeiro
momento de trabalho com os atores – existe uma preocupação ainda maior com questões
referentes à organicidade a partir da repetição das ações codificadas. E a preocupação não
está apenas em o ator adquirir organicidade individualmente, o que por si só já seria
desafiador, mas estabelecer um diálogo de „imitações‟ entre os atores que passe também pela
questão do estar vivo.
Por isso se faz necessário durante a aplicação da Técnica pôr essas matrizes em jogo,
estabelecendo inter-relações em relação ao outro ator, que consiste na terceira etapa de
aplicação da Técnica: a Teatralização. Por ora, vale entendermos um pouco mais sobre os
princípios que a regem, deixemos a reflexão e a aplicabilidade dessas etapas para os capítulos
seguintes.
Faz-se importante frisar que a Técnica da Mímesis Corpórea não pressupõe uma
separação entre corpo e voz. Há um tratamento diferenciado, mas muitas das observações que
devem ser realizadas quanto à postura corpórea podem ser aplicadas a voz. Ao observar uma
ação física o ator deve atentar para o todo e o detalhe com precisão, através de seus
componentes constitutivos: a intenção, o impulso, o movimento (tempo, espaço, força e
fluência) e o ritmo. Já a voz, deve-se levar em conta o foco vibratório, a intensidade (força e
volume), altura, espacialidade e musicalidade. O processo da Mímesis Vocal na primeira
etapa com os atores ficou comprometido, como explicarei mais adiante, por uma questão de
tempo de trabalho e de maturação dos atores dos elementos trabalhados em sala. Como
precisávamos passar por um processo de treinamento anterior e também de mergulho no
universo do Maracatu Rural desconhecido para a maioria dos atores-pesquisadores, os treze
encontros - dos quais o ultimo foi aberto para apreciação externa do processo - não foram
suficientes, ficando para a segunda etapa relativa à montagem do espetáculo um
aprofundamento técnico vocal. Chegamos a trabalhar alguns exercícios referentes à
„embocadura‟ com o músico, ator, e diretor musical do grupo Clowns de Shakespeare, Marco
França. Contudo sua participação se fez mais efetiva no momento da montagem.
50
Burnier (2009) aponta essa Técnica como uma ponte entre o treinamento do ator e a
representação, propriamente dita, ressaltando que a sua utilização não pressupõe um trabalho
de composição „finalizado‟. Ou seja, a Mímesis Corpórea é descrita nos registros do Lume
como um processo capaz de gerar diferentes resultados e suscitar reflexões outras,
dependendo da matriz escolhida e do trabalho constituído em sala de ensaio, motivando ainda
mais do ponto de vista investigativo. Trata-se de uma postura de busca, onde a troca de
experiências, o processo, será fundamental para o desenvolvimento do Objeto de Estudo.
“Alimenta-se, tão somente, de uma relação que afeta e é afetada. Uma relação-em-arte, zona
intensiva, que recria a vida em sua imensa capacidade de beleza” (FERRACINI, 2004, p.233).
Nos dois próximos capítulos discorro sobre processo criativo junto aos atores e também
assumo a função de encenadora e dramaturga do espetáculo Cravo do Canavial. A descrição
desse processo está associada diretamente ao aporte teórico da minha pesquisa. Com relação à
metodologia aplicada no processo com os atores propriamente dito, utilizo da flexibilidade
que o próprio Ferracini aponta nas palavras de Burnier acima citadas de que a Técnica da
Mímesis Corpórea está aberta a outros elementos que não os do previsto no procedimento
sistematizado pelo Lume, visto que a mesma se reconfigura dependendo da matriz escolhida.
Deixo então que o Universo do Maracatu Rural com suas características ritualísticas, lúdicas e
musicais „contaminem‟ nosso processo.
51
CAPÍTULO 2
Figura 11
52
2.1. ABRINDO O TERREIRO DA BRINCADEIRA: “MAIS DO QUE DEUS NINGUÉM”
Figura 12
54
Compartilhamos filmes, textos, imagens e músicas que tivessem relação com a temática das brincadeiras
populares, a fim de criarmos uma unidade. Essa ideia de „alinhamento de almas‟, dialoga, a meu ver, com o
„esquentamento‟ de um „ator-falcão‟ que precisa atingir um corpo- em -vida, que se faz complementar a um
corpo-em-arte (vide p.46). Faço essa ressalva, pela importância que esse „alinhamento‟ passou a ter na
concepção dramatúrgica e cênica do espetáculo.
54
2.1.1. „ESQUENTANDO‟ O TERREIRO: O PRÉ-EXPRESSIVO DO CANAVIAL
Acredito que cada ator pode descobrir sua técnica pessoal, desde que
embasada em princípios claros que determinem pontos de partida e assegurem a
continuidade da pesquisa, por tratar-se, sem dúvida de uma investigação que toma
uma vida.
(HIRSON IN TAL QUAL APANHEI DO PÉ)
Nas brincadeiras populares, o brincante tal qual o ator, ao se preparar para o seu ofício,
realiza o que eles chamam de „esquentamento‟ antes da brincadeira. Como mencionei no
primeiro capítulo, no Cavalo Marinho, por exemplo, o banco composto por músicos toca
enquanto os brincadores exercitam os movimentos do Mergulhão. No Maracatu Rural esse
treino se dá durante as Sambadas55. Como no processo com os atores em Cravo do Canavial
utilizo os exercícios dentro de um treinamento sistematizado pelo Lume, mas imersos no
universo da brincadeira popular, faço uma apropriação do termo „esquentamento‟ para
descrever o treinamento dos atores nesse processo específico. O trabalho com as energias
potenciais de cada ator é o ponto de partida, por isso se faz necessário desautomatizar o corpo
dos mesmos, livrando-os de vícios e clichês anteriores. O Lume para isso utiliza o
treinamento energético, que potencializa o ator corporalmente, dilatando-o. Segundo Ferracini
(1999) a dilatação corpórea está relacionada com a organicidade e a manipulação de energias
potenciais e pessoais do ator:
No Lume acreditamos que a dilatação corpórea esteja intimamente relacionada com
a organicidade e manipulação de energias potenciais e pessoais do ator em relação
às ações e as sequências de ações; e também na possibilidade do ator encontrar
caminhos corpóreo-musculares para que a ação possa estar interligada com sua
pessoa, dentro de uma totalidade psicofísica (FERRACINI, 1999, p.50).
55
Vide p. 34-35 dessa dissertação.
55
O conceito de energia, utilizado pelo Lume, vem do grego energon e significa „em
trabalho‟. Uma maneira de se pensar energia é enquanto “fluxo, um caminhar específico que
encontra resistências e as vai vencendo; ou então como radiação, ou seja, vibração, algo que
se propaga pelo espaço” (FERRACINI, 1999, p. 51). A ideia com o procedimento descrito
acima seria fazer com que os atores atingissem um estado de exaustão, a ponto de que os
movimentos gerados não passassem mais por algo pré-elaborado. Desenvolver as energias
potenciais do ator seria então pô-lo em trabalho, algo que passa pela tomada de consciência de
seu corpo e de como articulá-lo em relação com o espaço e com o outro. Utilizei também as
danças populares como estímulo tanto para qualificar esse estado energético, como também
para trabalhar os princípios definidos pelo Lume como fundamentais para que o ator, após
essa desautomatização consiga manter tal estado, aprendendo a qualificar as energias geradas.
Vale ressaltar que segundo Ferracini (1999), o princípio energético, abordado
anteriormente por Eugênio Barba, faz distinção entre energia masculina e feminina. Animus
(vigorosa), associado ao guerreiro forte vigoroso que o Lume trabalha, utilizando a figura do
Samurai. E a energia anima (calma e suave) que seria trabalhada através dos exercícios da
Gueixa. “Dois pólos opostos pelos quais podem caminhar todas as outras qualidades de
energia” (FERRACINI, 1999, p. 52). Associamos o que seria o trabalho com o animus à
„figura‟ do Caboclo de Lança, até mesmo por conta da relação deste dentro da própria
brincadeira com o arquétipo do guerreiro, com seus movimentos forte, precisos, retilíneos. Já
o desenvolvimento do trabalho referente à energia anima ficou para o processo de montagem
propriamente dito, quando o foco dos atores passou a ser composição do personagem Mulher.
A Mulher em Cravo do Canavial termina a história materializando a junção dessas duas
energias quando se torna a primeira Cabocla de Lança mulher do sertão: “Há quem diga que
foi numa quarta de fevereiro que um caboclo desconhecido, fez a marcha mais bonita que já
se viu. Dizem que algo estranho aconteceu nesse dia... Que esse tal caboclo se dividiu em
dois: metade homem, metade mulher (...)” 56.
Apesar de usarmos aqui uma descrição calcada em terminologias e conceitos criados
por Jung, vale frisar que isso se dá em termos teatrais, portanto não carrega toda
complexidade que envolve tais arquétipos dentro dos estudos do autor. As energias referentes
a esses arquétipos são usados apenas como uma forma do ator “dilatar o seu território”
(BARBA, 1993, p.93 apud FERRACINI, 1999, p.52). Trabalhamos em Cravo do Canavial com
essas polaridades de energia de forma complementar, tendo inspirado a montagem,
reverberando no próprio texto como cito acima, e também inspirando a concepção de cenas do
56
Texto do Brincante-Narrador, na peça Cravo do Canavial.
56
espetáculo. A cena „dançando com a sombra‟ serve como exemplo para evidenciar o quanto o
conceito de energia e o trabalho com suas polaridades, inevitavelmente nos conduziu a uma
relação com os arquétipos: “No meu trabalho, energia é a dança de fantasmas que emanam de
mim, que para mim são claros, mas que os outros não podem ver, nem entender; talvez sentir”
(HIRSON apud FERRACINI, 1999, p.52). As palavras de Hirson reforçam a relação com o
arquétipo da sombra evocado desde a introdução dessa dissertação, contudo cabe aqui apenas
traçar uma ponte do que será detalhado no próximo capítulo, a fim de entendermos melhor a
importância do princípio de energia desenvolvido pelo Lume.
A fim de despertar uma energia outra, limpa de vícios anteriores, o ator precisa ter
acesso a uma série de exercícios com o intuito de manter-se tecnicamente nesse estado. Faz-se
necessário listar os princípios técnicos que busquei atingir junto aos atores durante a aplicação
dos exercícios. Tais princípios fazem parte dos objetivos a serem alcançados pelo ator sob a
perspectiva do Lume, a partir de seu treinamento pré-expressivo. Os princípios são: dilatação
corpórea, base, equilíbrio, oposição, olhar/olhos, precisão, equivalência, variação de
fisicidade. Com base nos teatros de Decroux, Grotowski e Barba, exercícios foram
sistematizados pelo Lume, com o objetivo de preparar o ator. Usando um formato descritivo
já utilizado por Ferracini em suas obras (1999/2003), elenco os exercícios aplicados no
processo do Cravo do Canavial.
EXERCÍCIOS:
ENRAIZAR
Descrição: O trabalho se dá com a base mais flexionada possível. Enraizando o pé no chão
passando por todos os pontos até chegar ao calcanhar.
Desdobramentos: Trabalhar várias maneiras de tocar o chão com os pés, formas diferentes de
caminhar. Ir até o plano baixo na meia ponta, sem sentar no quadril e ir até o plano alto
também na meia ponta, com os joelhos esticados.
A condição, talvez a mais essencial para dilatação corpórea, seja a base de um ator,
determinada pela relação entre o chão, os pés, pernas e quadril. (...) descobrir uma
base de sustentação do corpo que possibilite uma segurança para o equilíbrio
precário e também para possibilitar uma liberdade para a coluna vertebral, que
assim poderá soltar-se sobre uma base segura e fixa (FERRACINI, 1999, p.50).
CENTRO E PERIFERIA
Descrição: Esse trabalho começa no chão. Mantendo-se conectados com o ponto abaixo do
umbigo, os atores descolam braços e pernas do chão. Um estímulo sonoro é produzido para
57
que a saída seja acionada. Nessa posição - que envolve sustentação, posições de desequilíbrio
e torção - o ator deve perceber como está sua respiração. Se prende a respiração ou respira
normalmente. Ele volta para a posição inicial com fluência em oito tempos controlando a
saída de ar, soltando som de „s‟. A ideia é que o som produzido seja contínuo. Essa volta pode
variar em oito, quatro, dois ou um tempo.
Desdobramentos: O exercício pode ser realizado em pé, acentuando ainda mais as questões de
equilíbrio precário. Vale ressaltar que o equilíbrio precário57 gerado por oposições musculares
de suas ações físicas, “criam resistências e tensões, intensificando o ator energeticamente e
por sua vez criando um maior tônus muscular” (FERRACINI, 1999, p.50).
PÊNDULO
Descrição: Esse exercício muitas vezes foi utilizado durante o processo, como treinamento
energético. Deitados no chão os atores abraçam os joelhos no peito. De um lado para outro
vão se movimentando até que as pernas e pés toquem o chão lateralmente. Quando isso
acontece o dedo do pé da perna que está por cima vai riscando o chão de um lado a outro de
maneira pendular. O objetivo é chegar ao plano alto, por isso os atores, utilizando os apoios,
vão se levantando numa movimentação fluente, ininterrupta. Ao chegar ao plano alto, saltam
e voltam ao chão, recomeçando a movimentação.
57
“Em todas as técnicas codificadas de representação encontramos uma postura, onde o corpo está quase sempre
fora de seu eixo de equilíbrio normal, ocasionando um equilíbrio precário e diferente do cotidiano comum. Esse
equilíbrio precário, ou de luxo, como coloca Decroux, determina uma forma de equilíbrio cênico ou
extracotidiano, resultando numa série de relações musculares e tensões dentro do organismo” (FERRACINI,
1999, p. 50).
58
Desdobramentos: O exercício do pêndulo pode ser associado ao de lançamento. Depois de
saltar o ator se desloca pelo espaço mantendo fluência no movimento, de repente freia e faz
um lançamento com alguma parte do corpo e olhar direcionado. Orientei para que
experimentassem partes outras que não apenas os braços. Como explicarei a seguir, o
lançamento deve partir do centro e não da periferia. Deve-se empregar a coluna vertebral no
movimento.
LANÇAMENTO
Descrição: Com a base baixa os atores começam a lançar fachos de luz, irradiando desde a
coluna passando pelos braços e saindo pelos dedos. Esse facho de luz, segundo indicações em
registros do Lume, cortaria o espaço acompanhado pelo olhar, fundamental para dar projeção
ao lançamento. “No lançamento, o ator deve buscar se lançar, procurando jogar para o espaço,
naquele ponto preciso, um pedaço de luz de sua alma. Se isso não acontecer, o trabalho torna-
se estéril e simplesmente muscular” (FERRACINI, 2003, p.169). O olhar é fundamental para
execução do lançamento uma vez que ele conduz a energia para o ponto de destino que o
lançamento está sendo direcionado. O que resulta num trabalho de precisão. Trabalha também
o principio de impulso e de contra impulso. Fazê-lo dentro de uma sala, às vezes faz com que
o ator tenha certa dificuldade em visualizar tal imagem, mas aos poucos as paredes vão sendo
rompidas e todo o corpo acaba sendo empregado no movimento.
Desdobramentos: Lançamento com diferentes objetos imaginários. À medida que o ator vai
tendo domínio do exercício, o lançamento pode resultar em algo imperceptível externamente,
reverberando apenas internamente58.
No caso do ator, a palavra “impulso” toma um sentido particular de empurrar ou
arremessar com força, de dentro. Esse algo arremessado de dentro para fora vai,
posterior e imediatamente, tomar corpo e transformar-se numa ação física orgânica.
(...) O equivalente a impulso, nos escritos de Barba, pode ser chamado de “Sats”.
Se, para Grotowski, esse elemento precede imediatamente a ação, para Barba, além
de preceder a ação, também faz com que a “energia possa ficar numa imobilidade
em movimento” (1994, p. 84), assim como na intenção (...) (FERRACINI, 2003,
p.103).
58
Durante o inicio do processo de montagem, paralelo à assessoria técnica de Raquel Scotti Hirson –
participamos de oficina que envolvia os princípios do treinamento pré-expressivo, associado as danças
populares, ministrado pelo ator-pesquisador do Lume, Jesser de Souza. Faço essa ressalva a fim de enfatizar sua
contribuição para o entendimento do procedimento e dos princípios que envolvem os exercícios de
lançamento.Como desdobramento, Jesser nos apresentou o exercício chamado de SAQUE (do verbo sacar), que
- ao contrario do lançamento, que parte do centro, envolvendo a coluna vertebral e passando pelas extremidades
– esse exercício se dá de fora para dentro,trazendo a energia para o centro.
59
PANTERA:
Descrição: Esse exercício trabalha uma energia instintiva. O ator em estado de alerta precisa
responder ao estímulo de forma imediata, diminuindo, o tempo estímulo/impulso/ação e
reação (FERRACINI, 2003). Vale ressaltar que mesmo parado esse estado de alerta precisa
estar ativado, trabalhando no ator a ideia já apontada no exercício anterior de que mesmo
parado ele precisa estar internamente ativo, uma „panela de pressão‟ pulsando internamente.
Com os joelhos flexionados, base aberta e olhos abertos voltados para frente, os atores ficam
atentos para atacar e/ou defender-se, evitando empregar muitos movimentos, concentrando
energia para o momento em que o movimento torna-se inevitável. O objetivo maior não é o
ataque nem a defesa, mas o estado de tensão que o jogo proporciona, dilatando a corporeidade
do ator.
Desdobramentos: Executar esse exercício de olhos fechados ou com a luz apagada,
aumentando o estado de tensão interna e o de prontidão.
DINÂMICAS:
- DINÂMICA DO CORO59
Descrição: O grupo se aglutina no que chamamos de „posição de bolinho‟, a partir daí
executam movimentos cadenciados através de condução externa ou por um condutor proposto
pelo próprio grupo que vai variando a cada momento. A passagem de um condutor para outro
deve ser percebida pelo grupo através da mudança corporal do novo executante. Trata-se de
um exercício não verbal, onde o foco passa a ser o coletivo.
Desdobramentos: Uso de sons e/ou texto durante a movimentação, trabalhando noções de
complementaridade.
- DINÂMICA DO MESTRE
Descrição: O Mestre é uma das „figuras‟ presentes no Maracatu Rural, trabalhada pelos atores
no processo como um regente, puxador de sequência coreográfica realizada a partir dos
passos das danças populares (Marcha do Caboclo, Rodopio, Relógio e adaptação do Trupé) e
59
Tal exercício foi apreendido por mim a partir da vivência com os Privilegiados - dirigido na época (1996) por
Antonio Abujamra e João Fonseca.
62
de Loas repetidas pelos demais componentes do grupo. A „figura‟ do Mestre entrou no jogo
como coringa60: Todos os atores envolvidos no processo passaram por essa „figura‟ que usava
um apito regendo o momento de entoar suas loas e o momento em que os atores iriam
executar a sua evolução coreográfica, tal qual acontece nas Sambadas. Os atores
improvisavam motes rimados executados pelo mestre do dia, seguindo a métrica de pergunta
e resposta.
Desdobramentos: Criação de Loas. Durante o processo de montagem retornamos a essa
dinâmica, o que resultou na composição de Loas que entraram na cena da Mulher e do
Vendedor de Figuras:
- Orgulho é uma ilusão que sob o povo desaba
Quando ele se acaba, finda debaixo do chão.
- Finda debaixo do chão
- Essa Toada que foi feita de improviso
Apesar do meu Juízo, poesia não faltou.
- Poesia não faltou
(Letra da atriz VÂNIA BERTOLDO)
60
Augusto Boal criou o „sistema coringa‟ que pressupõe quatro procedimentos: “a desvinculação
ator/personagem (qualquer ator pode representar qualquer personagem, desde que vista a máscara
correspondente), perspectiva narrativa unitária (o ponto de vista autoral é assumido ideologicamente pelo grupo
que faz a encenação), ecletismo de gênero e estilo (cada cena tem seu estilo próprio - comédia, drama, sátira,
revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se transforma numa colagem estética de
expressividades), uso da música (elemento de ligação, fusão entre o particular e o geral, introdução do
ingrediente lírico ou exortativo no contexto mítico e dramático)”. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ, 2001) Disponível
em<(www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=conceitos_biografia&cd_
verbete=620)> Acesso em 02/04/2012 as 20.30 h.
No caso do processo com os atores em Cravo do Canavial, utilizei o termo apenas para definir uma rotatividade
entre ator/personagem. A „figura‟ do Mestre foi vestida então, durante o processo por todos atores, e a idéia
inicial seria que só no dia do processo aberto, os atores descobrissem quem iria desempenhar tal função no dia
do exercício prático aberto.
63
apontado por Claudio Assis e que em certa medida retrata a realidade da mulher no Interior de
vários estados do Nordeste 61.
Desdobramentos: Trabalho vocal onde criamos sonoridades que remetessem à crueldade
desse universo, associado a sequências de movimentos repetidos em ritmo frenético.
Traduzido nos sons e movimentação do mote referente ao estupro criado por Rodrigo Severo:
Figura 13
Cito também como desdobramento, o texto escrito pela atriz Vânia Bertoldo, que serviu de
estímulo para muitas das improvisações. Vale ressaltar que apesar de não fazer parte
diretamente do espetáculo, esse texto dialoga com o universo cênico-dramatúrgico proposto
em Cravo do Canavial:
Terra vermelha cor de brasa. Terra em brasa, recortada. Sabor de cana retorcida. A
mesma mão que corta a cana Violenta a inocência. Perversidade nos canaviais.
Tanta cor que chega a doer os olhos. É dor, folia e dor! Fodia e doía, e fodia mais.
É foda! Forte! Intensidade de paisagens coloridas. Vida sofrida, gozada. Menina
em transe, delírio e sufoco. Gritos internos, explosões em suas víceras, náuseas,
nojo! Estupidez! Filho da Puta! E as putas? Queria a coragem delas! (Texto da atriz
VÂNIA BERTOLDO)
O TREINAMENTO MUSICAL:
Esse trabalho foi conduzido pelo Ator e Diretor Musical, Marco França62, que trabalhou com
os atores princípios de emissão sonora e os fundamentos de ressonância associados à
exercícios de ritmo e precisão corpóreo vocal.
61
Relato mais adiante, vivência dos atores na AMUNAM, Associação de Mulheres em Nazaré da Mata.
62
Marco França é ator e diretor musical do grupo potiguar de teatro, Clowns de Shakespeare, onde desenvolve
relevante pesquisa ,envolvendo a música na cena teatral.
64
Figura 14
65
- SALTOS RÍTMICOS
Descrição: os atores se posicionaram em três filas, virados para o mesmo ponto. Os que estão
na primeira fila saltam simultaneamente em oito tempos, com todos contando em voz alta
esses tempos. No oitavo tempo saltam girando para a fila de trás que conta oito e que salta
girando novamente. E assim, sucessivamente. Quando chegar na última fila, volta o jogo com
quatro, depois dois e depois um tempo.
Desdobramentos: No último número da contagem, os atores passaram a saltar acionando os
punctuns, pontos de tensão de sua matriz.
63
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
67
assim, um processo altamente inorgânico, falso e estereotipado (BURNIER apud
FERRACINI, 2004, p.116-117).
A ideia está em entrar em contato com a memória muscular - o corpo memória, ao qual
nos referimos no primeiro capítulo - chamada também por Ferracini (2004) como
corporeidade antiga, no sentido de um passado longínquo. Em vez de chamar de emoção,
chama-se de energia. Por exemplo, energia da dor, da sensualidade, remetendo ao contato
com as energias potenciais do ator. Assim os atores não entram na sala de trabalho para
buscar essa ou aquela emoção, mas se em sua busca interior encontram equivalências
orgânicas, devem vivenciá-la no corpo e na voz até o esgotamento desse elemento. O contato
com várias qualidades de emoções/energias dá ao ator uma gama de possibilidades de
manipulações corpóreas que serão seu material de trabalho (FERRACINI, 2004).64 Um
conjunto de Matrizes passa a ser então o vocabulário do ator, “seu vocabulário vivo de
comunicação cênica”:
Assim que essas matrizes nascem, em sala de trabalho, dentro do treinamento
cotidiano, (...) o ator codifica essas matrizes e as nomeia. Esses nomes são dados
pelos próprios atores, sem necessariamente conter qualquer caráter semântico. Os
nomes servem, somente, como pontos de referência, como imagens que podem
remeter a uma lembrança corpórea da matriz (FERRACINI, 2003, p.117).
64
Vale ressaltar que o Lume também trabalha com as emoções a partir do que eles chamam de dança pessoal:
“corporificadas, não de uma maneira realista, mas de uma maneira dilatada e, portanto extracotidiana. Estamos
buscando a presença do ator. O ator vive e experimenta ao máximo sua própria dor, sensualidade, alegria,
angústia, desespero, sexualidade, tristeza, medo e todas as emoções não nomeadas – de uma maneira dilatada.
Temos aí um monstro, isto é, a expressão no máximo de intensidade de emoções que o ser humano – por
exigências da sociedade – costuma conter. Com a dilatação de todas essas energias, o ator entra em outro estado
de trabalho, uma segunda etapa, à qual chamamos nível sutil. E nesse nível sutil a energia toma corpo. Não mais
corpo muscular, mas corpo energético, abrangendo tudo o que decorre desse “estado”. Agora o corpo muscular é
a “lenha” para gerar o fogo (corpo energético e energia sutil)” (FERRACINI, 2004, p. 116).
65
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
68
Figura 15
O material codificado será uma Matriz que o ator pode sempre recorrer, buscando
equivalências corporais que correspondam àquela fisicidade. O ator irá então repeti-las até
que sejam memorizadas. Ferracini (2003) define essa repetição como „repetição orgânica do
corpo memória‟, pois é preciso atentar para o fato de tal procedimento não passar por um
movimento meramente mecânico de repetição. “Há um trabalho físico-mecânico, mas
também o ator deve manipular as energias e a organicidade dentro dessas ações”
(FERRACINI, 2003, p.123-124).
Figura 16
E uma vez codificadas e memorizadas pode-se identificar nas Matrizes pontos disparadores de
tal intensividade, os Punctuns 66:
66
“O conceito de punctum, aqui, é emprestado de Roland Barthes, principalmente da obra A Câmara Clara
(1984). É utilizado por Barthes para nomear um „detalhe‟ na foto que chama a atenção daquele que olha.
Punctum, enquanto o que me punge, o que me toca. Claro que Barthes coloca esse conceito enquanto recepção
de um olhar na foto, um detalhe expansivo e metonímico que leva o receptor da foto para estados outros, um
estado-em-arte da foto” (FERRACINI, 2004, p. 166).
69
Esses pontos musculares eram como portas de entrada para esse estado intensivo
que, quando ativados se expandiam e recriavam a ação física ou o estado, tanto em
sua materialidade quanto em sua vida e organicidade, gerando tanto o estado atual
recriado desse estado físico (físico e muscular) como o próprio estado virtual da
ação enquanto intensividade (FERRACINI, 2004, p. 165).
Ferracini (2004) chama a atenção de que não somos arrebatados pelos punctuns. Ao
mesmo tempo, que os criamos, sabemos que os recriamos. Na verdade, estabelecemos uma
„zona de jogo‟ (FERRACINI, 2004). Segundo ele, os punctuns não são exclusivos do trabalho
com as Matrizes enquanto ações físicas codificadas. Eles se estendem a todo trabalho do ator,
mesmo os pré-expressivos. “A repetição de elementos técnicos e energéticos treinados, gera
vivências físicas, energéticas e intensivas que são armazenadas em estado virtual no corpo
cotidiano. Elas também acabam gerando punctuns por repetição dos elementos pré-
expressivos trabalhados e que podem ser ativados depois” (FERRACINI, 2004, p.169).
Pode se abrir para afetações, pode afetar, desviar o foco, brincar com o espaço,
„improvisar‟, e mesmo brincar com os próprios punctuns e matrizes. Uma zona co-
existente de criação e jogo, de controle e completo mergulho dentro dessa zona de
intensividades (FERRACINI, 2004, p. 169).
70
Figura 17
Vale ressaltar que a fim de dançar essas matrizes é necessário precisão, não só no que
diz respeito ao desenho espacial, mas também na qualidade e quantidade de energia utilizada.
Segundo Ferracini (2003), há uma relação estreita entre energia e precisão. O ator deve ter
consciência técnica da fragmentação do seu corpo, para que além de proporcionar a limpeza
dos movimentos executados, consiga manipular a energia necessária para execução de cada
ação codificada:
(...) o ator deve aprender, depois de codificada a ação, fragmentá-la, diminuí-la,
omitir partes, aumentá-la no tempo, tendo como única regra nunca perder a vida, a
organicidade e o coração da ação. Podemos dizer que o ator deve aprender a
manipular a fisicidade da ação sem nunca perder sua corporeidade (FERRACINI,
1999, p.51).
Essa dança que consiste como mencionei acima na fragmentação, omissão, alargamento de
ações, dentre outras variações de fisicidades, proporciona uma diversidade de aplicações em
termos de composição, como veremos no terceiro capítulo, quando relatarei o processo de
criação/construção dos personagens do espetáculo.
Descrevo, por ora, o segundo momento da primeira etapa do processo, referente à
aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, propriamente dita, relacionando matriz e os atores
envolvidos. A relação de cada ator na construção de sua matriz, pontuando de que forma cada
uma delas foi resignificada no espetáculo para que no próximo capítulo essa análise seja
aprofundada. Vale ressaltar que um diferencial que utilizamos para aplicação da Técnica foi a
presença de dinâmicas (diferentes das aplicadas na primeira etapa do trabalho) antes do
contato dos atores com as fotografias. Dinâmicas, relacionadas com universo de atuação de
cada „figura‟ dentro do brinquedo, como descreverei a seguir.
2.2.1. ENCONTRO COM A MATRIZ DAMA DO PAÇO
ATRIZES: VÂNIA BERTOLDO E ANDRESSA HAZBOUN
DESDOBRAMENTOS: BÓIA-FRIA E DONA JOANA
71
Como expliquei anteriormente a Dama do Paço é a „figura‟ que carrega a Calunga e está
ligada diretamente a Jurema. Através da aplicação da „dinâmica do barro‟ relatada no
primeiro capítulo, propus estabelecer a conexão dos atores com o „lugar‟ referente à
ancestralidade (vide p.23-24). Em linhas gerais, a percepção desta dinâmica pelo ator
Rodrigo Severo:
Iniciamos a primeira parte do trabalho deitados no chão, com o corpo alinhado e as
palmas das mãos viradas para baixo. Trabalhamos com a imagem do barro
vermelho. O barro seco, mas que quer ganhar vida, se tornar frutífero, expressivo.
A metáfora do barro pode ser entendida como nosso corpo, nossos sentimentos
mais íntimos, nossas memórias, nossa pulsão de vida. Cada vez que Carla batia
palma, congelava no movimento e tentávamos compreender e armazenar
corporalmente as imagens. Ao total foram cinco imagens codificadas, que foram se
transformando em uma dança pessoal, dança das nossas memórias advinda da
imagem „barro vermelho ressecado‟.
E uma vez criada essa sequência que resultou no que chamamos de Saudação à Jurema,
dispus as fotografias da Dama do Paço no canto da sala de ensaio. Cada ator escolheu a sua,
iniciando o processo de observação. À medida que se sentiam à vontade, começavam a trazer
a forma dessa imagem, trabalhando as linhas de força do corpo observado, identificando os
pontos de tensão e acionando as equivalências corporais necessárias para materializá-la. Esse
nicho foi escolhido por duas das atrizes para um trabalho mais aprofundado. Andressa
Hazboun e Vânia Bertoldo se identificaram com essa „figura‟. Vânia desmonstrou uma
identificação com o universo que cerca a Dama do Paço desde o início, quando ela lhe foi
apresentada. Tanto que, desde o trabalho de criação da Saudação a Jurema, a partir da
„dinâmico do barro‟, as imagens já pareciam familiares para essa atriz.
Figura 18
72
O corpo de Vania respondia a cada som emitido pela alfaia e a cada indicação para atingir o
estado de barro, seu corpo respondia prontamente aos esímulos como se estivesse apenas
redescobrindo um lugar pelo qual já havia passado. Por isso, quando iniciou o processo de
observação da „figura‟ da Dama do Paço, Vânia já respirava na frequencia dessa Matriz. Os
seus vetores de força corporais íam dialogando com os vetores que Vania identificava na
fotografia, como se tivessem nascido um para outro.
Figura 19
A Dama do Paço me conquistou pela força do seu olhar e clareza dos movimentos.
Foi a matriz mais trabalhada no processo, por isso tive mais tempo de aprofundar.
O braço direito incomoda. E o pescoço de um lado só também. Mas quando o
movimento se tornou fluido, ficou mais cômodo fazer. A embocadura me deu
muito trabalho no momento de projetar a voz e articular, já que é uma embocadura
onde os sons são muito fechados e a tendência é falar para dentro ou para baixo. O
desenho do rosto dela se aproxima ao desenho do meu. Gostoso desenvolver o
andar, expressões, intensões, sons (...)” (Relato da atriz VÂNIA BERTOLDO).
Figura 20
O seu corpo esguiu se diferenciava demais do corpo da Dama do Paço. Além dos lábios finos,
que fez com que a atriz descobrisse uma embocadura que acabou aproximando ainda mais de
um universo do corpo de uma velha. A atriz conseguiu não só encontrar as equivalências das
linhas de força da „figura‟ em relação às suas, como conseguiu transformar as fisicidades
codificadas em ações, e a cada dia sua relação com a Matriz se dava de forma mais orgânica
até o momento de composição da personagem Dona Joana, conforme descreverei no próximo
capítulo.
74
Figura 21
A escolha da fotografia da dama do passo foi algo intuitivo, desde o início senti
uma identificação com a figura, mesmo sendo, de certo modo, tão distante do meu
universo e até mesmo do meu corpo. Buscar as equivalências foi um trabalho
difícil, principalmente o rosto: as rugas, os lábios finos. Ao reproduzir no meu
corpo tais características, sentia uma mudança na sensação que observava na
fotografia e a que eu mesma experimentava. A sensação que a fotografia me
transmitia era a de „ranzinzes‟. A parte difícil foi tornar a fotografia uma ação.
Sentia-me muito rígida, presa aos detalhes e a precisão da forma e, com essa
preocupação, foi dífícil a maleabilidade de encontrar possibilidades para as ações.
No momento que as encontrei, com ajuda de exercícios e indicações da direção,
tive a sensação de que o corpo ia encontrando os próprios caminhos. A fala com
aquela embocadura, por exemplo, ajudou a encontrar uma voz diferente e as
dinâmicas que brincavam com a velocidade e amplitude do movimento também
trouxeram elementos que se misturavam à fotografia e ampliavam o leque de
possibilidades do trabalho (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).
Partimos da dinâmica que chamamos de dinâmica do espiral, cujo foco a princípio era o
desequilíbrio, para introduzir o trabalho com as fotografias da Burrinha. A bebida é uma
constante no universo dos brincadores rurais, e como a movimentação da Burrinha acontece,
75
muitas das vezes, em espiral, fizemos a associação desse hábito a essa figura específica. Os
corpos buscavam compensações naturais para chegar ao equilíbrio. Buscávamos encontrar a
sensação de estar fora do eixo. Os atores nessa tentativa começaram no chão deitados. Propus
que trabalhassem com a imagem de que internamente a mente estivesse em estado de
confusão e girasse, girasse, girasse continuamente. Ao começar a se movimentar cada ator
estava com tal sensação instaurada. A ideia a principio era tentar sair do chão e
posteriormente se deslocar pelo espaço. Oposições musculares orgânicas foram aparecendo,
dilatando os corpos dos atores:
As cabeças que giram por dentro em espiral. Os órgãos que pulsam irrigados pelo
líquido vermelho. Sinto náuseas, tento controlar... Não sei por que. Na dúvida me
deixo levar. Entro no universo da embriaguez, cambaleante pela sala agora, toda
bêbada. No jogo das matrizes, a burrinha chegou primeiro, com sorriso contagiante
de quem está tirando uma onda. (...) Porque por dentro, os órgãos estão em espiral,
como no inicio do trabalho, só que agora não é só a cabeça. O corpo todo é o
próprio espiral. Um espiral de felicidade(...)”(Relato da atriz VÂNIA
BERTOLDO).
76
Figura 22
A presença do grotesco, e dos seus transbordamentos, muito evidente nessa „figura‟, tornou-se
um desafio que dia-a-dia Potyra precisou vencer. O processo com essa matriz reverberou no
espetáculo, com a construção do personagem Figura Mítica do Presente.
Figura 23
77
2.2.3 ENCONTRO COM A MATRIZ CATITA
O nome Catita vem de rato, e como mencionei no primeiro capítulo tal figura tem a
função de arrecadar dinheiro durante as apresentações, mas também é capaz de passar a mão
na carteira de algum desavisado que esteja entretido no terreiro. A Catita dentro do universo
do Maracatu Rural tem uma característica de ser despudorada por isso trabalhei com os atores
o movimento da Umbigada, presente no coco de roda, antes do contato com as fotografias
deste nicho. O passo consiste em projetar o quadril para frente fazendo um movimento
côncavo. Intercalamos a Umbigada, com a imagem do rato com seus movimentos rápidos e
curtos.
Pedi aos atores que levassem saias para a aplicação dessa dinâmica, que acabou se
tornando parte do figurino proposto no experimento apresentado na finalização da primeira
etapa do processo, conforme descreve mais adiante. Depois de executarmos essa dinâmica
cujo foco era agilidade e „despudoramento‟, coloquei as fotos da Catita para que os atores
observassem e experimentassem no corpo. Se apenas um ator se identificou com a Burrinha,
com a Catita foram três: Aldemar Pereira, Tatiane Tenório e José Maria escolheram tal figura
para mimetizar. Faz-se interessante identificar a diferença de percepção de cada um dos
atores. De que forma cada um deles trabalhou os mapas de força da figura em seu corpo:
Figura 24
78
Figura 25
Podemos observar que cada ator trabalha os vetores de força dos braços de forma
diferenciada. O movimento que parte da coluna gera na figura original da Catita uma pequena
projeção do tronco. Pode-se observar também que a base do brincante não está alinhada, o que
também propicia essa projeção. O fato dos atores não estarem segurando um objeto, dificultou
o trabalho de codificação da matriz, por isso experimentamos utilizar uma espécie de peneira
redonda para substituir a „jerere‟ da Catita. Esse trabalho teve continuidade e desdobramentos
na montagem a partir do processo do ator Aldemar Pereira com a composição do personagem
Figura Mítica do Fututo.
O trabalho de Mímesis com a Matriz Mateus foi desenvolvido pelo ator Rodrigo Severo,
que conheceu o brincador que veste essa figura numa vinda do Cambinda Brasileira à Natal.
Desde então Rodrigo já se sentia inclinado a escolher essa Matriz, segundo ele, pela empatia
que desenvolveu pelo brincador e por considerar que se trata da „figura‟ mais difícil de ser
mimetizada. Não só o Rodrigo, mas todos os atores consideraram o Mateus um grande
desafio, por se tratar de um palhaço às avessas. Um palhaço bufão que ri da própria condição
miserável, síntese de um povo que enfrenta as condições precárias da Zona da Mata.Contudo,
Rodrigo conseguiu passar pelas etapas da Mímesis e encontrar em seu corpo equivalências
com tal „figura‟. Seguem as fotografias do ator em processo:
79
Figura 26
O trabalho com essa matriz não teve a principio desdobramento na montagem por conta da
saída do ator Rodrigo Severo do processo, contudo ela voltou a ser trabalhada pelas atrizes
Andressa Hazboun, resultando na composição da personagem Figura Mítica do Presente;
Thais Schmidt, resultando na composição da personagem Boia Fria e na Mímesis Vocal
empregada por Vânia Bertoldo também no personagem Bóia-Fria.
Acredito que esse trabalho de criação de uma partitura para construir a Matriz do Caboclo de
Lança, tenha se dado de forma pouco concreta, por conta de na ocasião os atores ainda não
terem entrado em contato diretamente com os brincadores e com o brinquedo. A pesquisa de
campo aconteceu na etapa seguinte do processo, na etapa de montagem. Por isso, o acesso à
materialização de um imaginário, que correspondesse ao universo arquetípico dessa „figura‟,
tornou-se pouco palpável como relata a atriz Thais Schmidt. No capítulo seguinte, veremos a
associação do processo da Mímesis com o que se chamou de „dança das memórias‟
(HIRSON, 2012), tornando a construção e o acesso a essas imagens mais palpável.
Figura 27
Iluminados por faróis de carros e em meio a uma terra avermelhada se deu a finalização
da primeira etapa do processo prático de Cravo do Canavial. Tanto os faróis quanto o espaço
não foram planejados, anteriormente. No horário previsto para apresentação do experimento
faltou luz no prédio do Teatro-Laboratório Jesiel Figueiredo e acabei motivando os atores a
vivenciarem a demonstração ao ar livre. Poucos minutos antes da apresentação, a luz voltou
mas já estávamos instalados na areia e com esteiras improvisadas para receber uma pequena
plateia prevista. E a terra vermelha acabou se transformando no barro avermelhado e rachado
do Engenho do Cumbe em nossos imaginários. Quase fui capaz de ver Dona Joaninha na
janela abençoando a brincadeira:
A apresentação foi viva, verdadeira e única. Aquele lugar nos trouxe outro estado
de emoção e outra atmosfera, brincamos como os brincantes do maracatu, de pés
no chão. Sentimos a terra, fizemos a terra subir com nossas danças e assim
fechamos essa etapa do processo. (Relato da atriz TATIANE TENÓRIO)
Foi bonito ver como todos trabalharam para que a apresentação acontecesse. Pessoas até
que não tinham ligação tão direta com o projeto. O técnico de luz que trabalhou conosco nos
ensaios do teatro ajudou a colocar todo o material lá fora e depois a puxar fiação para que
pudéssemos ligar microfone e o som. Chegou até um percussionista extra. Percebi que apenas
uma alfaia ao ar livre não iria trazer a pressão que precisava para o momento da saudação a
Jurema. Por isso, tratei logo de convocar mais um que estava de passagem pelo terreiro. Por
sorte, com a volta da luz, pudemos ao menos usar a trilha composta pelo músico Marco
França para o experimento. O microfone onde os atores iriam dizer fragmentos de alguns
textos que havíamos trabalhado estava ligado e a base gravada para os atores cantarem a
música „Cravo do Canavial‟ estava garantida. Já tínhamos desafio demais com a mudança de
espaço:
Ofegantes, tomamos nossos lugares no banco e tentamos cantar. Meu Deus! Como
estava desafinado! Não havia fôlego... Aí todo mundo espremeu o que restava de ar
no pulmão e ficou ainda mais audível aquele canto desafinado. Ok, pensei! Então
sejamos as vozes exaustas dos cortadores de cana, cansados depois de uma jornada
de trabalho, depois de uma sambada! Findada a música, erguem-se as matrizes,
caminham, passam por suas fotografias, brincam com as dinâmicas, fluem, e por
fim, congelam. Silêncio. Só se movimenta a poeira como continuação dos nossos
movimentos (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).
Só o fato de nunca termos ensaiado em local aberto por si só já nos colocava em risco.
Mas a sensação era de que a brincadeira estava pedindo para estar em seu lugar de origem,
pedindo para respirar. Os dois dias anteriores de ensaio dentro do teatro da UFRN tinha nos
82
deixado, „mofinos‟. Apesar de não termos conversado sobre isso parecia que a nossa
brincadeira estava meio „desmantelada‟, em meio àquele aparato de luz e espaço fechado.
Tínhamos na cabeça a ideia de que tal apresentação não se caracterizaria num espetáculo, mas
um experimento aonde didaticamente o processo iria se revelar. Contudo nos últimos dias de
trabalho houve um cuidado e uma preocupação, tanto minha, quanto dos atores, de que tal
experimento primasse de alguma forma pelo artístico. Tive que lutar muito contra a minha
necessidade de acabamento, de querer precisão milimétrica no roteiro criado para essa
apresentação.
Os atores se atrapalharam um pouco com o novo espaço, mas o fator risco deixou-os vivos,
presentes, mais atentos do que nunca ao jogo criado. Sem falar que a atmosfera do próprio
lugar nos remeteu ao terreiro onde as brincadeiras populares acontecem em sua origem:
E fomos ao barro, iluminados pelos faróis dos carros, cercados de gente, iniciar o
ritual do lenço. Meu lenço já carregado de areia batizou meu corpo. De lança na
mão, cortando o espaço, pusemos na boca nossos cravos. Som da alfaia, e os
caboclos de lança se armaram. A cortina de areia que se ergueu criou um clima
diferente. Misterioso como o Maracatu (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).
67
A poética sempre existiu em toda história do espetáculo, levando-nos à Aristóteles, que primeiro expôs quais
eram os ideais artísticos para realização teatral ( ALMEIDA,1995 ).” A reproposição da cena teatral como sendo
ma questão poética, antes que estética, surge como ação fundamental quando se pretende que o teatro seja aquele
lugar onde o indivíduo se revela ao próprio indivíduo, onde ser é acrescentado ao ser”.(...) “Assim interessa
saber, o que constitui esse saber-fazer poético do teatro. Trata-se de promover uma investigação sobre a
especificidade da experiência teatral, sobre aquilo que, nesta, permite um determinado tipo de gozo poético,
singular e irreprodutível em outro lugar, a partir de outra estrutura. Um gozo sinssígnico” (NETO, 1981, p. 23
apud ALMEIDA, 1995, p. 7).
68
Trata da descoberta de como os elementos constituintes do fazer teatral serão organizados, a fim de definir a
poética do espetáculo Cravo do Canavial. De como tais elementos serão articulados, estruturados.
83
Em nenhum momento dentro da sala de trabalho os atores haviam atingido um corpo
com tamanha potência. Dilatados. Inteiros. Em estado de Jogo. Um corpo brincante que
brincou levantando poeira. A partir dessa vivência eles entenderam no corpo o que os
exercícios e dinâmicas aplicadas em sala poderiam gerar em termos de potência cênica:
Acho que hoje, o desafio foi colocar esse corpo por inteiro. O corpo de cada um e o
corpo coletivo. E que para isso, é preciso abrir os sentidos, ouvir, ver, sentir o pulso
da cena, estar de prontidão para mantê-lo, com precisão, para receber e dar,
comprometendo todo o corpo, buscando ajuda no grupo quando há problemas.
(Relato da Atriz ANDRESSA HAZBOUN)
Figura 28
Figura 29
Ajustei um casamento com a nêga dum bordel, pensando que era uma moça e era o
diabo duma veia. Tombo no martelo tombador. Tombo no martelo militar! Me
casei com esta veia pra livrar da fiarada. A danada dessa veia, teve dez numa
ninhada (...) Desses dez que nasceram Um deu pra ladrão de bode. Deu no tango e
deu no mango, Dos dez só ficaram nove (...) Desses seis que ficaram Um deu pra
ladrão de pinto E deu no tango e deu no mango Dos seis só ficaram cinco (...)
(DOMÍNIO PÚBLICO)
Figura 30
O Maracatu antes era brincadeira de guerra, agora se fazia guerra de brincadeira, mas
mesmo assim, os atores precisaram entrar no combate para serem aceitos no terreiro.
Precisaram carnavalizar seus corpos, encontrar as protuberâncias de um grotesco mencionado
por mim no primeiro capítulo dessa dissertação. É verdade que Zé de Carro nos recebeu com
sorriso no rosto, mas daí a entrarmos numa Sambada junto com os brincadores do Cambinda
Brasileira, era necessário assumir o lugar de brincante mesmo que de um „brincante
estrangeiro‟:
Logo, começou uma amostração geral e, quanto mais nós tentávamos e queríamos
nos misturar, fazer parte, mais eles demarcavam seu território. Não no sentido de
um distanciamento xenófobo, mas de uma autovalorização, afirmação da
identidade do brincante, um nativismo que deve aflorar nos momentos de
confronto. (...) Aquele bando de estrangeiros dizendo “olhe pra mim! Eu sou um
brincante do maracatu!” ativou o “Ah é? Quero ver fazer como eu faço, agora!”.
Essa dinâmica do “desafio” (...) foi o momento em que o jogo entre nós se
instaurou (...) (Relato da atriz ANDRESSA HAZBOUN).
87
Figura 31
69
Alves (2010) explica o que seria o encarne apontando para o corpo do artista que, a partir do século XX,
“recebeu a marca de sujeito e objeto do ato artístico, tendo o artista se colocado como produtor e performer”:
“(...) implica em dizermos que temos encarnados em nós mesmos elementos da nossa história, de nossa cultura e
natureza que embora não determinem, influenciam nossas formas de criação, de percepção, de construção e
expressão da/na arte” (ALVES, 2010, p. s.n)
88
Talvez possamos atribuir a esse corpo a sua condição „re-ligare‟ que busca restabelecer a
ligação perdida com o mundo que o cerca” (p. s.n).
Figura 32
Saber dessas histórias contadas pela boca dos próprios brincadores, ter acesso as suas
memórias e vê-las se materializando através de seus corpos retorcidos em meio à Sambada
improvisada no Engenho do Cumbe, foi fundamental para construção dramatúrgica do
espetáculo e para concepção estética das cenas, como descreverei no próximo capítulo. Por
sua vez, havia a ideia de que os atores „vestissem‟ os brincantes-narradores que iriam narrar
um conto dos canaviais, e para isso eles precisavam trazer para o corpo o estado da
brincadeira que não está apenas no momento da brincadeira em si, mas no orgulho do
brincador ao falar do brinquedo, na crença ao esconder o mistério do Maracatu e também nas
decepções e desesperanças de viver um tempo em que as dificuldades financeiras acabam por
desmantelar o brinquedo. Era preciso fazer com que os atores vivenciassem isso
corporalmente se deixando „contaminar‟, influenciar, por esse cotidiano.
89
Figura 33
Figura 34
70
“Para Victor Turner as raízes do teatro estão no drama social, vê a antropologia da Performance como uma
parte essencial da antropologia da experiência. Para ele todo tipo de performance cultural, seja ela ritual, teatro,
carnaval, ou poesia, seria explanação ou explicação da própria vida”. (DAWSEY, 2005, p 73-74).
91
(...) uma etnografia em canaviais e caminhões de turma sugere a possibilidade de
que o cotidiano de certos grupos, tal como o dos “bóias-frias”, apresente os traços
de um estado performático. Se Turner nos leva a entender a vida social a partir dos
momentos de suspensão dos papéis, seria difícil imaginar um caso em que esse
princípio metodológico seja mais relevante do que o dos “bóias-frias”. Se em
carrocerias e canaviais encontramos o Homo ludens, ali também nos
surpreendemos com a manifestação exuberante do Homo performans (TURNER,
1987a, p. 81 apud DAWSEY, 2005, p. 22).
71
No teatro pós-dramático, a ideia de narrativa e a unidade de ação são postas em jogo. Não existe mais o
sentido de totalidade da obra ciência. A polifonia entra em cena e com ela a abundância e a simultaneidade de
signos, em que sensação vale mais que sentido, possibilitando que as imagens criadas gerem inúmeros
significantes, deixando espaços vazios para que o espectador esteja presente na obra. (GUINSBURG e
FERNANDES, 2010).
92
CAPÍTULO 3.
CRAVO DO CANAVIAL:
CONSTRUINDO UMA DRAMATURGIA „DE‟ MEMÓRIAS
Figura 35
Nazaré da Mata, interior de Pernambuco. A terra do barro rachado, dos canaviais, a terra dos
Maracatus. Terra avermelhada massacrada pelos períodos de seca, onde a cor das pessoas se
confunde com a cor da terra. Sede de um grupo de brincantes de Maracatu Rural, cortadores de
cana-de-açúcar. Esses BRINCANTES-NARRADORES se reúnem no terreiro para contar a história do
Cravo do Canavial, que narra os desencontros entre o céu e a terra, entre o mar e o sertão, entre o
que é vivo e o que o morto. Entre o que havia sido perdido e o precisa ser reencontrado para fazer
fulôrar história, desse não-lugar.
O feminino e o masculino mais uma vez se dividem.
Uma MULHER igual a tantas outras inicia seu processo de individuação, de autodescoberta. Nega
sua identidade, sua marca de nascença, o seu feminino. Tem na figura do PAI um opressor, que
aniquilou o poder de fala de todas as mulheres de sua família. Das paredes da casa do Engenho,
escorre o sangue dessas mulheres guerreiras „lorquianas‟, que tentam se libertar da figura desse PAI.
Um Barba-Azul que as trancafia no porão de suas almas, matando os seus desejos, suas pulsões.
DONA JOANA, figura lendária da região, avó da mulher, conta para ela a história da „mulher
esqueleto‟. Uma moça que havia sido empurrada do penhasco pelo pai, sem saber o motivo. Com
medo que algo semelhante acontecesse a ela, a MULHER decide fugir desse desenlace.
E, Negando sua identidade, peregrina pelas curvas do sertão.
A cada cruzamento da estrada, a cada encruzilhada, vai encontrando respostas, e mais perguntas, que
a levam ao entendimento do ciclo natural da vida-morte-vida.
A figura do brincante, contador dessa história, é sempre presente.
Eles vestem as „figuras‟ que essa MULHER vai encontrando pelo caminho.
O primeiro encontro é com uma CURANDEIRA DE POUCA FÉ que apaga sua imagem num ritual às
avessas.
93
E nesse conflito entre interior e exterior, entre a águia e a serpente, surgem as TRÊS FIGURAS
MÍTICAS,
em seu segundo Encontro.
Entre o barro rachado e a poeira ao sabor do vento, A MULHER sai, então, para guerrear, lutando
contra tudo, se negando a tudo. E como uma „Quixote do Sertão‟ vê os seus piores inimigos em
simples moinhos de vento, em seu terceiro encontro, com o VENDEDOR DE FIGURAS. As cicatrizes
da batalha se tornam sua vestimenta, o seu escudo protetor, que a fazem lembrar quem ela é. Tal qual
a sua avó, ela aprende a devorar os demônios, aprende a se alimentar deles, a crescer com esses
demônios,
em seu quarto encontro com os BÓIAS FRIAS.
E apesar de trazer sempre na memória a figura de sua avó, relembrando/contando a história da
„mulher-esqueleto‟, de uma mulher que ela não quer se tornar, a heroína se vê emaranhada pelas
linhas da vida, presa ao anzol do destino. E, como todas as mulheres, que já passaram por essas
estradas, acredita que a sua salvação está no outro. Igual a tantas Ofélias, Desdemônas, Marias que
se perderam em desmedida, ela se vê frente a frente com o que será o seu quinto encontro: o seu
DUPLO. A escolha pelos „sapatos vermelhos feitos a mão‟, ao invés da „carruagem dourada‟ faz com
que a MULHER se coloque de novo diante do tabuleiro de xadrez, lutando por sua cabeça. Escolhe
por fim, se colocar no jogo, dançando com a própria sombra.
De volta ao seu lugar de origem, de onde, na verdade, nunca havia saído.
A MULHER reencontra sua família. Agora sem a figura de DONA JOANA que foi brincar maracatu
no céu.
Com a morte da matriarca, assume o lugar da avó - respeitando como ela o ciclo „vida-morte-vida‟.
E se torna a primeira Cabocla de Lança mulher da região.
Os BRINCANTES-NARRADORES encerram a brincadeira,
anunciando a sambada de amanhã, onde mais uma peregrinação se inicia.
72
“(...) promovemos a vivência poética e simbólica, aproximando e integrando, na escrita cênica, as polaridades
conscientes e inconscientes, passado e presente, dentro e fora, corpo e alma, percorrendo em um movimento
espiralado ciclos da dramaturgia da memória” (SÁNCHEZ, 2010, p.107).
73
“O que move o artista é a inquietude, a vontade de manipular algo que se materialize, pois não existe processo
artístico sem produto. Nessa manipulação, o artista busca conexões remotas associadas a um tema da sua vida,
em um movimento que trata da restituição ao mundo daquilo que o criador quer expressar concretamente. Esse
trabalho está no campo dos elementos vivos, não na execução de técnicas ou em exercícios explícitos; está na
sensibilidade de ele perceber e redimensionar seu próprio ritmo junto a um pensamento cultural e ancestral,
como se as ações dessem forma à própria vida” (SÁNCHEZ, 2010, p. 110).
74
(PSICOLOUCOS, s.d). Disponível em < http://www.psicoloucos.com/Carl-Jung/os-arquetipos.html >
08/01/2013, às 10.31h
75
(PSICOLOUCOS, s.d). Disponível em < http://www.psicoloucos.com/Carl-Jung/os-arquetipos.html >
08/01/2013, às10.31 h.
97
convocada, mas que possui seu lado positivo, “responsável pela espontaneidade, pela
criatividade, pelo insight e pela emoção profunda, características necessárias para o total
desenvolvimento humano” 76. Evocado por mim desde o inicio da escrita dessa dissertação, o
arquétipo da Sombra não poderia ter estado fora do processo prático. Não à toa que o
descrevo na introdução, materializando-o na figura de um Caboclo de Lança vindo
desgovernadamente em minha direção nas ladeiras de Olinda. Nas palavras de Simone de
Bouvier: “A natureza na sua totalidade apresenta-se-lhe como uma mãe; a terra é mulher, e a
mulher é habitada pelas mesmas forças obscuras que habitam a terra” (BOUVIER apud
VASCONCELOS, 2012, p.33).
O arquétipo funciona como uma espécie de memória matriz comum a toda humanidade,
e decidir falar sobre o arquétipo do feminino significaria falar sobre mim mesma e também
sobre cada ator envolvido no processo, toda equipe de criação, ou seja, falar da humanidade:
”Vivemos arquetipicamente e somos guiados por arquétipos” (JUNG apud L. P. GRINBERG
apud SANCHEZ, 2012, p. 109). A ideia seria então construir uma dramaturgia articulando o
material levantado a partir da Mímesis Corpórea, trazendo minhas memórias, misturada com a
dos atores, evocando os arquétipos:
Evocar os arquétipos é buscar o porquê das relações entre as pessoas e o mundo
que as cerca, expondo estruturas da personalidade humana, modos de
comportamentos, rituais e sentimentos, que, por sua vez, são ecos dos imperativos
sociais e culturais, das convenções e suas imposições ao comportamento do
individuo pela memória da humanidade (SÁNCHEZ, 2010. p. 108-109).
76
Idem.
98
despertar nos atores uma relação com a „divindade‟, que se caracterizou em uma Saudação a
Jurema. A Saudação foi criada pelo próprio grupo, a fim de evitar qualquer tipo de tentativa
de deslocamento do ritual, tal qual ele acontece nos terreiros de Umbanda. Tratamos de não
tentar deslocar a religiosidade presente nos subterrâneos da brincadeira para o palco, o que
poderia resultar em mera imitação; mas de encontrarmos elos de cada um dos atores com o
divino, dialogando com o que seria a Saudação a Jurema dos brincadores de Maracatu Rural.
Para concepção da encenação e da escrita dramatúrgica, parti desse mesmo principio.
Cabe aqui uma reflexão referente à escolha por mimetizar as ações físicas e vocais das
„figuras‟ do Maracatu Rural e não dos brincadores em si. Acabei, mesmo que
inconscientemente a priori, aproximando o processo ainda mais do universo arquetípico a
partir desta escolha. Ao partir das fotografias do Mateus, Burrinha, Catita, Dama do Paço e
do Caboclo de Lança caminhamos em direção do universo simbólico e do mito, por se
tratarem de figuras arquetípicas dessa brincadeira. Talvez por isso o processo tenha tomado
rumo e proporções diferentes, desembocando em escolhas cênicas que acentuaram a
singularidade da Matriz Maracatu Rural. Como citei anteriormente, Jung (2000) ao investigar
criações artísticas de diferentes culturas, encontrou similaridades que de alguma forma
acessam o inconsciente, despertando heranças comportamentais de um coletivo. Articular o
material resultante da aplicação da Técnica da Mímesis Corpórea, cuja matéria-prima partiu
de figuras arquetípicas do universo popular, pode ter colaborado para a construção de uma
cena, onde questões referentes ao ritual e a propulsão de signos são evidenciados, tendo como
argumento dramatúrgico um processo tão amplo, como o de individuação.
Vale ressaltar ainda que alguns motes como a relação com a Calunga, o Cravo, o
Azougue, o significado do número ímpar, a Jurema Sagrada, elementos que carregam forte
simbologia no Universo do Maracatu Rural, entraram na peça resignificados. E também o
estado de jogo existente na brincadeira, a ludicidade presente na relação entre as „figuras‟ e a
realidade cruel da violência contra mulher nessa região, representada no capitulo anterior pelo
texto perversidade dos canaviais da atriz Vânia Bertoldo (vide p. 65), e pelo filme „Baixio da
Bestas‟, que fez parte de nosso material de pesquisa.
Vale ressaltar que apesar de Estés (1999) abordar esse ciclo, vinculando-o às relações
amorosas, ele se refere a todos os processos da vida, como a própria autora explica. Os atores
deveriam então voltar ao trabalho em sala de ensaio apresentando um workshop, aonde iriam
contar essa história, ora narrando, ora vestindo os personagens que nela aparecem. Deixei-os
bem livres, no que diz respeito a associar fragmentos do material resultante da primeira etapa
do processo.
Figura 36
100
Resolveu então voltar para casa com o que tinha. E o que tinha? Apenas memória
tatuada na pele e o lenço com o Cravo, dado pela avó, Dona Joana. (Texto da peça
CRAVO DO CANAVIAL).
A mulher esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu
uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,
e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, onde ela
bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos. Enquanto estava deitada a
seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu
coração, aquele tambor forte. (...) enquanto marcava o ritmo ela começou a cantar
em voz alta: carne, carne, carne! E quando mais ela cantava mais seu corpo se
revestia de carne (ESTÉS, 1999, p. 170).
A princípio apenas considerava a possibilidade dos cinco atores „vestirem‟ essa figura,
como se fosse uma espécie de personagem coringa. Demoramos a encontrar o seu „rosto‟, pois
partimos da ideia de que essa Mulher deveria ter uma abrangência universal, representando o
indivíduo, que independente do sexo passa pelo processo de autodescoberta, de individuação. E
apesar de se tratar de uma personagem chamada Mulher, não haveria separações: Homem e
Mulher. Queríamos falar de complementaridade, do Tao (CAPRA, 1983). Um personagem
coringa que representasse a voz do coletivo, vestido com a capa de herói, ou melhor, com seu
vestido cortado no formato de avental frente única coberto de rosas amarelas. Figurino assinado
por Irapuan Junior, que tão bem assimilou a proposta de composição: “Uma rosa amarela que
77
sonha ocupar a boca dos caboclos da região” . A personagem sonha em ser cravo e não uma
rosa amarela como as irmãs e as mulheres que estão a sua volta, associando a flor amarela à
imagem de submissão imposta as mulheres nessa região e o cravo à liberdade, à transgressão.
„Ocupar a boca dos caboclos do sertão‟ é quebrar com antigos paradigmas.
77
Texto do Brincante-Narrador, na peça Cravo do Canavial.
101
Figura 37
Por termos partido de uma ideia tão abrangente foi o personagem que tivemos mais
dificuldade de compor. Para conseguir escrever as falas dessa Mulher, que seria a protagonista
da história, ou seja, que conduziria toda a trama aproximei-a de mim e de cada um dos
envolvidos no processo, num primeiro momento - friccionando fatos reais com ficção - para
depois distanciá-la. Até que descobrimos que apesar de ainda precisarmos codificar gestos
comuns para que essa heroína dentro do espetáculo representasse a mesma Mulher, ela já
carregava a memória de cada um nós.
O nosso „esquentamento‟ para composição desse personagem se deu a partir de exercícios
associando movimentos leves, sinuosos, circulares, estimulando a energia da anima, associados a
dinâmicas que retomavam a energia do guerreiro, referente à figura do Caboclo de Lança, já
relatados no capítulo anterior. Em paralelo, partimos do conflito que o próprio conto, „Mulher
Esqueleto‟, nos apresentava. Estés (1999), em seu livro, evidencia a mulher, associando a sua
imagem à de uma loba em busca de sua matilha, do seu „lugar‟, dos „seus‟: “quem não sabe
uivar, não encontra sua matilha!”, diz a autora. Uma mulher em processo de individuação, em
busca do que Estés (1999) chama de „encontro com sua natureza selvagem‟. No conto „Mulher
Esqueleto‟, essa mulher havia sido jogada do penhasco pelo pai, mas não sabia o motivo. E por
conta disso passou anos no fundo do mar até que um pescador pescou-a por engano:
Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais
lembrasse, do que havia feito. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos,
atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. (...)
Um dia um pescador veio pescar. Bem na verdade em outros tempos muitos
costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado de sua
colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de
que a enseada era mal-assombrada (ESTÉS, 1999, p. 168).
102
A ideia de ter sido banida do convívio dos seus, pela figura paterna, sem ao menos saber o
motivo, fez com que a Mulher da nossa história se identificasse com a „Mulher Esqueleto‟. A
nossa Mulher sofria abusos do Pai e sentindo-se vitimizada por sua condição, resolve romper
“antes, de que acontecesse a ela, o mesmo que aconteceu com a mulher esqueleto” 78. Partimos
então do processo de identificação da Mulher com o mito e a partir dessa identificação a
iniciativa de rompimento, que desencadeia a transformação: “Uma coisa que se revela nos mitos
é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a
verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a
luz” (CAMPBELL, 1990, 41).
Contada diversas vezes pela Avó Dona Joana, fazendo alusão à oralidade presente na
Cultura Popular, a história do mito da „Mulher Esqueleto‟ desencadeia o rompimento da Mulher
com sua posição de vítima e inicia um processo que irá transformá-la em autora de sua própria
condição:
De uma tola com olhos vidrados passo a ser uma mulher que anda com a força a sua
frente. Não quero ser a heroína de uma tragédia, quero ser autora de minha condição.
Não quero mais viver amargos silêncios defensivos. Não tenho mais espaço, não deixo
vagas. Quero estar sempre inteira e é da garra, que se faz o meu silêncio (Texto da
MULHER, em Cravo do Canavial).
Ao cair nas encruzilhadas do sertão, a Mulher dá inicio a „jornada do herói‟, representada por
Campbell (1990) pelo conflito entre a águia e a serpente: uma ligada ao voo espiritual e a outra
ligada a terra, que ao se fundirem transformam-se na imagem do dragão, uma serpente com asas
(CAMPBELL, 1990). “A serpente representa o poder da vida, engajado na esfera do tempo, e o
da morte, não obstante eternamente viva. O mundo não é senão a sua sombra – a pele rejeitada”
(CAMPBELL, 1990, 49). Trago então escritos antigos de minha autoria sobre „rejeição‟,
„orfandade‟, para dialogar com o processo:
Mal abri os olhos e me vi órfã. Talvez uma escolha. Inconsciente certamente porque
ninguém devidamente saudável pode desejar a repulsa do mundo. Mal abri os olhos e
a primeira luz já anunciou a minha orfandade. O abandono foi imediato, frio, como
cheiro de hospital. Tudo tão claro! A luz fria escondendo o ponto escuro do abandono.
Ponto escuro, permanente, irrevogável. Mal abri os olhos e me vi órfã. Órfã de pai,
mãe, órfã de mundo. O mundo com sua luz artificial, fria, me recebeu
displicentemente. O cheiro de éter fica. É o meu cheiro. Cheiro de hospital. (...)
A Alusão ao cheiro de éter escrito por mim em um de meus cadernos de poemas e reflexões
passou a caracterizar o odor, que para „A Mulher da nossa história‟, era característico de seu pai
opressor:
78
Fragmento do texto do Brincante-Narrador, em Cravo do Canavial.
103
Eu abri a porta, ele vai me jogar do penhasco! É como se eu fosse uma árvore sem
raiz. Agora eu tenho rugas por todo corpo. Buracos, inchaços. Seu maldito cheiro
de éter insiste em me entorpecer, me enlouquecer. Ímpar. (...) (Texto da MULHER,
em Cravo do Canavial).
E ao trazer luz a uma Mulher que se encontra em condição de cárcere sexual pelo próprio
pai, abre-se na peça a possibilidade de discussão da realidade de muitas mulheres de Nazaré da
Mata, interior de Pernambuco, e de outros interiores do nordeste do país. Realidade relatada por
Eliana Rodrigues, fundadora e coordenadora da AMUNAM, que durante pesquisa in loco dos
atores, que nos afirmou ser alto o índice de violência e de abusos sexuais contra a mulher dentro
da própria família, algo recorrente na região. Realidade que é abordada no filme Baixio das
Bestas de Claudio Assis, que fez parte da primeira etapa do processo montagem, quando ainda
éramos nove. O texto que a atriz Vânia Bertoldo escreveu, que fala sobre a perversidade dos
canaviais (vide p.65) voltou a fazer parte da atmosfera dos ensaios.
A atriz Potyra Pinheiro veste a Mulher nessa primeira etapa da saga da heroína,
representando a mulher em condição de submissão. Para compor o gestual dessa Mulher, a atriz
utilizou matrizes resultantes da dinâmica „Mímesis dos Monumentos‟, trabalho desenvolvido por
Raquel Scotti Hirson, durante assessoria técnica o qual detalharei mais a frente, no subtítulo
„Memórias que os Brincadores Contam‟. Potyra trabalhou associando a sua matriz do
monumento à da atriz Thais Schmidt, resultando em ações resignificadas, que se transformaram
na representação do „estupro permanente‟ sofrido pela Mulher. Dei como referência tanto para
ela, quando para o ator Aldemar Pinheiro, que veste a figura do Pai, o mito do „Barba Azul‟79 e
associei a relação familiar da Mulher com a que se encontra na peça „A casa de Bernarda Alba‟,
de Federico Garcia Lorca:
BERNARDA - (...) Oito anos que dure o luto não há de entrar nesta casa o vento da
rua. Faremos de conta que tapamos com tijolos portas e janelas. Assim se passou
na casa de meu pai e na de meu avô. Enquanto isso, podem começar a bordar o
enxoval. Tenho na arca vinte peças de linho para os lençóis e fronhas. Madalena
pode bordá-los.
(...)
MADALENA - Nem os meus nem os de vocês. Sei que não vou me casar. Prefiro
levar sacos ao moinho. Tudo menos estar sentada dias e dias nesta sala escura.
BERNARDA - Aqui se faz o que eu mando. Já não me podes intrigar com teu pai.
Linha e agulha para as mulheres. Chicote e mula para o varão.
79
No subtítulo referente ao trabalho de composição do personagem PAI, aponto quais as relações com esse mito.
104
A personagem Mulher, prisioneira de sua condição, usa uma armação da saia da baiana,
único destino de mulheres que queriam brincar Maracatu Rural, antes de Maria José desbravar
um lugar que era tipicamente masculino no brinquedo. Relegadas a condição de baianas e suas
derivações: princesas, rainha do maracatu, no máximo teriam privilégio de segurar a calunga o
que em Cravo do Canavial cabia à „figura‟ da avó Dona Joana. O som dos chocalhos -
característicos do surrão do Caboclo de Lança, amarrados na saia de metal, que a aprisiona,
lembram à Mulher os seus sonhos. Chocalhos que se intercalam com pequenas chaves de um
Barba Azul, o Pai, que trancafia no porão de sua alma, as pulsões dessa Mulher.
Figura 38
“Felicidade. Nunca vi palavra mais doida inventada pelas nordestinas que andam por aí aos
montes” 80. A mulher que poderia ser uma „Macabéia‟, uma dessas que se vê aos montes: cheia
de ingenuidade, mas dona de uma força que não sabe, ao certo, de onde vem; rompe e decidi sair
em peregrinação: “saio discretamente pela porta dos fundos”. Incapaz de confrontar o Pai, ela
rompe e sai, mas sai pelos fundos. Foge se misturando a uma troça de carnaval, confundindo-se
com foliões:
Foi pegando carona numa troça de carnaval que aquela mulher, ora mulher, ora
menina, travestida de folgazã caiu na estrada fugindo do pai. Ela precisava negar
seus talentos para não ser mais reconhecida nessas terras, negar sua condição de
feminino, como um dia fez Diadorim num sertão de veredas. Era fevereiro, sol a
pino em meio aos canaviais... Como toda heroína de qualquer história, e aqui nessa
terra de ninguém não poderia ser diferente, ela precisava viver um ritual de
80
(LISPECTOR, 1993, p. 25) Fragmento do livro A Hora da Estrela da autora Clarice Lispector inserido na peça
Cravo do Canavial, como fala da personagem Mulher.
105
passagem para iniciar sua jornada. Foi quando ela encontrou no seu caminho uma
Curandeira de Pouca Fé. (Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do
Canavial).
Quem veste a figura da Mulher no momento em que ela encontra a Curandeira de Pouca Fé
(atriz Vânia Bertoldo) é a atriz Thais Schmidt. Envolta em ataduras para esconder o que ela mais
teme, a sua condição de feminino, a Mulher suplica para que o ritual promovido pela Curandeira
aniquile o que para ela se faz um fardo. Assim temos a imagem de mulher apagada, uma
„Diadorim‟ de um sertão de veredas, que acha a solução para sobreviver numa sociedade
patriarcal na negação do seu feminino. A composição dessa personagem pela atriz e seu posterior
desdobramento, a Ofélia do Mangue - que representa a desmedida da mulher, conforme irei
explicar mais adiante - tem grande referência do seu olhar de artista visual, das relações que
desenvolveu ao longo de sua graduação, referentes à performance e à experiência em realizar
instalações. O trabalho de composição da Mulher no encontro com a Curandeira - cena carregada
de elementos simbólicos - foi baseado no quadro O Grito, do pintor expressionista, Edvard
Munch, associado a um fragmento do poema de Vinicius de Moraes: “De manhã escureço. De
dia tardo. De tarde anoiteço. De noite ardo” 81.
Figura 39
Essa matriz foi construída pela atriz durante a disciplina Elementos do Treinamento Pré-
Expressivo, ministrada pelo professor Robson Haderchpek, onde eu fiz meu estágio docência.
Como havia presenciado o trabalho da atriz durante a disciplina, achei que a matriz poderia
dialogar com o momento vivido pela Mulher no encontro com a Curandeira. Utilizamos então
fragmentos desta Matriz, variando questões relativas à fisicidade: reduzimos a intensidade em
81
Poética, de Vinicius de Moraes.
106
50% e a concentramos em partes do corpo específicas, em alguns momentos da cena. Além
disso, associamos ações compostas pelos atores coletivamente, oriundas de dinâmica em que a
partir de verbos de ação (relacionados ao universo da Mulher da nossa história), os atores iam
construindo uma partitura corporal. Esse mesmo trabalho, com os verbos transformados em
ações físicas, foi o que fundamentou o trabalho da atriz Vânia Bertoldo, quando ela veste essa
„figura‟ na cena das Três Figuras Míticas, que representam: passado, presente, futuro. A Mulher
de Vânia é a Mulher que questiona, que reflete sobre quem é e sobre o seu lugar de origem.
Eu sempre estou buscando alguma coisa que eu não sei o que é. E como essa coisa
não se aproxima, eu entro em depressão. Eu sinto que tenho que ir para tantos
lugares. Eu estava sem ar lá! E tinha também aquele cheiro de éter, de hospital...
Eu precisava cair na estrada, Existe um mistério no meu nascimento. Eu não sei de
onde eu vim! (Texto da MULHER, em Cravo do Canavial).
Cantarolando a música tema do espetáculo, “eu acordei rumei naquela estrada atrás de uma
sambada eu vi o meu amor (...)” e em meios as Três figuras Míticas, que carregam as „cores‟ do
carnaval - com seu caráter grotesco e cheio de protuberâncias, típicos de um corpo carnavalizado
(vide p. 26-27), a ambiguidade dessa Mulher é revelada. Ora mulher, ora menina, evocamos a
sensualidade das mulheres rodrigueanas como referência para composição da Mulher dessa cena.
Figura 40
No final dessa cena, a atriz, ainda com o figurino da mulher, distancia-se do conflito vivido com
as Três Figuras Míticas, quebrando a quarta parede82 e em tom de depoimento, traz para cena um
fragmento do livro A Ilha sob o Mar, de Isabel Allende, que ao ser deslocado para o contexto do
espetáculo, acaba por trazer mais informações sobre nossa heroína:
82
A „quebra da quarta parede‟ acontece em alguns momentos do espetáculo, estando vinculada aos Brincantes-
Narradores e também a personagem Mulher.
107
As minhas primeiras lembranças de felicidade quando era uma pirralha magrela e
desgrenhada, é a de mexer ao som dos tambores. Bato no chão com as solas dos pés e
a vida sobe pelas minhas pernas percorre meus ossos apodera-se de mim acaba com a
minha tristeza e adoça minha memória, levando minhas aflições (ALLENDE, 2010,
contracapa).
Este é o retrato de uma Mulher acostumada a ver a brincadeira no terreiro de sua casa, a dançar
com avó ainda menina, a ouvir o som dos tambores como se fosse um som natural: “Ela estendeu
a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte” 83.
Após essa cena, a linha dramatúrgica da peça sofre uma quebra, utilizando como
ferramenta para essa finalidade o flashback e a fragmentação de movimentos. Utilizamos esses
recursos para que a Avó da Mulher reapareça na história. O texto da Mulher sobre as suas
lembranças de infância, citado acima, traz à memória da Mulher, àquela que é a referência de sua
origem. Com os pés voltados para trás, por ainda estar presa ao passado, a Mulher, vestida então
pela atriz Andressa Hazboun, que, nessa cena, ora assume o papel da Avó, ora o da Mulher, ora o
do Brincante-Narrador, relembra o que a fez cair na estrada84.
Figura 41
A Mulher se encontra então com o Vendedor de Figuras, que representa a brincadeira popular.
A concepção dessa cena partiu de elementos do Cavalo Marinho e do próprio Maracatu
83
Trecho do conto „Muller Esqueleto„(ESTÉS, 1999, p. 17).
84
O „cair na estrada‟ na peça Cravo do Canavial além de significar a concreta saída de casa em busca de
respostas, pode estar associado também ao que Estés (1999) chama de mergulho na „selva subterrânea‟, que
seria o mundo oculto do conhecimento feminino.Ӄ um mundo selvagem que fica subjacente ao nosso. Enquanto
estamos lá, ficamos impregnadas do conhecimento e da linguagem instintivos. A partir desse ponto privilegiado,
compreendemos o que não conseguimos compreender com tanta facilidade a partir da perspectiva do mundo
objetivo” (ESTÉS, 1999, p. 480).
108
Rural85. A Mulher, durante esse encontro, que representa o terceiro na linha cronológica da
história, ainda está aprisionada ao que lhe aconteceu no passado, impedida de construir algo
novo:
MULHER - Se eu dou demais, fico sem nada! Se não me preocupo com isso, as
pessoas me roubam... Querem o que é meu direito de nascença. Faço um circulo86
ao meu redor (marcando o chão), aqui ninguém chega. Resisto. Quem vive sabe,
mesmo sem saber que sabe. Por causa do meu pai fiz um pacto infeliz com o „coisa
ruim‟ que ocupa o lugar entre o mar e o sertão, que mora entre aquilo que é vivo e
o que é morto, entre o que foi perdido e o que há de ser reencontrado.
Figura 42
85
Utilizamos o material levantado nas Dinâmicas das Danças Populares, na Dinâmica do Mestre e na Dinâmica
do Mergulhão, referentes à etapa anterior do processo; inclusive para composição do gestual e das ações físicas
da Mulher nessa cena, conforme relatarei mais adiante.
86
Refere-se a um „circulo de proteção mágica‟ (ESTÉS, 1999, p. 497).
109
O Vendedor, referindo-se as suas mercadorias, afirma: “Eu tenho pra vender, você quer
comprar?”. Oferece a Mulher figuras em forma de Loas, e ao aceitar cantar, a Mulher
reconhece que o „predador‟87, uma vez longe do Pai, pode estar dentro dela mesma. Pode ser a
sua sombra, representando suas pulsões reprimidas, querendo vir à tona:
A minha sina é a sombra que me assombra um lobo que me ronda quer me devorar.
Ainda sinto o cheiro forte que sufoca chaves trancando portas não pode ser par.
Um jardim de rosas amarelas não sou como elas que só sabem girar (Loa cantada
pela MULHER, em Cravo do Canavial).
Ao aceitar a cantar sua primeira Loa, a Mulher começa a se transformar naquilo que tanto
deseja. Não era a transformação a partir de procedimentos mágicos, como a Curandeira de
Pouca Fé a fez acreditar, mas uma transformação interna; capaz de identificar a sua própria
sombra, aceitando-a e sabendo trabalhar com ela. A Mulher vestida a essa altura novamente
pela atriz, Potyra Pinheiro, está prestes a ser coroada cavaleira. “Está pronta para a batalha,
cavaleira do sertão?”, pergunta um dos Brincantes-Narradores. Está prestes a integrar natureza
e interior, a completude do animus/anima: “Minha pele e minha carne são o resultado de
minhas experiências no universo, é o universo” (OHNO apud. LUISI e BOGÉA, 2002, p. 80).
Figura 43
87
Essa relação do personagem Pai, associado a um predador interno, presente na própria psique da Mulher, será
explicado mais adiante.
110
Nesse momento a Mulher adquire dois elementos: o chapéu representando a coroa e um
bastão de figuras que herda do Vendedor. A idealização desse chapéu partiu da carcaça de um
chapéu de Caboclo de Lança do Cambinda Brasileira, presenteada por Zé de Carlos, quando
realizamos pesquisa de campo. O adereço contém um dispositivo que acende tanto o interior
do globo, quanto a parte da frente da aba do chapéu (vide Figura 37 p. 94).
Munida desses dois elementos, a Mulher é, então, posta a prova no encontro com os
bóias-frias. O texto apresenta uma „peripécia‟, referente à história da „Mulher Esqueleto‟, que
reaparece na peça agora com seu desfecho relatado. Até então a informação que a Mulher
tinha, e também o espectador, era de que uma mulher foi empurrada pelo pai de um penhasco
sem saber o motivo, até ver seus ossos presos no anzol de um pescador desavisado:
BÓIA-FRIA 1 : O pescador não percebeu que ela estava presa na sua vara de
pescar, então ele saiu do barco olhou pra trás e ela tava lá, começou a correr pela
aldeia e ela o acompanhou... Aquele cadáver branco vinha atrás do pescador, com
uma fome... Claro! Fazia tempo que ela não comia nada! Bom... eu só sei que essa
mulher foi devorando tudo que via no caminho. quando o pescador entrou na sua
casa e acendeu a lamparina e viu as fuças da mulher esqueleto até que achou ela
bonitinha. (...)
BÓIA-FRIA 2 : É uma história de amor, não é uma tragédia.
BÓIA-FRIA 1 :Você está muito acostumada a viver tragédias.
A cena do carteiro revela mais uma fissura tempo-espaço na narrativa da cena, que vai ser
acentuada com a entrada da personagem Ofélia do Mangue, gerando na Mulher o
reconhecimento de um „pacto infeliz‟ 89 e as consequências de cair em desmedida 90. A Ofélia
da nossa história traz como pano de fundo a leitura de bilhetes suicidas de mulheres reais. O
encontro com seu duplo e a entrada da Ofélia faz a Mulher resolver voltar para casa. Uma
casa agora sem Dona Joana. E ao ter que assumir o legado deixado por sua avó, militando
forças do visível e do invisível, a Mulher assume a autoria de sua condição:
89
“Reação autodestrutiva em termos psicológicos, é muito mais frequente que ela se torne um divisor de águas,
um evento que proporciona ampla oportunidade para restauração da força da natureza instintiva” (ESTÉS, 1999,
p.489).
90
Associo o significado de desmedida à hybris do herói trágico, conforme explico mais adiante.
112
As pessoas não conseguem lembrar ao certo como tudo aconteceu. Só se sabe que a
Mulher conseguiu enganar o próprio tempo, conseguiu engolir os seus demônios lá
numa encruzilhada conhecida aqui nas redondezas como encruzilhada da bringa,
onde os caboclos mais machos da região mataram ou morreram. E os que
morreram tão enterrados por lá até hoje.
(Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do Canavial).
O ator, Aldemar Pereira, veste então a personagem da Mulher: “Você bem sabe que aqui isso
é função de homem”. E quando está prestes a receber a coroa e manto de caboclo, o duplo
novamente aparece vestido pela atriz Andressa Hazboun, que toma a sua posição. As duas
Mulheres dançam, como se uma fosse a sombra da outra. Animus e anima se fundem na cena
que nomeei de „dançando com a sombra‟.
Figura 45
91
Fizemos um trabalho durante o processo de montagem com a mímesis de fotografias de personalidades femininas
para auxiliar no trabalho de composição da personagem Mulher. Trabalhamos com imagens de Frida Kahlo, Joana
D‟arc, Camille Claudel, Janis Joplin e Marillyn Moroe. Esse trabalho não ajudou apenas na composição da Mulher,
como também resultou em desdobramentos na construção de outros personagens, como relatarei mais adiante.
113
acabei encontrando Vânia Bertoldo, Thais Schmidt, Andressa Hazboun, Aldemar Pereira e
Potyra Pinheiro. Tudo isso friccionando a realidade das mulheres da Zona da Mata de
Pernambuco, mulheres que estão conseguindo seu espaço socialmente e politicamente, graças
a Associações como a AMUNAM e também na brincadeira, onde masculino e feminino estão
se encontrando cada vez mais com os mesmos propósitos:
“Desde a idade de sete anos, tinha aquela vontade de brincar, mas era um tempo
muito atrasado. Meu pai não deixava, dizia que esta brincadeira é só para homens,
e era. Até as baianas do maracatu eram homens” (Entrevista com Maria José apud
VASCONCELOS, 2012, p. 60-61).
Maria José ao desbravar um terreno tipicamente masculino que é o do Maracatu Rural seguiu
sua história sendo hoje a fundadora do Maracatu Rural Leão da Mata, “que participou com
outros 36 maracatus rurais no grupo de acesso para o segundo grupo e foi campeão, em 2012”
(VASCONCELOS, 2012, p. 71). A Mulher da nossa história também segue seu caminho. O
conto dos canaviais fala da história de uma simples Mulher que decidi se tornar „autora de sua
condição‟. E ao assumir as rédeas de sua história, faz-se mito. Cravo do Canavial trata então
do surgimento de um mito:
Há quem diga que foi numa quarta de fevereiro que um caboclo desconhecido, fez
a marcha mais bonita que já se viu. Dizem que algo estranho aconteceu nesse dia,
que esse tal caboclo se dividiu em dois, metade homem, metade mulher.Quem sabe
não era ela? Pela hora do meio dia, A mulher, ilha desconhecida, fez-se enfim a
primeira Cabocla Mulher do Sertão. As pessoas garantem que é verdade e que é só
isso que sabem (Texto do BRINCANTE-NARRADOR, em Cravo do Canavial).
Figura 46
114
3.1.1. A MATRIARCA DONA JOANA
“Um Conto dos canaviais cantado pela minha mãe, avó, bisavó, tataravó”.
(TEXTO CRAVO DO CANAVIAL)
Figura 47
92
Letra da Música Turbilhão de Moacir Franco.
93
Idem.
115
terreiro quando a Matriarca aparece em sua evolução, evocando o inicio do nosso processo
prático, como se ali também estivesse o nosso momento nostálgico. Dançando as fotografias
em stacatto de sua Matriz Dama do Paço, a atriz Andressa Hazboun, veste a personagem da
Matriarca. Surge o carnaval com seu poder de suspender tempo e espaço, carregado com
atmosfera transgressora, onde limites corporais transbordam, revelando um corpo provisório,
que condensa energias visíveis e invisíveis. Dona Joana carrega os ensinamentos do visível e
também do invisível: cuida do mistério do maracatu. É ela quem cuida da Calunga, e quem dá
o Cravo, guardado em um lenço branco, à Mulher. “E tome tento, que é tu, quem vai cuidar da
boneca quando eu for dançar maracatu no céu”, revela a sua neta.
“Os delírios dos gritos de amor, nessa orgia do som e de dor”. A Dona Joana da nossa
história conjuga alegria e dor. Contradição talvez presente em Dona Joaninha do Cumbe, que,
ao mesmo tempo, zelava pelo Maracatu - aconselhando os brincadores e instaurando a
consonância no brinquedo (ACSELRAD,2002) - mas, também, guardava por ele frustração
por nunca ter podido dar condições melhores aos filhos, pois tudo que ela e marido juntavam
ia para o Cambinda94.
No primeiro capítulo traço similaridades entre os princípios da Bança Butô e o corpo do
brincante, que conjugam contrários: alegria e dor, céu e terra. Ambos carregam o caráter de
resistência. Compartilhei com a atriz Andressa Hazboun imagens da personagem La
Argentina, do Kazuo Ohno (vide figura7, p. 25). O diretor de teatro Antunes Filho analisa
essa personagem e a relação do bailarino Butô com sua dança da seguinte maneira:
A imagem de La argentina é poderosa para ele, assim como sua relação com sua
mãe. Para usar um conceito de Jung: o lado feminino é muito forte no anima dele.
É a natureza em todo seu vigor, em toda sua personalidade, a precariedade da
condição humana face à natureza. A morte e o renascimento bem próximos. Eu o
vejo dançar e tenho a impressão de coisas míticas e arquetípicas (...) vendo Kazuo,
fui capaz de perceber a legião de arquétipos que um único ator é capaz de encarnar.
Essa revelação transformou para sempre o meu teatro (Apud, LUISI E BOGÉA,
2002, p. 107).
Como relatei no capítulo dois, a construção da personagem Dona Joana pela atriz
Andressa Hazboun partiu da matriz Dama do Paço que, desde a primeira etapa do processo
prático, caminhava em direção da „corporeidade de uma velha‟. Logo surgiu a ideia de prestar
uma homenagem ao Cambinda Brasileira, trazendo para nossa história uma matriarca que
tivesse o peso similar que Dona Joaninha tinha para o brinquedo deles. E, durante a pesquisa
in loco, Andressa imbuída com esse objetivo capturou mais momentos com a brincante Maria
de Lourdes que veste a Dama do Paço, no Cambinda Brasileira. Esse aumento de repertório
94
Entrevista com o administrador do Maracatu Rural Cambinda Brasileira Zé de Carlos, em maio de 2012.
116
associado a referência dada por mim da personagem do bailarino Kazuo Ohno foi delineando
espacialmente a Matriarca de nosso terreiro. Sigo com mais um comentário do diretor
Antunes Filho sobre o bailarino:
Ele atualiza a potencialidade do jogo, porque lida com a vida e com a morte
permanentemente. Sabe o valor das metáforas, e se permite brincar: é como uma
criança pura. Trabalha o mesmo tempo em três níveis: o consciente, o inconsciente
e o subconsciente. Não tem mais sexo: é homem, mulher, uma coisa só. (...) O butô
vem da morte. Ele não existiria se não fosse a bomba atômica (...), Ohno nos
oferece esse mesmo universo do final dos tempo de modo yin – maternal, pleno de
amor e esperança (LUISI E BOGÉA, 2002, p. 104-105).
Dona Joana é Vida e Morte, a completude de um ciclo. A Avó aparece em apenas três
momentos para desencadear a mudança na personagem Mulher. O primeiro se dá no inicio da
história quando conta para a neta e para todos os vizinhos a história da „Mulher Esqueleto‟.
Uma história contada e recontada por ela da janela de sua casa (vide figura 3, p. 16). A
segunda aparição acontece em flashback como sonho/visão da Mulher, lembrando a heroína
de que mesmo depois do rompimento ela continua presa ao passado, com os „pés virados para
trás‟(vide figura 41, p.112). A terceira aparição de Dona Joana é na sua morte, quando passa o
seu legado para neta, „de nome também Joana‟. Só aí é revelado que a personagem que até
então era chama de Mulher tem o mesmo nome da Avó. A letra da música „Divina Joana‟ é
utilizada como narrativa da cena, trazendo essa informação:
Foi pro céu, divina Joana. Matriarca, mulher, menina. Ora cravo, ora rosa, na terra
deixou legado. Gira de um baque, ginga chocalho silencio de tambor bagaço de
cana. Melaço avermelhado, barro rachado, silencio de tambor, bagaço de cana. Da
neta cabocla de nome também Joana, espiava na janela a dona da boneca. Calunga
de terreiro girando se fez guerreira (Letra da Música DONA JOANA, em Cravo do
Canavial).
Figura 48
A ancestralidade tatuada no corpo de Dona Joana passaria a sua neta como herança. A
partir da sua morte, a Mulher precisou assumir o legado da avó conduzindo os mistérios do
Maracatu, sem precisar esquecer quem é. Assumiu seu legado, a partir da afirmação de uma
117
identidade, encontrando a Unidade dentro dela mesma. A morte da avó deflagrou o encontro
com o seu Self. A partir daí a saga continua tendo a mulher como mito, ao se tornar a primeira
mulher Cabocla de Lança do sertão. Retomo, então, a citação que utilizei no início desse
subtítulo: “Dá-me a morte de que preciso”.
MULHER - Preciso acreditar que você morreu dessa morte vó. Sua morte é só
parte de um show. Quero aplaudir logo para te ver novamente de pé, me contando
histórias e dizendo que tudo dará certo no final. “Meu mundo é feito de pessoas
que são as minhas – e eu não posso perdê-la sem me perder” 96.
3.1.2. O PAI
Figura 49
Eu gosto mais do final que diz que como ele era o próprio „coisa ruim‟ na
figura de gente, resolveu voltar pra casa e agora tá queimando no quinto dos
infernos.
95
(MOSER, 2009, 521) Fragmento de texto da autora Clarice Lispector no livro „Clarice,‟, de Benjamin Moser,
inserido no texto da peça Cravo do Canavial.
96
(LISPECTOR, 1993) Texto da personagem Macabéia ,em A Hora da Estrela, inserido no texto da peça Cravo
do Canavial.
118
no texto, todos eles falam da derrocada deste, que parece ser o vilão da nossa história. No
entanto, pensando essa „figura‟ como arquétipo do masculino, podemos fazer a análise da
presença deste pai, para além do crivo do que seria bem e mal. Estés (1999) apresenta-nos o
„predador natural‟, uma entidade na psique humana voltada „contra a natureza‟ do individuo
(ESTÉS, 1999). Segundo a autora esse predador se manifesta na mulher quando a mesma tem
uma energia do animus pouco trabalhada:
Quanto mais forte e amplo o animus (pense no animus como uma ponte), com
maior estilo, capacidade e desenvoltura a mulher manifestará suas ideias e seu
trabalho criativo no mundo exterior de modo concreto. Uma mulher com um
animus pobremente desenvolvido tem muitas ideias e pensamentos, mas é incapaz
de manifestá-los para o mundo lá fora. Ela sempre pára a um passo da organização
ou da implementação das suas imagens maravilhosas (ESTÉS, 1999, p. 85).
Quando a energia do animus é saudável, segundo a autora, ela irá ajudar a mulher na
busca de sua consciência. A princípio, a Mulher da nossa história se vê resignada, impotente
diante da violência do Pai, que seria para muitas mulheres “a ponte entre os mundos internos
do pensamento e do sentimento e o mundo exterior (...), trata-se de uma energia intrapsíquica,
que ajuda a mulher a realizar” (ESTÉS, 1999, p.85). A presença do pai, então, pode ser
entendida como a materialização do próprio animus dessa Mulher que por ser pouco
desenvolvido ao contrário de proteger, transforma-se em seu predador.
Não se trata então de utilizar a figura masculina como vilão da nossa história, mas como
persona necessária para que a Mulher viva sua primeira derrocada, para que ela enverede
pelas estradas do sertão, pela „selva subterrânea‟97, dando inicio ao seu processo de
individuação.
Ainda tendo como parâmetro de discussão, a „figura‟ do Pai representando a
materialização de um „animus doente‟ da própria mulher, tornando-se, portanto, seu predador;
associei o conto do „Barba Azul‟ apresentado por Estés (1999) a relação da „Mulher da nossa
história‟ com o este Pai e a partir desta associação fui construindo essa „figura‟ junto com o
97
Segundo Estés (1999) a perda, a traição, a violência sofrida são os primeiros passos de um processo iniciático
que nos lança na „selva subterrânea‟. “Na floresta subterrânea a mulher que passou pela queda da própria
inocência é considerada especial, em parte por ter sido ferida, mas muito mais porque persistiu, porque está se
esforçando para entender, para descascar as camadas das suas percepções e defesas a fim de ver o que está
subjacente. Nesse mundo, sua perda da inocência é um rito de passagem” (ESTÉS, 1999, p.489).
119
ator Aldemar Pereira, trazendo elementos para sua composição. No conto Barba Azul vemos
uma mulher que cede aos encantos de um homem que aparentemente nada tem de estranho, a
não ser uma barba azul. Casa-se com ele, e descobre que na verdade esse homem é um
assassino de mulheres e que os cadáveres delas estão no porão de seu castelo, fechado à chave
(ESTÉS, 1999).
Trata-se de um antagonista debochado e assassino que nasce dentro de nós e,
mesmo com a criação parental mais cuidadosa, sua única função é a de tentar
transformar todas as encruzilhadas em ruas sem saída. (...) Quando termina seu
trabalho destrutivo, ele deixa a mulher com os sentimentos entorpecidos, sentindo-
se frágil para seguir adiante na vida (...) a história do Barba Azul trata disso
(ESTÉS, 1999, p. 57-58).
O Barba Azul proíbe a Mulher de abrir a porta do porão onde estão os cadáveres de suas
ex- esposas, impedindo que ela descubra a verdade sobre ele. “(...) proíbe a jovem de usar a
única chave que a traria de volta a consciência” (ESTÉS, 1999, p.71).
Para a construção da figura desse Pai desloquei o signo da chave, que na nossa história, tranca
todas as portas, impedindo que a Mulher se liberte de sua condição. Tranca a porta de saída.
Vale frisar, mais uma vez que essa proibição e a violência que sofre é o que desencadeia, na
Mulher, o leitmotiv (COHEN, 2004) de rompimento. “Devemos abrir as coisas com chaves ou
à força para ver o que está dentro delas. Devemos usar nosso insight e nossa capacidade de
suportar o que vemos. Devemos proclamar nossa verdade em alto e bom som. E devemos ser
capazes de usar nossa inteligência para fazer o que for necessário a respeito do que vemos”
(ESTÉS, 1999, p. 97). A Mulher abriu a „porta da consciência‟ e resolveu fazer algo para
mudar a sua realidade (vide p. 107).
MULHER – Aqui, a gente tem que rir desde cedo, isso é muito triste.
Figura 50
Eu queria ter tido filhos homens! Que drama! Gira minha filha, gira pro papai!
Gira... Que na „gira da vida‟, essa é a sua condição! (Texto do PAI, em Cravo do
Canavial).
A mulher ingênua, que se casa com o Barba Azul, diz: “Bem, até que a barba dele não é
tão azul assim” (ESTÉS,1999, p.69). Ao consentir assumir a máscara de um „sorriso
mentiroso‟, a Mulher da nossa história, assume que talvez seja esse o destino de todas as
98
A corte de um maracatu é constituída de rei, rainha, príncipes, vassalos e damas. E apesar de estarem
presentes no Maracatu Rural e no Nação, eles não são originários do Rural , tendo sido incorporados à
manifestação devido imposição da Federação Carnavalesca de Pernambuco (MEDEIROS, 2005).
121
mulheres de sua família, cujas irmãs vivem na mesma situação, acreditando não ser esta, uma
situação tão ruim assim.
Imaginei esse Pai um personagem de uma peça do Nelson Rodrigues. Mais uma vez
minhas referências vinham dialogar com o processo, interferindo na composição. A imagem
da peça O Casamento, dirigido por Antonio Abujamra. O personagem do ginecologista nessa
montagem, que bolinava as suas pacientes, fez-se trazer a referência da luva plástica do Pai.
Já cheiro de éter, que veio compor as características dessa figura - apesar da ideia ter partido
de um caderno de poemas e reflexões de minha autoria - foi resignificado trazendo a
referência da cachaça, bebida típica entre os brincadores. Todos esses elementos tornaram-se
engrenagens dessa cena, que contou com a letra da musica de Marco França, contribuindo
para narrativa da cena. Intercalando-se entre os momentos de texto e a entrada do coro, a
música tema do Pai fez com que a cena do estupro, ocupasse um lugar de plasticidade e
poesia.
Peia, palma, pedra.
Pau, peia, pó de terra.
Palma da, palma da mão.
Mão, nua, lua não.
Contra a mão o não se encerra.
Caixão, chão de mar, caixão.
A composição do gestual e das ações físicas, realizadas pelo ator Aldemar Pereira partiu
de um trabalho realizado pela atriz-pesquisadora do Lume, Raquel Scotti Hirson durante
assessoria técnica, alguns dias depois de nossa volta da pesquisa de campo. Apresentada a nós
como „Mímesis de Monumentos‟, Raquel conduziu uma dinâmica que associava
micropercepções resultantes de nossa pesquisa em Nazaré da Mata, materializando-as no
corpo e na voz do ator. Essas micropercepções poderiam ser o mofo de uma parede, uma
rachadura, ou as raízes de uma jaqueira, material trabalhado por Potyra Pinheiro, por
exemplo. Os atores iriam dançar a memória deste „lugar‟. “Memória micro: o movimento do
cupim na madeira do piso da casa da Vovó Zenaide. O papel velho e amarelado dos livros da
Tia Acidália. O som das vozes ainda mais baixo. As paredes têm ouvidos. Os tijolos,
memória. A sensação primeira era de que essa memória tinha um lugar” (HIRSON, 2012, p.
52). Como explicarei com mais detalhes no próximo subtítulo, essa dinâmica aplicada por
Raquel, faz parte de sua pesquisa de doutorado, onde a atriz-pesquisadora tentou acessar o
122
que chamou de „personagem-memória de Alphonsus‟, o seu avô poeta; associando a técnica
da Mímesis Corpórea a uma „dança de memórias‟ (HIRSON, 2012).
O ator Aldemar Pereira durante a aplicação dessa dinâmica utilizou memórias de sua
vivência na Encruzilhada da Brinca, lugar onde existem ruínas de um cemitério, em contrates
com a vegetação da cana de açúcar. Partindo dessa imagem o ator construiu sua Matriz que
ora associava a movimentação de se autoflagelar, ora impostava as mãos, como se estivesse
pedindo perdão (vide figura 50, p.125). Ao colocar esse material em relação com a cena
proposta, a matriz passou a dialogar com ela e à medida que os elementos iam sendo
introduzidos: a luva de plástico, as chaves e o próprio palio associado a ideia de homem
elegante que ia se transformando num predador, potencializaram o corpo do ator. E a medida
que a relação entre A Mulher, vestida nessa cena por Potyra Pinheiro e o Pai foi se
materializando a Matriz que partiu da memória das ruínas e do canavial foi resignificada no
gestual e em ações de um Pai violento. A última menção sobre o Pai, na peça, está na fala de
um dos Brincantes-Narradores:
BRINCANTE-NARRADOR- (...) à medida que a Mulher deixou de dar
importância para ele, ele evaporou! Virou poeira. Mais um grãozinho de barro de
uma dessas estradas. Ou então com todo àquele cheiro de éter pode estar misturado
em alguma aguardente da região. As coisas têm a importância que damos a elas.
A experiência vivida na pesquisa de campo pelos atores foi fundamental para que eu
pudesse fazer escolhas de „como‟ articular o material para montagem do espetáculo. Eu que já
havia ido algumas vezes a Nazaré da Mata e ao Engenho do Cumbe, depois de presenciar o
contato dos atores com os brincadores, descobri um „novo lugar‟, através dos olhos deles.
Encontrei-me, diversas vezes, observando-os interagir com o „lugar‟, perdendo-me nas
imagens que iam surgindo no meu imaginário a partir daquele encontro. No capítulo anterior
descrevi a pesquisa de campo, elencando o que vivenciamos em cada dia e relatando as
impressões dos atores. Retomo-a aqui, portanto, com o intuito de elucidar como esse „novo‟
material foi articulado no espetáculo. Parto então do trabalho realizado pela atriz-
pesquisadora do Lume, Raquel Scotti Hirson, que deu início a articulação do material bruto
123
coletado pelos atores, associando-o com as matrizes codificadas, referentes às dinâmicas
aplicadas e à Técnica da Mímeses Corpórea, na primeira etapa do processo prático. Raquel
acabara de defender sua tese, onde relacionou a Técnica das Mímesis com o que chamou de
„dança de memórias‟ (HIRSON, 2012). Começo esse subtítulo, portanto, falando do trabalho
que ela realizou conosco, chamado por ela na ocasião de „Mímesís de Monumentos‟.
Durante nossa visita à Nazaré, fomos a uma encruzilhada, já citada aqui na dissertação.
Fomos à Bringa, guiados por Zé de Carlos. Lugar onde os caboclos matavam ou morriam e os
que morriam eram enterrados com a vestimenta de seu caboclo. Lá vimos ruínas de um
cemitério, numa das estradas que se cruzavam. O lugar onde ficavam os túmulos estava todo
coberto de mato. Uma capela com restos de velas mostrava que o local não estava de todo
abandonado. Talvez algum familiar distante tenha resolvido acender vela para um caboclo
morto. Havia uma claraboia para entrar um pouco de luz. A porta emperrada rangia quando
um de nós entrava. O resto era canavial, verde, que contrastava com o barro vermelho e com
esse prédio cheio de rachaduras e paredes mofadas.
Observei o cemitério e sua capela. As marcas nas paredes, as rachaduras, os
escombros e mato alto no cemitério pareciam querer falar comigo, por isso escutei
intimamente uma fala sem voz que me dizia para onde olhar e o que fazer em
silencio solitário (Relato da atriz THAIS SCHMIDT).
Em meio a esse lugar inóspito, a voz de Zé de Carlos soava em nossos ouvidos. Ele
falava dos mistérios que envolvem o maracatu. Falava da religião, do peso da Jurema, da
energia do caboclo que ainda estava viva ali, bem ali, nas rachaduras das paredes. Durante os
três dias que passamos em Nazaré da Mata, Zé de Carlos nos contou várias histórias do
brinquedo, contou de seu pai e de como entrou para brincadeira:
Cresceu admirando o pai, caboclo temido e famoso, que com suas vestes de luzes
coloridas, atraíam-no feito mariposa. A surpresa, aos 15 anos, da fantasia dada pelo
pai, mostra um saudosismo daquela tradição, do mistério, do caboclo, do segredo
da Jurema, dos espíritos que envolvia o Maracatu (Relato da atriz ANDRESSA
HAZBOUN).
Parecia que todas as histórias se cruzaram bem no meio daquela encruzilhada: “Aí no meio eu
não piso não”, dizia Zé de Carlos. Não à tona, a lona do nosso espetáculo, possui três
encruzilhadas onde as Figuras e os Brincantes-Narradores transitam para contar a história do
Cravo do Canavial. Não à toa temos um personagem que representa o Zé Pelintra, entidade
cultuada na Jurema, vestida pela atriz Thais Schmidt, cujo processo de composição será
abordado mais adiante.
No ultimo dia, antes de voltar para casa encontramos seu Zé de Carlos que nos
levou ao Cruzeiro da Bringa, uma encruzilhada que é protegida pelo Exú, pois tem
um cemitério em uma das esquinas. O Cruzeiro da Bringa foi o lugar que mais me
tocou. Seu Zé de Carlos me tomou em uma conversa sobre a religião, escutei como
124
uma aprendiz. Naquele lugar me entreguei às explicações sobre a religião da
Jurema, como se a mesma fosse minha (Relato da atriz THAIS SCHMIDT).
Em meio a tantos olhares atentos, Zé de Carlos aproveitava para dar mais peso as
histórias que contava e quase em tom solene falou de um caboclo da região chamado Zé de
Rosa que segundo ele tinha feito um pacto com o „coisa ruim‟ e por isso era muito temido,
capaz de ficar invisível para não ser apanhado. Ele acendia uma vela para Deus e outra para o
diabo. Contou-nos que havia o mistério do cravo branco, mas que nada poderia falar sobre
isso.
Essa experiência redimensionou o olhar dos atores sobre a brincadeira. A partir desses
„encontros‟ em Nazaré da Mata, eles puderam compreender por outro viés o que havíamos
trabalhado na primeira etapa do processo. Ali o sensível de cada um se misturou, numa
coevolução com o lugar. E dessa relação - que pressupõe uma via de mão dupla,
contaminando e deixando-se contaminar - os corpos dos atores puderam intervir no universo
dos brincadores da mesma forma que o contrário se deu. Um corpo que é
corporeidade/existência/percepção (MERLEAU-PONTY, 1999 apud ALVES, 2010, p. s.n), como
foi mencionado, no capítulo anterior.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço (BONDÍA, 2002, p.24 apud HIRSON, 2012, p. 63).
Chamava a atenção para a rachadura que poderia haver numa das paredes, ao espaço
ocupado por cupins na porta da capela, ao mofo, a possível entrada de luz do lugar. Não se
tratava de mimetizar a forma, mas induzir sinais dessa forma (HIRSON, 2012). Os atores
foram materializando essas memórias no corpo a principio com movimentos bem pequenos,
até que Raquel trabalhou a variação das fisicidades, ora alargando-as, ora aumentando seus
volumes, fazendo com que os atores antes de olhos fechados se deslocassem pela sala. Um
som característico de cada memória acessada também foi pedido. Foi então dançando essas
memórias que os atores foram introduzidos na „Mímeses de Monumentos‟.
Ao associar a Técnica da Míimesis Corpórea com o que Hirson (2012) chama de „dança
de memórias‟ na tentativa de criar ações utilizando memória, imagens de fotografias e poemas
de seu bisavô, a atriz pesquisadora descreve seu processo. Trago recorte dessa descrição, a
fim de esclarecer melhor como se deu essa verticalização na pesquisa da técnica da Mímesis:
Observei minhas memórias e permiti que se transformassem em um mundo de
sensações e desejos que nomeei e cataloguei segundo a lógica do corpo (...) A
mímesis corpórea, assim como a memória, pode abrir fissuras no cotidiano e levar
o ator a lugares de incerteza e sonho, ou seja, levá-lo a visitar espaços “entre” não
tão objetivos como nos levam a pensar os primeiros escritos de Luís Otávio
Burnier sobre esta metodologia de pesquisa, em sua tese de Doutorado defendida
em 1994 (HIRSON, 2012, p.145)
126
Segundo Hirson (2012) Burnier já havia feito tal associação quando propôs que a „dança
pessoal‟ (vide cit. 28 p. 22 / cit.63 p. 69) seria um estimulo para a técnica: “desse o suporte
vibracional necessário para que o ator sustentasse um estado de presença enquanto dançava
uma imitação, fosse de uma pessoa, fosse de figuras estáticas. Ele estava preocupado em fugir
da mecanicidade” (HIRSON, 2012, p. 146).
Esse tipo de trabalho e manipulação de material pode fazer com que aconteçam
costuras mil; são células que podem ser colocadas em diferentes ordens, criando
diferentes leituras. Os caminhos para a composição de uma obra cênica a partir de
estruturas técnicas codificadas e sistematizadas da arte de ator, são muito
específicos. O fato de se ter um conjunto considerável de ações delineadas e
memorizadas, permite a mistura, o corte, enfim, um trabalho de verdadeira
composição, como se tivéssemos em mãos pedaços inteiros, fragmentos, e com este
127
material começássemos a compor o mosaico que formará a obra (Burnier, 2001,
p.171-172 apud HIRSON, 2012, p. 140).
“Se você anda na rua a essa hora e nesse lugar é que você deseja alguma coisa
que você não tem. E essa coisa eu posso fornecê-la a você”.
99
Baseado na figura do Mestre Ambrósio do Cavalo Marinho que vende e compra figuras.
128
Figura 51
VENDEDOR DE FIGURAS- Então Bote! Já que você não quer comprar é por que
tem pra vender! Bote sete das suas aqui!
MULHER - E por que tem que ser sete? Por que não seis, quatro, duas?
VENDEDORDE FIGURAS - Você bem sabe que por essas paragens tudo tem que
ser ímpar. Alguém já deve ter te dito isso!
A tentativa nesse encontro ainda é que a Mulher se livre do passado. Ao oferecer novas
figuras, novas máscaras, o Vendedor oferece a ela nossos caminhos, novas possibilidades. E
para mostrar que as coisas não precisam ser iguais em todos os lugares, depende da percepção
que se tem, o coro composto dos Brincantes-Narradores que, nessa cena, vestem máscaras
contam a história do peixe, cavalo marinho:
VENDEDOR DE FIGURAS - Apois, aqui a ordem e a sorte estão invertidas!
Mesmo no ímpar! Você sabia que é o cavalo marinho macho quem fica grávido por
essas bandas?!
129
E a cada negativa da Mulher o vendedor vai cantando suas Loas e desafiando a Mulher
novamente, utilizando sempre o jargão: “Eu tenho pra vender, você que comprar?”Até que a
Mulher aceita e „bota‟ a sua primeira Loa, como relatei no subtítulo referente a „Mulher Dessa
História‟.
Figura 52
130
3.3. DE MATRIZES MIMETIZADAS A PERSONAGENS
Figura 53
Figura 54
132
Para compor essa cena, associei as matrizes da Saudação a Jurema, levantadas pelos
atores na etapa anterior, ao material de composição do personagem elaborado pela atriz Vânia
Bertoldo, que partiu da matriz Dama do Paço. Tal matriz precisou ser rearticulada no espaço,
através de redução de intensidade, de velocidade e de volume no que consiste às ações
codificadas, para que atingíssemos o que chamamos de „estado de pouca fé‟. A falta de
motivação da Curandeira para realizar sua mandinga de transformação, não poderia resultar
num corpo da atriz sem tônus e impreciso. Para chegarmos a este „estado‟ sem interferir em
sua presença cênica, foi preciso reduzir e muito a velocidade das ações codificadas e deixá-las
com mais peso e volume, repetindo-as diversas vezes no espaço, depois da execução de um
trabalho energético direcionado.
Vale ressaltar, que o gestual e ações da Curandeira contaram também com elementos da
Matriz Camille Claudel elaborada pela atriz, que se deu a partir da observação e codificação
de fotografias de esculturas da artista. Esse material foi justaposto ao da Matriz Dama do
Paço. Cinco fotografias foram selecionadas para as etapas de observação,
codificação/memorização e posterior trabalho de fisicidade para que elas se tornassem
orgânicas. Destaco aqui duas das imagens trabalhadas:
Figura 55
Ao som de atabaque africano, a atriz veste a figura da Curandeira com sua partitura
executada a 100%, até que, um dos Brincantes-Narradores a lembram, que se trata de uma
Curandeira de Pouca fé, a atriz então reduz sua partitura a metade da intensidade original.
Imediatamente o som do atabaque é substituído por uma sanfona, que permeia toda a cena a
parir de então. O elemento do barro foi inserido ao ritual e ao final do procedimento a Mulher
está toda atada e com a terra escorrendo entre os dedos (vide figura 39, p. 109). Construímos
também para essa cena, uma música que se caracterizaria por uma espécie de mandinga
sonora, cantada pela atriz como se fossem resmungos:
133
Casca, cascudo, entranhas, semente. Cheiro, disforme, estiagem, bagagem,
desdém, ninguém. Tombo, bombo, miolo, caolho, cabra capada, alada,
taquara. Amolada na calunga, amolada seriguela. Cacimba, mandinga,
xexéu, bedéu. Carambola, radiola, desmedida, não medida. Moela, ferida,
chocalho, banguela.
Figura 56
Foi? É? Será?
Vixe. Ahh! Xiii!
Para construção do gestual e das ações físicas de cada uma dessas figuras utilizamos matrizes
trabalhadas na etapa anterior, referentes à Burrinha, Mateus e Catita, que foram resignificadas
a partir do jogo cênico proposto. Optamos por manter os adereços característicos do próprio
brinquedo: chicote, guiada pequena e jererê. A cena se caracteriza pela comicidade, utilizando
brincadeiras que lembram cenas de palhaço, com objetos imaginários.
Figura 57
Regente do trio, essa figura vestida pela atriz Potyra Pinheiro, carrega um chicote dado
a ela pelo próprio brincador que veste a burrinha no Maracatu Rural, o Seu Dedé. A cena
começa com a atriz se relacionando com a plateia, utilizando para isso a mimesis vocal deste
135
brincador, que acaba por se tornar um gromelô, gerando um „estranhamento‟. Como
representa o presente, esse personagem conduz a cena, fazendo um contraponto com a
Mulher, a quem precisa ensinar o ciclo vida-morte-vida. Lembrando-a que é necessário se
livrar do peso do passado, para que o novo se instaure.
Mostre-se, algo sempre pode ser aproveitado. Se não quer gerar mais sofrimento
para você e para os outros, se não quer acrescentar um tantinho assim de
sofrimento do passado que ainda vive em você, não crie mais tempo.
Figura 58
A Mulher se identifica com essa figura vestida por Andressa Hazboun por ela
representar o passado, do qual ela não consegue se libertar. “Você é tão parecido comigo”, diz
ela. Tentando alertá-la do risco que corre com essa identificação a personagem avisa:
“Tempo! Você não abriu o olho, passaram-se cinco anos como se você tivesse visto um
filme”. Por não ser compreendido pela Mulher, sempre em tom de brincadeira, caracterizando
a comicidade proposta na cena, o personagem assume então o papel de terapeuta, tendo na
figura mítica do futuro uma aliada nesta „farsa‟.
FIGURA MITICA DO PASSADO - O mundo tal qual foi construído e você não
falavam a mesma língua. Foi complicado porque eu teria que ter descoberto qual
era a língua do mundo e ter falado a língua do mundo. Precisaria ter conhecido as
línguas todas, primeiro. Todos os idiomas... E ter encontrado uma forma de ter
acessado isso no mundo.
136
E continua:
Você não apresentava uma cartografia estável. Precisava ter aprendido a conjugar
sua luz e a sua sombra. Você ora estava no céu, ora no inferno. Você trazia um
retrato de picos. Internamente você era um turbilhão de coisas. As coisas
reverberavam em você de maneira tal que (...).
Figura 59
“Você aceitará um golinho de azougue, minha filha?”. Essa frase intercorta o diálogo
proposto para cena em diversos momentos, como uma intervenção do personagem Figura
Mítica do Futuro. Personagem que convida a Mulher a brindar, a celebrar o novo. A Mulher
sempre recusa a proposta dessa figura que acaba entrando na brincadeira da figura mítica do
passado, de fazer do jogo, uma seção de terapia, assumindo função de auxiliar desse
„terapeuta‟: ora fazendo anotações em um bloco de papel imaginário, ora fazendo mímica.
Baseado na Matriz da Catita trabalhada pelo ator na etapa anterior, esse personagem assim
como os outros dois, foi se moldando a partir do jogo que surgia entre eles e a Mulher,
durante o levantamento da cena.
Vale ressaltar, que durante a cena das Três figuras Míticas, aparece uma personagem,
vestida pela atriz Thais Schmidt, que representa uma entidade das encruzilhadas. O trabalho
137
de composição desse personagem, espécie de „aparição‟ na cena, pois só se faz visível pelos
outros em um único momento, partiu da Matriz Janis Joplin, elaborada pela atriz. Não havia
nenhum intuito de fazer tal associação, mas uma vez levantada a Matriz, não havia como
negar esse encaixe. Thais ainda propôs a utilização de um charuto, o que vinculou ainda mais
a Matriz Janis Joplin a representação de um possível caminho de composição para essa
entidade das ruas.
Figura 60
“O demônio que você puder engolir transferirá a você o poder dele, e quando
maior a dor da vida, maior a resposta da vida” (CAMPBELL,1990, p. 171).
Figura 61
A composição desses personagens partiu da Matriz Dama do Paço para Vânia Bertoldo,
associado a Mímesis Vocal da Matriz Mateus, material coletado durante pesquisa de campo.
E a atriz Thais Schmidt também utilizou a Matriz Mateus, para composição vocal e corporal.
Esse seria mais uma exemplo de que uma mesma Matriz pode resultar em diferentes
composições, dependendo da maneira como esse material é articulado. Depois que o material
foi devidamente codificado e memorizado, estabelecemos então a seguinte dinâmica: As
atrizes ativavam os punctuns das Matrizes e quando ouvissem uma sirene deveriam começar a
devorar tudo o que vissem pelo caminho, como canibais, sem esquecer, dos pontos ativadores
da Matriz. Quando a sirene voltasse a tocar, os movimentos compulsivos seriam
interrompidos.
Descobrimos com o jogo que seria mais interessante manter essa volta num tempo mais
lento. As Matrizes, então, passaram a ser executadas com menos intensidade, mais leveza,
quando não estavam na condição de canibais. Descobrimos aos poucos a cumplicidade entre
essas duas criaturas, resultando quase numa relação maternal, onde a Boia-Fria da atriz Thais
Schmidt, tornou-se quase um filhote da Boia-Fria vestida por Vânia Bertoldo. Como
referência, indiquei aos atores a peça „O arquiteto e o imperador da Assíria‟, de Fernando
Arrabal.
139
3.4. O GRITO DO CONTEMPORÂNEO: A OFÉLIA DO MANGUE E OS BRINCANTES-NARRADORES
Figura 62
141
A rádio da cidade anuncia:
“Queridos irmãos, já tens água de sobra; não lhes darei mais lágrimas”.100 Começa
agora na sua radio cravo do canavial o programa que é líder de audiência na sua
noite melancólica de sertão: Correio do Amor!! Para aquele coração em desmedida,
solitário, que anseia por navegar em águas profundas. Vai! Fala coração! (Texto da
RÁDIO, em Cravo do Canavial)
Enquanto isso, Ofélia entra em cena com o cravo da Mulher nas mãos, segurando-o como se
representasse um buquê de casamento, a trilha sonora dos bilhetes suicidas toma conta do
espaço cênico, intercalado com fragmentos da cena dos coveiros (peça Hamlet), que trata do
enterro de Ofélia. Um dos Brincantes-Narradores realiza a cena levando água numa jarra até
Ofélia do Mangue que agora tem uma bacia nas mãos. A água vai caindo na bacia e a atriz
fazendo movimentos descontrolados de lavar mãos e depois os pés, revelando uma água turva
conseguida com argila. A inserção de bilhetes suicidas, representando mulheres que não se
encaixaram socialmente e acabaram tomando atitudes fora dos padrões, por não conseguirem
„acessar a língua do mundo‟, fazendo alusão ao texto da Figura Mítica do Passado à Mulher
(vide p. 141); abre possibilidades múltiplas de discussão.
O trabalho de composição da atriz Thais Schmidt partiu de uma fotografia do quadro do
pintor romântico inglês, John Everett Millais:
Figura 63
100
Fala de Laertes na peça Hamlet, de William Shakespeare.
142
Tínhamos então a imagem da morte que associada ao jogo proposto na cena: relação com a
Mulher lendo as cartas, que na verdade estavam sendo anunciadas na rádio; os Brincantes-
Narradores assumindo os personagens de coveiros; somado aos elementos bacia, argila e
cravo; foram desenhando caminhos para composição da cena e da personagem em si.
O limite entre representação e não representação faz-se tênue, no que diz respeito aos
Brincantes-Narradores, que contam a história dos canaviais. A quebra da quarta parede,
associado à estrutura de um texto em narrativa e ao fato dos atores uma vez vestidos de
brincantes terem que vestir outras figuras, levou-nos a pensar como caminho de composição
para estes personagens narradores um „lugar‟ próximo a não representação. Durante todo
processo, desde a primeira etapa relatada no capitulo anterior, trabalhamos na direção de um
corpo que consegue manipular suas energias potenciais, um corpo que brinca, dilatando-se em
presença. Partimos, então, do „estado de jogo‟, presente na memória dos atores a partir da
experiência in loco com os brincadores, associado ao que instaurávamos no nosso
„esquentamento‟ diário. “O encenador contemporâneo depara-se como dialogismo entre a
repetição, reiteração, evocação de presença – premissas do teatro – e edição-ficção-figuração,
premissas da linguagem” (COHEN, 2004, p. 111).
Figura 64
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É numa „terça-feira gorda‟, que tesso as últimas linhas dessa dissertação, que começou
lá atrás, nas minhas memórias atravessadas por àquele Caboclo de Lança, nas ladeiras de
Olinda, em 1992. Começou durante um carnaval e não podia terminar em outro período.
Embuída de uma nostalgia típica de uma quarta de cinzas que se anuncia, faço algumas
considerações não com intuito de fechar resultados ou apresentar respostas. Minha intenção
ao descrever o processo Cravo do Canavial, referente a concepção de uma dramaturgia cênica,
associando a Técnica da Mímesis Corpórea ao universo lúdico e religioso do Maracatu Rural -
friccionando memórias: as minhas, as dos atores e dos brincadores - foi a de refletir sobre
uma metodologia de pesquisa que possa vir a auxiliar artistas-pesquisadores, uma possível
ferramenta na construção de seus processos. A medida que me lancei em direção aos
subterâneos da brincadeira para construir a poética cênica do espetáculo, pude descobrir
formas outras de articulação de um procedimento técnico, que foi „contaminado‟ pela
presença (GUMBRECHT,2010) efetiva dos brincadores populares. Foi no espaço do „entre‟
que se deu esse processo. Esse „entre‟ situa-se entre o corpo do brincador popular que
condensa teatralidade/espetacularidade (BIÃO, 2007), fazendo do cotidiano, algo da ordem
do „extraordinário‟ (DAWSEY,2005); e o corpo do ator que busca, através de um
treinamento, nessa dissertação chamado de „esquentamento‟, manipular suas energias
potenciais, dilatando seus limites corpóreos (FERRACINI,2003).
A organicidade conquistada a partir do jogo entre as matrizes exige sim precisão, uma
rede de princípios técnicos que precisam ser trabalhos pelos atores. Sem isso articular esse
material seria impossível. Sem isso esse material seria perdido no tempo e no espaço. Mas a
145
Técnica da Mímesis só se faz completa quando há um comprometimento de alma. Há de se ter
101
a percepção do invisível (HIRSON, 2012). Dessa forma acredito que atendi a fala do meu
orientador: minha alma se fez retratada no espetáculo, vestida pelas almas dos atores; como
também aqui, nestas linhas, tentei deixar impressa minha pele. Esse processo que consistiu na
construção de uma escrita cênica e também acadêmica, revelou-se na integração corpo/alma,
natureza/interior, onde precisei equilibrar energias dionisíacas e apolíneas, na tentativa de
organização do meu caos criativo.
Ao conduzir os atores, em direção a uma percepção corpórea diferenciada a fim de
desenvolver a primeira etapa do proecsso prático, referente a aplicação da Técnica da
Mímesis Corpórea, precisei estabelecer um distanciamento crítico do objeto de pesquisa. O
conceito de „corporeidade‟, foi amplamente discutido em pesquisas de diversas áreas, e
fundamental para a aplicação dessa técnica, pois a organicidade desse material se dá quando o
ator condensa fisicidade e corporeidade (FERRACINI,2003), apesar de ter sido vivenciado
em meus processos como atriz, pareceu-me distante na perspectiva da escrita, referente a
análise da primeira etapa do processo. Enquanto percebia a transformação do corpo dos atores
que dançavam, a essa altura, suas matrizes de maneira „orgânica‟, „viva‟; a escrita através da
qual esse processo ia sendo relatado parecia endurecida, sem preenchimento, mera forma.
Confesso que, só quando precisei sair do meu lugar de organizadora/condutora do processo
dos atores, a quem chamei de protagonistas, para assumir a potência criativa da função de
encenadora e dramaturga me senti realmente „encarnada‟(ALVES, 2006) para articular
prática/reflexão/escrita.
O foco ao longo dessa pesquisa continuou a ser o trabalho de composição do ator, mas
foi além dele; na perspectiva de que passou a ser o trabalho de composição de um „ator-
falcão‟- a medida que relacionamos treinamento à tradinari102 - articulado a elementos
caracteristicos de uma montagem teatral. Na dissertação „Cravo do Canavial: „Entre‟ o
Maracatu Rural e a Mímesis Corpórea - A Construção de uma Dramturgia Cênica‟ tento
relatar, neste espaço arduo que é o da escrita acadêmica, esse processo onde assumi a função
de condutora-encenadora-dramaturga. Talvez não tenha conseguido promover „movimento
puro‟ nestas linhas, que ora revejo e sinto-as ainda endurecidas; mas acredito que algum deva
101
“Não me interessa somente a mimese precisa da fotografia, mas, além disso, a captura precisa dos punctuns que
possam me transportar para o plano do invisível, pois as ações são moldadas também em sua invisibilidade e vão
sendo adensadas e codificadas no desenrolar da pesquisa e da criação. A cada nova descoberta tomam novos
sentidos e fazem desabrochar as ligações possíveis que se transformarão em sequências e posteriores cenas teatrais.”
(HIRSON, 2012, p. 80)
102
Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua participação na
IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e Modos de Existência, em março de
2012, no Departamento de Artes da UFRN.
146
existir. Meu corpo tão acostumado ao movimento frenético do frevo, imponente do maracatu
nação, saltitante do coco de roda e impetuoso nos movimentos de um caboclo de Lança, se vê
inseguro em despertar as sombras dessa escrita que mesmo tendo compromisso em se
encaixar nos moldes acadêmicos, precisa sim, transbordar as dobras de um papel. Outra
potência, outro processo, outro treinamento, como aponta Hirson (2012):
Vou aos poucos descobrindo como despertar os fantasmas que conduzem para o
devaneio da escrita. É outro treinamento, mas um pode “dar uma mão” para o
outro. A experiência do corpo existe enquanto pré-impulso e é repleta de
memórias. O fluxo do devaneio pode ser o mesmo, desde que se possa adestrar a
saída do impulso criativo, encontrando, na respiração, as imagens que serão
transpostas para a palavra escrita (HIRSON, 2012, p. 12).
103
“Eu tenho pouco a dizer sobre magia. Na verdade eu acho que nosso contato com o sobrenatural deve ser
feito em silêncio e numa profunda meditação solitária. A inspiração, em todas as formas de arte, tem um toque
de magia porque a criação é uma coisa absolutamente inexplicável. Ninguém sabe nada a propósito dela. Não
creio que a inspiração venha de fora para dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que ela emerge do mais
profundo “eu‟ de uma pessoa, do mais profundo inconsciente individual, coletivo e cósmico” (MOSER, 2009,
p.509/ Entrevista com Clarice Lispector)
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saindo discretamente pela porta dos fundos, desde que mergulhei na selva subterrânea
(ESTÉS , 1999) pela primeira vez.
Fui tessendo esse „manto de combate‟ compartilhando cicatrizes, como prova da
resistência, das derrotas e das vitórias, dos envolvidos nesse processo como individuos
(ESTES, 1999). Esse capote que acabou por tomar forma de matulão de Caboclo de Lança,
precisou ser vestido por mim durante esses dois anos. Despeço-me agora então deste manto.
Tiro-o e deixo pendurado bem próximo, na tentativa de lembrar das marcas deste combate
Sigo apenas com minhas memórias tatuadas na pele e um lenço com um cravo, dado por
minha avó, Dona Edna.
149
BIBLIOGRAFIA
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teatro de Pesquisa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2008.
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?fuseaction=conceitos_biografia&cd_verbete=620 , 02/04/2012, às 20.30h.
Entrevistas:
- Entrevista em vídeo, concedida por Renato Ferracini à mestranda Carla Martins, durante sua
participação na IV Reunião Científica do GT Territórios e Fronteiras da Cena: Treinamento e
Modos de Existência, em março de 2012, no Departamento de Artes da UFRN.
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ANEXOS
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Figura 66. Programa do Espetáculo Cravo do Canavial
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