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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CAÇADORES DE UTOPIA
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E ASSOCIAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E
POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

Luiz Fernandes de Oliveira

Dissertação apresentada ao curso de mestrado


em Ciências Sociais da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro - UERJ como requesito à
obtenção do grau de Mestre em Ciências
Sociais.

ORIENTADORA:
Prof ª Patrícia Birman.

RIO DE JANEIRO
2002
4

Fernandes de Oliveira, Luiz ( 13.05.68 )

Caçadores de Utopia: Construção de Identidades e


Associações entre Religião e Política no Rio de Janeiro

Rio de Janeiro – UERJ, 2002


Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais. UERJ

I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro


II. Religiosidade e Política – Identidades – Cultura
e Política
5

Minha homenagem a Exú,


o abridor de caminhos, senhor
de todas as coisas.
Laróyè!

Ao meu irmão Ogum,


companheiro das lutas mais difíceis
Ogum yè, pàtàki orí Òrisà!

Ao meu pai Oxóssi, que me ilumina


na luta pelo socialismo
ode òkè àro!

Axé para tod@s.


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Resumo

CAÇADORES DE UTOPIA
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E ASSOCIAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E
POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

A dissertação que apresento relata a construção de identidades e associações entre


religião e política no Rio de Janeiro. São vistas as trajetórias de quatro militantes do PT que
são iniciados no candomblé. Suas histórias de vidas e militâncias no movimento negro e no
PT, estão diretamente associadas a religiosidade expressa no candomblé, demarcando num
específico contexto histórico, invenções identitárias e culturais.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------- 9

1. RELIGIÃO E POLÍTICA EM PERSPECTIVA --------------------------20

2. OS SUJEITOS INVESTIGADOS E O PAPEL DO MOVIMENTO


NEGRO, DO CANDOMBLÉ E DA UTOPIA SOCIALISTA.-------------24

2.1 - Quem são os militantes. -----------------------------------------------------------24

2.2 - O Partido dos Trabalhadores -------------------------------------------------------43


2.3 - O movimento negro ---------------------------------------------------------------46

2.4 - O candomblé ----------------------------------------------------------------------47


2.5 - As (re)interpretações “de dentro” --------------------------------------------------51

3. O CONTEXTO HISTÓRICO DA TENTATIVA DE CONSTRUÇÃO


DE UM NOVO MOVIMENTO POLÍTICO.----------------------------------73

3.1 - A invenção-construção de uma nova identidade político-religiosa.-----------------73

3.2 - Os momentos ----------------------------------------------------------------------74

O novo sujeito político na história brasileira: O Partido dos Trabalhadores.-------------74

A fundação do IPELCY, do INARAB, e do CENARAB ---------------------------------78

A discussão sobre os “novos sujeitos na luta de classe” ----------------------------------90


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A elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e


Território. --------------------------------------------------------------------------------92

4. CONSTRUINDO E INVENTANDO NOVAS TRADIÇÕES E


IDENTIDADES POLÍTICO-RELIGIOSA ---------------------------------- 104

4.1 - Redefinindo o axé --------------------------------------------------------------- 108

4.2 - Reinterpretando as histórias e os significados dos orixás------------------------- 115


4.3 - O ecologismo -------------------------------------------------------------------- 124
4.4 - O feminismo --------------------------------------------------------------------- 128
4.5 - Crítica à prática das esquerdas --------------------------------------------------- 134

4.6 - A busca das raízes africanas ----------------------------------------------------- 141

CONCLUSÕES-------------------------------------------------------------------- 151

BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------ 155

ANEXOS ---------------------------------------------------------------------------- 160


9

Introdução

“Comecei a conhecer melhor o marxismo a partir do


momento em que conheci o candomblé”. ( Augusto Tadeu
– Militante do PT do Rio de Janeiro )

Esta é uma afirmação de um grande amigo, companheiro de utopia e uma das


pessoas que colaboraram para a construção desta dissertação. Citei-o porque quando ouvi
esta afirmação, na mesa de um bar no centro da cidade do Rio de Janeiro em 1996,
tomando uma cerveja, percebi que ele, nos nossos primeiros contatos, captou
profundamente aquilo que me propunha a realizar com este trabalho que apresento no
espaço acadêmico, sobre a ação política dos militantes do PT ( Partido dos Trabalhadores )
que são iniciados no candomblé.
Ele percebeu que existia uma certa angustia pessoal e uma necessidade estratégica
de pensar determinados elementos da cultura brasileira que também influenciam nos
conflitos e nos rumos políticos desta sociedade, intimamente ligados a opção religiosa,
particularmente o candomblé.
Apresento neste trabalho uma análise, de algo que até hoje, na maioria dos escritos
sócio-antropológicos brasileiros, não foi discutido e nem levado em consideração, a saber:
as afinidades entre uma visão de mundo de origem africana, organizada em comunidades
religiosas de terreiro – o candomblé e a utopia socialista defendida no programa e na
prática política do PT por alguns militantes, que têm uma história de participação nos
conflitos recentes da política brasileira, bastante significativa.
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Além disto, para melhor compreender estas afinidades, no início dos meus estudos
utilizava as reflexões de alguns autores que se autodenominam marxistas como A.Gramsci
e M. Löwy. A escolha destes autores não foi casual, fazia parte da história do meu percurso
e de minhas reflexões sobre a crise da esquerda a nível mundial, da impotência política e
analítica de diversos militantes, neste final de século.
Desejo entretanto, antes de entrar na discussão mais teórica da militância política,
relatar os motivos pessoais que me levaram a esta temática. A partir de minha trajetória
pessoal e política dos últimos anos pretendo constituir os indicadores de contextualização
desta pesquisa e explicitação dos seus motivos e objetivos.
Começaria destacando a perplexidade de alguns amigos militantes do PT, quando
em 1996, informei que pretendia realizar esta pesquisa. Eles me perguntavam a seguinte
coisa: Por que você vai fazer está pesquisa, já que sempre foi um companheiro de esquerda,
marxista e ateu ? Por que estudar o candomblé já que você não tinha nenhum conhecimento
sobre isso ?
Para dar esta resposta relatava minha vida a partir de julho de 1993, quando depois
de longos oito anos de militância ativa no PT, na CUT ( Central Única dos Trabalhadores )
e nos movimentos populares, eu partia para Roma, para começar meus estudos na faculdade
de sociologia. Foi uma decisão difícil e radical, já que passaria no mínimo, quatro anos de
vida em outro país, com uma cultura diversa e no decorrer dos estudos aprender uma outra
língua.
Meu ritmo de vida foi completamente alterado, já não era o militante 24 horas e
nem uma pessoa que era identificado somente como um dirigente do PT, da CUT e
marxista.
Sai do Brasil com a perspectiva de não militar durante um bom tempo e dedicar
minhas energias a um projeto de estudo. Somente este fato já era para mim uma mudança
radical e, somado a vivência num cotidiano desconhecido acabou por se tornar ainda mais
revolucionária para “meu pequeno grande” mundo que aprendi até aquela época.
Os primeiros tempos foram difíceis, pois além das saudades do Brasil, deveria me
habituar a novos padrões de vida europeus. Quando se vive em outro país e numa
11

perspectiva de integração mínima a ele, se começa logo a perceber as diferenças com o


Brasil.
O contato com as pessoas na faculdade de Roma, na vizinhança, se dava no sentido
que elas começavam a me conhecer querendo saber sobre minha vida no Brasil, querendo
saber como era meu país, a cultura, o futebol, as pessoas, a qualidade de vida, etc. Porém
por mais que eu falasse do Brasil, na relação com elas, eu sentia-me uma pessoa sem
história, ou seja, o contato com essas pessoas não existia um passado, era preciso começar
do zero, construir tudo, fazer histórias em patamares jamais feitos por mim, neste novo
território desconhecido, com uma língua que não dominava completamente, onde o cheiro
era diferente e as intuições incompreensíveis.
Mas as pessoas eram sensíveis e compreendiam minhas dificuldades. Contudo, não
paravam de perguntar sobre o Brasil, como ele era, qual a sua história, como será seu
futuro, etc. Respondia na medida do possível, então comecei a perceber que não sabia
responder e passar para as pessoas a história do Brasil e suas culturas.
Além de não saber responder sobre certos assuntos, achava complicado explicar
determinadas coisas “bem brasileiras” sem vivenciá-las de perto. Era difícil explicar, por
exemplo, os vários significados do termo saudade. Só era possível entender este termo,
quem conhecia de perto o Brasil. Mas como dizia antes, algumas coisas eu nem sabia
responder.
Um exemplo disto foi um almoço organizado por mim e alguns colegas da
faculdade quando já me encontrava há seis meses na Itália. Neste preparamos uma feijoada,
prato “típico brasiliano”. Num certo momento alguém perguntou para mim qual era a
origem da feijoada. Por sorte minha, estava presente um outro brasileiro que respondeu
imediatamente, sem esperar que eu desse a resposta.
Digo sorte, porque até aquele dia eu não sabia a origem da feijoada como prato
típico brasileiro. Descobri naquele momento que os senhores de escravos pegavam os
restos de carne e osso e jogavam pela janela da casa grande, logo depois os negros
escravizados, pegavam esses restos, e na senzala, misturavam com o feijão, nascendo assim
a feijoada.
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Foi um momento de crise para mim. Comecei a me perguntar como que eu, um
militante de esquerda, do PT e marxista, não sabia a origem da feijoada. Esses e outros
momentos começaram a me fazer questionar se realmente conhecia meu país o suficiente
para contribuir num processo de transformação social.
Além dessas dificuldades identitárias, comecei a freqüentar, no final de 1993 e
início de 1994 as aulas de antropologia. E ali encontrei um professor chamado Massimo
Canevacci, cujo olhar sobre o Brasil era muito diferente do meu. O que mais me
impressionou nele era a originalidade em ver coisas “estranhas” nas coisas mais naturais
para mim da cultura brasileira.
Nas aulas de antropologia eu torcia para que ele não me perguntasse nada sobre o
Brasil, porque não me sentia seguro nas respostas sobre cultura brasileira. Enfim, percebi
que era um ignorante da “minha” cultura. Existia um Brasil que sempre esteve debaixo de
meu nariz, mas que eu não o via. Isto me obrigou e me incentivou a conhecer e estudar
determinados elementos da cultura tupiniquim.
Um outro evento, em 1994, também contribuiu para me despertar para a cultura
brasileira. Era o ano de eleições, quando no primeiro semestre, Lula e o PT, estavam,
cotados como certos para vencerem as eleições presidenciais, mas a conjuntura mudou,
veio o plano real e Fernando Henrique Cardoso venceu logo no primeiro turno, com mais
de 50% dos votos.
Para mim, junto a toda militância de esquerda no Brasil, foi um momento de
paralisia, pois as esperanças de mudanças escaparam de nossas mãos. Não conseguia
compreender aquela derrota, até porque estava muito distante do Brasil.
Esta derrota eleitoral foi um marco político em minha vida. A angústia de saber
porque o imaginário popular muda radicalmente em seis meses me mobilizou ainda mais no
sentido de pesquisar a “cultura brasileira”, que não fazia parte das análises da esquerda.
Naquele momento comecei a estudar em antropologia a força social dos símbolos,
da religião, do sincretismo. Combinados com a necessidade de começar a pensar numa tese
de final de curso; comecei a ler tudo sobre Brasil, o que se encontrava ao meu alcance na
Itália.
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Influenciado por professores comecei a me indagar sobre o poder simbólico na


cultura brasileira e como ela influenciava as disputas políticas nacionais pelo poder.
Indagações essas bem abstratas.
Ao contrário da esquerda européia, sob influência da queda do socialismo real, eu
não me preocupava em rever o marxismo, ou pelo menos a forma como o interpretava, ou
seja, como um dos método de análise da realidade. Estava preocupado enfim, em como
seria minha militância quando voltasse ao Brasil.
Procurei, então, me aprofundar nas questões que mexiam com minhas utopias: a
prática socialista no cotidiano, a complexidade da realidade para lutar por um mundo
melhor, a diferença entre as culturas.
Iniciei em 1995 os meus estudos sobre sincretismo, religião, poder dos símbolos. Na
época não eram claras as indagações, mas sempre me perguntava: como era possível fazer
com que as pessoas desejassem um mundo melhor e daí decidissem lutar por ele ?
Acreditei que o caráter místico e enigmático me conduzia a refletir sobre a religião,
pois a religião era para mim um mistério que dominava a cabeça das pessoas e que por isso
tem muitas afinidades com nossos desejos utópicos de transformação social. Combinando
isto com minhas leituras sobre Brasil e suas culturas, comecei a ler mais sobre candomblé e
umbanda.
Foi então, neste processo de auto conhecimento, que em junho de 1995 chegava em
minhas mãos um texto intitulado “Candomblé, Exclusão e Luta” de Jorge Carneiro, um
militante do PT que conhecia desde 1990. Este texto iluminou as minhas intuições e caiu
perfeitamente como um tema que buscava para uma tese de final de curso de graduação na
Itália. Neste texto, Jorge afirmava que o candomblé também contribuía para a luta
socialista, pois “ Exú era o princípio que assegurava que é na contradição que a ordem era
estabelecida” .
A primeira vista o texto me colocava diante de grandes perspectivas na temática,
mas ao mesmo tempo grandes dúvidas: Como era possível ser do candomblé e ser petista
ao mesmo tempo ? Como era possível conciliar magia e revolução ? Entrar em transe e
racionalizar um projeto político? Ou seja, de início via mais contradições que elementos
comuns entre ser candomblecista e ser de esquerda.
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Mas logo depois percebi a lógica de meus raciocínios: eu estava de uma certa forma
contaminado pelo olhar eurocêntrico. Fui despertado por amigos e professores, percebendo
que era uma tolice pensar a partir de categorias frias e percebi que para Jorge, e outros
militantes que descobri que existiam no Rio de Janeiro na mesma condição, tinha um
sentido profundo ser de esquerda, do PT e pertencer ao candomblé.
Percebi também que através deste estudo, num viés antropológico, poderia
responder parcialmente minhas indagações e descobrir novas dimensões utópicas na luta
política de minha militância.
Mas este processo de descoberta de elementos de “minha” cultura não foi somente
racional. A nível emocional fiquei muito abalado por estar longe de meus amigos e minha
família. A saudade apertou, mas a maior saudade foi de meu pai ( morto em 1980, quando
tinha doze anos ).
Acompanhando meus estudos sobre cultura brasileira, eu também descobri que sou
descendente de negros africanos ( meu pai era negro ). E esta condição emocional e
racional me levou a incorporar esta minha ascendência negra. Daí tudo se combinou,
levando-me a tomar novos rumos na militância política, profissional, de pesquisa e afetiva.
Foi um período doloroso, mas também muito rico em minha vida, assim como o início de
minha pesquisa.
Minhas primeiras tentativas de elaboração de um estudo mais sistemático foi muito
confuso, pensava em comparar os militantes do PT que pertencem ao candomblé como se
fossem iguais aos teólogos da libertação. Foi inútil, cai mais uma vez numa visão cristã
eurocêntrica.
Numa segunda tentativa, depois de me comunicar por carta com Jorge Carneiro,
encontrei um ponto de partida: deveria ressaltar a importância política e cultural, no
contexto brasileiro, das intervenções de militantes de esquerda que pertencem ao
candomblé e, sobretudo, desmistificar um senso comum nas ciências sociais que afirmava
que não era possível conciliar crença nas religiões dos orixás e o compromisso político de
transformação revolucionária da sociedade brasileira, ou seja que não existia uma
contradição entre, como dizia alguns brasileiros na Itália, ser macumbeiro e petista.
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Porém, além de não ter uma base teórica para fundamentar esta idéia, tudo se
baseava nas minhas intuições e numa grande pretensão em escrever algo novo que ninguém
nunca escreveu, ou seja, pouca modéstia e muita pretensão acadêmica para quem estava
engatinhando na universidade.
Na medida em que aprofundava minhas leituras antropológicas, consegui a ajuda do
professor Massimo Canevacci, que com boa vontade aceitou ser meu orientador, me
ajudando em muito na construção teórica de minha pesquisa.
Foi então que comecei a procurar utilizar seus autores favoritos, James Clifford e
Antonio Gramsci. Esses me ajudaram muito na formatação de meu trabalho.
O terceiro passo que dei em direção a este projeto foi voltando ao Brasil, em
outubro de 1996, para fazer finalmente a pesquisa de campo.
Esbarrei em outros problemas que se concretizava na minha total falta de
experiência no trabalho etnográfico. Comecei a entrevistar muitas pessoas, dialogar com
pesquisadores e professores, recolhi muitos dados, muitas conversa de gravador e
informais, fiz um diário de campo de quase trezentas páginas, na maioria delas, mais
reflexões pessoais do que material de pesquisa. Mas, felizmente, consegui fechar minha
pesquisa ( em 1997, na Itália ) e logo em seguida voltei ao Brasil, em março de 1998. Mas
aqui começa uma outra história, que desembocaria na continuação dessa pesquisa no
programa de pós-graduação da UERJ.
Voltando ao Brasil, em março de 1998, meus objetivos eram continuar minha
pesquisa e me inscrever num programa qualquer de mestrado. Mas além da pesquisa
comecei a militar no movimento negro do Rio de Janeiro.
As pessoas, amigos e amigas militantes do PT, estranhavam pois eu não tinha o
fenótipo de negro, pareço para eles mais branco do que negro. Minha vida militante
caminhava agora não mais em limitar minhas reflexões na política geral, mas também no
movimento negro.
Esbarrando em todos os tipos de indiferença de amigos e militantes, comecei a
freqüentar reuniões, escrever documentos, artigos, que expressassem meus pensamentos e
minha nova militância. Conseqüência de todo este esforço, consegui fazer muitos contatos,
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que me renderam bons frutos, dentre eles ingressei para o mestrado da UERJ para continuar
no estudo sobre os militantes do PT que pertencem ao candomblé.
Paralelamente conhecia muita gente de terreiro de candomblé, me aprofundando
cada vez mais no conhecimento sobre esta religião. Fruto destes contatos e conhecimentos,
comecei a levar esta discussão para dentro do PT, ao lado de alguns companheiros que
eram “objetos” de minha pesquisa ( como Jorge Carneiro, Paulo Cezar e Lúcia ).
Participamos de vários eventos juntos, intervínhamos nas reuniões juntos, escrevíamos
alguns textos também juntos, enfim, começamos a tentar criar nosso espaço dentro do PT,
através da discussão sobre a religiosidade de matriz africana e elementos da cultura negra.
Quando entro para o mestrado conheço uma excelente professora de antropologia,
que se interessa pelo meu trabalho e aceita ser minha orientadora para a dissertação: Profª.
Dra. Patrícia Birman.
Ela começa me ajudando na elaboração da dissertação, me abrindo as portas para a
discussão na academia brasileira sobre cultura negra e religiosidade no Brasil. E é a partir
daqui que tento construir meus referenciais teóricos de investigação.
Ou seja, identidades em construção, em movimento, construção de associações entre
dois domínios da realidade social: o religioso e o político. Essas são as referências
utilizadas, para o contato com quatro militantes do PT e do Movimento Negro,
contemporaneamente iniciados no candomblé.
Entretanto, não é apenas a característica de pertencerem a um partido político
socialista e serem iniciados no candomblé, que estimulou esta investigação. Mas o fato de,
nas suas trajetórias, esses militantes tentarem construir suas identidades nas associações que
estabelecem entre suas vivências religiosas e seus ideais utópicos e socialistas, expressos
em suas militâncias. Essas associações são analisadas aqui como um conjunto de falas,
construções de códigos de linguagem específicos, para representar a interseção que
determinados sujeitos sociais realizam, para justificar o pertencimento,
contemporaneamente aos domínios religioso e político, que é identificado no senso comum
– e até pelo discurso acadêmico - como eclético e/ou contraditório.
A presente análise parte das invenções culturais, lingüísticas e identitárias singulares
como: “é Exú que me faz marxista”, “o candomblé é mais revolucionário que o
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socialismo”, “ser socialista é reforçar o Axé de minha comunidade”, ou “no candomblé


existe um potencial muito grande para contestar a ideologia conformista, racista e
capitalista”. Essas invenções, reconstruções de significados, de tradições revelarão um
novo contexto histórico cultural, no qual as identidades não podem mais ser classificadas
segundo conceitos estáticos e paradigmas totalizantes.
O suporte para a leitura das novas identidades desses militantes, se fundamentará
nas recentes análises antropológicas sobre as noções de cultura e identidades em Michael
Agier, Stuart Hall, M. Sahlins e James Clifford, que rediscutem as implicações teóricas
contemporâneas da noção de cultura e identidade.
A pesquisa apresenta os militantes investigados: quem são, o que dizem e como
vivem suas tentativas de elaboração de novas práticas e discursos nos espaços político e
religioso. Além disso, far-se-á uma breve apresentação dos espaços onde atuam, ou seja, o
Partido dos Trabalhadores, o Movimento Negro e o candomblé.
Será descrito o contexto histórico que produziu esses militantes. Quais foram os
movimentos que os influenciaram, que tipo de “constelação de fatores históricos”1 os levou
a produzir associações de traços culturais religiosos e políticos entre domínios que se
opõem.
Por último, serão descritas as construções identitárias propriamente ditas. Vamos
analisar como eles operam o conceito de Axé para pensar uma ação política militante; que
reinterpretam mitos e histórias de orixás, transformando-os em inspiradores de seus ideais
socialistas. O fato da mulher iniciada ser maioria no candomblé e ter um papel social
diferenciado da sociedade abrangente, para eles é símbolo de luta feminista. Que as
relações dos orixás com a natureza criam uma referência de luta ecológica. Que essas
elaborações acima, os incitam a construir uma “política da diferença” em relação à
esquerda, na qual estão inseridos e que, por fim, levam-os a resgatar a origem dessas
elaborações, numa África inventada, através de uma suposta ancestralidade, que também os
inspira para a construção de um futuro socialista.
Por outro lado, não se poderá deixar de analisar as dificuldades e contradições que
esses militantes irão revelar, pois, ao mesmo tempo em que se
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tenta construir um movimento político religioso, eles explicitam conflitos e contradições


nessas mesmas construções, entre discurso e prática, revelando em alguns momentos,
intenções mais pessoais no interior das políticas coletivas.
Trata-se, portanto, de uma tarefa acadêmica muito complexa, mas que poderá
revelar a ponta de um iceberg, que os estudos sócio-antropológicos estão desafiados a
descrever seus sentidos e significados, isto é, a construção de novas identidades, a
reinvenção das culturas, as invenções de tradições, suas continuidades e descontinuidades.
Não sendo uma tarefa fácil, os métodos utilizados foram desde aqueles clássicos -
com entrevistas, observação participante e coleta de materiais produzidos pelos sujeitos -
até os diálogos soltos, os “papos” informais, que na sua espontaneidade revelaram aspectos
interessantes da tentativa de construção deste novo movimento político e cultural.
A rigor, contudo, foram utilizadas longas horas de entrevistas, longas e cansativas
horas de observação e participação em reuniões do Movimento Negro, do PT e dos rituais
de candomblé. Nesse último, houve a participação também em momentos não “festivos”,
ou seja, momentos do candomblé, quando não há a “presença do orixá”.
Na tentativa de uma leitura mais próxima do “real” sobre essas construções de
identidades, não foi estabelecida, a priori, uma data limite, pois como se constata, o próprio
objeto da investigação encontra-se ainda em construção. Entretanto, para efeito de
restituição da investigação para o público acadêmico, ela teve início em março de 1997 e o
término, enquanto primeira etapa, em julho de 2000.
Inicialmente, a partir de março de 1997, foram feitos os primeiros contatos com
vários militantes que eram filiados ao PT e iniciados no candomblé – cerca de doze
pessoas. Entretanto, após uma triagem2, foram selecionados somente quatro militantes por
se encaixarem nos critérios de investigação, a saber, militantes ativos do partido, iniciados
no candomblé e que não só freqüentavam suas casas de santo como tentavam, de formas
diversas, construir associações entre dois domínios da realidade social (o político e o
religioso), através de elaborações escritas (documentos, textos, panfletos, etc. ),

1 MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.


2 Os outros militantes que encontrei ao longo da pesquisa não se encaixaram em meus critérios porque alguns deles
abandonaram a militância, apesar de continuarem filiados ao PT, e outros, que apesar de estarem militando no PT não são
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intervenções em espaços políticos de suas militâncias e no cotidiano de suas comunidades


religiosas.
Logo em seguida, realizaram-se as entrevistas e observações participantes partindo
dos rituais e reuniões políticas que eles participaram, ao mesmo tempo em que eram
coletados seus materiais escritos. Esse período se estendeu de julho de 1997 à julho de
2000.
Contudo, como os próprios leitores poderão observar, essa viagem às novas
identidades em movimento, não tem um ponto final. Ela levará, espera-se, à busca de
novos pressupostos teóricos nas Ciências Sociais, para uma melhor compreensão da
realidade.
Finalmente, como falávamos anteriormente a construção e motivação desse trabalho
se devem ao meu interesse pelas questões relativas ao Movimento Negro. Percebi, como
militante desse movimento ao longo dos anos, que os elementos da cultura e religiosidade
afro-brasileira sempre, de uma forma explícita ou não, foram inspiradores da militância
negra contra o racismo. Mas isto começa a se acentuar a partir da queda do muro de Berlim
e do “colapso” do socialismo, provocando uma crise nos paradigmas da esquerda em geral.
Esse fato, somando-se aos contatos diários com os militantes investigados, levou a
uma reflexão conjunta – minha e dos investigados – sobre a possibilidade do novo papel
que o Movimento Negro deveria desempenhar na luta contra o racismo e por uma
sociedade mais justa.
A crise das esquerdas e a falta de uma referência socialista coloca, para os
movimentos sociais, a reflexão e a busca de novos paradigmas que orientem a ação política
cotidiana, uma vez que as teorias socialistas já não dão conta das tarefas e da nova
realidade sociocultural do mundo contemporâneo.
Nessa nova realidade, emergem as demandas do Movimento Negro, que na periferia
do capitalismo desenvolvido é constrangido a reelaborar uma política de intervenção – de
combate ao racismo – no momento em que as teorias “das lutas de classe” não respondem
mais às lutas de sujeitos sociais específicos.

frequentadores do candomblé e, outros ainda, afirmam que sua iniciação religiosa é de caráter pessoal não havendo
nenhuma relação com sua militância partidária.
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1. Religião e Política em perspectiva

Quando os fundadores do marxismo afirmaram que a religião era o baluarte do


obscurantismo e do conservadorismo, eles analisavam uma realidade específica, na qual os
dogmas do catolicismo estavam de mãos dadas com o poder das classes dominantes e
justificando um mundo onde existia opressão, miséria e alienação, para a maioria dos povos
europeus. Para Marx e Engels, assim como para a esquerda revolucionária da Europa,
identificada com o “socialismo científico”, a religião era o “ópio do povo”. E hoje? A
religião ainda está camuflando uma realidade, como no século XIX? Parece que, em vários
contextos, ela ainda cumpre - enquanto instituição - um papel específico na dominação de
classes.
No entanto, no contexto latino-americano, essas análises marxistas não só devem ser
revistas, como se deve procurar “um novo caminho interpretativo”, no que diz respeito ao
papel da(as) religião(ões), nas lutas contra a dominação política. A título de exemplo,
pode-se apontar a Nicarágua, El Salvador, Haiti, as lutas camponesas no Brasil, etc., ou
seja, a existência, nos últimos anos, de um pensamento religioso que utiliza conceitos
marxistas e inspira lutas de libertação social: a Teologia da Libertação. Ela usa seus
recursos materiais e espirituais para intervir na luta dos trabalhadores por uma nova
sociedade, enfim, pelo socialismo.
Quem ainda não observou no PT, por exemplo, vários militantes que, a partir da fé
cristã, inspirados pela Teologia da Libertação, lutaram e lutam ao lado dos marxistas e
ateus, por uma sociedade socialista? E, sem dúvida, uma grande parte dos fundadores do
PT se originou das Comunidades Eclesiais de Base ( CEBs ). Ou seja, não é somente o
entendimento das condições materiais de existência que pode determinar a luta por uma
utopia - a ideologia e a consciência de classe - mas também uma fé, uma esperança
religiosa. Assim, essa discussão é reconhecida por unanimidade no interior do PT. Quem
duvida que os motivos profundos de um Frei Beto, por exemplo, para lutar pelo socialismo,
não sejam uma fé profunda no futuro da humanidade, no Reino de Deus, construído pelas
mãos dos homens para serem livres de toda a opressão? A Teologia da Libertação teve suas
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bases teóricas nas reinterpretações do Evangelho, nas leituras de Gramsci e do filósofo


marxista Ernest Bloch. Nisto, a maioria dos marxistas reconhece a sua importância.
Mas, esse reconhecimento se esgota quando, dentro do PT-RJ, se pode encontrar
militantes que são do Candomblé. Alguns se escandalizam dizendo que não existe relação
entre ser do Candomblé e ser do PT ou marxista. Outros, brincando (ironizando de forma
preconceituosa), dizem que “bater tambor” e ser de esquerda é muito estranho. E esse
estranhamento e reações preconceituosas foram encontradas, na militância petista do Rio de
Janeiro, durante os três anos de pesquisa de campo sobre a existência de militantes do PT –
e alguns marxistas – que são iniciados no candomblé.
Aparentemente, ter como referência “uma crença” na religião dos orixás e ser do PT
ou marxista pode parecer contraditório, pois, entrar em transe, a prática de rituais ‘mágicos’
(estranhos à cultura judaico-cristã oficial ) e ser um sujeito crítico que quer transformar a
realidade, não alienado etc., pode parecer eclético ou exótico. Contudo, ao se considerar o
Candomblé dentro do campo das crenças religiosas ou como “visão de mundo”, elaborada
pelos descendentes de africanos na diáspora, deve-se, à primeira vista, por uma questão de
honestidade analítica e política, pelo menos, desconfiar de que para esses sujeitos, que são
candomblecistas e petistas, existe um sentido profundo. Para eles, significa muito ser filho
de Ogum, Yemanjá, Oxóssi, Oxalá ou Xangô e participar ativamente da militância petista.
Na verdade, a dificuldade de se compreender essa condição histórica tem raízes na
formação eurocêntrica da totalidade da esquerda brasileira. Nega-se (consciente ou
inconscientemente) as culturas de matrizes africanas e a própria existência de um
continente – no caso o Africano. Pela análise científica, livre de preconceitos (raciais e
religiosos) se constata que as religiões afro-brasileiras, e alguns de seus adeptos, também
podem aderir a luta pela cidadania, pelos direitos humanos e principalmente, por uma
sociedade socialista.
Muitos exemplos históricos podem confirmar isto, como afirmam vários militantes
do Movimento Negro, pois a história dos africanos escravizados e seus descendentes não
tem sido outra senão que a afirmação de sua herança cultural. A luta e a resistência
acontecem em função das suas “culturas exiladas” ( como afirmam os militantes
22

investigados ) e da forma de resistir e “agir do negro”3 ou afro-brasileiro. Palmares e


diversos Quilombos, revolta dos Malês, Balaiada, foram marcos na luta contra o status quo.
Muitas dessas lutas contra a escravidão, segundo alguns pesquisadores foram planejadas
dentro de terreiros de candomblé4.
O que pode haver em comum entre a prática religiosa do Candomblé com a utopia
socialista, defendida por alguns militantes do PT? Uma tradição religiosa aparentemente
indiferente à esfera do político, voltada para o sobrenatural e o sagrado, e o socialismo
defendido por esses militantes do PT? De que forma é possível também uma apropriação
política do candomblé? Parece óbvio que a religiosidade de “origem africana”, com
elementos e rituais estranhos à cultura ocidental, não tenha nada a ver com a ideologia dos
petistas e dos marxistas no interior do PT. Além disso, existe o fato de que o mundo do
Povo de Santo - iniciados no candomblé - é muito particular, voltado para o cotidiano das
comunidades, encontrando-se, aparentemente, do lado oposto das pretensões universalistas
da utopia petista destes militantes.
No entanto, o fato de alguns militantes do PT, no Rio de Janeiro, e entre esses
alguns marxistas, participarem das comunidades de candomblé como iniciados, e alguns
deles, começarem uma elaboração mais sistemática no sentido de legitimar uma condição
histórica (ser candomblecista e petista ), estimulou esse trabalho de dissertação,
Essa investigação vai procurar os significados das construções e invenções
identitárias destes militantes que, de um lado, se utilizam de uma “tradição” do candomblé,
para criar uma diferenciação identitária dentro do PT e do Movimento Negro e, de outro, se
utilizam da política partidária para conquistarem mais prestígio no mercado religioso das
comunidades de candomblé. Nesse sentido, essa análise leva à refletir sobre o fato de que
atualmente vivencia-se um mundo em contínua gestação, no qual existem novos padrões
socioculturais a serem desvendados pelas ciências sociais. Assim, observa-se, ao longo
desses estudos, militantes que (re)inventam formas políticas de militância e práticas de
religiosidade. Para eles, o sentido mítico original (o candomblé de “raízes africanas”) é
reelaborado, dentro de um sentido histórico e político conjuntural.

3 Este termo foi resgatado nas linguagens dos militantes investigados. Significa uma forma essencialista de classificar os
negros brasileiros como herdeiros naturais de uma raiz sócio-cultural africana.
23

Esses sujeitos constroem identidades, a partir de discursos e práticas reelaboradas,


no intuito de legitimar suas condições históricas e sua ação política. Para isto, redefinem o
candomblé, seus rituais e princípios de forma singular. E ao recriarem significados e
práticas, eles confirmam aquilo que Hobsbawm e Ranger5 afirmam sobre a invenção das
tradições. Ou seja, inventam tradições no sentido de um conjunto de práticas normalmente
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas6. Essa construção da noção de
religiosidade atende aos objetivos de usar ou tomar modelos tidos como tradicionais para
novos fins.
Isso se expressa, como se vê, detalhadamente mais adiante, na forma como os
militantes petistas constroem a associação entre, por exemplo, o papel predominante da
mulher nas comunidades de terreiro e a luta feminista inserida no projeto socialista que
defendem.
Essa dupla pertença ao candomblé e à militância socialista, permite considerar o
dinamismo das relações sociais e culturais. Tal postura, remete à necessidade de se
reformular o conceito de tradição e de identidades – individuais e grupais – como
fragmentos articulados e/ou histórias reconstruídas e reinventadas.
Por outro lado, será que a utilização de símbolos e ressignificações religiosas pode
instrumentalizar militantes de esquerda, no sentido de intervir de forma mais contundente
nas relações sociais, na luta contra as opressões, contra o racismo, etc.? Se a resposta for
positiva, pode-se em princípio, afirmar que esses militantes inventam, de um certo modo,
suas fontes, suas origens, seus profetas e inspiradores e os reinterpretam em função de suas
necessidades.

4 CARNEIRO, E. Os candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1947.


5 HOBSBAWM, E. J. e RANGER. T. Invenzione della tradizione. Torino: Einaudi, 1983.
24

2. Os sujeitos investigados e o papel do Movimento


Negro, do Candomblé e da Utopia socialista.
2.1 – Quem são os militantes.

Ao longo da pesquisa, foram encontrados vários militantes, que de uma certa forma,
tiveram ou têm algum vínculo iniciático no candomblé. Mas a rigor, como já se afirmou
anteriormente, só foi possível identificar alguns, que se encaixavam nos critérios de
classificação aqui expostos e definidos, ou seja: militantes do PT e do Movimento Negro e
que, em suas práticas política e religiosa, construíssem novas identidades (escrevendo
textos, defendendo suas idéias em público e usando uma linguagem religiosa para defender
seus ideais políticos nos seus espaços de militância) e inventassem associações entre suas
práticas e reinterpretações religiosas e a utopia socialista que defendem. São eles:

JORGE CARNEIRO- 41 anos, solteiro e negro. Formado em Economia, pela


Universidade Gama Filho no Rio de Janeiro. Milita no PT, na Secretaria de Combate ao
Racismo do Diretório Estadual do PT, exercendo a função de secretário. Foi membro (de
1997 a 1999) da Direção Nacional da corrente interna do PT, denominada Democracia
Socialista ( DS )7, atualmente é militante do MNU (Movimento Negro Unificado). Se
autodefine marxista-revolucionário. É Yaô e iniciado há oito anos na casa de Iyá Nitinha de
Oxum. Tem o cargo de Babalorixá e já começou seus preparativos para a obrigação de sete
anos. O seu Orixá é OGUM.
Nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 13 de abril de 1959 e viveu toda sua
infância e adolescência na zona norte do município, em Irajá. De família pobre, composta
por três irmãs e um irmão, seus pais conseguiram manter seus estudos até à universidade.
Segundo seu relato, sempre viveu um conflito, pela sua condição de negro. Não admitia

6 HOBSBAWM, E. J. e RANGER. T. idem, 1983.


7 Tendência interna do Partido dos Trabalhadores fundada em 1980. Ela é constituída por um grupo em nível nacional de
militantes que, têm como objetivo, construir um Partido Revolucionário no Brasil através do PT. Defende o socialismo
democrático, diferente das sociedades do socialismo real. Na sua trajetória, sempre polemizou, em muitos momentos, com
o grupo de Lula.
25

publicamente e sempre procurava se apresentar aos outros como branco. Em suas palavras
afirmava quando adolescente:

“Quando era jovem, mostrava aos outros que minha cor era branca,
fazia isto mostrando as marcas de minha sunga. Me olhava sempre no
espelho e queria identificar meus lábios finos.”

Acrescenta que não era somente ele, mas a maioria de sua família, também se
comportava da mesma maneira. Mesmo vivendo dificuldades econômicas, comuns à
população da periferia do Rio de Janeiro, Jorge consegue, em 1979, aos 20 anos de idade,
entrar para uma universidade.
No início da década de 80, entra em contato com militantes do movimento
estudantil e do recém-fundado Partido dos Trabalhadores. E a partir daí, identificado-se
com eles, começa a participar do movimento estudantil. Jorge conta que este foi um
momento importante de sua vida, pois descobriu que poderia interferir, de alguma maneira,
para modificar sua situação de classe.
“Foi um período muito bom em minha vida, comecei a tomar
consciência de minha condição de explorado pela sociedade”

Ao longo dos anos 80, sua história é também a história de muitos militantes do PT,
participando de reuniões, greves, manifestações, etc.
Logo após sua formatura em 1987, começa a procurar emprego. Mas é somente em
1988 que ele consegue ser empregado numa grande indústria metalúrgica do RJ, a
CIFERAL. Ele nos conta que foi seu grande emprego, como gerente de recursos humanos.

“Entrei para a CIFERAL num grande momento político de minha


vida, quando ocorriam grandes mobilizações do sindicato dos
metalúrgicos, greves, campanha do LULA, etc. Eu sempre era
reconhecido na fábrica como o Jorge do PT. As pessoas tinham
referência em mim para discutir as questões salariais e de
26

reivindicação da categoria. Fui demitido não por questões políticas


mas por intrigas pessoais da chefia na época.”

Nesse mesmo ano, Jorge militava no núcleo do PT da Leopoldina, zona norte do


Rio de Janeiro. Ali ele conheceu os militantes da Democracia Socialista8, e havendo
acordos políticos com esta tendência interna do PT, ingressou nela, onde se encontra até
hoje.
Por outro lado, Jorge conta que a entrada na militância petista o fez “rever a sua
condição de negro”. Mesmo não tendo muito contato com o Movimento Negro, no início de
sua militância, ele afirma que passou a perceber que era “bobagem” se “passar por branco”
e, ao mesmo tempo, percebe que “sempre esteve em contato com a cultura popular negra”.
Afirma isso, lembrando de quando descobriu que uma de suas avós era da umbanda, e que
quando jovem freqüentava alguns terreiros de umbanda com sua irmã, apesar de toda a sua
família se afirmar católica.
No ano de 1989, Jorge inicia uma nova fase em sua vida. Atormentado por
problemas de saúde9, ele relata que foi um período difícil de sua vida, pois, vários médicos
não deram solução para seu problema, que como diz, era muito psicológico. A partir daí,
procura diversas soluções espirituais, passando pela umbanda e por diversos terreiros de
candomblé.

“Para resolver meu problema de cabeça, procurei muita gente, pais


de santo, mães de santo, etc. Mas não encontrava ninguém que
pudesse me ajudar, parecia que ia morrer ou ficar maluco da cabeça,
até encontrar Mãe Nitinha do Engenho Velho.”

8 Jorge relata que, para ele, “a DS é a única tendência que é fiel ao PT, constrói o partido para se tornar um partido
revolucionário e que, as outras tendências não assumem o PT inteiramente, estão sempre querendo construir sua própria
posição política, sendo sectários e estreitos”.
9 Por motivos pessoais Jorge nos solicitou não revelar o seu problema de saúde.
27

Relata que quando chegou no Engenho Velho, terreiro de Mãe Nitinha de Oxum,
em Nova Iguaçu, ela o aconselhou a se iniciar no candomblé, pois, era a única solução para
seu problema, já que, segundo ela, Ogum o estava chamando para seu inevitável destino.

“Quando eu cheguei aqui no candomblé, estava desesperado, e


quando Iyá Nitinha disse que teria que me iniciar, eu fiquei mais
preocupado, pois me questionava se era isso mesmo que deveria
fazer.”

Jorge conta que suas crises existenciais e dúvidas, quanto à proposta de sua futura
Mãe de Santo perpassavam várias coisas, inclusive a questão política.

“Quando entrei para o movimento, sempre me disseram que a


religião era o ópio do povo, inclusive na DS, mas eu precisava tomar
uma decisão, e quando não agüentava mais resolvi seguir os
conselhos de minha mãe de santo”

Mas para Jorge, a iniciação não foi fácil. Por vários dias e meses ele tentou,
preparou todos os materiais de iniciação, mas como dizia, “sempre acontecia algo na casa
de Mãe Nitinha, que impedia o início de minha obrigação”. Foi somente em abril de 1992,
que Jorge realiza sua iniciação no candomblé. Neste intervalo, ele sempre foi interpelado
pelos militantes do PT e da DS, se por acaso, não vivia uma contradição entre se afirmar
marxista, e ser iniciado no candomblé.

“As pessoas do PT, quando souberam que eu estava me iniciando


no candomblé, me perguntavam se isso não era uma contradição. Eu
respondia que a dificuldade era deles e não minha. Para mim, não
existiam problemas, lhes dizia que, pelo contrário, pelos problemas
que vivia pessoalmente, achava que minha iniciação poderia
28

melhorar minha militância, poderia me acalmar e me tornar mais


sereno.”

Jorge conta que no período de iniciação, quando os recém-adeptos do candomblé


ficam reclusos por vinte e um dias, ele refletia muito sobre esta condição, que ele chamou
de filosófica, entre ser militante e ser iniciado, começar uma nova vida, dedicada aos orixás
e em particular ao seu: Ogum.

“No roncó eu me perguntava, por que estou aqui, poxa!!!, eu sou


militante, da DS, marxista. Será que estou fazendo o certo? Mas ao
mesmo tempo estava descobrindo minha história, minhas raízes, meu
corpo. Eu era um cara tímido, não dançava, falava pouco. Aquilo
tudo que pensava, fazia eu me sentir bem comigo mesmo, me sentia
mais forte para enfrentar as dificuldades da vida. Me lembro que meu
irmão de santo Zé Flávio, me dizia no roncó, que tudo aquilo que eu
estava fazendo me ajudaria na minha militância política. Que eu
estava nascendo de novo e construindo um futuro melhor para mim e
meus companheiros de luta.”

De fato, no contato que fiz com Jorge, junto a outros amigos do PT, eles afirmavam
que depois que ele se “iniciou”, passou a se afirmar mais na militância, a falar mais, se
assumindo como negro e adepto do candomblé, sem nenhuma vergonha ou recalque.
Jorge relata que é a partir daí que ele começa a pensar na sua condição de
candomblecista, militante marxista e do PT. Mas não por acaso, como ele próprio afirma,
foi uma conjuntura política, ligada a esse período de sua vida, que o fez tentar criar uma
associação entre esses dois mundo que vivenciava:

“No início da década de 90, eu não tinha mais os problemas pessoais


que tinha antes de minha iniciação, mas meus companheiros tinham,
pois, depois da derrota do Lula, em 1989, muita gente desbundou,
29

uma crise geral na militância. Eu me sentia mais tranqüilo, com meu


orixá Ogum, na cabeça. Por outro lado, por esta minha condição e
pela crise geral da esquerda, comecei a perceber que poderíamos
construir novos atores na sociedade, que tinham um papel histórico
em nossa luta. Meus ancestrais tinham lutado contra o racismo e o
capitalismo à maneira deles. Foi aí que identifiquei no candomblé, na
sua filosofia, visão de mundo, uma maneira de resistir e lutar contra
as opressões.”

Ou seja, o que Jorge relata é um momento singular de sua vida, subjetiva e objetiva,
que o fez querer construir um novo movimento social. É a partir daí que ele começa a
articular encontros, formais e informais, para a discussão sobre o papel do candomblé na
luta socialista. Por outro lado, a partir do contato com nossa investigação, começa a dar um
rumo mais sistemático na sua militância, priorizando as discussões sobre cultura e religião,
no Movimento Negro e no PT.
Mas, Jorge não se limita somente ao discurso cultural e religioso na militância,
como se verá adiante, ele procura dar uma coerência entre sua prática política e suas
elaborações teóricas. Um desses momentos é a aplicação prática de uma elaboração de um
de seus textos: “O Samba de Roda e a Militância Socialista”.
Neste texto, que adiante será analisado mais detalhadamente, Jorge afirma que a
esquerda é muito elitista e centralizadora, ou seja, fala em democracia e participação, mas
“não radicaliza” no cotidiano essa mesma democracia e participação. Dá como exemplo,
afirmando que nas reuniões da esquerda se “prioriza o personalismo” e a competição entre
aqueles que sabem mais teorias revolucionárias do que os outros. Para se contrapor a esse
tipo de prática, Jorge, em todas as reuniões de que participa: do seu núcleo do PT, do
Movimento Negro, de debates, propõe se formar uma roda, onde todos olhem para todos e
todos falem sobre o assunto em discussão. Propõe isso comparando ao samba de roda e ao
xirê no candomblé, pois como afirma: “na roda de samba e no xirê todos participam, dão
sua contribuição, já no xirê, todos os orixás dançam e se confraternizam, não existindo
hierarquia entre eles.”
30

Jorge, nesse aspecto, tenta transpor uma prática culturalmente considerada


tradicional entre os negros do candomblé a uma militância de esquerda. Mais adiante, ele
elabora outras questões, tentando argumentar sobre a validade de suas associações entre a
condição de iniciado no candomblé e a militância partidária. Por outro lado, nas
observações feitas, quando da presença de Jorge em sua comunidade de terreiro, ele não
mostra o mesmo empenho em construir as associações acima. Jorge é um Yaô, filho de
santo de uma casa tradicional do candomblé, onde as hierarquias são extremamente rígidas,
entre os mais velhos e mais novos na iniciação. Pelo que se observa, Jorge respeita muito
essa hierarquia, não encontrando nenhum espaço na tentativa de uma suposta
democratização do seu terreiro. Faz tudo que sua Mãe de santo manda, obedece
rigidamente a hierarquia e não questiona as ordens dos mais velhos.
Além disso, interpelado por mim, num momento ritual de sua comunidade, a
respeito da divisão entre tarefas de homens e mulheres, que reproduziam as tarefas
socialmente aceitas pela sociedade em geral, a saber, as mulheres preparavam as comidas,
enquanto os homens faziam tarefas que exigiam sua força física, ele afirmou que isso era
natural, que não tinha nada a questionar se era uma divisão machista ou não. No próximo
ponto, será enfocado como Jorge interpreta essa hierarquia, vivenciada por ele em sua
comunidade e as outras questões como feminismo, democracia, etc.

MÃE BEATA- 69 anos, separada e negra. Aposentada. Não ocupa atualmente e nunca
ocupou um cargo específico no interior do PT, porém sempre apoiou ativamente e ajudou
nas campanhas eleitorais de alguns candidatos do partido. Se autodefine socialista. Dentre
os militantes investigados é a única mãe de santo. Iniciada há quarenta e seis anos, é
Ialorixá. Desde 1985 dirige a comunidade de terreiro ILÊ OMIOJUARO. É filha de santo
de uma das Ialorixás mais famosas do Brasil: OLGA DE ALAKETO. Seu orixá é
YEMANJÁ.
Beatriz Moreira Costa, mãe de Santo, nasceu em 20 de janeiro de 1931, em
Cachoeira de Paraguaçú, Recôncavo Baiano, mais conhecida como Mãe Beata de Yemanjá.
Mãe Beata se afirma negra, descendente de escravos e neta de portugueses. Sua
infância aconteceu nos arredores da cidade onde nasceu e foi marcada pela presença de
31

Mãe Afalá ( senhora idosa respeitada de origem Fon – Jejê ) e de outras velhas africanas.
Assim narra seu nascimento:

“Minha mãe era uma menina pobre do interior, descendente de


escravos. Na semana de me parir, ela teve vontade de comer peixe,
mas não tinha dinheiro para comprar e resolveu ir pescar. Apanhou o
jererê, que era um saco redondo de barbante, como rede, e foi com
uma prima para o rio. Quando passavam pela casa da velha africana
que era parteira, ela perguntou: ‘Do Carmo, onde você vai?’ Minha
mãe respondeu: ‘vou pescar. Estou com vontade de comer peixe’. E a
velha disse: ‘olha que esse menino seu vai nascer’ E minha mãe:
‘menino não. Tenho para mim que é menina’. E foi pescar.
Quando estava dentro d’água a bolsa partiu e a água ficou toda
vermelha de sangue. A prima dela ficou maluquinha, e saiu correndo.
Eu nasci com a cabeça deformada, depois que foi chegando no lugar.
Quando minha mãe saiu do rio, a parteira a levou para a casa, pegou
umas folhas e fez uma cama de palha para ela descansar. Minha mãe
sabia que eu era filha de Yemanjá. Toda minha família era do
candomblé e fui aprendendo a viver naquela comunidade.”

Toda sua vida foi marcada pela presença dos rituais e cotidiano do candomblé. Em
1939, por exemplo, ficou doente e foi enviada à casa de sua tia Alice de Ogum, no Centro
de Cachoeira de Paraguaçú, onde foram feitos rituais para a cura da menina. Em 1944, fez
seu primeiro rito de iniciação na mesma cidade com o Babalorixá Anísio. Começou a
namorar cedo, já na adolescência, e seis anos depois de sua iniciação casou no religioso,
numa igreja católica, e dois anos depois oficializou no civil. Em 1956, depois da morte de
seu pai de santo (em 1954), transferiu-se para Salvador, onde encontrou a Yalorixá Olga de
Alaketo, passando a integrar seu terreiro e fazendo sua iniciação de fato.
32

Durante seu casamento teve quatro filhos, Ivete, Maria das Dores, Aderbal e
Adailton e trabalhou como cabeleireira. Em função de problemas conjugais se separou do
marido e, em 1970, transferiu-se para o Rio de Janeiro com seus filhos.
No Rio, para sobreviver, trabalhou em diversos locais, até firmar contrato como
costureira na TV Globo, no início da década de 70. Isso permitiu que ela superasse suas
dificuldades econômicas conseguindo comprar um apartamento em Realengo e um
terreno, em 1982, em Miguel Couto, onde hoje é o seu terreiro . Nesse mesmo ano,
ela começa a construir o seu futuro terreiro de candomblé. E, depois de algum tempo, ao se
aposentar na Rede Globo, em 1985, foi conferida Yalorixá, por Mãe Olga de Alaketo e
abriu seu terreiro OMIOJUÀRÓ.
Mãe Beata conta que passou muitas dificuldades econômicas e que com muito
sacrifício pessoal conseguiu superar. Um desses problemas foi o fato do pai ser alcoólatra e
perturbar sua mãe. Além disso, ela tem um problema cardíaco hereditário. Em 1976, os
médicos disseram a ela que teria somente três meses de vida e precisava colocar uma ponte
de safena, mas como afirma, “Yemanjá está sempre me protegendo”. Já passou por nove
operações e já esteve em coma.
Em meados da década de 80, já aposentada, começa a se dedicar a religião dos
orixás. Funda seu terreiro numa região pobre da Baixada Fluminense, onde se concentra a
maioria dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro. Mãe Beata afirma que, por ter
enfrentado muitas dificuldades, não abriu seu terreiro simplesmente para se dedicar a sua
religião, mas também para ajudar seus “irmãos negros e negras”.
A fundação de seu terreiro, como nos relata, acontece no momento em que também
conhece membros dos movimentos populares de Nova Iguaçu e do Movimento Negro,
mais especificamente os fundadores do Ipelcy e do Inarab (associações negras que
abordaremos posteriormente).
Mãe Beata parece perceber que esses seus novos amigos poderiam dar um maior
prestígio a sua casa de santo. Isso se revelou no crescimento rápido de sua comunidade a
partir de 1988, quando alguns de seus filhos de santo, na época cerca de oitenta pessoas,
ingressam no candomblé. Mas não só por esses fatores. Mãe Beata começa a fazer trabalhos
de assistência social no bairro onde se encontra o terreiro, cursos profissionalizantes, aulas
33

de culinária, etc. Sua notoriedade começou quando, pela primeira vez no Rio de Janeiro,
um Rabino, Zalman Schachter visitou sua casa de candomblé. Um rabino que peregrinava
pelo Brasil pregando o ecumenismo e a tolerância religiosa entre as seitas e as diversas
denominações. A partir daí Mãe Beata percebe que fazer articulações ecumênicas e alianças
pontuais com outras figuras religiosas, de outras denominações, era muito interessante para
um maior prestígio de sua casa.
Por influência do crescimento do trabalho do Partido dos Trabalhadores, quando
este elegeu pela primeira vez dois vereadores na cidade, em 1988 ela se filia ao PT de Nova
Iguaçu. Isso ocorreu, como resultado de um longo trabalho político de base do PT, no
bairro de Miguel Couto, onde Mãe Beata mora. Na época, alguns de seus filhos de santo
eram militantes do partido.
Aqui se pode ver que Mãe Beata começa a ganhar uma notoriedade em muito pouco
tempo, ao contrário dos terreiros já instalados na região há algum tempo. Parece que ser
uma tática muita bem pensada por Mãe Beata, que, como se constata, a constituiu como
uma das Mães de santo mais expressivas do Estado. Porém, Mãe Beata não explicita esta
aliança com o PT e com os movimentos sociais, seu intuito se constituiu em ganhar
prestígio para sua casa de candomblé. Ela afirma isso de uma outra forma, como nos relata:

“Sou uma cidadã e vivo de luta, desde quando era pequena. Creio que
Olorum determinou que a nossa função mais importante se dá quando
abraçamos uma causa. Podemos sempre plantar uma sementinha, não
importa onde estejamos. A política não deve estar desassociada do
nosso dia-a-dia. Quando falamos sobre a saúde da mulher ou quando
discutimos o custo de vida no supermercado, estamos fazendo
política. A luta de uma mulher ajuda a outra a crescer”.

Todo esse trabalho de crescimento de seu terreiro teve a ajuda de seus quatro filhos.
Nas observações feitas nessa investigação se percebe que estes são verdadeiros “relações
públicas” de Mãe Beata. São eles que “pegam no pesado”, convocando a comunidade para
34

os eventos promovidos pelo terreiro, dando os cursos oferecidos por Mãe Beata e, claro,
ajudando-a em todos os rituais da casa.
Mãe Beata apesar de um discurso politizado, pregando a igualdade mas mantendo
uma hierarquia dentro de sua comunidade parece ter a mesma prática social de Jorge
Carneiro em seu terreiro. Ali é ela quem dá as ordens, determina os horários dos rituais, das
oferendas aos orixás e etc.. Nesse aspecto, ela não difere muito de outros sacerdotes e
sacerdotisas do candomblé. Entretanto, como se vê, ela faz “pregações” de ecumenismo, do
socialismo e da luta contra o racismo e pela manutenção de uma identidade negra.
Mãe Beata hoje, além dos quatro filhos, tem sete netos, um bisneto e cerca de
duzentos filhos de santo. Constatar-se-á que, após a fundação de seu terreiro e a
organização de eventos e a participação em outros – inclusive em nível internacional – , ela
continua mantendo seu prestígio fora das comunidades de terreiro afro-brasileiras, às vezes,
sendo lembrada mais como Mãe de Santo Petista e Progressista do que como uma
Sacerdotisa “tradicional” do mundo do candomblé. Certamente, Mãe Beata conseguiu mais
prestígio fora do candomblé do que imaginava na época da fundação de seu terreiro.

LUCIA BARROS- 39 anos, separada e negra. Professora. Entrou no PT em 1989, ajudou


na fundação da secretaria de mulheres do PT de Nova Iguaçu em 1991 e atualmente é
membro do diretório municipal do PT desse município, além de ser coordenadora do
coletivo de combate ao racismo do PT-NI e também membro da Secretaria Estadual de
Combate ao Racismo do PT-RJ. Se autodefine socialista e petista. É iniciada há vinte e
quatro anos, porém, somente agora retorna para uma comunidade, pois esteve longos anos
afastada das obrigações rituais por problemas pessoais. Realizou sua obrigação de sete anos
em agosto de 1998, quando recebeu seu DEKA, ou seja, o cargo de Ialorixá. Seu orixá é
OXOSSI.
Lúcia Maria Barros é Professora do ensino fundamental no município do Rio de
Janeiro. Nasceu no Rio de Janeiro em 1961 e viveu sua infância e adolescência na Baixada
Fluminense. Lúcia também é de família pobre. Ela relata que sempre viveu com seus pais
em dificuldade econômica e também sofreu a discriminação pelo fato de ser negra. Seus
pais sempre pertenceram ao candomblé e em sua adolescência, aos 15 anos, se inicia no
35

candomblé de Angola, em Nova Iguaçu. Ela nos relata que esse foi um importante
momento de sua vida, pois aprendeu muitas coisas “do santo” e vivia em paz consigo
mesmo.
Alguns anos depois (com vinte anos) tem um relacionamento com um rapaz de sua
comunidade e fica grávida. Conta que isso modificou completamente sua vida, já que sua
filha nasce com deficiência mental, o que a faz viver uma profunda crise pessoal. Abandona
o candomblé, se afastando inclusive de seus pais.
Dois anos depois se casa, termina seus estudos, se formando como professora do
Ensino Fundamental e fica grávida de novo de um menino. Nesta época começa a trabalhar
e entra em contato com um grupo religioso de Nova Iguaçu – a Assembléia de Deus. Entra
para a Igreja e se estabiliza um pouco em sua vida espiritual – conforme relata.
Lúcia expõe ainda, que sempre teve um grande interesse pelas artes, pela música e
pelo teatro. Ao mesmo tempo em que ingressa na igreja protestante, conhece um outro
grupo de animadores culturais de escolas de Nova Iguaçu. Foi a época da construção dos
CIEPs, quando vários animadores culturais e professores foram chamados em concurso
pelo governo do Estado. Nesse momento passa no concurso público, e inicia sua carreira
como professora de Ensino Fundamental. Ela começa a fazer trabalhos culturais de teatro,
com seus novos amigos animadores culturais. Em função disso, começa a viver certos
conflitos com sua igreja e com o pastor.
Em 1989, este grupo de animadores entra na campanha de LULA para presidente da
república, levando Lúcia a conhecer o PT. Os conflitos dela com seu Pastor se agravam,
pois este não vê com bons olhos seu envolvimento político, acusando-a de “misturar
política com religião”. Ela diz que começa a perceber que em sua igreja não existe
solidariedade entre as pessoas e que no PT as pessoas são mais solidárias. Afirmava na
época:

“Quando comecei minha militância no PT eu ainda era da igreja


protestante e me incomodava quando o pastor dizia que eu misturava
política com religião. O explicava que freqüentava o PT porque
meus amigos do grupo cultural e do PT levavam mais a sério a
36

humanidade, muito mais que as pessoas da igreja, e que as pessoas do


PT lutavam por uma sociedade mais justa, assim como Jesus Cristo.
Ele não se convenceu disso e mais tarde sai da igreja por isto e outros
motivos”.

Lúcia se separa de seu companheiro e começa a dar prioridade à militância política


em sua vida. Ao mesmo tempo, como relata, começa a repensar sua volta ao candomblé.
Pois logo após sua saída da igreja, recomeçou a freqüentar alguns rituais do candomblé,
reencontrando alguns amigos de sua adolescência. Afirma que esse período foi muito
interessante, pois a militância política a fez mais livre de tabus, com sua sexualidade e sua
condição de mulher; como afirma, que sempre foi reprimida na igreja.
O período de militância partidária que começava a viver era também um período
que o PT discutia muito a questão do feminismo. E ela nos relata que nesse período
começou também a ler muito e uma das leituras que mais a impressionou, foram os livros
de W. Reich, sobre a condição sexual da humanidade.

“Depois que comecei a priorizar a militância política, o meu trabalho


cultural e a luta feminista, comecei a viver mais minha sexualidade
sem culpa e percebi que, no passado, o candomblé tinha me ajudado
na vida”.

Lúcia relata que muitas coisas que vivia no candomblé: a sexualidade, a


solidariedade entre as pessoas, etc., passou a reviver na militância política no PT. Ao longo
de sua trajetória de vida e profissional ela informa que sempre foi uma “criadora de casos”,
pois sempre “fomentava” polêmicas em todos os espaços que freqüentava. Isso é
perceptível nos seus relatos sobre a polêmica com o pastor e em seu local de trabalho. Na
escola onde trabalha, um CIEP - no subúrbio do Rio de Janeiro – ela sempre questionou o
fato das crianças negras serem discriminadas. Além disso, depois de seu retorno ao
candomblé e sua passagem pela igreja protestante, ela sempre radicalizou seu discurso,
contra o que ela chama de “pensamento conformista cristão”:
37

“Num diálogo com uma colega lá da escola há alguns anos atrás, ela
dizia que mesmo se as coisas vão mal na vida, é preciso sempre dizer
que, ao final, somos felizes por que temos Deus conosco. Depois eu a
respondia que isto não é verdade, pois se as coisas vão mal, é preciso
fazer algo para melhorar nossa vida, e não se conformar com Deus”.

Ela relata isso afirmando que a “filosofia do candomblé” lhe dá uma ‘visão de
mundo’ diferente daquela cristã que viveu. Por outro lado, na militância do PT, Lúcia
sempre foi uma – como afirma – “criadora de caso” também. Diz que sempre esteve
vigilante às decisões coletivas do Partido que não são cumpridas, observa atentamente o
discurso e a prática das pessoas, para depois cobrar uma coerência.
Em função disso, Lúcia sempre esteve em minoria política no PT de Nova Iguaçu.
Numa observação feita por mim, durante alguns momentos de sua militância política, se
constatou que, de fato, essa sua característica “contestadora” sempre foi muito acentuada.
Numa reunião do PT de Nova Iguaçu, em 1998, Lúcia, ao contrário da maioria do partido,
foi contra o investimento de todo o dinheiro do PT em apenas uma candidatura a deputado
estadual. Ela achava incoerente, que os militantes, que sempre falaram em democracia, não
ajudassem aqueles candidatos que não tinham nenhum recurso econômico para suas
campanhas políticas. Alguns militantes na época concordavam com Lúcia, porém, não
questionavam publicamente – ao contrário de Lúcia - a proposta da maioria.
Um outro momento, que ela expõe, foi em 1991, quando o partido fundou o
Diretório em Belford Roxo. Naquela época o Partido já tinha definido um candidato a
presidente do diretório local, entretanto, numa conversa informal, alguns militantes
afirmavam que (de forma brincalhona) caso uma mulher se candidatasse, o partido não iria
funcionar. Nessa época, a discussão sobre o feminismo no PT fervilhava e, por conta disso,
Lúcia articula junto a outras mulheres do PT local, sua candidatura à presidência do
Partido, em contrapartida “ao machismo dos homens do PT”.
Contudo, esse “espírito contestador” não se resume somente ao PT. Depois de sua
volta ao candomblé, Lúcia sempre criticou “certas posturas” do povo de santo. Ela, de uma
38

forma bem crítica, informa que uma das coisas que mais detesta no candomblé, é o fato das
pessoas confundirem hierarquia ritual com humilhação de Sacerdotes sobre seus filhos de
santo. Por conta disso, Lúcia até hoje não conseguiu se identificar ou se fixar de forma
duradoura em nenhuma casa de santo do Estado.
O fato de se evidenciar esse seu chamado “espírito contestador”, se soma ao que se
observa na sua vida pessoal e na sua trajetória política no PT, que indica a necessidade de
Lúcia ter uma política própria dentro do Partido. Por um lado, a partir do nascimento de
sua filha, ela muda radicalmente suas relações sociais, parece que naquele momento ela
está á procura de um sentido para sua vida, por outro lado, a nível político parece ocorrer o
mesmo, pois o fato de contestar seus parceiros de militância partidária e ser “sempre
vigilante”, a coloca no isolamento constante no partido, procurando sempre se afirmar de
forma original e singular.
Em 1996, Lúcia conhece Jorge Carneiro, numa reunião de negros e negras do PT.
Jorge, sabendo que ela também era iniciada no candomblé, lhe propõe uma discussão sobre
seus textos e elaborações.
Encontrando-se só no Partido em Nova Iguaçu, no que se refere a tentativa de
construir associações entre sua religiosidade e a e política, ela percebe que esse movimento
de Jorge lhe daria um espaço de atuação novo, de atuação política. É aqui que se identifica
o começo das intervenções de Lúcia, no sentido de construir associações entre sua
militância política e sua condição de iniciada.
O que se vê então, é que Lúcia sempre vivia uma dualidade de presença no
candomblé e na militância, entretanto, por estar isolada dentro do partido, não encontrando
uma comunidade fixa para a prática de sua religiosidade, ela preenche esse “vazio”, no
momento em que encontra outro militante que tenta realizar uma discussão política a
respeito de sua religiosidade. A partir daí, Jorge, Lúcia e mais adiante, também Paulo
Cezar, tentam construir um novo movimento fora e dentro do PT.
Entretanto, Lúcia parece tentar construir associações entre o que ela chama de
“visão de mundo” do candomblé e utopia socialista, de forma isolada, tanto no PT, quanto
na sua vida religiosa, numa tentativa de se auto-legitimar dentro do partido com uma
39

política diferenciada, para sair do isolamento em que se encontra, buscando uma base mais
sólida para sustentação de sua militância política e poder de influência.

PAULO CEZAR- 44 anos, casado e negro. Funcionário Público, Agente administrativo da


Secretaria de Fazenda do Estado. É coordenador nacional do MNU, foi assessor
parlamentar da vereadora Jurema Batista, do PT-RJ. Recentemente ingressou na Secretaria
Estadual de Combate ao Racismo do PT. Se autodefine socialista e petista. É Ebomy, fez a
sua obrigação de sete anos em 1998, iniciado há oito anos e meio. Freqüenta todos os
rituais e eventos de sua comunidade. Seu orixá é Xangô.
Paulo Cezar Anastácio Pereira, nasceu na periferia da cidade do Rio de Janeiro em
20 de maio de 1956. É o terceiro filho de uma família de nove irmãos. De família pobre,
viveu sob condições semelhantes à de Jorge Carneiro. Viveu sua infância e adolescência no
Andaraí (Subúrbio do Rio de Janeiro). Por dificuldades econômicas de sua família termina
o segundo grau com 22 anos. Paulo Cezar, mais conhecido como PC, relata que sempre foi
discriminado pelo fato de ser negro, quando era jovem começa a despertar sua consciência
negra, quando aos 18 anos, vai procurar emprego.

“Eu e minha família, sempre fomos discriminados por sermos


negros, no bairro, no cotidiano da vida, etc., porém senti isto na pele
quando comecei a procurar emprego. Me lembro que na época,
encontrei um trabalho muito bom num escritório, mas uma moça do
departamento pessoal, depois que me viu pessoalmente, me perguntou
se eu falava inglês. Claro que não sabia, e então me rejeitaram. Assim
como vários outros trabalhos que não conseguia, pois apesar de
saber datilografia e outras habilidades que tinha, fui rejeitado por
motivos banais, que hoje vejo que eram simples desculpas, pois o
motivo era o fato de ser negro”.

PC, diz que não se importava com essa discriminação quando era adolescente, mas
quando não conseguia emprego, isso lhe fazia se sentir muito humilhado. Mas, PC
40

conseguiu outros empregos e na primeira oportunidade que teve, em 1979, entrou para
Universidade Gama Filho, para fazer economia, com 23 anos.
Durante seus estudos, trabalhou como Office Boy, agente de publicidade, no ramo
de Hotelaria, etc. Levando uma vida difícil ele consegue terminar a faculdade e inicia uma
outra de Engenharia econômica em 1984, terminando-a em 1988. PC tem um longo
currículo de cursos de especialização e cursos ligados a área de Marketing e planejamento
econômico.
Revela que, já cansado de sofrer preconceito racial na universidade e nos empregos
que tentava arrumar, decidiu em 1986, junto com amigos, abrir uma agência de propaganda
própria. De 1986 à 1988, trabalhou por conta própria e de, 1988 à 1993, além de sua
agência conseguiu um trabalho em outra agência de publicidade acumulando, assim, dois
trabalhos.
Devido a essa história pessoal, onde PC sente “na pele” o racismo, ele conta, que
onde morava no Andaraí, conheceu um grupo de militantes do Movimento Negro em 1980,
que fundaram o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN) e eram filiados ao PT. PC,
expõe que foi uma grande ocasião em sua vida conhecer aquelas pessoas, porque estava
muito revoltado com o racismo que sofria, já que estudava muito, fazia cursos, mas “as
pessoas não me admitiam como um trabalhador qualificado”.
Sua história a partir daí, foi muito engajada no Movimento Negro. Ele conta que
depois que tomou consciência do racismo no Brasil, começou a fazer um trabalho junto aos
seus amigos, em algumas favelas do Rio de Janeiro.

“Depois que entrei para o IPCN, fundamos um grupo de amigos


negros das favelas e periferia. Depois em 1980 me filiei ao PT, por
influência dessas pessoas, como Jurema Batista, Marcelo Dias, etc.”

Em 1982, esse grupo tenta eleger como vereadora, Jurema Batista, mas não obteve
êxito. Tentou novamente em 1988, com o mesmo resultado. Ou seja, durante toda a década
de 80, PC dedica sua vida à universidade e à militância do Movimento Negro.
41

PC informa um fato específico de sua vida: sua família sempre viveu entre
influências religiosas do kardecismo, umbanda e catolicismo. Segundo ele, isso vem desde
sua avó materna, que era rezadeira, fazia curas e ajudava os vizinhos, e também à causa de
seu avô paterno que era pai de santo na umbanda. PC diz que, como era muito ligado a seu
pai, quando tinha 14 anos, em 1970, se iniciou na umbanda, ficando nela até 1990, quando
entra para o candomblé. Sua passagem da umbanda para o candomblé se dá, como informa,
não por questões políticas, mas “por questões espirituais”.

“Na umbanda eu era de Ogum, fazia todos os rituais para ele e


São Jorge. Mas quando jogava búzios, de vez em quando no
candomblé, os pais e mães de santo me diziam que eu era de Xangô.
Foi então que em 1989 eu fui numa casa de candomblé e “bolei”10,
Xangô me pegou. Foi então que me convenci que eu não era de
Ogum. Então, pelo fato de xangô ter me chamado eu entrei para o
candomblé e me iniciei em 10 de novembro 1990.”

PC afirma ainda que foi nesse período, junto às discussões no Movimento Negro,
que percebeu que “a umbanda significava historicamente um processo de
embranquecimento das religiões negras no Brasil”. O que segundo ele, faz parte de uma
discussão histórica do Movimento Negro acerca do sincretismo e das teorias de
embranquecimento da cultura negra. E isso porque para o Movimento Negro, a partir de
1979, com a fundação do MNU, a umbanda é identificada como uma religião sincrética que
não representa uma suposta originalidade africana pura. No entanto, essa tese não é
consensual no Movimento Negro.
Em 1992, depois de duas tentativas, o grupo que historicamente fundou o IPCN,
junto com PC, elege Jurema Batista vereadora pelo PT do Rio de Janeiro. A partir daí, esse
grupo continua a realizar o trabalho político nas favelas e periferias do Rio, com um
mandato parlamentar nas mãos. Na posse de Jurema Batista, PC se integra ao mandato
como assessor parlamentar. PC afirma que esse grupo de pessoas que ajudou a eleger
42

Jurema Batista, já no final da década de 80, tinha contatos com o Grupo do INARAB, que
fazia trabalhos políticos com as comunidades de candomblé do Rio de Janeiro. Ele ainda
diz que chegou a participar de alguns encontros do Inarab e do Cenarab, mas não era sua
prioridade de discussão na época.
Somente a partir do mandato de Jurema, ele começa a fazer uma discussão mais
sistemática acerca da importância política da “cultura africana” – como classifica as
religiões afro-brasileiras. Uma vez que durante a campanha eleitoral ele e outros militantes
pediram votos a alguns iniciados do candomblé. Em função disto e do compromisso de
Jurema com toda a comunidade negra do município, o mandato tinha que discutir políticas
públicas para esse setor.
Nesta época, PC conhece Jorge Carneiro de quem se torna amigo e “irmão”, como
diz, de santo. Começando, então, uma discussão mais sistemática, sobre as possíveis
associações entre religiosidade expressa no candomblé e na utopia socialista. O
interessante nesse encontro – entre PC e Jorge – é que ele não se deu antes, na Universidade
Gama Filho, embora tenham iniciado lá, o mesmo curso e no mesmo ano.
No mandato de Jurema Batista, PC organiza eventos que envolvem várias
comunidades de terreiro e até projetos legislativos referentes aos interesses dessas
comunidades, o que se verá mais adiante. Nesse período, PC se casa ,em 1995, e no ano
seguinte nasce seu filho, Tarik. PC fica no mandato de Jurema até 1999, quando faz um
concurso para a Secretaria de Fazenda do Estado e passa, ingressando como Agente
Administrativo.
Em 1989, PC se filia ao MNU, como relata:

“Aquele grupo que fundou o IPCN não estava satisfeito com uma
intervenção política somente a nível estadual, assim, em 1989, nos
filiamos ao MNU, para qualificar mais nossa luta contra o racismo no
Brasil.”

10 Expressão usada no candomblé quando o Orixá incorpora alguém que não é ainda iniciado.
43

Em 1993, PC entra para a coordenação estadual do MNU e, em 1995, para a


coordenação nacional, mantendo-se nela até o momento.
Por último, PC no Partido dos Trabalhadores sempre tentou organizar a secretaria
estadual de negros e negras do PT, tendo sua militância no Partido se restringido a esse
setor. Hoje PC é membro do coletivo estadual de negros e negras do PT- RJ.
Na descrição das trajetórias dos quatro militantes, constata-se que as motivações
pessoais são variadas, mas que, de uma certa forma, num determinado momento se cruzam,
levando-os à tentativa de construir movimentos singulares.
Com exceção de Mãe Beata, todos os outros têm uma origem semelhante:
enfrentaram em suas vidas a discriminação racial, tiveram dificuldades econômicas e as
condições subjetivas que os levaram para uma discussão que realizam hoje, combinadas, é
claro – como se verá em detalhes mais adiante – com as conjunturas políticas dos anos 80 e
do Movimento Negro. Em todos eles existem motivações pessoais que convergem na
tentativa de criar associações entre as vivências no candomblé e na política.
Ver-se-á que o problema de “saúde” de Jorge, o interesse de Mãe Beata em ganhar
notoriedade como Mãe de Santo, militando no Movimento Negro, a desconforto de Lúcia
pelo fato de sua vida ser radicalmente modificada com o nascimento de sua filha portadora
de necessidades especiais e, por último, a discriminação racial sofrida por PC quando
procurava emprego, se conjugaram com os fatos políticos dos anos 80 e 90, ou seja, a
criação do PT e o desenvolvimento das discussões e elaborações do Movimento Negro.

2.2 – O Partido dos Trabalhadores

Em dezembro de 1978, realiza-se, em Lins - SP, o Congresso dos Metalúrgicos. Os


metalúrgicos de Santo André defendem a tese da formação do Partido dos Trabalhadores:
um partido que tenha “independência política em relação aos patrões e ao governo, que
rompa com o eleitoralismo, que organize e mobilize os trabalhadores na luta por uma
sociedade mais justa, sem explorados e exploradores e que seja um instrumento de luta pela
44

conquista do poder político para todos os trabalhadores”11. A tese de S. André propõe ainda
que o congresso lance um manifesto conclamando os trabalhadores à construírem o PT e a
eleição de uma comissão para encaminhar a discussão a nível nacional. Após amplas
discussões, o PT é fundado em 10 de fevereiro de 1980.
Ao longo dos anos 80 e 90 o PT foi o partido, no cenário político brasileiro, que
mais cresceu, tanto em número de votos quanto em número de militantes. Definindo-se
como socialista desde sua fundação, o PT, em seu último congresso realizado em 1999,
ratificou sua concepção de socialismo do seu 1° Congresso de 1991:

“Para o PT o socialismo é sinônimo de democracia. Isto quer dizer


que a concepção de socialismo do PT é diversa de tudo aquilo que,
enquanto concepção, se concretizou nos países do chamado
socialismo real. Mais do que uma afirmação retórica, de uma idéia,
este compromisso democrático tem a intenção de se concretizar em
todas as dimensões do PT: no seu modo de ser e se organizar, nos
valores que assume diante da sociedade, na relação que assume com
os movimentos sociais, nas propostas presentes no seu programa
político, na sua intervenção parlamentar, enfim, em todas as suas
ações cotidianas, de cada petista. Afinal, democracia para nós
significa meio e fim. Afirmar isto implica em rejeitar toda e qualquer
forma de ditadura, incluindo a ditadura do proletariado, que não
pode ser a ditadura do partido único sobre a sociedade e sobre os
próprios trabalhadores. Lutamos por uma sociedade
qualitativamente superior, baseada na cooperação e na
solidariedade, na qual os conflitos sejam vividos”. democraticamente.
Coerente com este pensamento, o PT rejeita a concepção de que o
pluralismo seja uma circunstância que se tolera, até que, um dia,
desapareçam as classes sociais, estabelecendo-se, então, as bases

11 PT. Resoluções de Encontros e Congressos/Org.: Diretório Nacional/Secretaria de Formação e Fundação Perseu


Abramo/projeto memória – São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
45

para uma homogeneidade de pensamento. O PT entende que a


diversidade é humana, razão pela qual a intenção de eliminá-la é
claramente um projeto de violência contra a humanidade. Lutamos
por uma sociedade efetivamente plural, o que é um motivo a mais
para ser anticapitalista, já que este, oprime e aliena o homem,
admitindo somente o fato de uma pluralidade restrita a partir de uma
desigualdade de condições e oportunidades.
Só um potente movimento de reformas políticas e sociais, baseado
em um programa democrático e popular centrado na luta contra o
latifúndio, o monopólio e o imperialismo, pode levar a uma profunda
revolução que o Brasil necessita, se quisermos superar o modelo
excludente que o caracteriza há 500 anos. Na visão do PT, a
revolução social necessária para superar o capitalismo deve ser
operada por milhões de brasileiros, que na luta por reformas
estruturais, confronta-se com o status quo vigente, acumulando força
para uma transformação revolucionária, radicalmente democrática e
socialista”.12

Essa resolução resume e orienta a identificação de seus militantes na luta política.


Entretanto, para os militantes investigados, essas referências programáticas não são
suficientes como referência para seus movimentos específicos, enquanto negros e
portadores de uma determinada identidade religiosa.
Tanto Jorge Carneiro como PC e Lúcia encontram dificuldades para se integrarem
totalmente nas estruturas do Partido. Já Mãe Beata se encontra mais distante das discussões
internas do partido, participando somente em períodos eleitorais. Os três primeiros fazem
discussões específicas dentro do PT – a questão racial. Essa não é devidamente tratada
como discussão estratégica, pois, muitas vezes, se apresentam mais os debates sindicais ou
eleitorais do que outros temas. Sendo assim, os militantes da questão racial não ocupam
muito espaço dentro do partido.
46

No entanto, apesar do programa do partido falar em participação e democracia, os


militantes investigados tentam complementar, no plano teórico, as posições políticas do PT,
a partir de suas discussões específicas. Antes de se discorrer sobre as complementações que
esses militantes fazem a essa “identidade petista”, serão analisados mais dois espaços de
referências importantes para eles.

2.3 – O Movimento Negro

Dentre os militantes investigados, dois são filiados ao MNU (Jorge Carneiro e Paulo
César), uma é simpatizante deste (Lúcia) e a outra não é filiada a nenhuma entidade
nacional do Movimento Negro (Mãe Beata).
O Movimento Negro Unificado ( MNU ), foi fundado em 1978 como fruto da
influência da libertação de Angola e Moçambique e da luta pelos direitos civis nos EUA. O
marco inicial de sua fundação foi uma manifestação pública ocorrida em São Paulo, um ato
de protesto contra a violência policial desferida contra negros, representada pela morte em
tortura do operário Robson Silveira Luz, assim como, contra a discriminação racial em
relação a quatro garotos negros impedidos de participarem de um time de voleibol no Clube
de Regatas Tietê. Foi uma manifestação de duas mil pessoas, em frente ao Teatro
Municipal. A partir desse episódio, foram criados vários núcleos em diversos Estados. O
objetivo desse movimento era o de desenvolver instrumentos de luta contra a opressão
policial, o desemprego e a marginalização da comunidade negra. O MNU, em 1978, passou
a organizar-se em diversos bairros e centros urbanos, realizando movimentos nas ruas para
enfrentar a ditadura militar. Seu programa básico de ação visa a desmistificação da
democracia racial brasileira; a organização política dos “afrodescendentes” para
transformá-la em movimento de massas; a busca de alianças com outros grupos voltados
para a luta contra o racismo; a organização em partidos políticos e sindicatos, além do
apoio à luta internacional contra o racismo.

12 Resolução do 1° congresso do PT. Novembro 1991, pp.12.


47

Entretanto, o MNU não consegue unificar todos os setores negros em suas fileiras.
Muitos militantes o criticam por ter uma visão “estreita” ou, ainda, por ser construído a
partir de somente uma linha política, o que foi chamado de “petização”. Assim, em 1991,
foi realizado o ENEN ( 1º Encontro Nacional de Entidades Negras ), no Ginásio do
Pacaembu, em SP, reunindo basicamente os militantes que não se encontravam no MNU,
Ongs e associações negras do Brasil inteiro. Seu programa é semelhante ao do MNU,
porém, não tem como meta a criação de um “projeto político para o povo negro no Brasil”.
O MNU, posteriormente, será analisado de forma mais detalhada, uma vez que
alguns dos militantes investigados têm como forte referência em suas identidades, as
políticas que são traçadas nessa entidade.

2.4 – O Candomblé

Candomblé, casa de santo, Ilê Ayê, terreiro, é como são chamados os locais da
prática dos cultos afro-brasileiros, que proliferaram por toda parte e participam como
instituição popularmente reconhecida e incorporada no cotidiano da vida brasileira.
Foram várias as tentativas, na etnografia brasileira, de definição dos cultos afro-
brasileiros, como o candomblé e também a umbanda.
O estudo inaugural das religiões afro-brasileiras, consiste numa obra de divulgação
médico-científica escrita no final do século XIX. Trata-se de “O animismo feitichista dos
negros baianos”, de Nina Rodrigues13. Nesse livro, o autor mostrava as influências sociais
exercidas pela raça negra no Brasil, através do estudo de sua mentalidade religiosa,
considerada “patológica”, “atrasada” e “incapaz” de manipular as “elevadas abstrações”
exigidas pelas religiões monoteístas. Realizando observações no terreiro do Gantois, que
considerou como modelo para uma idéia exata do que é um templo feitichista na Bahia,
Nina Rodrigues presenciou diversos rituais e pôde obter grande quantidade de informações
sobre a liturgia e outros aspectos do culto dos orixás. Sua descrição dos terreiros foi feita
basicamente com o objetivo de confirmar suas teses do estado “atrasado” dos grupos negros

13 RODRIGUES, R. N. O animismo feitichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1935.
48

no Brasil que, segundo ele, explicavam o estado incipiente do desenvolvimento da


civilização brasileira quando comparado à européia, no qual o elemento negro não exerceu
influência.
Também médico-legista, Arthur Ramos, posteriormente, dará nova ênfase aos
estudos das religiões de influência africana. Diferente de Nina Rodrigues, o autor coloca a
discussão da religiosidade dos grupos negros em termos culturais e não mais raciais, reflexo
de sua adesão ao pensamento culturalista da antropologia de Lévy-Bruhl14. Além disso,
Arthur Ramos alargou o campo de referência dos cultos afro-brasileiros, englobando os
candomblés da Bahia e as chamadas “macumbas” do Rio de Janeiro. E nessa ampliação de
seus estudos, ele agrupa a origem étnica dos negros introduzidos no Brasil em dois grupos:
os Sudaneses e os Bantos, hierarquizando-os com a idéia de superioridade dos Sudaneses
(Yorubás e Jêjes) em detrimento dos Bantos (Angolas, Congos e Benguelas). Ramos
afirmava que os Bantos (macumba) caracterizavam-se pela sua extrema simplicidade de
rituais, contrastando com a complexidade nagô dos candomblés.
Entretanto, assim como Nina Rodrigues, ele acreditava que os cultos afro-brasileiros
representavam dificuldades para o desenvolvimento do pensamento racional e civilizado na
sociedade brasileira. Contudo, como sua explicação para a existência desses cultos é antes
de tudo cultural e não racial, portanto adquirida e não inata, ele acreditava que o projeto de
racionalização, ou idéia de progresso cultural, é algo possível a partir da herança africana.
Nos anos 50, Roger Bastide aparece com uma nova interpretação das religiões afro-
brasileiras. Para ele, as religiões africanas sofreram os efeitos das modificações pelas quais
passou a sociedade brasileira, no estabelecimento de um regime escravocrata, e na transição
deste para uma economia capitalista, baseada no trabalho livre; transformações essas
separadas no tempo e de significados estruturais diferentes nos locais onde ocorreram.
Defendia, ainda, a idéia de que as religiões africanas puderam se organizar e acomodar no
Brasil, porque estavam mergulhadas num mundo ainda permeado por valores tradicionais,
comunitários ou pré-capitalistas, aproximados, portanto, daqueles valores que
predominaram nos locais de origem dessas religiões na África, tendo no entanto, a ordem
escravocrata destruído e coibido a formação de famílias iguais à ordem social africana. O
49

surgimento do candomblé espelharia, então, a tentativa de reconstituição dessa ordem.


Nesse contexto, os negros africanos e seus descendentes, participavam de dois universos:
um “africano”, restrito ao mundo dos candomblés e, estes, formando um casulo enquistado
na sociedade abrangente “brasileira”15.
Essas interpretações criaram certos paradigmas de análise que, de uma certa forma,
se tornaram clássicas nos estudos afro-brasileiros. Entretanto, para além das análises
clássicas e posteriores, a respeito dos cultos afro-brasileiros, é necessário ressaltar que o
candomblé surge no Brasil como produto de (re)invenções – de adaptações e sínteses – dos
vários sistemas de crenças, provenientes do continente africano, durante mais de três
séculos do período da escravidão. A (re)invenção de uma África mítica aparece, desde o
início, como elemento fundante das diversas identidades religiosas assumidas e atribuídas
como raízes ou nações que marcam as fronteiras litúrgicas de cada comunidade (terreiro),
que a partir do final do século XIX começaram a adquirir visibilidade e legitimidade social.
Primeiramente, no contexto baiano, os grupos de culto a orixás se organizaram e
delimitaram suas identidades religiosas erguendo fronteiras a partir do elenco de divindades
cultuadas, dos calendários litúrgicos, das linguagens e seqüências rituais adotadas,
apresentando uma variabilidade, de acordo com as origens africanas atribuídas. No decorrer
dos anos, os terreiros, já legitimados e inseridos no desenvolvimento da sociedade
capitalista brasileira, através de seus sacerdotes, começam a utilizar diversos recursos, no
sentido de conquistarem mais espaços na sociedade brasileira.
Reginaldo Prandi, analisa esse período afirmando: “foi o desprendimento do
candomblé de suas amarras étnicas originais que o transformou numa religião para todos,
ainda que sendo uma religião aética, permitindo também a oferta de serviços mágicos para
uma população fora do grupo de culto, isto é, negociando com outros sistemas de crenças;
apropriando-se de complexos simbólicos e ressignificando-os, não exigindo exclusividade
religiosa de seus adeptos e de sua clientela, aceitando em suas comunidades indivíduos

14 RAMOS, A. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1971.
15 BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil–contribuição a uma sociologia das interpretações das civilizações. São
Paulo: Pioneira, 1971.
50

considerados pela sociedade abrangente como marginais ou por ela excluídos, como citado
anteriormente”.16
A partir daí, compreende-se como o candomblé pode ser apropriado e utilizado
para diferentes estratégias de sobrevivência política, social, cultural e religiosa de
indivíduos e/ou grupos negros.
Um exemplo clássico dessas estratégias foi muito bem descrito por Beatriz Góes
Dantas, em seu livro, “Vovó Nagô e Papai Branco”.17 Aqui ela descreve como a noção de
tradição construída pelos terreiros – a pureza nagô – é ideológica e de diferentes
significados, fazendo parte de estratégias de sobrevivência diante da sociedade mais
abrangente.
Estudando os terreiros de Laranjeiras, cidade localizada na zona açucareira de
Sergipe, Beatriz Dantas aponta para os africanismos lá encontrados no principal terreiro
nagô, tidos como mais puros em contraste com os “toré”, misturados e em maior
quantidade, que não se revelam congruentes com aqueles da tradição nagô baiana, tão
fortemente associada, na literatura científica, as suas origens africanas. Certos ritos do
candomblé nagô baiano, como reclusão da iniciada, a raspagem de cabeça e o
derramamento de sangue sobre esta, são considerados, pelo terreiro sergipano, como sinais
de mistura, uma vez que, lá, representam práticas dos torés, classificadas como distantes da
herança africana.
Dantas conclui, a partir de uma visão dinâmica da manipulação dos acervos
culturais, que a propaganda da pureza nagô tem sentidos diversos na Bahia e em Sergipe,
construindo, portanto, uma retórica estreitamente ligada à estrutura de poder da sociedade,
a seus mecanismos de classificação da ordem social e ao papel desempenhado pelos
intelectuais e pesquisadores na incorporação dessa retórica em suas formulações científicas.
Esse estudo de Beatriz Dantas me orienta para pensar as construções de sentidos,
feitas pelos militantes investigados nessa pesquisa, pois o que eles tentam, como se verá
mais detalhadamente, é a legitimação de uma certa visão do candomblé, para uma atuação

16 PRANDI, R. Herdeiras do Axé. Sociologia das religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: PPGCS-IFCS/UFRJ, 1986.
Dissertação de Mestrado. pp. 31
17 DANTAS, B.G. Vovó nagô e papai branco; usos e abusos da äfrica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
51

política partidária. Constroem significados ditos tradicionais com objetivos de nortearem


suas atividades enquanto militantes do PT.
O candomblé para eles não é somente um lugar de crença aos orixás, mas também
um espaço de legitimação de seus pensamentos políticos. Possuem, assim, a visão de um
candomblé que pode inspirar e representar um exemplo de democracia participativa para
negros e não-negros. Nesse sentido, criam-se novos significados para rituais (exemplos de
democracia), histórias de orixás (inspiradores de comportamento ético e moral),
associações entre a relação dos cultos afro-brasileiros e a luta ecológica, etc. Encontram-se
nesses militantes, uma nova forma de apropriação do candomblé, de certos traços culturais,
no sentido de os utilizarem para a ocupação de espaços sócio-políticos, o que confirma o
excelente trabalho de Góes Dantas.

2.5 – As (re)interpretações “de dentro”

Ao longo dos contatos com os militantes, se evidenciou uma interpretação bem


particular desses três espaços de suas práticas identitárias. Eles reinterpretam esses espaços
de acordo com seus objetivos políticos mais imediatos e estratégicos. Ou seja, para uma
ação política, os militantes operam reelaborações desconcertantes, revitalizações móveis de
religiosidade e concepções políticas. Realizando aproximações de universos simbólicos
diversos, construindo associações.
Vejamos o que afirma Jorge Carneiro, que revelou um momento muito singular de
elaboração de sua identidade e de construção de associações, no momento em que foi
indagado a respeito de uma crítica vinda de alguns de seus companheiros de partido, sobre
a suposta contradição entre a utopia socialista e as relações hierárquicas dentro do
Candomblé:

“ Eu vejo que nesta discussão não devemos esquecer que o culto dos
orixás no Brasil é diverso daquele africano, aqui existe muita
influência européia, então este é o problema. Na minha relação com
52

Yiá Nitinha e em outros ritos, não existe esta hierarquia opressiva,


existe uma relação de respeito, um precisa do outro e ela sabe disso.
Então, quando alguém coloca esta discussão, na minha opinião falta
este elemento de compreensão da visão africana. No dia que o Lula
veio aqui no terreiro, eu como Yaô novo, não podia fazer certas
coisas, porém minha Mãe consentiu, mas isto não significou uma
ruptura da hierarquia. É necessário entender que nesta visão africana
a hierarquia não significa opressão, desigualdade ou falta de respeito
mútuo, existem relações complementares, para fazer crescer o Axé; o
problema da hierarquia existe quando um Pai ou Mãe de santo usa a
sua sabedoria por vaidade pessoal. Por exemplo, o fato de bater
cabeça, para mim enquanto marxista revolucionário não é um
problema, não é uma submissão, eu estou simplesmente agradecendo
o orixá de Yiá Nitinha por tudo que eu represento, mas também
trocando Axé. Eu vejo que quando Yiá Nitinha nos manda fazer certos
trabalhos pesados ou dá ‘esporro’ em alguém, o faz porque esse
alguém fez coisas erradas da tradição ou, então, para fazer com que
este aprenda e se eduque para servir a comunidade, para que esta
pessoa passe por uma fase de trabalhos duros, para que depois,
quando terá um certo poder não use e abuse do poder. Mas, veja bem,
se tu vê as práticas de muitos militantes do PT, existem muitas
relações e comportamentos que combatemos, eu não vejo sentido
quando certos militantes criticam o candomblé só por isso.
Penso que quando entrei no candomblé eu me tornei mais
militante, me fez bem conhecer esta cosmologia africana, comecei a
minha construção melhor, em nível intelectual. Não sou uma pessoa
formada, com os livros, as teorias, e isto me assusta, porque na DS
muitos companheiros me empurram para que eu me torne uma
referência nacional, porém não estou preocupado porque acredito
que Ogum está comigo, esta me ajudando a superar os meus limites,
53

me lança em direção a esta responsabilidade militante. Isto quer dizer


que no meu cotidiano da militância eu sinto Ogum, num diálogo,
numa polêmica quando precisamos resolver certas discussões ou
divergências.
Estávamos um dia na casa de Márcio e Ricardo18 e comentávamos
que no futuro, nosso candomblé será diferente, e é verdade que não
teremos práticas que ajudam à folclorização da religião. Vejo hoje
que nós estamos ganhado espaço dentro do PT, rompendo com a
lógica monopolista dos cristãos”.

Logo em seguida, descreveu sobre as disputas de poder dentro do candomblé e do


PT:

“Em determinados momentos existem disputas dentro do candomblé


muito acirradas, mesmo entre Mães de Santo, entre Yaôs, entre Ogâs,
etc. Porém, acredito que seja muito por causa da influência da visão
ocidental que penetra de qualquer jeito em todos os lugares. Mas
quando eu falo do candomblé, falo muito das coisas que penso, que é
diferente do que muita gente pensa. A questão do poder no candomblé
não é somente do sacerdote sobre seus filhos, mas existem também
outros poderes, isto é, da ekede para a Yaô, etc. Mas eu vejo que a
disputa do poder é muito permeada pelas vaidades pessoais. A
diferença com o PT, é que no candomblé o poder é relativizado, isto é,
minha Mãe de santo tem muito poder, porém ela nos dá alguns
poderes que faz com que os seus filhos participem da administração
do Axé, ela, para fazer crescer o Axé, precisa dos seus filhos, isto é,
não existe um extra-poder, a Mãe de santo depende de seus filhos.
Acredito que no PT a disputa é diferente, ou seja, o poder é muito
permeado pelas vaidades pessoais e também se reproduz muito a
54

hierarquia burguesa ocidental, não se olha para o outro que pensa


diferente de você como adversário, mas, às vezes, como inimigo de
classe. Existe uma concepção de aniquilar a diversidade e não
cultivá-la como valor importante para movimentar o mundo. Já no
candomblé é aquilo que te disse, é Exú que nos faz ver que até mesmo
o nosso adversário nos ensina muita coisa, é necessário os contrários
para entender nós mesmos”.

Um momento interessante, que foi presenciado por mim durante a pesquisa, ocorreu
no diálogo de Jorge Carneiro com uma militante do PT-RJ, não iniciada no candomblé e
com uma visão bastante “clássica”, a respeito das religiões no Brasil. Afirma essa militante,
no momento em que toma conhecimento de meu trabalho acadêmico:

“Eu não consigo entender o porquê que alguns militantes do PT são


do candomblé.. Certo dia fui ao terreiro de Mãe Beata, por
curiosidade, e lá encontrei vários militantes do PT, alguns deles são
iniciados”.

E logo em seguida referindo-se a essa pesquisa afirma:

“Acho que este trabalho de tese é uma invenção, porque não vejo
nenhuma relação entre a fé nos orixás e as lutas sociais. Me parece
uma coisa exótica, acho que não tem sentido”.

Ela dialogava com Jorge Carneiro, que em sua resposta foi bem enfático,
demonstrando uma clara delimitação identitária:

“Olha, esta discussão não é uma invenção. Esta pesquisa está


simplesmente revelando um fato e um movimento que estamos

18 Dois iniciados no candomblé, amigos de Jorge Carneiro.


55

construindo há anos. Eu acho que a dificuldade de entender esta


pesquisa se dá pelo fato de que a esquerda sempre raciocinou com
critérios judaíco-cristãos e eurocêntricos. A discussão é sobre quais
são as relações entre religião e luta anticapitalista. Isto quer dizer
que o candomblé é uma religião e não superstição”.

Observa-se aqui uma visão muito peculiar a respeito de certas noções como
hierarquia, divisão de poderes, papel político do candomblé. Na verdade, na construção da
noção de hierarquia, Jorge tem um discurso defensivo, diante dos ataques e críticas de
parceiros políticos, no que se refere à rígida hierarquia dentro de seu candomblé, pois, nas
construções que faz, a noção de hierarquia não é alvo de analogia ou associação com a
utopia socialista, mas de constante resposta às indagações dos militantes do PT, sobre os
poderes das mães e pais de santo.
Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, PC se expressa sobre alguns pontos
relevantes do candomblé e da política na vida dele:

“Eu nunca separei minha religião do meu pensamento político e da


minha ideologia. Quando digo isto, digo também que nunca fiz esta
discussão em nível partidário, por que a minha iniciação começou,
não pelo Movimento Negro mas em nível espiritual. Porém, depois
que me iniciei, comecei a pensar mais concretamente a religião
também em nível político. Isto aconteceu também porque, aqui no
gabinete de Jurema Batista, participam dois companheiros que são do
candomblé, mas não são do PT.
Quando me iniciei, foi Xangó que me pediu, eu porém, antes era da
Umbanda. No início era da umbanda porque minha família tinha uma
tradição umbandista, isto era no início dos anos 80. Tudo começou
quando eu ia às cerimônias e um caboclo me pedia sempre para me
iniciar à religião. Assim me iniciei em 1983, e fiquei até 1989. Eu
tinha uma Mãe de santo que misturava umbanda com candomblé. Ela
56

dizia que eu era de Ogum, então eu sempre vivi na umbanda como


filho de Ogum. Porém em 1989, conheci um Pai de Santo que, para
surpresa minha, no jogo de búzios, viu que não era filho de Ogum
mas sim de xangô. E isto foi muito traumático. Foi então que fiquei
com muita dúvida na cabeça. Fui a uma outra Mãe de santo do
candomblé que me afirmou de novo que eu era de Xangô. Um certo
dia, fui, em 1990, na casa de um Pai de Santo e na festa para Xangô
eu Bolei, Xangô me pegou. Foi então que, conversando com o Pai de
santo, me disse que deveria fazer um Borí e começar o processo de
iniciação, porque xangô dizia que estava na hora. Então, tendo a
prova de que eu era realmente de xangô, em setembro de 1990 fiz a
minha iniciação com este Pai de Santo, e desde então fiquei mais
sereno e tranqüilo na minha vida religiosa”.

E continua seu relato sobre como desenvolveu essa discussão entre candomblé e a
militância política:

“Eu já era do PT, porém não conhecia o candomblé, a sua visão do


mundo. Quando comecei a conhecê-lo melhor me dei conta junto com
o Movimento Negro que a umbanda representa um processo de
embranquecimento da visão de mundo africana. Uma outra coisa que
creio ter mudado é aquela teoria que a história do povo negro no
Brasil foi muito criativa devido a visão de mundo africano e suas
heranças. E que o candomblé teve um papel determinante na
resistência às tentativas de massacre do povo negro. Descobri que eu
tenho uma origem cultural muito significativa, xangô me fez ver a
minha identidade mais profunda. O candomblé para mim, hoje,
representa um mundo alternativo à sociedade opressora que vivemos.
Um exemplo que faço é aquele de que a estrutura do candomblé é
mais democrática, a hierarquia que existe não quer dizer opressão,
57

desigualdade, cada um é solidário com os outros, os orixás são


presentes dentro do nosso corpo, não são deuses que sempre dizem
que coisa devemos fazer. E isto na minha opinião nos leva a conceber
o mundo como nosso e não de um outro qualquer. Me lembro que
quando era umbandista, esta tinha uma visão muito católica de
mundo, cultua a caridade como valor, e isto nos leva a ser
conformista.
(...) Diversamente da umbanda eu acredito que a primeira coisa que
acho importante no candomblé são nossas raízes africanas. Isto é, a
concepção dos deuses, os seres supremos são completamente diversos
daquele ocidental. Não existe um deus ou deuses que são somente
sobre nós homens, mas os nossos deuses são também parte de nós, do
nosso corpo. Porém uma coisa que queria enfatizar para você é
aquele aspecto que nos faz diferente, isto é, não existe a concepção do
bem e do mal, que divide o mundo em pessoas boas ou ruins. Não, no
mundo existem as diversas experiências no qual você pode ser feliz ou
não. Tudo que acontece na tua vida é conseqüência da tua ação ou faz
parte da característica do teu orixá. A religião e o culto são
praticados com as danças, com alegria, e não para salvar-nos de
alguma coisa, para ter uma esperança de ir para uma outra vida. Nós
do candomblé, praticamos o culto da vida, isto é, diverso daquilo que
eu chamo culto da morte, que são as religiões que esperam para ter
uma vida além da morte. Eis que esta é uma coisa que penso que
tenha muitas conseqüências políticas na sociedade. Porque na medida
em que você acredita que tua vida pode ser pior ou melhor depois da
morte, você não consegue enfrentar bem, com serenidade os
problemas desta vida. No candomblé, para mim, a vida é dinâmica,
nos ensina a viver, isto é a característica do meu orixá, Xangô, um
orixá da vida. Invés a morte para nós é uma conseqüência desta vida,
não devemos fazer um drama como fazem outras religiões. A morte
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vem porque a vida deve se reproduzir, recriar-se e não ficar estática


ou eterna. A dinâmica do mundo, entendida neste sentido, nos permite
agir no mundo com mais consciência das coisas que fazemos. Eu vejo
que esta concepção não é muito entendida pelos iniciados no
candomblé. Acredito que seja por isso que tenho algumas opiniões em
relação a certas práticas rituais que fazem em nome do candomblé.
Mas isto é devido à penetração do capitalismo nas práticas de certos
iniciados, principalmente, em muitos Pais e Mães de Santo”.

PC sabe que essa sua interpretação é única, contudo, percebe-se que sua militância
política é o elemento de base para legitimá-la
Outro militante que revela uma curiosa concepção política e religiosa é Lúcia.
Vejamos o que afirma nessa longa exposição:

“O candomblé é um pequeno quilombo, dentro dele não existe a lógica


do mercado, existe uma relação comunitária, de família, de
solidariedade entre as pessoas, mesmo não sendo politizadas, é por
isso que considero o candomblé como um ponto de referência para
uma nova sociedade. Mas isto eu sei que é muito polêmico.
Mas existem outras coisas fundamentais no candomblé como: a
inexistência da culpa, ou seja, tudo que se faz nesta vida não existe uma
culpa que nos leva ao conformismo ou à submissão. A culpa na minha
opinião, é um instrumento que, afirmando que tu podes ser salvo para
ir ao paraíso, nos conduz ao conformismo. No candomblé é diverso, os
Yaôs necessitam simplesmente de estar bem consigo mesmo, com seus
orixás e em harmonia com seus irmãos de santo, ou seja, viver as
várias possibilidades de relações para fazer crescer o Axé. Existe uma
auto-valorização da auto-estima de nós mesmos, não devemos esperar
a morte para ser salvo. Isto também é um outro conceito no qual
trabalhamos diversamente, esta não é nosso limite, um fim. No
59

candomblé se cultua a vida, então, por conseqüência, na minha opinião


não existem pecados, os orixás ao final sabem porque fazemos as
coisas neste mundo.
Me lembro de um papo com uma colega de trabalho que dizia que
mesmo se as coisas da vida vão mal, precisamos sempre dizer que ao
final somos felizes porque temos Deus conosco, depois disse a ela que a
diferença entre nós, porque que eu sou do candomblé, é que quando as
coisas vão mal, é preciso fazer alguma coisa para mudar a realidade
que nos faz mal, porém quando as coisas vão bem, há alegria e
precisamos dividi-la com os outros. Isto para mim é a diferença entre
esta sociedade e o candomblé como visão de mundo.
Quando comecei a militância na esquerda eu era ainda da Igreja
protestante e me incomodava quando o pastor dizia que eu misturava
política com a religião. Eu explicava a ele que freqüentava o PT
porque achava que meus amigos do PT levavam mais a sério a
humanidade do que muitas pessoas da igreja. Que os amigos do PT
lutavam por uma sociedade justa, assim como fez Jesus. Porém ele não
se convenceu disto. Ao final sai da igreja por esse e outros motivos..
Foi então que comecei a priorizar a militância, meu trabalho
cultural de teatro e também a minha sexualidade na militância
feminista. Então, vivendo a minha sexualidade sem culpa, percebi que
no passado o candomblé me ajudava na vida. Também este fato me fez
voltar ao candomblé como uma filosofia de vida que nos deixa mais
livres e que contesta a moral hipócrita da sociedade. O candomblé, na
minha opinião, como visão de mundo, filosofia, expressa também em
algumas histórias de orixás, uma referência para mim, que contesta a
ordem burguesa. No candomblé existem relações mais livres, sem uma
moral cínica.
60

Me lembro que no início da minha militância eu lia W. Reich19 e


aquilo que dizia, isto é, que o homem que vive sua sexualidade e vida
de forma mais livre, é mais satisfeito, inconformista. Depois no PT,
tendo contato com a questão ecológica, percebi que também isto existia
no candomblé, ou seja, uma visão de mundo que preserva a natureza
mais do que outras religiões.
É engraçado que enquanto falo agora me dou conta que estas
conexões eu sempre fiz, mas não assim claramente como hoje. Eu
acredito que por isto devemos trabalhar, como petistas, uma política
cultural nestes setores do movimento popular, Pois como disse, no
candomblé existe um potencial muito grande para contestar a ideologia
conformista, racista e capitalista”.

Finalmente, chega-se à Mãe Beata, única Yalorixá dessa investigação. Nos


encontros com ela, revelaram-se algumas de suas concepções sobre o candomblé e sua
militância política:

“Eu acho que uma Yalorixá séria deve ter uma responsabilidade
política além da religiosa. Eu não consigo separar as duas coisas,
porque numa comunidade temos todos os tipos de pessoas, que têm
relações com o mundo, isto é, não somos isolados do mundo. E digo
mais, os orixás influenciam o mundo, então por isso não podemos nos
isolar do mundo, então eu pergunto: por que não podemos fazer
política também ? Acredito que a política seja presente a cada
momento. Aqui, por exemplo, quando sentamos para discutir com a
comunidade, as tarefas, os compromissos, etc., nós estamos fazendo
política. Nunca separei a religião da política, você conhece a história
de nosso país, e sabe que os candomblés sempre se envolveram com a
grande política deste país. Porém, penso que não devemos fazer

19 REICH, W. A Revoluçao sexual. Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 1988.


61

qualquer política para defender somente os interesses do candomblé,


mas também os da população mais explorada deste país, então, como
é público e notório eu me considero uma pessoa de esquerda, aliás
uma Yalorixá de esquerda. Acho que ser de esquerda é coerente com
uma coisa que para mim é fundamental: a honra da palavra. Somente
a esquerda tem esta honra de fazer as coisas que diz e que acredita.
Enquanto que a direita é mentirosa e faz vergonha a este país”.
“Eu penso que nós afro-brasileiros temos certos valores que são de
esquerda e não de direita, por exemplo, a solidariedade de grupo, o
trabalho comunitário baseado na harmonia do grupo, onde se discute
tudo e se decide junto, etc. Porém, isto só é possível na minha opinião
se em uma comunidade tiver uma Yalorixá de esquerda, que zela por
estes princípios. Ao contrário eu vejo que em muitas casas de santo
não existe isto, a vida religiosa de algumas Yalorixás ou Babalorixás
se desenvolve para o mercado ou para satisfazer um poder pessoal. O
nosso princípio religioso oriundo da África é aquele de cultivar a
vida, junto aos orixás, cultuar a comunidade, e isto na minha opinião
é muito próximo a política do PT, mesmo porque é o único partido
que tem muitos negros, que também são candomblecistas”.

E utilizando uma linguagem bem simples, finaliza com sua concepção de


socialismo:

“Eu penso que o capitalismo nos leva às desgraças, à miséria, às


pessoas ruins. Acredito que nós do PT estejamos construindo o
socialismo no nosso cotidiano, na nossa prática de cada dia, não sei
dizer qual socialismo queremos, isto depende das nossas experiências
cotidianas, eu tenho certo só uma coisa, aquele socialismo de elite
visto até hoje, não é bom para ninguém. Acredito que o grande
exemplo de socialismo na nossa história foram os quilombos dos
62

negros que não queriam ser escravizados pelos portugueses e


europeus. Posso dizer também que o candomblé é socialista. Porque
o candomblé está de braços abertos a todos que procuram um bem
estar coletivo dos homens e dos orixás. Porque na nossa religião o
Axé só existe com união, harmonia, amor, solidariedade, é aqui que
se constrói o Axé. Eis uma palavra-chave, uma força que melhor se
adapta, do que esta do socialismo, porque sem Axé não existe vida.
Eu estou no PT também para reforçar o Axé de minha comunidade”.

E a partir daí, identifica a importância da religião em sua própria condição de


militante:

“Penso que depois que entrei no partido acho que a religião ganhou
mais um voz para resistir contra o preconceito, a discriminação, o
isolamento. Uma coisa é muito clara para mim, depois que virei
petista: ou seja, as pessoas me respeitam não somente porque sou
uma Yalorixá mas também por que sou do PT, eu digo sempre em
todas as manifestações que sou convidada que o meu partido é o PT,
o único que defende idéias que acho que seja coerente com a minha
prática de vida, acho que não tem sentido ficarmos isolados em um
gueto, pois se não resistirmos continuaremos com nossa cultura
dilacerada”.

Percebe-se, através dessas longas declarações, que os militantes reelaboram


concepções oriundas de domínios socioculturais diversos, produzindo associações e
ressignificações, nos campos político e religioso brasileiro. Se por um lado, constata-se que
os militantes tentam construir um movimento que justifique suas dupla pertença; por outro,
eles tentam legitimá-la através da organização e participação, em determinados eventos
sócio-políticos, culturais, religiosos e institucionais.
63

Jorge Carneiro narra um momento, que segundo ele, foi relevante na construção
dessas elaborações. Em Janeiro de 1991 foi realizada a Conferência estadual da tendência
interna do PT – Democracia Socialista. Nessa oportunidade se encontravam dois militantes
iniciados no candomblé ( Luiz Carlos Emílio20 e Jorge Carneiro ). Em função disso, uma
novidade dentro da tendência, o militante Marildo Menegatti fez a seguinte declaração:

"Nós estamos discutindo a estratégia para a revolução socialista no


Brasil, porém creio que esta discussão é incompleta porque nós, até
hoje sem a presença em nossa corrente de Luís Carlos e Jorge, nunca
fizemos uma discussão sobre a cultura e a religião afro-brasileiras.
Todos nós aqui, talvez, estejamos de acordo que estas religiões são
muito populares no Brasil, então, eu acredito que não podemos nos
limitar a discutir que somente a teologia da libertação e os católicos
progressistas sejam nossos aliados.
Eu, nestes últimos dias, freqüentei alguns terreiros, fazendo a
campanha de Marcelo Dias21, e percebi, que este mundo do
candomblé tem muitos elementos de filosofia comunitária, que na
minha opinião não se encaixa na lógica capitalista de mercado.
Então, acho que devemos discutir este tema, que talvez seja
importante para pensar uma estratégia na luta de classe. Não
elaborei nada, porém é uma questão que talvez possa nos ajudar
muito, já que milhões de brasileiros pertencem a esta cultura.”

Jorge Carneiro afirma, hoje, que esta foi a primeira declaração pública a respeito das
relações entre candomblé e PT.
Em Março de 1992 realiza-se uma palestra com Mãe Beata sobre Mulher e meio
ambiente no Fórum de mulheres de Niterói.

20 Ex-militante da tendência Democracia Socialista e do PT, amigo de Jorge.


21 Na época o ex-deputato Marcelo Dias pertencia à tendência Democracia Socialista.
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Em Junho, é lançado o documento do CENARAB “Manifesto das tradições


religiosas e culturais afro-brasileiras sobre o Meio Ambiente e Cidadania”, na II
conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento – ECO 92 e no
FORUM GLOBAL 92 – Fórum internacional de Ongs e Movimentos Sociais. No mesmo
evento, Mãe Beata se apresenta como palestrante no Fórum Global sobre: Ética e
espiritualidade: mulher e sagrado, fazendo uma palestra sobre Orixás femininos.
Em Julho de 1993 é lançado o informativo odoyá – ISER, e Mãe Beata é eleita
madrinha do evento. Esse projeto lançava a campanha de prevenção da AIDS, nas
comunidades de terreiro do Estado do Rio de Janeiro. No ano seguinte em maio de 1994,
Mãe Beata é nomeada conselheira do CEDIM no Palácio Guanabara.
Em dezembro de 1995, em comemoração aos 300 anos de Zumbi de Palmares, PC
articula e organiza um debate, no mandato da vereadora Jurema Batista, sobre a
importância das religiões afro-brasileiras na cultura brasileira. Esse evento ainda fez
algumas homenagens a vários sacerdotes e sacerdotisas do Estado do Rio de Janeiro.
Em Abril de 1997 realiza-se o lançamento do Livro de Mãe Beata – A sabedoria dos
Terreiros22, no Palácio do Catete. Em Junho, Debate sobre Africanidades, organizado pelo
PROAFRO da UERJ. Nesse encontro, Mãe Beata falou sobre cidadania e religiões afro-
brasileiras.
Em 1998, PC, ainda como assessor da vereadora Jurema Batista, articula um projeto
que cria, no calendário de atividades oficiais do Município do Rio de Janeiro, a semana da
lavagem do Bonfim, a ser realizada na primeira semana do mês de janeiro. Esse projeto foi
apresentado por Jurema Batista, aprovado na Câmara de Vereadores e sancionado pelo
Prefeito Luiz Paulo Conde. Em outubro do mesmo ano, o MNU de Juiz de Fora, realiza um
debate sobre “As religiões de matriz africana”, sendo convidados para participar, os
militantes Jorge Caneiro e Lúcia.
Nas comemorações do dia Nacional da Consciência Negra, Jorge Carneiro faz uma
palestra, no PT de Nova Iguaçu, sobre a religiosidade negra e sua importância política. No
mês seguinte, os mesmos Jorge Carneiro e Lúcia, organizam um debate na comunidade de
terreiro dela, sobre cidadania e religiões afro-brasileiras. Esse debate marcou o lançamento
65

do Projeto Axé e Cidadania, isto é, um projeto que visava a organização de vários debates e
seminários em comunidades de terreiro da Baixada Fluminense, sobre cidadania e exclusão
social23.
Em fevereiro de 1999, realiza-se a Escola de Formação da Tendência Democracia
Socialista ( DS ) do PT no Rio Grande do Sul. Nesse evento, Jorge Carneiro apresenta o
documento, “Religiões de Matriz Africana na Luta Socialista” e é palestrante no tema:
“Religiosidade Africana no Brasil”. Lúcia encontrava-se presente também. Em março do
mesmo ano, comemorando o Dia Internacional de Luta das Mulheres, realiza-se o Debate
do PT de Nova Iguaçu: “Os orixás femininos na tradição dos orixás”, tendo Lúcia como
palestrante. Em junho, Jorge Carneiro inicia uma série de visitas a escolas para debater a
importância da luta pela cidadania e contra o racismo e a discriminação contra as religiões
afro-brasileiras. O primeiro evento foi no SENAI, a convite de um militante do PT.
Em julho, realiza-se o Seminário Nacional do MNU, na cidade do Rio de Janeiro,
onde se discutiu “As Religiões de Matriz Africana” e sua contribuição ao projeto político
do povo negro no Brasil. Organizaram o evento, entre outros, Jorge Carneiro e PC. Em
outubro, Jorge Carneiro faz palestra na Escola Técnica Estadual República - ETER, em
Quintino, para cerca de seiscentos estudantes, onde relatou a história dos negros no Brasil
contra o racismo e a discriminação contra as religiões afro-brasileiras.
Em fevereiro de 2000, a empreiteira LANSA e o prefeito Luiz Paulo Conde, lançam
a proposta de colocar uma escultura de Exú na Linha Amarela. Logo após, as igrejas
evangélicas começam uma campanha para impedir a efetivação da proposta e, como
conseqüência, conseguiram reverter a posição do Prefeito. Neste sentido, o PT (através da
Secretaria Estadual de Combate ao Racismo – da qual PC, Jorge Caneiro e Lúcia são
membros), lança um manifesto de apoio à proposta original.
Em maio, Lúcia organiza mais um debate sobre religiosidade no PT de Nova
Iguaçu. Esse evento fez parte de uma série de debates sobre a questão racial e o PT.

22 BEATA de YEMONJÁ, M. A sabedoria dos terreiros. Rio de Janeiro: Pallas, 1997.


23 Este projeto teve início a partir de uma idéia conjunta de Jorge, PC e Lúcia, em outubro de 1998, contudo, foram
realizadas somente duas palestras em terreiros de candomblé na Baixada Fluminense. O projeto não foi a frente por falta
de recursos financeiros. Ficando, então, somente no papel e nas boas intenções dos três militantes.
66

Em junho, Jorge Carneiro é palestrante sobre Cultura e Religiosidade no Seminário


Eleitoral Estadual de Políticas Públicas para Candidaturas Negras e para militantes de
combate ao racismo, promovido pela Secretaria Estadual de Combate ao Racismo, do PT –
RS. Nesse evento, Jorge Carneiro escreve um texto: “Xangô vivendo em nós”.
Apesar da fragmentação na realização desses eventos, ou seja, cada militante
investigado promovendo e participando de eventos sem uma articulação conjunta entre eles,
nota-se que começa a existir, de fato, uma discussão pública a respeito das culturas afro-
brasileiras dentro do partido e do Movimento Negro. Essa discussão – fruto da insistência
dos militantes em criar e participar de eventos – dá início, de forma tímida, as discussões
sobre o candomblé, passando a influenciar e nortear alguns debates dentro do PT, apesar de
não se constituir ainda como um grupo organizado ou reconhecido.
Esses são apenas alguns eventos realizados pelos militantes e com a presença deles,
que refletem suas elaborações anteriormente descritas. Mais adiante, se constata com mais
detalhes, os significados delas na construção identitária feita por eles. Entretanto, é
necessário descrever aqui algumas observações feitas por essa pesquisa e uma análise, em
seus espaços religiosos e políticos, pois, ao contrário do que foi constatado, suas
elaborações são marcadas por muitas dificuldades e contradições, uma vez que eles não
atuam num campo favorável de construção de identidades como desejariam.
Nas suas trajetórias de vida eles (com menos intensidade para Mãe Beata)
demonstram isso. Utilizando-se das suas condições de iniciados no candomblé, de suas
condições raciais e de definirem-se socialistas, tentam construir um comportamento
diferente, um discurso diverso e agem socialmente para serem reconhecidos como sujeitos
singulares na vida religiosa e nos seus espaços políticos. Mas enfrentam dificuldades e
algumas vezes prática e intenções se contradizem.
Jorge Caneiro tem um problema. Ele é filho de santo de Yiá Nitinha, a segunda mãe
de santo mais velha de iniciação no Brasil, oriunda do terreiro do Engenho Velho da Bahia.
Esse fato dificulta sua atuação dentro do terreiro como militante do PT, porque esta
Yalorixá não vê com bons olhos o fato de ter um filho de santo, que tem uma preocupação
“exagerada”, segundo ela, com a política partidária. Para ela, “Ogunsi”, como se refere a
Jorge Carneiro, deveria dedicar toda sua vida para se tornar um pai de santo. Jorge parece
67

saber disso, mas não se importa e afirma que seu futuro terreiro será diferente, já que será
mais politizado. Diz ainda, “que manterá as tradições legadas pelos ancestrais do Engenho
Velho”, às quais acrescentará também elementos de organização de seu futuro terreiro, que
terá uma clara opção ideológica, a nível político.
Como veremos, seus espaços privilegiados de elaboração política se restringem a
outros espaços que não são os da sua comunidade.
Veremos nos escritos dele mais adiante que Jorge Carneiro afirma que “a
cosmologia do candomblé” promove o crescimento do Axé de todos, acumula pessoas e
não bens e que é nessa dimensão que se encontra a contradição com a sociedade capitalista
ou em suas palavras com “o padrão dominante”. Entretanto, na convivência religiosa em
seu terreiro ele é o único que pensa dessa forma. Não encontra parceiros que partilham seus
ideais e pensamentos. Apesar de, por exemplo, teorizar uma concepção de hierarquia mais
“democrática”, ele obedece todas as ordens de sua mãe de santo, mesmo que essas ordens
contrariem-no.
Por outro lado, ele é parte integrante de um grupo político que não tem nenhuma
elaboração e posicionamento sobre o fenômeno da religiosidade, pelo contrário, em várias
reuniões em que participa da democracia socialista, vimos que seus parceiros políticos
afirmam que – repetindo o chavão da esquerda tradicional – “a religião é o ópio do povo”, e
mais, que o fenômeno da religiosidade não é, e nunca foi, elemento organizador de
sociabilidade libertária.
Para enfrentar essa contradição e justificar sua adesão nos dois espaços onde atua,
Jorge inventa de forma criativa, a crítica às esquerdas dogmáticas e racistas. No candomblé,
usando sua condição de futuro pai de santo, afirma que o seu terreiro será diferente, pois
seu tempo será outro e não aquele de sua Mãe de Santo. Ou seja, parece que aguarda uma
certa liberdade da autoridade de sua Mãe de Santo para ganhar autonomia e fazer de seu
espaço religioso um espaço também político ideológico.
Acredito que Jorge ainda se encontra numa fase de transição, onde as fronteiras
entre o religioso e o político estão bem definidas, mas a partir da fundação de seu terreiro,
conquistando sua autonomia na hierarquia ritual, estas fronteiras serão bem mais móveis.
68

Paulo Cezar (PC), também revela a mesma contradição, entretanto, por não ter o
cargo de Pai de Santo, ele está continuamente limitado nas fronteiras acima citadas. PC, no
seu espaço religioso, não discute política com seus parceiros, não organiza eventos, não
questiona a hierarquia. O que faz, no que diz respeito à associação entre o domínio
religioso e político, se restringe aos espaços de sua militância. Seu espaço privilegiado é o
MNU e também quando era assessor parlamentar da vereadora Jurema Batista.
Na verdade, PC utilizava o mandato da vereadora para promover eventos, ter o
status de assessor e para conseguir prestígio nas comunidades de terreiro. PC por várias
vezes, concedeu apoio material para alguns eventos das casas de terreiro ou manifestações
públicas da comunidade afro-brasileira do Estado do Rio de Janeiro.24
No MNU, PC se limita somente a nível do discurso e da organização de festas com
características afro-brasileiras,25 pois os militantes da entidade não discutem quase nunca
qualquer intervenção ou propostas de política pública para as comunidades afro-brasileiras
do Estado.
Os eventos que PC organizou de forma mais intensa e as elaborações e propostas
onde ele tenta construir um movimento com característica político-religioso se restringiu ao
PT e as parcerias com Jorge Carneiro e Lúcia.26
Lúcia, por outro lado, enfrenta o problema de isolamento dentro do PT de Nova
Iguaçu. Ela participa do coletivo de combate ao racismo, junto a um grupo que, na
composição local do Partido, é minoritário. Nesse sentido, sua identidade é construída com
poucos parceiros de elaboração. Enfrenta a discriminação por parte de militantes do
Partido, já que é negra e candomblecista. Ela muitas vezes assume posturas de aberto
confronto com todas as outras pessoas e grupos do Partido. De uma certa forma, isso
dificulta a credibilidade de suas elaborações. Por outro lado, nos espaços religiosos ela
também enfrenta dificuldades, pois havendo uma interpretação particular dos rituais e do

24 Todos os anos, PC ajuda na organização e coordenação da Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfin, no segundo
Sábado de janeiro e na entrega do presente de Yemanjá, em 2 de fevereiro, quando milhares de fiéis e simpatizantes de
Yemanjá saem do centro da cidade do RJ até a Baia de Guanabara entregar os presentes para Yemanjá. Em anexo alguns
ilustrações acerca destes eventos.
25 Já foram realizadas pelo MNU-RJ algumas festas de confraternização no qual o lugar escolhido é paramentado com
objetos rituais do candomblé, formando um pseudo barracão.
26 Parceirias que se expressam nos documentos comuns e na militância na Secretaria de negros do PT.
69

candomblé, nos terreiros que visita, ela expressa opiniões que não são muito bem vistas
pelo “povo de santo”. Costuma afirmar que os “orixás eu respeito muito, mas a maioria de
seus filhos são muito vaidosos e arrogantes”. Esses fatos fazem com que Lúcia se encontre
isolada na atuação política em muitos momentos, levando-a um tipo de militância e
vivência religiosa muito autocentrada.
Raramente freqüenta seu terreiro, na verdade somente em ocasiões festivas.
Costuma freqüentar mais outros terreiros e é ali que ela, mais uma vez, tenta se diferenciar,
criando concepções próprias e interpretações da prática religiosa de outros. Ela tenta
construir sua identidade religiosa através da diferenciação com os outros.
Observamos que nos seus espaços políticos ela prioriza o PT. Desde que entrou no
partido, em 1989, ela sempre acompanhou as atividades da direção do partido em Nova
Iguaçu e, desde 1994, é membro do diretório municipal, atuando, ora na Secretaria de
Mulheres, ora no Coletivo de Combate ao Racismo.
Em 1996, quando conhece Jorge Carneiro, começa a se utilizar da sua religiosidade
para atuar de forma mais diferenciada dentro do partido. Com o apoio de Jorge, ela começa
uma nova fase de sua militância, acentuando mais ainda sua “política da diferença” no
partido. Isso, de início, lhe dá mais credibilidade, seus companheiros de partido
reconhecem que esta discussão é nova, porém ela continua atuando de forma solitária. As
acusações agora, em direção aos outros militantes, são aquelas de racismo e preconceito
religioso. Mas o reconhecimento da parte dos militantes do partido em relação às
discussões que Lúcia tenta promover, não é por acaso.
Em 1996, o PT de Nova Iguaçu elege um vereador evangélico, que por sua vez
funda um núcleo de evangélicos do PT local. Esse fato dá a Lúcia os motivos mais que
necessários para reivindicar uma discussão no âmbito do campo religioso afro-brasileiro.
Como se vê, ela manipula sua diferença como iniciada no candomblé, em busca de
um espaço próprio de atuação dentro do partido, de forma autônoma, visando um aumento
de seu poder de influência sobre alguns militantes.
Por último, Mãe Beata apesar de ter construído uma referência política no Estado,
ainda mantém muitas características similares encontradas em outros terreiros de
candomblé como, por exemplo, a concentração de poderes somente em torno dela, em sua
70

comunidade. Por outro lado, se sente como mãe de todos na comunidade, expressando
comportamentos que a faz responsável por tudo e por todos, por ser a proprietária do
terreno onde se encontra seu terreiro.
Ver-se-á, então, que apesar de seu discurso democrático, socialista, ela não pode
abdicar do comando em sua comunidade. Afirma claramente isso quando diz que “somente
em uma comunidade de terreiro que tenha uma Mãe de santo de esquerda é possível fazer
do candomblé um espaço comunitário e de luta pela cidadania”. Ou seja, é uma clara
reafirmação de uma autoridade única, mesmo que essa autoridade seja voltada para a defesa
retórica de “idéias socialistas”.
À primeira vista, os discursos de Mãe Beata podem revelar um puro utilitarismo de
sua parte, ou seja, a utilização de um espaço de atuação política para ganhar notoriedade
entre o povo de santo, uma vez que se diz socialista e tem uma prática centralizadora.
Entretanto, Mãe Beata, pode ser considerada de esquerda27 porque ela ‘acredita’ que
somente o PT poderá transformar a sociedade. Mais adiante, no seu discurso político, ela se
define socialista.
Em diversas ocasiões, desde a fundação de seu terreiro, ela recebeu vários convites
da direita fisiológica da Baixada Fluminense, para ser candidata à vereadora, com todas as
despesas de campanha pagas ou para ser cabo eleitoral de partidos como o PFL, PMDB,
PL, mas ela sempre recusou, afirmando que o trabalho assistencial que realiza em seu
bairro visa a melhoria da qualidade de vida de seu povo e que, somente no PT, identificava
uma política próxima ao que ela faz.
Quando Mãe Beata chega na Baixada Fluminense para fundar seu terreiro, ela
encontra-se num dilema: como ganhar prestígio no mercado religioso, ganhar filhos de
santo, público para suas festas, diante de tantos terreiros de candomblé já constituídos na
cidade de Nova Iguaçu, alguns deles, como de Yiá Nitinha de Oxum, do Engenho Velho?
Disputar prestígio, já que ela é filha de santo de uma das casas mais prestigiadas da Bahia
(Olga de Alaketo), seria uma tarefa difícil se ela não se utilizasse de outros recursos fora do
âmbito religioso.

27 Este termo foi explicitado por Mãe Beata no sentido de se situar no campo dos partidos que defendem o fim do
capitalismo e a proposta de construção de uma sociedade socialista.
71

Quando Mãe Beata se instalou na cidade de Nova Iguaçu, no bairro de Miguel


Couto, encontrou, dentro de seu público de simpatizantes do candomblé, alguns militantes
do movimento negro e do PT. Um grupo que realizava um trabalho de base na associação
de moradores e nas campanhas eleitorais do PT. Alguns, nesse grupo, tinham relações
estreitas com as pessoas que fundaram o Instituto de pesquisa língua e cultura Yorubá (
IPELCY ) e o Instituto Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( INARAB ).
Foi então que Mãe Beata percebeu que na agitação política que acontecia no bairro,
ela poderia se enveredar e ganhar prestígio nas disputas do mercado religioso local.
Mãe Beata então se filia ao PT, entra para a associação de moradores e abre seu
terreiro para a realização de eventos assistenciais para a população carente local. Daí em
diante Mãe Beata ganha notoriedade, prestígio e a marca de Mãe de Santo Petista e
politizada, se instrumentaliza com uma linguagem política e marca uma diferenciação em
relação às outras sacerdotisas e sacerdotes locais.
Por outro lado, dentre os militantes que eram simpatizantes do candomblé, alguns
deles se tornam filhos de santo de Mãe Beata, exportando para o movimento negro, a
imagem de uma Yalorixá que, em pouco tempo se torna a única “Mãe de Santo de esquerda
do Estado”.
Portanto, pode-se concluir de sua história e prática militante que Mãe Beata se
coloca no campo da esquerda. Mas, mesmo considerando Mãe Beata uma pessoa de
esquerda, ela continua a expressar contradições entre seu discurso socialista e sua prática
como autoridade máxima em seu terreiro.
Proprietária do terreno onde fica seu candomblé, ela é a única que dirige e dá as
ordens, seja no cotidiano da administração do terreiro, seja nos rituais. Ali todos a
obedecem, a hierarquia é rigidamente cumprida. Não existe a socialização de poderes como
prega o socialismo petista. Seu discurso, se limita em si mesmo, em demarcar uma
diferença em nível puramente retórico.
Dentre esses quatro militantes somente três (Jorge Carneiro, Lúcia e PC),
esporadicamente agem como grupo, para tentarem construir e dar corpo coletivo, à
discussão que fazem através da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ.
72

Isso porque, além de militarem juntos na secretaria do PT-RJ, nas suas trajetórias pessoais
(especificamente Jorge e PC), existe uma certa proximidade.
73

3. O contexto histórico da tentativa de construção de um


novo movimento político.

3.1 – A invenção-construção de uma nova identidade político-


religiosa.

Antes de iniciar a descrição e análise teórica da pesquisa, vamos descrever o


contexto histórico no qual esses militantes se encontram: os movimentos sociais em geral, o
Partido dos Trabalhadores, o Movimento Negro e suas relações com algumas casas de
candomblé no Rio de Janeiro que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento e
amadurecimento de uma prática política por parte de alguns militantes do PT, no que se
refere à construção de identidades e associações entre alguns traços culturais do
Candomblé e o projeto socialista que esses militantes defendem.
Essa contextualização será feita privilegiando o período 1980-1999 a partir de uma
análise do percurso dos militantes e dos seus próprios testemunhos. Veremos como os
militantes colocaram em evidência alguns momentos essenciais para suas vidas, no sentido
de os terem levado a construir as associações entre, por exemplo, a concepção de Axé que
eles possuem e a utopia socialista por eles defendida.
Os momentos identificados, sem uma ordem cronológica pre-estabelecida, estão
compreendidos entre os seguintes fatos: 1 – Do momento da fundação do PT até as eleições
presidenciais de 1989; 2 – A fundação do Instituto de pesquisa língua e cultura Yorubá (
IPELCY ), Instituto Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( INARAB ) e
do Centro Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ( CENARAB ); 3 - A
discussão sobre a “construção dos novos sujeitos na luta de classe” e 4 - A elaboração de
uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada Raça e Território.
74

3.2 – Os momentos

O novo sujeito político na história brasileira: O Partido dos


Trabalhadores.

Observamos no capítulo anterior as concepções políticas dos militantes a respeito do


PT; a intenção agora é caracterizar como, diferentemente de outros períodos de atuação da
esquerda brasileira, a atuação do PT contribuiu para o desenvolvimento de certos
movimentos populares e para uma mudança na relação entre a esquerda e a “questão
religiosa”28 em geral.
O PT nasceu no contexto bastante específico das grandes greves operárias do ABC
paulista, no final da década de 70 e início dos anos 80 do século XX, e da necessidade de
diversos setores da vanguarda da classe operária em superar o corporativismo, o seu
movimento espontâneo foi um dado característico de auto-organização sindical para obter
um instrumento de ação política mais global.
Assim o PT conseguiu aglutinar, além de sindicalistas, intelectuais que resistiram à
ditadura militar, dezenas de organizações políticas e correntes ideológicas de esquerda.
Esses diversos setores da esquerda brasileira não se encontravam organizados como
também não estavam identificados nas políticas do PCB e do PC do B.
Pode-se afirmar então, que toda a esquerda, que não tinha uma concepção de
revolução por etapas29, assumiu a construção do PT. E essas correntes levaram ao PT uma
variedade de concepções político ideológicas.
O PT nasce também dos principais teólogos da libertação, que no cotidiano religioso
cristão organizavam as CEBs, que por sua vez tinham uma ampla base de apoio popular e
operária. Essa base popular se expressava nos movimentos de bairros e naqueles
movimentos por reivindicações específicas (mulheres, negros, etc.).

28 PORTELES, H. Gramsci e a questão religiosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978.


29 Por meio desta expressão se afirmava que as revoluções socialistas nos paises em desenvolvimento teria uma primeira
etapa, dirigida pela burguesia local e, logo em seguida caberia ao proletariado a tomada do poder.
75

A heterogeneidade na formação do PT, para alguns de seus fundadores, é a sua


grande virtude, já que a ninguém foi pedido um “atestado ideológico”. As lutas sociais, o
combate contra a ditadura militar, a construção de um partido de “lutas”, eram os elementos
que uniam cristãos, socialistas, comunistas, marxistas de várias correntes e uma grande
maioria que não apresentava uma definição política-ideológica a priori.
O impacto das CEBs forneceu, à igreja católica brasileira, um tecido de base
popular, sob o qual foi construída a unidade de base dos principais movimentos sociais e
políticos, nas décadas de 70 e 80. Na verdade as CEBs, com seus agentes de pastoral,
tinham um sentimento forte de basismo, ou seja, uma preferência pela política local, uma
desconfiança grande em relação “a quem era de fora” e aos intelectuais. Esta postura foi
criticada pelos principais teólogos da libertação (Frei Betto e Leonardo Boff).
Contudo, essa cultura política das CEBs apresentou também um aspecto singular:
uma prática democrática de base e uma desconfiança da demagogia das classes dominantes
e populistas, assim como das práticas autoritárias e burocráticas de certos grupos de
esquerda ( em particular o PCB e o PC do B ). De qualquer modo, os militantes das CEBs,
com o apoio dos bispos e teólogos, construíram um movimento popular de massa no final
da década de 70.
Em seu nascimento, e no decorrer de seu crescimento, o PT adquiriu uma identidade
muito presente no conjunto da esquerda, conseguindo aglutinar setores dos movimentos
sociais que nunca tinham tido referências políticas de esquerda e de organização partidária.
Junto com o PT, os movimentos sociais como o de mulheres, dos negros ( fundação do
MNU ), da juventude, sindical e ecológico foram, durante os anos 80, conquistando mais
espaços na sociedade brasileira ao ponto de, numa pesquisa feita pelo governo brasileiro,
sobre em qual instituição os cidadãos tinham mais confiança demonstrando que: os
sindicatos detinham 60% de preferência em relação aos 12% do Estado e 12% da igreja
católica.
Evidentemente, não se pode afirmar que foi o PT que organizou esses movimentos,
mas sua presença colocou em debate, por intermédio destas várias correntes de pensamento,
determinados valores nos movimentos sociais como: independência de classe, auto-
organização popular, liberdade de organização rejeitando o vínculo com o Estado, crítica
76

radical ao capitalismo enquanto sistema que não resolve os problemas fundamentais do


povo, crítica à prática paternalista das organizações políticas tradicionais, crítica ao culto da
personalidade dos líderes do movimento popular, prática militante coerente com o projeto
utópico, etc. Enfim, a chamada “cultura petista” influenciou em muito o crescimento dos
movimentos populares.
Definims estes valores como “cultura petista” porque se constatou, pela primeira
vez na história da esquerda brasileira, valores e concepções que não provinham,
necessariamente, de uma tradição marxista, mas que apareceram, num contexto histórico
específico, no qual nascem movimentos políticos e sociais, ligados às lutas singulares como
o Movimento Negro, de mulheres, dos bairros pobres e, como se viu, também influenciados
pelos católicos progressistas.
Um dos momentos culminante disso, foi o fato político inédito, criado no segundo
turno das eleições presidenciais de 1989, isto é, na disputa entre Collor de Mello e Lula,
quando se evidenciaram, claramente, dois projetos diferentes ou como alguns definem
“dois projetos de classe”, ou seja, Collor representava os setores dominantes do país,
enquanto Lula “a grande maioria dos explorados”. Nesse sentido, Lula representou,
segundo análise de Raul Pont30, um grande “movimento ético” na política brasileira. Além
de Pont, Frei Betto definiu claramente esta ética e cultura petista:

“em muitos aspectos o PT inaugura uma nova forma de partido


político. É a primeira vez na história brasileira, que setores populares
criaram o seu próprio instrumento político, conseguindo se afirmar
apesar das exigências legais das classes dominantes. Não se trata de
um partido para os trabalhadores mas de trabalhadores e por esses
construído. Sua proposta não nasce das cabeças iluminadas dos
intelectuais de esquerda(...). Disposto a defender o direito à liberdade
de organização política dos trabalhadores em todos os níveis, o PT
propõe a democracia como valor permanente, mediante participação
daqueles que produzem a riqueza, nas decisões políticas e nos
77

benefícios econômicos oriundos de seu trabalho para construir uma


sociedade socialista”.

Descrevendo as eleições de 1989, Frei Betto ainda fala sobre o significado do PT:

“foi a primeira vez na história brasileira que a classe operária


apresentou um programa de governo com um candidato próprio. Na
campanha eleitoral tinha muitas bandeiras, de todos os tipos, nos
comícios de Lula existia um sentimento de que toda a sociedade
estava representada ali, como se existisse uma unanimidade social
que se dizia ter contra a ditadura militar na época das diretas já(...).
Pessoalmente, Lula sempre dizia que não queria ser eleito a qualquer
preço, a campanha eleitoral de 89, era para ele, sobretudo, um
poderoso instrumento para reforçar a consciência política daqueles já
organizados e ajudar a organizar imensos setores da sociedade ainda
controlados como bois”.31

Na época, a maioria dos sindicatos, Organizações não governamentais, associações


de bairros, Movimento Negro, de mulheres e outros tinham presença marcante na
campanha de Lula a presidência e do PT de maneira geral.
O que se observa hoje é uma abertura por parte de um setor da esquerda brasileira,
no sentido de discutir as íntimas conexões entre religião e política, não caracterizando,
como faziam o PCB e o PC do B, a religião como simples “ópio do povo”. E essa discussão
é possível, devido ao caráter plural do PT, ou seja, a sua cultura democrática e não
dogmática, ao contrário dos partidos já citados. Em toda a história da esquerda no Brasil,
como bem afirma V. Chacon: “os comunistas e anarquistas, com sua hostilidade atéia ou
agnóstica, sempre reagiram às políticas da igreja católica, mesmo se esta possuía num certo

30 PONT, R. Breve história do PT. Brasília: Centro de documentação–câmara dos Deputados, 1992.
31 BETTO, F. Por que eleger Lula Presidente. São Paulo: Cartilha popular, 1994. pp. 24
78

momento, posições progressistas”32; e, em seguida, pelo fato de que o PT enquanto partido,


junto com os teólogos da libertação, criaram um novo tipo de relação entre a esquerda e a
questão religiosa.
É ainda Frei Betto que nos dá um bom exemplo, na penúltima campanha eleitoral,
em 1994: “Já existe na campanha de Lula presidente um comitê religioso, no qual também
faço parte. Este comitê tem por objetivo incentivar a mobilização dos fiéis por segmento
religioso, incluindo todas as religiões existentes no Brasil. Um comitê religioso pode ser
ecumênico(...) no comitê as pessoas se reúnem para trabalhar nas eleições a luz de sua fé e
como demonstrar a importância da política segundo as nossas crenças religiosas”33.
Frei Betto descreve também o que deve responder um militante do PT quando, na
campanha eleitoral, se acusa os religiosos de misturar religião e política: “todos nós, que
procuramos seguir o exemplo de Jesus, somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus
não morreu doente na cama, morreu pelo contrário, assassinado na cruz, preso porque
queria o reino de Deus, que servia de espelho para que o povo reconhecesse as opressões do
reino de César, que dominava a palestina no século I”34.
Aqui fica evidente que esse primeiro momento é aquele marco inicial para se
pensar, na atualidade, a construção de identidades e associações entre uma concepção
política e uma religiosidade expressa pelo candomblé. Tendo como precedente a teologia
da libertação, os militantes se sentiram bem à vontade , num espaço político construído por
eles, para afirmarem sua opção religiosa.

A fundação do IPELCY, do INARAB, e do CENARAB

Um momento importante que contribuiu para o aparecimento das construções de


associações dos militantes investigados foi a criação de algumas associações tanto no Rio
de Janeiro e quanto em nível nacional: o IPELCY, o INARAB, e o CENARAB. Dos
militantes investigados três deles ( Jorge Carneiro, PC e Mãe Beata ) foram influenciados

32 CHACON, V. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1981. Pp.56
33 BETTO, F. idem, 1994. pp 25
34 BETTO, F. ibidem, 1994. pp 25
79

por estas associações, tanto no que tange a entrada destes (Jorge e PC ) no movimento
negro quanto na aquisição de prestígio religioso ( Mãe Beata ). Suas histórias de vida são
permeadas pela presença destas associações.
No início dos anos 80, um grupo de militantes do Movimento Negro, na cidade do
Rio de Janeiro, como Jairo Pereira, Geisa de Oliveira, Ivanir dos Santos, etc conheceram
três estudantes nigerianos que se encontravam na cidade. Nesse contato, começaram a
discutir sobre a língua yorubá e sua difusão no Brasil, “de forma deturpada”, através dos
rituais das religiões afro-brasileiras, especialmente o candomblé. Na época, segundo esses
estudantes nigerianos, o yorubá não era falado de forma correta nos rituais, apesar de se ter
conhecimento de várias palavras, seus fragmentos e seus significados. Preocupados, então,
em recuperar e ensinar o yorubá fluentemente aos iniciados no candomblé, esse grupo de
pessoas decidiu organizar um primeiro curso de língua e cultura yorubá.
O início do curso, divulgado em toda a Baixada Fluminense, nas comunidades de
terreiro, foi ministrado por alguns estudantes universitários, sob a coordenação do IPELCY
( Instituto de Pesquisa de Língua e Cultura Yorubá ). Nesse curso, se encaminhava a
discussão acerca de vários aspectos históricos, políticos, sociais e culturais do processo de
marginalização das “culturas de origem africana”. Essa discussão levou a uma constatação
sobre diversos fatores que determinaram essa mesma marginalização, preconceito e
discriminação contra as religiões afro-brasileiras:
• isolamento das comunidades de terreiro e da população negra em geral do processo
decisório da sociedade e esse isolamento representa uma herança da escravidão;
• a repressão, por parte do Estado, até os anos 30, período no qual, os terreiros eram
invadidos pela polícia, objetos eram seqüestrados e os adeptos eram processados e
encarcerados;
• a continuidade da repressão de forma mais sutil, isto é, depois dos anos 40, a polícia
exigia uma espécie de registro civil para o funcionamento das casas de candomblé;
• preconceitos, estereótipos e estigmas contra as religiões afro-brasileiras, amplamente
disseminadas na sociedade brasileira;
• um novo ataque contra essas mesmas religiões, através das igrejas evangélicas e
pentecostais, expresso em muitos casos por agressão física e moral.
80

Na avaliação desses elementos, os integrantes do curso ( militantes do Movimento


Negro ) se empenharam em realizar discussões para mudar este quadro analisado, tendo
como ponto de referência não só os conceitos e a “visão de mundo” que, segundo eles, dão
sentido às religiões de “origem africana” no Brasil, como também o rico simbolísmo do
orixá Exú, elemento da natureza, “transformador e revolucionário”. Para eles, o conceito
de “visão de mundo” significava um “modo particular de estar no mundo” ou “um modo
africano de ser”. Num dos documentos produzidos por eles se afirma: “Os negros africanos
trazidos para o Brasil tinham uma cultura, uma religiosidade, seu modo de estar no
mundo. Diferente do branco europeu, certos aspectos de sua existência negra, como a
relação com a natureza, a vida em sociedade, baseado na ancestralidade, é radicalmente
oposta daquela européia. Não se prega o individualismo e a intolerância em relação aos
diferentes”.
Fizeram um documento que dizia: “depois de quase meio milênio ainda existem no
Brasil a opressão as expressões culturais e religiosas de origem africana (...) e que, esta
violência continua, é uma transgressão à liberdade de expressão e do exercício, portanto,
da plena cidadania”.35 Assim, chegam à conclusão de que se faz necessária a
reivindicação de um espaço político dentro da sociedade mais abrangente. Pois, quando
falam em “opressão às expressões culturais e religiosas de origem africana”, estão
reinventado uma africanidade, uma política da diferença, para construir novos espaços de
identidade.
A partir daí, nasce um “trabalho de conscientização política”, através da
participação de militantes do Movimento Negro da época como: Geisa de Oliveira, Jairo
Pereira, Luís Cláudio, Ivanir dos Santos, Marcos Ferreira, etc., com o objetivo de levar “a
unidade política de todos os setores das religiões afro-brasileiras, levando-os à
compreensão da diferença destes com os aspectos da ideologia dominante que coloca no
gueto os adeptos”36.
Quando falam em “unidade política”, em “conscientização”, na verdade, estão
tentando articular movimentos de resistência dos adeptos do candomblé, aos ataques de

35 Documentos do Inarab, Rio de Janeiro: 1989, mimeo, pp 9.


81

outras denominações religiosas, em especial, os evangélicos pentecostais. A suposta


unidade seria concretizada – assim desejavam – numa grande associação nacional e
regional – como de fato fizeram – para, então, buscar a coesão de forma centralizada, na
luta pela liberdade religiosa, que segundo eles, existia nas leis, mas de fato não era
cumprida.
Essa tentativa de unificar politicamente os adeptos do candomblé, surge quando os
pentecostais, ao final dos anos 80, intensificaram seus ataques às comunidades afro-
brasileiras. Os espaços de atuação escolhidos pelo grupo foram as comunidades de terreiros
de candomblé situados na Baixada Fluminense. O grupo pensava, na época, esses espaços
como fundamentais para o desenvolvimento de projetos de natureza política, social e
cultural, associados às lutas pela melhoria das condições de vida das populações
marginalizadas, à luta ecológica e contra o racismo sofrido pelos negros, sendo, enfim, uma
luta contra os ataques discriminatórios por parte das “igrejas eletrônicas”.
Os atores desse movimento eram basicamente formados por intelectuais militantes
do Movimento Negro do Rio de Janeiro, que se utilizaram desse suposto “resgate da língua
Yorubá” para construírem uma entidade – via terreiros de candomblé – que se qualificasse
no Movimento Negro mais amplo, tendo como ponto de vista uma “pureza africana”, para
combaterem o racismo no Brasil.
O IPELCY, que o citamos anteriormente, foi fundado nesse curso. Ao longo dos
anos 1984 a 1987 foram organizados diversos eventos, debates e conferências nas escolas
públicas de ensino fundamental e médio, junto com a Secretaria de Cultura da Prefeitura do
Rio de Janeiro. Nesses eventos foram discutidos temas como “religião e identidade negra”,
“os cultos afro-brasileiros” e, mais adiante, foi feito um censo em três mil terreiros
existentes na Baixada Fluminense. De outubro de 1987 a setembro de 1988 foram
realizados nove encontros regionais das religiões afro-brasileiras ( “a tradição dos orixás” ),
em vários terreiros de candomblé, com uma média de trezentas pessoas por encontro.
Entre os dias 17 e 20 de novembro de 1988 foi realizado o primeiro encontro das
religiões afro-brasileiras na UFF, com cerca de três mil participantes. Nesse encontro,

36 PEREIRA, J. Cosmovisao negra-africana e as religioes afro-brasileiras. São Paulo: Documentos CENARAB 1996.
Mimeo, pp. 4
82

estavam presentes também pessoas de outros Estados como Bahia, Minas Gerais, São Paulo
e Rio Grande do Sul. Fica claro que o IPELCY, ‘inventava’ uma política cultural baseada
nos espaços de terreiro mas, o catalisador, o fator determinante para a maioria de seus
participantes, foi a resistência e a busca de soluções aos ataques evangélicos, ou seja,
invasões de terreiros, exorcismos feitos nos portões dos candomblés, xingamentos nas ruas
quando um evangélico identificava um adepto do candomblé e da umbanda, etc. Nesse
encontro foi divulgado um dossiê, “A guerra santa fabricada”, elaborado a partir de estudos
de autores pentecostais e de artigos da grande imprensa nacional. Este, denunciava a guerra
que os evangélicos tinham declarado contra as religiões afro-brasileiras.
Nos anos 1989 e 1990 foram promovidas várias atividades de “conscientização
política” entre os adeptos do candomblé, que significava, segundo seus integrantes, debates
sobre direitos da cidadania nos terreiros da Baixada Fluminense, palestras de professores
sobre a história do negro no Brasil, a importância do voto consciente em eleições gerias,
etc. Vários documentos foram produzidos, entre os quais um dos mais importantes: “A
visão ecológica na cultura negra”37.Em 1989, com o crescimento do movimento, os
militantes do Movimento Negro, adeptos do candomblé, fundaram o INARAB ( Instituto
de Articulação das Religiões Afro-brasileiras ). O objetivo dessa associação era “consolidar
a articulação dos adeptos das religiões afro no Rio de Janeiro para reforçar a unidade
política contra o processo de marginalização social, cultural e política dos afro-brasileiros e
para garantir os direitos humanos”. Constata-se que, a resistência a que nos referimos
acima, para eles, se reveste de um outro nome: direitos humanos.
Esse movimento não se restringiu ao Rio de Janeiro, ele se estendeu a outros
Estados do país. Assim, em 13 de março de 1992 foi fundado o CENARAB (Centro
Nacional de Articulação das Religiões Afro-brasileiras). O INARAB foi, então, extinto no
Rio de Janeiro, ficando o movimento articulado com outros movimentos nacionais. O
CENARAB, porém, começou a ser articulado por alguns setores do Movimento Negro já
em 1991, precisamente em novembro, por ocasião do I Encontro Nacional de Entidades
Negras (1° ENEN).

37 Ver em anexo a íntegra do texto


83

A meta do CENARAB era “transformar os vivenciadores das religiões afro-


brasileiras em agentes sociais efetivos, tirando-os da condição de agentes passivos do
processo de transformação social da nossa sociedade e levar as comunidades de terreiro e
seus líderes religiosos a uma interação com a sociedade e suas lutas por melhores condições
de vida e com o objetivo de construir uma sociedade verdadeiramente democrática, justa,
respeitosa das diversidades étnicas, culturais e religiosas”38. “Tirar da condição de agentes
passivos do processo de transformação social da nossa sociedade”, para eles, significava na
época, fazer com que os adeptos do candomblé não se reduzissem aos guetos, ou seja, eles
avaliavam que com os ataques sofridos pelos evangélicos e pela mídia, o “povo de santo”
se restringiria a simples defesa de seus terreiros isoladamente, sem jamais realizar
denúncias políticas articuladas contra, segundo eles, o verdadeiro significado destes
ataques: o racismo, amplamente denunciado pelo Movimento Negro.
No CENARAB participam várias Ialorixás e Babalorixás e os iniciados no
candomblé de vários Estados. O CENARAB nos seus estatutos afirma que sua existência
tem como finalidade os seguintes pontos:
• “Mobilizar, articular e organizar politicamente a população negra, particularmente, os
militantes iniciados ou simpatizantes da cosmologia de matriz africana, para enfrentar o
processo de exclusão, levando a população afro-brasileira a uma luta pelos seus direitos
de plena cidadania;
• Desenvolver estudos e pesquisas sistemáticas sobre a cosmologia e as condições de vida
da população afro-brasileira;
• Colocar em ação projetos e atividades na área de educação informal, pela cidadania do
povo negro, desenvolvendo, especialmente, trabalhos com crianças e adolescentes, com
a perspectiva de recuperar a identidade étnico- cultural, a dignidade existencial e a auto-
estima, negada pelo processo educativo formal e pelas estruturas ideológicas do sistema
sociocultural, político e econômico do Estado brasileiro, secularmente excludente;
• Incentivar as comunidades de terreiro para desenvolver nos seus territórios, atividades
que contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos seus iniciados, estabelecendo
interações com a comunidade em torno ao terreiro;

38 Estatutos do CENARAB. Aprovado na 3° Assembleia Extraordinaria de 14 à 16 Julho de 1995. Pp. 5


84

• Realizar projetos e atividades no âmbito da ecologia e meio ambiente, dentro dos


princípios da cosmologia de matriz africana, se construindo como ponto de referência
na sociedade brasileira;
• Estimular e assessorar as iniciativas políticas e culturais da população afro-brasileira,
em qualquer parte do território brasileiro;
• CENARAB, não influenciará nos processos rituais das comunidades de terreiro”39
Já em 1995, contudo, o CENARAB perde sua notoriedade como “denunciador” da
intolerância religiosa na época, até porque os evangélicos diminuíram seus ataques públicos
para priorizarem seu próprio crescimento.
No entanto o CENARAB, com relação a alguns pontos de seus estatutos, em que se
destacava de um lado a discussão sobre a exclusão do negro na sociedade brasileira, restrita
ao negro adepto do candomblé, para os que reivindicavam cidadania plena baseada no
discurso de uma suposta recuperação ou reinvenção de uma identidade cultural; por outro
lado, ele se esvaziou, enquanto órgão aglutinador de militantes, na medida em que seu
motivo principal deixou de ser também amplamente divulgado na mídia, ou seja, os ataques
dos pentecostais, pois o movimento se movia de acordo com a sua divulgação na grande
imprensa.
Entretanto, para Carlos Nobre40, jornalista e escritor, o movimento expresso pelo
IPELCY, INARAB e CENARAB, representou e representa até hoje, “o redescobrimento do
Candomblé como elemento que resistiu ao massacre dos negros e de sua rica manifestação
cultural.”41 E isso porque esses militantes caracterizavam o candomblé como a instituição
que mais resistiu à tentativa, do que eles denominam de eliminação dos “traços culturais
negros de origem africana”.
Nos encontros e na fundação dessas associações, afirma Nobre, estavam presentes
também antropólogos e sociólogos, que apoiavam “a organização dos marginalizados”42.
Marginalizados aqui, significa para Nobre, os adeptos do candomblé que sofriam a
intolerância religiosa por parte dos pentecostais. Um outro elemento que caracterizou este

39 Estatutos do CENARAB, idem, pp. 8


40 Carlos Nobre, um ex-militante do Movimento negro no Rio de Janeiro foi citado várias vezes por Jorge Carneiro, em
nossas entrevistas, como uma das figuras importantes na elaboração de uma interpretação política dos cultos afro-.
41 NOBRE, C. A decoberta da identidade através do candomblé. Documentos CEAP, 1990. Mimeo pp. 3
85

movimento cultural e popular, que se pode evidenciar, ainda segundo Nobre, mas que tem a
ver com esses estudos, foi a transformação de comportamento da parte de diversos
militantes do Movimento Negro ao longo dos anos 80.
“Estes militantes, apesar de serem adeptos das religiões afro-brasileiras, devido ao
domínio da linguagem marxista nos discursos do Movimento Negro, tinham ‘vergonha’ de
declarar-se aparentemente ao candomblé, já que esta religião era muito estigmatizada. Em
outras palavras, eles temiam ser rotulados como ‘alienados ou macumbeiros”43. Carlos
Nobre afirma ainda que “um dos responsáveis por esta transformação da parte destes
militantes foi Jairo Pereira, fundador do IPELCY, INARAB e CENARAB”44, que
permanece como o atual coordenador do CENARAB.
Mas, segundo Jairo Pereira, ao culto dos Orixás deve-se incorporar “as lutas pela
democratização da sociedade e pela construção de uma cidadania afro sem recalque”.45 Já
que, para ele, existe cidadania “somente para os brancos”.
Isso significa, para Jairo Pereira, uma redefinição do papel do candomblé, isto é, nos
terreiros deve-se reafirmar a cidadania perdida pelos negros na diáspora, devendo-se, ainda,
combater o racismo, sendo que as comunidades de candomblé não devem deixar que os
coloquem no gueto, mas sim integrar-se às lutas populares concretas nos bairros em torno
ao terreiro e na construção de uma ética no candomblé, evitando o crescimento da
mercantilização dos cultos imposta pela sociedade capitalista. Enfim, o candomblé deveria
ajudar os iniciados a não serem manipulados pelos políticos populistas e burgueses, que
contribuem, para manter o povo fora das decisões políticas, e também para a discriminação
das religiões afro-brasileiras.
É curioso notar que Jairo Pereira utiliza categorias que nunca foram reivindicadas
pelo Movimento Negro ou pela população negra no Brasil. Categorias como “cidadania
perdida” e “ética no candomblé”, podem ser vistas, aqui ,como construções que tiveram
objetivos políticos claros: a tentativa de construir mais uma organização negra, que,
contudo, tivesse seu embasamento em construções político-religiosas.

42 NOBRE, C. Idem, mimeo, 1990 pp. 3


43 NOBRE, C. Ibidem, mimeo, 1990 pp. 3
44 NOBRE, C. Ibidem, mimeo, 1990 pp. 3
45 PEREIRA, J. idem. 1996. pp. 3
86

Essas discussões, no entanto, fizeram com que intelectuais negros, iniciados no


candomblé, começassem a dizer abertamente que pertenciam àquela religião e que, não
viam incompatibilidade com o marxismo empregado como instrumento de transformação
nas lutas sociais e não como dogma46. Isso significava, segundo Carlos Nobre, que
“ninguém se envergonhava mais de pertencer a religião. O recalcamento deu lugar a uma
postura dura em relação aos estereótipos. Por outro lado, muitos militantes, que não
conheciam a religião, começavam a tê-la como referência cultural para as lutas sociais de
cada dia. Nestes casos, os Orixás, suas histórias, suas personalidades, serviram como
modelos ( reinterpretados ) para enfrentar uma realidade baseada em cânones racistas.”47
Os resultados desse movimento se restringiram a uma pequena parcela do
Movimento Negro do Rio de Janeiro, não conseguindo unificar os terreiros de candomblé
no Estado, para seus objetivos de criação de uma entidade mais ampla. Contudo, para
alguns militantes do MNU e de algumas Ongs, ele se cristalizou como referência nas
futuras trajetórias pessoais dos militantes investigados. Assim, para Mãe Beata e Jorge
Carneiro, esse movimento serviu como referência para as suas construções teóricas e a
militância política que realizam hoje.
No caso de Mãe Beata, foi o momento de fazer de seu terreiro, um espaço de
atuação política. Ela afirma que na época dos encontros do INARAB, conheceu muitos
babalorixás e como infere: “passaram a reconhecer meu trabalho político e minha fé nos
orixás”. Ou seja, foi o espaço privilegiado de Mãe Beata para se fazer reconhecida como
uma importante Mãe de Santo. Mas, é também para Jairo Pereira – amigo de Mãe Beata –
que opinou sobre essa Mãe de Santo e sua atuação na construção do INARAB e do
CENARAB:

“Mãe Beata foi muito importante neste processo todo. Foi ela
quem mobilizou algumas sacerdotisas e sacerdotes do candomblé da
Baixada para nos reunirmos e deliberarmos sobre as denúncias que
deveríamos fazer contra as invasões de terreiros por parte dos

46 Termo que segundo Jairo Pereira significava um conjunto de teorias que explica toda a realidade.
47 NOBRE C. Ibidem. 1990 pp. 3
87

pentecostais. Sabemos que é muito difícil reunir o povo de santo, mas


o que nos unia era a defesa de nossa religião. Eu visitei muitos
terreiros de candomblé, para levarmos nossa proposta de luta, porém
quando visitava junto com Mãe Beata, as pessoas nos recebiam com
grandes honras, rituais e presentes. Este trabalho de articulação que
tentamos fazer se deveu muito à dedicação de Mãe Beata”.

Jorge Carneiro, apesar de não participar na época do INARAB e do CENARAB, foi


muito influenciado por esse movimento, uma vez que tomou conhecimento dos textos
produzidos nele, além das conversas esporádicas com Jairo Pereira e Mãe Beata, e todo
esse contexto no qual ele se inspirou para a realização de seus escritos, como constataremos
a posteriori.
Jorge relata que um dos momentos em que percebeu a importância desse
movimento, foi quando organizou a visita de Lula em seu terreiro em Junho de 1994:

“Na campanha de 94, depois de muita polêmica o partido definiu


que iria , na caravana da Baixada, visitar um terreiro de candomblé,
e eu fiquei como responsável para organizar isto lá na casa de Iyá
Nitinha. Mas tinha o problema da convocação das pessoas do santo.
Esta convocação não se dá como no Partido, através de boletins,
panfletos, etc., é preciso visitar as pessoas. Foi assim, que tive a idéia
de chamar Mãe Beata para me ajudar nisso. Assim uma semana antes
do evento, eu visitei com Mãe Beata dezenas de terreiros, e percebi
que o trabalho que o Jairo Pereira e ela fizeram com o INARAB e o
CENARAB permitiram que nosso convite tivesse muita receptividade,
pois todos conheciam Mãe Beata e Jairo Pereira que era do PT. Eu
achei isto muito interessante e pensei que um futuro trabalho no
Movimento Negro eu poderia fazer nestas comunidades que visitei.”
88

Já em relação a PC, podemos verificar que quando ele nos relata sua história de
militância, através do MNU e do grupo político que participava anteriormente (o IPCN), já
existia um contato com o INARAB e, posteriormente, com o CENARAB. Entretanto, PC
nos relata que foi Jorge Carneiro que lhe passou a informação sobre as discussões do
CENARAB.
Interessado nessa história, PC começa, no mandato da vereadora Jurema Batista,
como assessor parlamentar, a promover eventos e incentivar discussões acerca de políticas
públicas para a comunidade candomblecista do Rio de Janeiro. Uma outra referência
interessante, observada nessa pesquisa, é que PC, quando visita os rituais de candomblé no
Estado, em qualquer oportunidade de discussão política com os adeptos, ele os chama para
conhecerem o mandato de Jurema Batista e participarem das discussões políticas do PT. É
dele o relato do seguinte momento:

“Me lembro que em 1995, por ocasião das comemorações dos 300
anos de Zumbi, eu estava numa festa de candomblé, e alguns irmãos
de santo meus queriam fazer um grande evento para homenagear as
mães de santo do Rio de Janeiro. Foi ai que tive a idéia do mandato
de Jurema homenagear essas Mães de Santo com a Medalha Pedro
Ernesto. Me lembro que o pessoal gostou muito, e dizia que esta
atividade poderia retomar os trabalhos do Cenarab aqui no Rio de
Janeiro. Pois o que faltava era ter pessoas no parlamento que
incentivassem um trabalho de união entre os terreiros do Rio de
Janeiro.”

Aqui, o que percebemos é que PC sabia da história do Inarab/Cenarab, mas seu


papel era outro, o de tentar, como faz até hoje, uma rearticulação deste trabalho através de
um mandato parlamentar do PT.
Hoje, nas conversas informais que Jorge e PC realizam com a comunidade de
candomblé do RJ, sempre vem à tona, as discussões, reuniões e eventos promovidos pelos
fundadores do INARAB/CENARAB junto ao candomblé. Pode-se ver, nesse segundo
89

momento, que se evidencia o desenvolvimento das redefinições de identidade entre alguns


militantes, primeiramente no Movimento Negro e depois (como se verá mais adiante ) no
PT.
Até aqui, contudo, o movimento ainda não alcançou um nível de política partidária,
até porque sendo um movimento restrito à questão racial, as definições ideológicas
partidárias não eram nítidas. O movimento como se vê, reivindicava uma luta histórica do
negro, ou seja, o fim do racismo, o direito de cidadania para os negros, o fim da
intolerância religiosa, o fim da repressão aberta e sutil às religiões afro-brasileiras.
Entretanto, uma característica singular dava um perfil diferenciado a esse movimento, em
relação ao Movimento Negro: a utilização de elementos religiosos extraídos do candomblé
para uma ação política anti-racista.
A religiosidade, para eles, não se expressava somente no culto ou crença nos orixás,
mas, como afirmam, “um modo de ser do negro”. Portanto, a fundação dessas associações
significava uma releitura política da religiosidade. O que leva ao entendimento de que a
conscientização declarada e praticada por eles, representava não mais que uma forma de
utilização dos mitos, reinterpretações rituais para justificar uma nova forma de luta anti-
racismo. Isso se concretizou, na prática, pela tentativa - a partir de uma motivação externa
aos terreiros - de criar fóruns de discussão entre os membros do candomblé. Foi elaborado
um Dossiê sobre a “Guerra Santa Fabricada”, em resposta aos ataques dos evangélicos aos
terreiros de candomblé. Ou seja, a partir desses ataques, que foram denominados de guerra
fabricada, eles também ‘fabricam’ uma resistência, com objetivos políticos explícitos e não
simplesmente expressos na boa intenção de “unificar o povo de santo”.
Mais uma vez, porém, no momento em que esses ataques ficam menos intensos, o
movimento cai em refluxo, pois seu mote principal - para os adeptos do candomblé que
participaram das reuniões, eventos e encontros - era a autodefesa de seus terreiros no Rio de
Janeiro e não a suposta “unificação política” de iniciados no candomblé. Mas, ao final, esta
transparente contradição entre intenção, fatos e resultados, plantou suas pequenas sementes
nos militantes investigados. Pois segundo se observa, se tentará de uma forma mais
partidária, a retomada das discussões, reelaborações e reivindicações desse movimento.
90

A discussão sobre os “novos sujeitos na luta de classe”

O ano de 1989 marcou a história da esquerda mundial e brasileira. No Leste europeu


os muros caíram. Para alguns militantes de esquerda era o fim do socialismo, já para outros
era o fim do “domínio da burocracia”, que no poder “manchava” a verdadeira luta pelo
socialismo.
No Brasil, a campanha da Frente Brasil Popular quase venceu as eleições
presidenciais, perdendo a oportunidade histórica de, com a esquerda unida, hegemonizar a
administração central do governo brasileiro.
A conseqüência desses dois eventos históricos, levou o conjunto da esquerda no
Brasil, a repensar novos horizontes e métodos para continuar a luta socialista. Alguns
setores fariam a revisão de seus programas, outros discutem, até hoje, “novas formas de
utopia”.
Apesar do 1° congresso do PT, em novembro de 1991, ter reafirmado a luta pelo
socialismo e criticado os regimes do Leste europeu, afirmando que “aquilo que existiu na
ex-URSS nunca foi uma verdadeira sociedade socialista”, sendo por isso mesmo que
“ninguém poderia acusar o PT de defender um projeto que já morreu”48; para alguns de
seus militantes não eram claros e suficientes os métodos e os sujeitos agentes dessa luta
socialista.
Nesse sentido, ao final de 1993, um grupo de militantes do PT-RJ realizou um
seminário “sobre a exclusão social”, isto é, se discutiu qual era o papel na luta socialista, de
determinados setores, altamente marginalizados pela sociedade capitalista como, por
exemplo, os jovens funkeiros, do rap, religiosos afro-brasileiros e evangélicos, mulheres
negras e outras formas de expressão cultural e política que não participam das “prioridades”
de intervenção política do Partido e nem tampouco do movimento sindical. Um outro
objetivo desse grupo era “fazer uma mudança de olhar por parte da esquerda” em relação a
grupos que, segundo eles, contribuem para a luta socialista. Até hoje inferem: “a esquerda
rotula como setor informal todos aqueles que são marginalizados pelo capitalismo e que

48 Resoluções do 1° Congresso do PT, 1991


91

têm uma história de resistência e de luta, porém esta não é contada na história oficial e nem
divulgada na grande imprensa.”49
Esses setores, que ficam fora da tradicional discussão da esquerda, “possuem formas
de ser, uma cultura, ideologia, forma de vestir-se que exprimem uma forma de
pensamento.”50 Segundo esses militantes, “a esquerda é movida pela tradição eurocêntrica
que não vê, por exemplo, na África, nenhuma contribuição à luta socialista”51. Para esses
militantes o grande desafio da esquerda e do PT “é pensar estes setores, até porque na
crise que vive a esquerda e o movimento social organizado, devemos repensar uma série de
coisas e neste repensar está incluído estes setores”.52
A partir desse seminário, foi preparado um texto para discussão sobre o Candomblé
que, um ano e meio depois, foi publicado no jornal Em Tempo53 e na revista do PT Teoria e
Debate. Esse texto foi elaborado por Jorge Carneiro, a partir de uma discussão com alguns
militantes do PT-RJ. Eles denominaram a discussão como: “os novos sujeitos na luta de
classe”. Inserindo-a na discussão sobre a luta anti-racista, segundo estes militantes, essa
luta do povo negro não pode deixar de levar em consideração as religiões de origem
africana, pois, “estas refletem uma concepção de vida, de mundo e de luta por um mundo
melhor”54.
O impacto dessa discussão e desse texto foi muito significativo no interior do PT-
RJ. Surgiram muitas discussões informais, fora das estruturas do partido, até porque essa
não era uma das prioridades de intervenção do PT. Uma outra conseqüência foi a presença
atuante dos petistas que são candomblecistas, isto é, deu-se o início da descoberta de uma
série de militantes do PT que eram iniciados no candomblé há vários anos e que, no
entanto, tinham receio de se assumirem enquanto tais, pois temiam ser ridicularizados ou
chamados de alienados. Não se sabia das suas condições de iniciados, pois eles
reconheciam que a maioria da esquerda era preconceituosa em relação às religiões afro-
brasileiras.

49 Declaração de Jorge Carneiro no seminário promovido pelo PT, sobre “Exclusão social”, 1993.
50 CARNEIRO, J. Idem. 1993.
51 CARNEIRO, J. Ibidem. 1993.
52 CARNEIRO, J. Ibidem. 1993.
53 Publicaçao da Tendência interna do PT - Democracia Socialista.
54 CARNEIRO, J. Candomblé, luta, cultura e identidade. Revista Teoria e Debate, maio 1995. pp. 2
92

Por último, esse movimento dos militantes do PT-RJ, do qual participaram também
Jorge Carneiro e Paulo Cezar, caracteriza um outro momento em que emerge a construção
de associações entre uma religiosidade expressa pelo candomblé e a utopia socialista
defendida por esses militantes.
Esse terceiro momento é um dos mais importantes, ou seja, aqui encontramos
militantes que buscam de forma mais elaborada, em consciência de causa construir uma
prática militante e uma iniciação religiosa, baseadas numa elaboração identitária que tem
uma clara associação entre utopia socialista e crença nos orixás.

A elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU


denominada Raça e Território.

Dizíamos que dos quatro militantes investigados, dois eram filiados ao MNU e uma
é simpatizante. Entretanto esta organização não é composta de uma única linha de
pensamento de ação política no combate ao racismo. Nas observações feitas percebeu-se
que Jorge e PC, como integrantes do candomblé, aliados a Lúcia ( simpatizante do MNU )
tem uma percepção diferenciada do papel da religiosidade na luta anti-racismo. Neste
sentido as polêmicas existentes dentro do MNU, no que se refere a ação política concreta e
seus significados, são percebidas e apropriadas por Jorge, PC e Lúcia a partir de uma leitura
permeada pela prática e interpretação de sua religiosidade.
O MNU (Movimento Negro Unificado) foi formado, a partir do final da década de
70, por agrupamentos do Movimento Negro que buscavam a unificação dos grupos negros
no combate sistemático à discriminação racial.
Nos dias 09 e 10 de setembro de 1978, foi realizada uma assembléia nacional de
fundação do MNU, com representantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas
Gerais e Bahia, sendo aprovada a carta de princípio, programa de ação e estatutos. Para os
fundadores do MNU, a entidade representou uma mudança completa na luta contra o
racismo, pois o Movimento Negro “deixou a forma de luta semi-clandestina dos terreiros,
93

dos centros culturais e associações, etc., para uma luta mais pública em várias cidades do
país”55.
No início de suas ações políticas e lutas, o MNU tinha como base a teoria Raça e
Classe, ou seja, “lutar contra a opressão específica sobre o negro combinando a luta contra
à opressão geral dos trabalhadores”56. Ao mesmo tempo em que se lutava contra o racismo,
se reforçava a luta de classe, a luta dos trabalhadores contra a opressão econômica e social.
Ao longo da década de 80 o MNU foi a entidade do Movimento Negro que mais
cresceu em número de militantes, chegando ao ponto de estar organizado em quase todos os
estados da federação e tendo porta-vozes representativos em vários setores da sociedade.
Contudo, na década de 90 alguns militantes do MNU começam a teorizar uma nova tática
de luta para o Movimento Negro e o MNU.
Até o início dos anos 90, o MNU se baseava teoricamente, como foi dito, na “teoria
raça e classe”, que significava em termos concretos da luta anti-racista, a intervenção do
Movimento Negro nos movimentos sociais onde o negro e sua militância é maioria e nas
entidades do conjunto da esquerda para unificar a luta dos trabalhadores em geral. Isso se
expressava na criação de coletivos negros em entidades sindicais, populares e partidos. O
MNU como organização política tinha ações e intervenções nesses espaços que unificavam
seus militantes.
Além disso, a grande tática de luta para se combater o racismo, na teoria Raça e
Classe, são as chamadas políticas de ações afirmativas, ou seja, “a necessidade de
trabalhar com as políticas afirmativas, compensatórias e reparatórias, expressa também
nas políticas de cotas, no sentido destes se constituírem em elementos mobilizadores e de
denúncias do racismo no Brasil”57. Essas políticas se resumiriam nos seguintes pontos:
• o racismo no Brasil é estrutural, tem origem histórica na formação do escravismo
colonial e este é camuflado por poderosas barreiras que deformam sua natureza e
anestesiam seu doloroso impacto. Portanto, ao se radicalizar uma exigência nas
políticas afirmativas ( proporcionalidade étnica no mundo do trabalho, nas
universidades, publicidade, etc.), como medidas de restruturação social e eliminação

55 Kilombo–Um olhar do povo negro. Tese do XXII Congresso do MNU. Salvador: 1998. mimeo, pp. 4
56 Kilombo. Idem. 1998, pp. 4
94

das desigualdades raciais, haverá uma reação hostil da elite branca, o que ajudará a
dissolver barreiras ideológicas que mistificam o racismo brasileiro;
• porque esta tática permitirá mobilizar a grande massa negra brasileira que, muitas
vezes, se reúne para eventos comemorativos, celebrativos ou denunciativos e não
reivindicativos;
• outro aspecto, seria a instrumentalização do braço institucional do Movimento Negro,
ou seja, os parlamentares e governos aliados, para implementar as políticas públicas que
visem beneficiar o povo negro;
• esta tática permitirá também a capacitação de quadros negros para implementação de
políticas públicas;
• e por fim, ter em mente que esta tática é um momento para a afirmação do nosso
projeto socialista, sendo o elemento mobilizador.
Concretamente, as políticas afirmativas se definem em: Lei de diversidades nas
empresas; Lei de proporcionalidade étnico-racial no ensino universitário, criação do fundo
nacional de políticas afirmativas, criação do Conselho Nacional de promoção da igualdade
de oportunidades, democratização dos meios de comunicação social, programa
governamental de combate às doenças comuns em afrodescendentes, etc..
Mas, a partir do início dos anos 90 um grupo de militantes do MNU, de Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo, começou a questionar esta política da
entidade e, no XII Congresso da entidade, realizado em abril de 1998, lançou uma tese
chamada Kilombo – Raça e Território58, que ganha adesão da maioria dos delegados do
congresso.
Nessa tese, esses militantes questionam a política da entidade, afirmando que
chegou a hora dos militantes negros romperem com o que eles chamam de política
integracionista dos negros brasileiros. A tese se inicia afirmando que “o racismo é a
principal contradição do sistema capitalista na periferia”. Mais adiante avalia que “o
MNU foi fundamental para implementar a discussão como base à teoria Raça e Classe, ou

57 Raça e Classe. Tese do XXII congresso do MNU. Salvador: 1998, mimeo, pp. 23
58 Jorge Carneiro e PC não assinaram esta tese, mas lançaram um manifesto sobre as religiões afros no mesmo congresso.
95

seja, lutar contra a opressão específica sobre o negro combinando a luta contra a opressão
geral dos trabalhadores”59.
Segundo essa análise, essa tática deve ser superada pois, “a questão das lutas de
classe, do confronto entre opressor e dominado na periferia do sistema, tem dimensões
étnicas e raciais que os teóricos marxistas da Europa não tinham capacidade de entender”
já que “a questão racial é sempre vista como periférica graças à visão eurocêntrica dos
problemas brasileiros”60.
Para os defensores da tese, “o movimento social organizado nunca privilegiou uma
relação de aliança com o Movimento Negro, mas sempre pediu para que nós
integrássemos as lutas gerais dos trabalhadores” e assim, “nos relegando a personagens e
agentes sem história e sem projetos próprios”61.
Nessa perspectiva, se propõe um rompimento com a política de integração tanto
dentro da esquerda como fora, apontando para a construção de “um Projeto político do
Povo Negro para o Brasil”. A política de Raça e Classe, segundo essa orientação, colocava
a necessidade do negro se organizar em todos os setores da vida nacional, para lutar contra
o racismo. Porém, essa política, concluem, não é suficiente.
Essa reorientação tática do MNU contribuiu para que alguns militantes negros,
(identificados nessa investigação), começassem a pensar os terreiros de candomblé,
“enquanto território de matriz africana”, como espaços de elaboração política e organizativa
dos negros brasileiros para a luta anti-racista e como reafirmação de uma identidade
cultural e religiosa, em oposição à cultura ocidental.
É nessa perspectiva política que encontramos e observamos (num certo sentido,
dando continuidade ao momento anterior identificado por nós) alguns militantes realizando
vários debates e eventos, reafirmando na prática de suas militâncias essa reorientação
política do MNU.
Exemplos disso foram um encontro do MNU em Juiz de Fora, realizado em 18 de
outubro de 1998, onde se discutiu o Papel político estratégico das religiões de Matriz
africana; o Debate sobre cidadania e candomblé realizado no terreiro de Lúcia, em 05 de

59 Kilombo. Ibidem. 1998, pp. 5


60 Kilombo. Ibidem. 1988, pp 5
96

dezembro de 1998, no município de Nova Iguaçu, apresentado por Jorge Carneiro,


militante do MNU e coordenado por Lúcia Barros, na época, Vice-presidente do PT de
Nova Iguaçu; o debate promovido pelo PT-NI, em 16 de novembro de 1998 “Fórum: um
olhar sobre a realidade” onde a primeira palestra se intitulava Religiosidade negra; outro
debate também no PT-NI, no dia 10 de março de 1999, sobre O Universo feminino na
tradição dos orixás; e cumprindo as deliberações do XII congresso nacional do MNU, foi
realizado o seminário nacional sobre “As religiões de matriz africana e o projeto político
do povo negro no Brasil”, em 10 de julho de 1999, no Rio de Janeiro, no qual o objetivo da
discussão era “fortalecer a auto-estima do povo negro, contrapondo-se à visão de mundo
eurocêntrica dominante e excludente do povo negro, da sua cultura, e em especial de sua
religião”62; por último, em outubro de 1999, um grupo de militantes negros do PT lançou
uma tese nacional para o IV encontro nacional de negros e negras do PT, com o nome
“Falta Axé na Política Petista”.63
Essa tese, entre outras coisas, afirmava especificamente sobre “as religiões de
matriz africana”:

“As religiões de matriz africana, ao longo da sua trajetória em nosso


país, vem não somente resistindo, como também apresentando a visão
de mundo africana numa perspectiva de alternativa à lógica
dominante
branca e racista. Baseando em todo um saber ancestral na construção
de uma nova ordem em que as relações com diferentes sejam
respeitosas e democráticas. Nesse entendimento de mundo, é
fundamental que todas as relações de construções sejam coletivas e
solidárias, caminhando no pleno desenvolvimento do ser em todos os
seus aspectos.

61 Kilombo. Ibidem. 1988, pp 5


62 Seminário Nacional do MNU sobre As religiões de matriz africana e o projeto político do povo negro no Brasil. Rio de
Janeiro: Julho 1999.
64 Essa tese teve uma contribuição de meus estudos e trabalho de pesquisa. Ou seja, os militantes Jorge, PC e Lúcia
elaboram o documento a partir de meu artigo “ Falta axé na política Petista”.
97

Os entendimentos judaíco-cristãos sempre trataram a cultura e a


religião das negras e dos negros com intolerância, preconceito e
desrespeito. Esse confronto ideológico é histórico e assume nos dias
atuais, características extremamente preocupantes a partir do
momento em que um setor do seguimento judaico-cristã (igrejas
evangélicas eletrônicas) de certa forma, desenvolve uma política de
confronto e ataca o Candomblé e a Umbanda no sentido do
aniquilamento geral dessa matriz religiosa.
Podemos nos perguntar por que incomodamos tanto?
Podemos responder que as religiões de matriz africana, mantidas
espetacularmente em nosso país, contém na sua proposta de
construção elementos com conteúdos que nos ajudam em uma
perspectiva de transformação radical desta sociedade.
Entendemos e concebemos o mundo numa visão integradora
natureza-homem como um forte conteúdo de respeito e preservação
do meio ambiente. Na nossa visão de mundo a igualdade de princípios
(feminino e masculino) é fundamental para o equilíbrio das relações.
Com isto, queremos dizer que um princípio não é mais importante que
o outro, como também observamos a socialização e democratização
de poderes entre os Orixás em que um completa o outro.
Com certeza, afirmamos que as comunidades de terreiros constróem e
mantêm identidades, acumulando pessoas e não bens, afirmando o
pleno desenvolvimento do ser e sua autonomia, no entendimento que
não cabe o individualismo. Axé é uma construção coletiva em que
todos dão a sua contribuição”.64

Esse último momento é o mais elaborado, uma vez que aqui se observa nitidamente
o esforço de alguns militantes de construírem associações entre dois domínios
socioculturais diversos. Essas discussões, surgidas a partir de uma reorientação tática de
98

uma entidade negra em nível nacional, nos dão elementos suficientes para afirmar que hoje,
a partir de contextos anteriormente descritos, existem militantes que se definem petistas e
candomblecistas, e que, estes nos revelam como se dão as redefinições de identidades em
contextos históricos específicos.
Deve-se tecer ainda algumas considerações acerca desses momentos, enquanto
processo, para analisar, mais acuradamente, as construções de sentido e ressignificações
simbólicas realizadas, tanto na esfera política quanto na religiosa.
Processo complexo, envolvendo três dimensões – a posição da esquerda em relação
à religião; o movimento negro e a inserção do candomblé na sociedade brasileira, esse
processo remete às variadas discussões.
Nos anos 60, a esquerda marxista via a religião como “ópio do povo”, portanto,
alienadora e empecilho à transformação social e política. Essa visão, no que diz respeito às
religiões afro-brasileiras, pode ser exemplificada pelo filme Barravento de Glauber Rocha,
no qual são retratadas as dificuldades de um líder revolucionário em mobilizar uma
comunidade de pescadores devotos do candomblé, contra sua exploração por parte de uma
companhia de pesca.
Mas na virada dos anos 70 para os anos 80, é fundado o PT, que na sua base,
encontram-se diversos líderes religiosos católicos, que ao longo das décadas de 70 e 80,
realizaram trabalhos de formação política, através das CEBs, que contribuíram para a
formação de diversos líderes como Lula, Olívio Dutra, etc. O PT, enquanto partido
socialista, na sua origem, demarcou um corte com as concepções de que a religião é o ópio
do povo.
Michael Löwy65 conta que na década de 60, um grupo de fanáticos religiosos, numa
cidade do interior do nordeste, fizeram uma grande concentração de dez mil pessoas para
linchar um grupo de cem militantes comunistas, pois esses foram considerados “comunistas
filhos do diabo”. Esses, não tendo onde se refugiar, foram para a delegacia de polícia pedir
proteção.

64 Tese apresentada no 7º Encontro Nacional de Negras e Negros/PT, São Paulo: Outubro 1999, mimeo.
65 LÖWY, M. A guerra dos Deuses. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
99

Duas décadas depois, no ABC paulista, os líderes metalúrgicos e alguns marxistas,


lideram grandes greves operárias contra a ditadura militar. A polícia os persegue, e os
sindicalistas não tendo para onde fugir, se refugiam numa Igreja, pedindo proteção ao
padre.
Duas realidades distintas, mas que nos demonstram as mudanças da esquerda em
relação ao papel da religiosidade nas lutas pela cidadania. Esses fatores históricos não
deixaram de influenciar o movimento negro, que passa a identificar vários elementos das
culturas negras, como símbolos de resistência ao racismo no Brasil.
A luta do negro na sociedade brasileira tem ocorrido desde o início da escravidão.
Ao longo da história, foram encontradas várias entidades que se propunham a “acabar” com
o racismo no Brasil. Porém, em 1978, surge o MNU. Ele nasce com a proposta de luta anti-
racista mais abrangente, não se restringindo ao combate contra a discriminação racial. A
proposta era de lutar “por uma sociedade mais justa e igualitária”66.
A partir daí, criam-se novos símbolos de resistência por essa sociedade justa e
igualitária desejada: Zumbi, Chico Rei, João Cândido, Revolta dos Malês, as religiões afro-
brasileiras, etc. No caso dessa última, o movimento negro passa a tentar cooptar o
candomblé como elemento de afirmação da identidade negra, compreendido agora como
símbolo de resistência, associado a outros como os quilombos.
Num momento posterior, início da década de 90, com a crise do paradigma
marxista, cria-se um ambiente propício para que o movimento negro reinvente referências
inspiradoras de uma sociedade sem racismo, “justa e igualitária”. Daí a constante referência
à chamada “tradição” cultural e comunitária do Candomblé.
Por outro lado, o candomblé adquire um status político, e este, ao lado de um
suposto “caráter étnico africano”, vem sendo preconizado por vários sacerdotes como
forma deles obterem maior prestígio, atribuindo uma identidade africana “pura” ao seu
modelo de culto67. Nesse caso, verifica-se uma crescente reafricanização do culto por meio
da eliminação das marcas do catolicismo e de outros sistemas religiosos.

66 Estatudos do MNU, São Paulo: 1978. Mimeo.


67 DANTAS, B. G. ibidem. 1988
100

Esses processos, levados adiante por negros envolvidos ou não em movimentos de


consciência negra, geralmente restringem-se às disputas por legitimidade, dentro do
mercado religioso, e preserva a característica de conversão universal do Candomblé.
Assim, o Candomblé parece exibir uma certa vocação de permanecer aberto a novas
interpretações, de acordo com os movimentos que grupos sociais lhes imprimem, e a força
de, por meio desses movimentos, expressar as desigualdades a que esses grupos estão
sujeitos em suas relações de contato cultural e domínio político.
Portanto, o momento histórico no qual se insere a construção do IPELCY, INARAB
e CENARAB é um contexto de crise da esquerda a nível mundial. O paradigma marxista
perde força, enquanto explicação totalizante para uma parcela significativa de militantes e,
no caso em discussão, é pouco aplicável para o Movimento Negro.
Por outro lado, na presente investigação, percebe-se que para os militantes do
CENARAB, a especificidade da condição étnica requer uma elaboração própria, ou seja,
não é possível ter como referência dogmas marxistas. Nesse sentido, é fácil perceber
quando vários militantes do Movimento Negro constroem novos mitos, novos símbolos de
referência, como Zumbi, Chico Rei, Revolta dos Malês, candomblé, etc. Entretanto, existe
também uma (re)interpretação particular do marxismo. Esse fato ocorre, por exemplo, no
momento em que Jorge Caneiro organiza o seminário sobre “exclusão social”, em 1993, e
escreve sobre isto.
Esse seminário, promovido também por outros militantes do PT-RJ68, aponta a
necessidade deles, como afirmam, de incluir “os novos sujeitos” nas lutas de classe. Ou
seja, aqui se mantém um conceito central do marxismo, mas este é requalificado,
incorporando os chamados “novos sujeitos”. Esses seriam, jovens negros, mulheres negras
e até evangélicos progressistas.
Essa discussão, contudo, não é isenta de conflitos, já que os próprios militantes
percebem as dificuldades da discussão dentro do PT. Pois o Partido, enquanto instituição,
não incorpora essas análises. Vê-se aqui que a resposta à crise das esquerdas é a invenção
de novos elementos, “novos sujeitos”, capazes de dar respostas “às lacunas” da esquerda,
ou, às possíveis causas de sua crise. É um primeiro momento de elaboração sistemática,
101

mais consciente, porque o contexto da época é a crise das esquerdas e a hegemonia do


neoliberalismo no Brasil e no mundo.
Com Mãe Beata é outra história. Seu terreiro se encontra numa região, onde existem
várias comunidades parecidas, onde o prestígio desta não passa simplesmente pela
identificação de seu candomblé em si, mas essencialmente por ser militante do PT e
organizadora de eventos.
Nos estudos antropológicos, os candomblés vêm sendo estudados
fundamentalmente “de dentro”, ou, como domínio isolado, documentado exaustivamente
em seus rituais, papéis de seus sacerdotes e elementos simbólicos. Constata-se e criam-se
verdadeiros nichos fechados através destes estudos, reforçando uma visão idealista das
comunidades de terreiro.
Criticando estas análises Silverstein afirma: “uma parte importante da mãe de santo
vem do fato de que ela é uma mulher criativa, que sabe em maior ou menor medida, utilizar
e desenvolver os recursos a que tem acesso, ou mesmo criar as condições, em qualquer
nível, para conseguí-los”. E ainda: “vejo a Mãe de santo como uma pessoa política, atuante
e ativa no mundo de hoje, e não só como uma figura religiosa cuja única ou principal
atividade seja cumprir as funções rituais dentro de um terreiro. Para sobreviver, ela tem de
criar uma rede de relações com pessoas que têm acesso privilegiado à sociedade em
mudança em volta dela”.69
Dirigente de um terreiro na Baixada Fluminense, Mãe Beata constrói seu prestígio,
política e religiosamente, em meio à centenas de terreiros que preservam somente suas
manifestações religiosas, seus rituais, etc. É interessante notar que o terreiro de Mãe Beata
é fundado contemporaneamente à expansão evangélica na Baixada Fluminense. Esse fato é
relevante, pois como afirma Mãe Beata, respondendo aos ataques contra o candomblé vindo
desses setores: “precisamos resistir até hoje aos ataques promovidos contra nossa cultura”.
Diferentemente de outros terreiros, que se restrigem a organização de cultos,
atendimento ritual ao público exterior, etc., Mãe Beata articula eventos, cursos

68 Estes militantes faziam parte da Secretaria de Mulheres/PT e do Diretório Municipal do Rio de Janeiro.
69 SILVERSTEIN, L. M. “Mãe de todo mundo – modos de sobrevivência nas comunidades de candomblé da Bahia”. In:
Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp..25.
102

profissionalizantes, palestras sobre prevenção de doenças, assistência social à comunidade,


em seu terreiro, além de militar na associação de moradores de seu bairro.
Isto revela os processos de construção de um espaço próprio, já ocupado por outros
terreiros próximos mas, além disso, uma forma de resistência e uma política de
sobrevivência frente às disputas desiguais no mercado religioso da Baixada Fluminense.
Um exemplo disso foi a campanha promovida pelo CENARAB, em 1992, com
plena participação de Mãe Beata, contra a chamada “guerra santa fabricada”, promovida
pelos evangélicos na época.
Outro elemento que pode explicitar o significado da atuação de Mãe Beata é fato
que no final da década de 80, alguns terreiros de candomblé incorporam uma proposta
assistencial devido a desestruturação do Estado, que passa a investir menos recursos em
políticas públicas para a população marginalizada e excluída do desenvolvimento sócio-
econômico.
Mãe Beata constrói uma “política da diferença” – às vezes, utilizando-se de métodos
proselitistas pouco comuns nas religiões afro-brasileiras – não só diante dos evangélicos,
mas também diante de dezenas de terreiros de candomblés vizinhos, pois é comum entre os
terreiros de candomblé – através de sacerdotes e sacerdotisas – a disputa para ver quem
possui mais saberes ancestrais ou mais tradição.
O exemplo dessa política da diferença, aqui descritos foi a ECO-92. Além da
importância internacional-institucional do evento, ele foi um marco na visibilização dos
trabalhos de Mãe Beata.
Aproveitando o evento, o CENARAB elaborou um documento70 acerca da “visão
ecológica” do candomblé, e Mãe Beata fez várias palestras sobre o tema. Porém, o mote
propulsor dessas elaborações foi a excessiva divulgação, na mídia carioca, da suposta
poluição que os adeptos das religiões afros provocam nas florestas e rios com seus ébos e
oferendas.

70 Cenarab. Manifesto das tradições religiosas e culturais afro-brasileiras sobre meio ambiente e cidadania. Rio de
Janeiro: Junho/1992, Forum internacional de Ongs e movimentos sociais-ECO 92, mimeo.
103

Contrapondo-se a essa visão, o CENARAB e Mãe Beata constroem verdadeiras


“ontologias” acerca da “visão ecológica candomblecista”, com ampla divulgação na mídia e
no fórum Global das Ongs – na ECO 92.
A partir daí, Mãe Beata é solicitada para vários eventos, consolidando assim um
perfil identitário no Estado do Rio de Janeiro. Hoje, enquanto outros sacerdotes são
reconhecidos pela sua contribuição e “manutenção das tradições dos orixás”, restrito às
comunidades de terreiro, Mãe Beata vai além, constrói seu prestígio no mercado religioso
afro-brasileiro e principalmente nos espaços institucionais do Estado. Mas, para realizar
essa tarefa, ela não abandona seus laços religiosos, pelo contrário, constrói associações
entre estes e a referência política expressa pelo Movimento Negro e pelo PT. Como ela
mesma afirma: “é a expansão do Axé da comunidade”.
Assim, na descrição desses momentos, evidencia-se que, por meio dessas análises,
se criou uma “constelação de fatores históricos” e que, começa a entrar em cena, uma nova
prática política – de alguns militantes – dentro do PT do Rio de Janeiro e uma outra forma
de vivência religiosa nas comunidades de terreiro.
104

4. Construindo e inventando novas tradições e


identidades político-religiosa

Afirmamos, no capítulo 1 desta pesquisa, que os militantes (re)inventam formas


políticas de militância e discursos sobre sua religiosidade. Para eles, o sentido mítico
original (o candomblé de “raízes africanas”) é reelaborado dentro de um contexto histórico
e político do presente.
Logo em seguida, foram descritos os significados das construções identitárias, para
esses militantes do candomblé, do Movimento Negro e do PT e o contexto histórico no
qual esses militantes se inserem. Esse contexto se evidenciou, a partir de condições
históricas concretas; a saber, a formação do PT no início dos anos 80, a construção de
associações culturais negras que tentaram elaborar o papel político das comunidades de
candomblé, as iniciativas individuais de alguns desses militantes e a elaboração de novas
políticas para o Movimento Negro Unificado ( MNU ).
Entretanto, para melhor entendimento desses movimentos coletivos e individuais é
necessário termos um panorama teórico de como, inserido no atual contexto mundial, esses
militantes constroem e inventam suas identidades.
Michael Agier no seu artigo Destúrbios identitários em tempos de globalização71
aborda o estado da questão identitária numa das perspectivas antropológicas atuais.
O autor afirma que a mundialização coloca em questão as fronteiras territoriais
locais, a relação entre lugares e identidades e além disso, a rápida circulação de
informações, das imagens e das idéias que promove dissociações entre lugares e culturas.
Neste sentido, os sentimentos de perda de identidade são compensados pela criação
de novos contextos e retóricas identitárias. Ao longo do artigo ele discorre sobre os
diversos enfoques teóricos acerca da noção de identidade cultural afirmando que de uma
forma ou de outra, diversos autores abordam “as relações entre globalização e criação de
culturas localizadas”72.

72 AGIER, Michael. Disturbios identitários em tempos de globalização. Mana, n.7/2: 7-33, 2001
73 AGIER, M. Idem, 2001. Pp. 20
105

Agier se pergunta: “qual é o processo que fez a cultura em seu contexto, quando
esse contexto está praticamente por toda parte, definindo-se enquanto um local globalizado
?”73
Nas suas diversas manifestações, para Agier, “a identidade cultural tornou-se um
lugar comum das novas formas do político, fonte de mobilização popular em zonas rurais e
urbanas...”74 Nas cidades por exemplo, as identidades se tornam “ um recurso político ou
econômico para indivíduos e redes à procura de um lugar na modernidade”75.
Neste sentido, no trabalho do antropólogo hoje, “ encontra-se muito mais
freqüentemente diante de culturas identitárias em fabricação do que perante identidades
culturais totalmente prontas, as quais ele tem apenas que descrever e inventariar”76 .
E ainda: “ a cultura declarativa torna-se o argumento da declaração de identidade...”
que para Agier é a forma de existência social da identidade hoje, pois com o fim das
“grandes narrativas”, o mundo vive uma fase de criatividade intensa formada por múltiplas
buscas identitárias, ou múltiplas formas de políticas identitárias.
Podemos dizer que Agier nos dá uma base de compreenção daquilo que Stuart Hall
afirma, quando fala da “proliferação de novas posições-de-identidade” 77.
Hall analisando os efeitos da globalização nas identidades coletivas e individuais
afirma que as identidades estão se pluralizando, “produzindo uma variedade de
possibilidades e novas posições de identificação e tornando as identidades mais posicionais,
mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou trans-históricas”78 .
Pode-se dizer que para Hall e Agier, com o novo contexto da globalização, se estão
emergindo identidades “suspensas”, em transição, que retiram seus recursos, ao mesmo
tempo, de diferentes tradições culturais e que são produtos dos complicados cruzamentos e
misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado.
Neste sentido, a associação que os militantes investigados constroem entre a
dimensão religiosa e política nos permite vê-los como indivíduos que, inseridos numa

74 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 20


75 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 21
76 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 22
77 AGIER, M. Ibidem, 2001. Pp. 23
77 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
78 HALL, S. ibidem, 1999. Pp. 87
106

cultura local que tem origens e tradições, são obrigados a negociar suas identidades com a
modernidade, sem simplesmente serem assimilados por ela e sem perder completamente
seus referenciais identitários tradicionais. E que também, em resposta a experiência de
racismo cultural e da exclusão social, os indivíduos constroem uma política da diferença se
reindentificando com culturas de origem.
Porém não são somente Michel Agier e Stuart Hall que nos conduz a uma certa
leitura dessas identidades.
M. Sahlins, também num recente artigo79, faz uma reflexão acerca da flexibilidade
das culturais locais e globais, tendo como ponto de vista a permanência de culturas
tradicionais, com meios modernos, mas também eficientes à causa de uma “apropriação
instrumental e local” que a cultura global lhes oferece. Os nativos locais, continua Sahlins,
buscam objetivar suas culturas e transformá-las em fonte de reflexão.

Birman comenta o texto afirmando,

“Seria pobre considerar somente a hipótese de uma


instrumentalização de um universo cultural sem princípios e
fragmentado em suas manifestações. Do mesmo modo como seria
inútil negar a presença de modos de existência tradicionais tendo com
suporte e também como instrumento a defesa da ‘cultura tradicional’.
O recurso político e identitário de apropriação da cultura tradicional
não precisa significar um esvaziamento de modos tradicionais de
existência, mas pode significar a utilização de aparatos modernos e
tradicionais, pouco importa a distinção, para que, em nome da
tradição, continuem a persistir movimentos de resistência à
homogeneização cultural do mundo”.80

79 SAHLINS, M. “O ‘Pessimismo sentimental’e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em via de
extinção( parte II)”. In: Mana, n. 3/2. 1997.
80 BIRMAN, P. “O Campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos afro-brasileiros”. In:
Religião e Sociedade, Vol. 18, n. 2, 1997. Pp. 88
107

Sahlins, fazendo uma crítica àqueles que afirmam ser a modernização global a causa
do processo de deculturação a uma solução final, visto que os costumes tradicionais eram
considerados um obstáculo ao “desenvolvimento” e ao fim de uma cultura indígena, afirma
que “os povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista, não estão fugindo à
responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles vêm tentando
incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda abrangente: seu próprio sistema de
mundo”81.
Sahlins confirma o que se está analisando aqui, quando se refere à cultura Mendi, na
Nova Guiné: “os Mendi fazem até jóias a partir do lixo europeu.” jóias que têm funções
rituais locais mas feitos com material global.
Ele afirma então que “A tradição consiste aqui nos modos distintos como se dá a
transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural
existente”. E finaliza: “tudo que se pode hoje concluir a respeito disso é que não
conhecemos a priori, e evidentemente não devemos subestimar, o poder que os povos
indígenas têm de integrar culturalmente as forças irresistíveis do sistema mundial”.82
Na mesma linha, prossegue outro autor contemporâneo, James Clifford, analisando
os contatos culturais do que ele chama de modernidade etnográfica na antropologia.
Por modernidade etnográfica, segundo James Clifford83, se entende o espaço
mundial atual no qual as culturas e tradições mais diversas se encontram e se reinventam.
Esse encontro cria problemáticas complexas, porque, muito freqüentemente, os sujeitos
sociais, dentro destas relações, se encontram em uma relação de domínio uns sobre os
outros. Os traços culturais implicados nessa relação formam o conjunto cultural ocidental
das culturas, que esse mesmo conjunto cultural ocidental os submeteram e colonizaram e
que, ao entrarem em contato, produzem alguma coisa de novo.
As suas trocas não são unilaterais, mas as ditas culturas fracas reagem ao contexto
contemporâneo, reinventando a própria identidade, no aspecto individual e coletivo. Esse
fato remete às discussões dos temas da cultura ocidental, que descrevem esses povos como
últimas testemunhas de velhas e puras culturas não contaminadas e essas culturas

81 SAHLINS, M. idem. 1997. Pp. 102


82 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 108
108

dominadas não têm a força de reação ao domínio das culturas fortes, por isso estão
destinadas a desaparecer. Qualquer cultura, segundo Clifford, é, pelo contrário, capaz de se
reinventar abandonando ou modificando alguns dos próprios traços originais.
No último capítulo de The Predicament of Culture,84 Clifford fala da “Identidade
em Mashppe”. Uma comunidade indígena, que depois de longas décadas convivendo com a
modernidade capitalista, utilizando hábitos e formas de sociabilidade modernas, moveu um
processo em 1977, na suprema corte de Boston, reivindicando as terras de seus ancestrais.
Em contrapartida, a suprema corte solicitou a comprovação de suas identidades indígenas.
Nessa parte do livro, aparece claramente um dos elementos fundamentais do
pensamento de Clifford, mas também a crise epistemológica que ocorre atualmente em
muitos paradigmas, inclusive aqueles produzidos pela antropologia. O tema central tem a
ver com a identidade cultural que é construída e inventada pelos indivíduos, que convivem
num conjunto de relações, valores e símbolos, local e historicamente determinados: a
história que é narrada é aquela de um grupo de índios que reivindica o direito a uma nova
identidade, ao mesmo tempo indígena e moderna.
Clifford finaliza afirmando, nesse belo livro, que: “da fragmentação e
recomposição das culturas emerge um futuro coletivo muito diferente daquele
catastrófico”. É nessa esteira de raciocínio que serão analisadas as identidades construídas
pelos militantes “petistas e candomblecistas”.

4.1 – Redefinindo o Axé

Quando entramos concretamente na construção das associações feitas entre a


religiosidade expressa no candomblé e a utopia socialista operada pelos sujeitos
investigados, vemos como nossas leituras não podem se desprender do fato de que toda
análise de fenômenos culturais é a análise da dinâmica cultural, ou seja, do processo

83 CLIFFORD, J. The Predicament of Culture. Cambridge: Mass. Harvard University Press, 1984.
84 CLIFFORD, J. idem, 1984.
109

permanente de reorganização, reelaboração e ressignificação das práticas sociais,


representações estas, que são paralelamente condição e produto dessa prática.
Como bem situa James Clifford, quando discute o significado de “modernidade
etnográfica”, “as culturas, e a nossa visão sobre elas são produzidas historicamente”85.
Clifford, afirma isso ao analisar que o mundo atual, com a realidade pós-colonial, está em
movimento e não é mais possível pretender ocupar um ambiente cultural delimitado e sair à
procura de outras culturas puras para analisá-las. “Cada vez mais os modos de vida
humanos se influenciam, se retraduzem e subvertem uns aos outros”.86 Na presente
investigação, observam-se nitidamente esses elementos, pois à analise de um primeiro
elemento de construção de identidades, a redefinição do conceito de Axé, percebe-se que os
militantes operam uma clara reinvenção política e cultural.
Na declaração abaixo, Mãe Beata realiza uma recriação da significação do Axé,
publicamente, em 12 junho de 1997, quando foi realizado um seminário na UERJ sobre
Africanidades. Nesse evento, Mãe Beata discursou sobre a importância da cultura africana
no Brasil. Depois de falar disso, finalizou com a seguinte declaração política:

"Eu sou uma Yalorixá da cultura Yorubá, e nessa a consciência se


transmite no quotidiano, que para mim é uma coisa fundamental,
porque viver para nós é viver para a comunidade, onde todos são
respeitados, são diversos individualmente mas complementares para o
bem da comunidade. Na nossa visão de mundo o tempo é o espaço
onde o homem pode, sem parar, lutar pelo desenvolvimento de sua
energia vital. O poder do homem, para nós descendentes de africanos,
se expressa através da palavra que significa força, Axé. Trata-se de
uma palavra que significa muita força, que vai da integridade física,
ao bem estar social pleno de homens e mulheres.
Por isso, acredito que só uma nova sociedade, mais justa, igualitária,
será capaz de fazer expandir ainda mais o Axé, fazer ver aos homens

85 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 84.


86 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 85.
110

que no Ayê existe espaço para todos e que não há necessidade de


conflitos inúteis que faz crescer somente o egoísmo e a vaidade
pessoal. Olorum não quer isto, ele quer que os homens se respeitem
entre eles."

Na ocasião, Mãe Beata falava para um público essencialmente composto de


militantes do Movimento Negro do RJ, estudantes da UERJ e pesquisadores das culturas
afro-brasileira.
Levando-se em consideração que o candomblé surge no Brasil como produto de
reinvenções dos vários sistemas de crenças, provenientes do continente africano. Percebe-
se que nessas declarações se apresentam novas reinvenções, que ocorrem em um contexto
histórico, no qual se inserem não mais supostas motivações de “resistência”, “continuidades
culturais”, como afirmam alguns autores87, mas no intuito de deslocar as (re)definições em
direção a uma militância política anti-racista e socialista.
Mãe Beata opera essa (re)invenção quando afirma que o axé é sua energia vital e
que este, no coletivo, se expande ainda mais. Por conseqüência, ligando esta concepção
com sua realidade moderna, ou seja, inserida na militância política, ela reverte a noção de
axé em direção “a uma nova sociedade, mais justa, igualitária...”.
Mais um momento relevante, nessa investigação, foi revelado em outubro de 1999,
quando os militantes Jorge Carneiro, Lúcia e Paulo César, apresentaram e defenderam uma
tese para VI Encontro Nacional de Negros e Negras do PT, realizado em Cajamar, São
Paulo. Jorge Carneiro, Paulo César e Lúcia assinaram a tese que disputou o encontro: Falta
Axé na Política Petista. Num trecho da tese onde eles avaliam a atual fase de construção do
PT se afirma:

“Em primeiro lugar, quando falamos da crise de identidade do PT,


nos referimos à grande crise que abala a militância do partido,
fazendo com que, hoje, exista em suas bases um sentimento
generalizado de que o PT "não é mais aquele".
111

O partido encontra-se num alto estágio de burocratização, ou seja, as


decisões políticas são tomadas pela cúpula de direção do partido,
pelos dirigentes que se mantêm por vários anos na direção.
Dizem - e se vê - que, entre uma eleição e outra, os candidatos e a
militância não priorizam mais o trabalho de base, depositando uma
confiança exagerada na capacidade oratória e no discurso coerente
do partido. Não se realiza mais um trabalho no qual se procure
construir uma interseção entre a cultura popular, o imaginário e a
teoria de superação do capitalismo.
Por outro lado, a forma de convencimento das massas se realiza cada
vez mais por meio de um discurso preocupado com o status e a forma
do falar. Ou seja, caracterizando-se através de aspectos semelhantes
ao proselitismo das religiões universais. Parte-se da presunção de
que os excluídos são alienados, ignorantes, não adquiriram ainda
aquela consciência de classe ou política que propicie uma mudança
radical do sistema político, econômico e social.
Em conseqüência disto, quando os agentes políticos do partido
assumem alguma função governamental ou parlamentar, crê-se que
os problemas sociais e econômicos possam ser resolvidos a partir de
soluções e resoluções propostas somente dentro das instituições às
quais esses sujeitos-agentes pertencem.
Em segundo lugar, quando falamos na construção do AXÉ nas
comunidades de candomblé, referimo-nos ao princípio básico que
move toda a cosmologia religiosa das comunidades afro-brasileiras.
Ou seja, na definição dos iniciados na religião, “o AXÉ é a força que
assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir.
Sem AXÉ, a existência estaria paralisada, desprovida de toda a
possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o
processo vital.”

87 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.


112

Segundo alguns iniciados na religião que são também militantes do


PT, a concepção de AXÉ "é uma construção coletiva em que não cabe
o individualismo, e a competição é o ponto de contradição com o
capitalismo".
Neste sentido, a diferença entre a visão política anterior e esta é
que, na construção do AXÉ, existe uma divisão de tarefas entre todos
os membros da comunidade; todos trabalham em pé de igualdade,
para receber e adquirir o AXÉ. A doutrina no mundo do candomblé
só é compreendida na medida em que é vivida e dramatizada de modo
ativo.
Comparando com o segundo aspecto a visão política anterior, na
construção do AXÉ, a lógica ou dicotomia “discurso dos esclarecidos
aos não-esclarecidos” não existe. A palavra e a vida são sentidas e
vividas. Encontram-se numa mesma dimensão. Portanto, o
conhecimento do real, nessa cultura e religiosidade baseada na
oralidade, se dá de forma integral e muito presente no corpo e na
mente dos indivíduos. Em função disto, sem sermos redundantes - o
que seria chamado, na crise de identidade do PT, o convencimento
dos indivíduos passando pela priorização do proselitismo - na
cosmologia dos afro-brasileiros, a educação de AXÉ é feita
permanentemente, desde a iniciação até o retorno ao Orum ( mundo
invisível ). Aliás, a educação de AXÉ, no cotidiano, é a base do
entendimento do real, do futuro e do passado. Somente a vivência
comunitária poderá construir a identidade individual e coletiva, com
harmonia, sem desigualdades, sem exploração de uns sobre outros e
sem qualquer tipo de opressão ou privilégio.”

E a tese finaliza com a seguinte idéia:


113

“Acreditamos que os ensinamentos dos afrodescendentes não


caminhem somente em uma direção, ou seja, que o AXÉ cultivado
pelos mesmos possa ensinar muito aos petistas; mas também os
petistas podem ser ouvidos no interior das comunidades, para que
estas conheçam o espírito revolucionário daqueles e levem mais em
consideração o potencial sedutor dessa cosmologia, no sentido de
resistir à tentativa de massacre e extermínio que as culturas e visões
de mundo proselitistas e ocidental tentam impor às culturas milenares
dos afrodescendentes.”88

Num outro texto, Jorge Carneiro afirma:

“Somos portadores de Axé, essa força dinâmica que garante o


processo vital e nos anima sobretudo a prosseguir no objetivo de
garantir um mundo melhor.”89

Meses antes, em fevereiro de 1999, no encontro de negros e negras da DS, em Porto


Alegre, Jorge e Lúcia expressaram a seguinte idéia:

“Somos um povo que temos Axé, e Axé é vida. Logo lutamos pela
vida, vida em todos os seus aspectos. Respeitamos as diferenças e o
nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for
sempre observada.
Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção
do Axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não existe entre nós o
princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui
está o conflito com o padrão dominante.”

88 Tese apresentada no 7º Encontro Nacional de Negras e Negros/PT, São Paulo: Outubro 1999. Mimeo.
89 CARNEIRO, J. Candomblé, Exclusão e Luta. São Paulo: Jornal Em Tempo, 1995. Pp. 12
114

Aqui, Jorge, PC e Lúcia não usam a linguagem clássica dos militantes da esquerda,
mas resgatam a igualdade, a coletividade, a garantia de um mundo melhor, em nome da
expansão do axé.
Essas declarações e elaborações desses militantes, a essa altura dos estudos em
questão, poderiam falar por si mesmas, porém é sempre bom ressaltar que, se “AXÉ "é uma
construção coletiva em que não cabe o individualismo, e, a competição é o ponto de
contradição com o capitalismo", ele demonstra que a cultura e as identidades não formam
uma bagagem que as sociedades levam consigo e se conserva como um todo, não é algo
definitivo, mas algo que se fragmenta de diferentes modos, para afirmar identidades e
garantir interesses, sendo permanentemente reinventada e investida de novos significados90.
Esses militantes reivindicam elementos de uma “tradição” africana e as negociam,
em suas formulações, para uma nova interpretação política e a representação de suas
práticas militantes. Ou seja, para se fazer uma crítica à crise política do PT, é necessário
afirmar sua “Falta de Axé” e não simplesmente lançar mão dos recursos críticos usualmente
utilizados pela esquerda em geral.
Entretanto, essas elaborações se restringem ao espaço político desses militantes.
Pois não se encontra, em observações nos seus terreiros, que no “Axé não cabe o
individualismo”. Pelo contrário, percebe-se que existem disputas, jogos de prestígio, etc.
Suas elaborações identitárias se limitam a uma futura construção em seus espaços
religiosos (no caso Jorge Carneiro e Lúcia) e, em PC somente nos espaços políticos.
Jorge Carneiro em seu terreiro, por exemplo, limita-se ao cumprimento de seus
rituais, não promove nenhuma discussão a respeito de suas concepções políticas com sua
Mãe de Santo e seus “irmãos de axé”, o mesmo ocorre com PC e Lúcia. A única vez em
que Jorge Carneiro teve a oportunidade de “levar” uma discussão política para dentro do
terreiro foi em 1994, quando foi realizado um almoço para Lula e Bittar (este, na época,
então candidato a governador pelo RJ )91. Nesse episódio, Jorge conta que de uma certa
forma, quebrou a hierarquia no terreiro, pois Mãe Nitinha lhe concedeu o direito de enfeitar
e arrumar o barracão para recepcionar Lula e a comitiva do PT. Jorge assim explica:

90 COHEN, A. Custom and Politic in Urban africa. London: Routledge and Kegan Paul, 1969.
91 Ver em anexo reportagem da revista Manchete da época.
115

‘foi um momento difícil, pois existiam espaços e objetos que não


poderia entrar nem tocar. Mas pela primeira vez minha Mãe permitiu
que um filho de santo seu tomasse conta do barracão...
ao final, deu tudo certo, fizemos uma recepção ao Lula e ao Bittar,
muito boa. Fizemos um seção de falações das personalidades
presentes, depois Mãe Nitinha entregou
um Oxê de Xangô para Lula, lhe pedindo mais justiça no Brasil e um
Abebé de Oxum para Bittar, lhe pedindo para acabar com a violência
no Rio de Janeiro. Logo após, entregamos a Lula e Bittar as
reivindicações dos adeptos do candomblé, caso eles ganhassem as
eleições. Logo em seguida oferecemos o almoço.”92

Esse evento teve a participação de Mãe Beata, que apesar de não ter feito nenhum
discurso, foi a pessoa, junto com Jorge Carneiro, que mobilizou várias casas de candomblé
a participarem do evento. Ela e Jorge Carneiro, dias antes, percorreram de carro vários
terreiros da Baixada Fluminense.

4.2 - Reinterpretando as histórias e os significados dos orixás

Lévi Strauss lembra que “O mito enquanto parte de um sistema de representações,


possui valor de verdade que reside no fato de que a história que narra, não importa em que
tempo ocorra, forma uma estrutura permanente que tematiza e soluciona problemas atuais
contemporâneos.”93.
No caso dessa investigação, as histórias mitológicas dos orixás divulgadas por Mães
de Santo e estudiosos, são reinventadas e reproduzidas pelos militantes no intuito de
legitimar a construção de suas identidades como candomblecistas e socialistas. E esse será

92 em anexo o referido documento


93 LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. Pp. 186.
116

mais um momento no qual será identificado o processo de construção das associações


operadas pelos militantes.
Lépine94, num belo estudo sobre os estereótipos construídos nas comunidades de
candomblé, informa que os itãs ( histórias dos orixás ), contam a história do povo de santo,
são condutores de valores, referências míticas para as convivências em comunidade. Esses
itãs são contados e recontados ao longo do tempo e, de acordo com as circunstâncias, se
adaptam à realidade da comunidade, mas nunca perdem, segundo os militantes
investigados, “o valor referencial-mítico, fundador de um princípio originário africano”.
Durante os diálogos estabelecidos com os sujeitos, estes deixaram bem clara uma
própria interpretação das histórias dos orixás. Essas interpretações, na verdade, são
reinterpretações políticas e sociais, adaptadas às suas convicções políticas. Vejam o que
afirma Jorge Carneiro sobre seu orixá, Ogum:

“Quando fiz minha iniciação, descobri que era de Ogum, pensava que
Ogum fosse violento, passional, guerreiro, etc., então não me
identificava porque eu sou muito calmo, de paz, enfim, tudo o
contrário. Porém, depois que descobri que Ogum é também paz,
serenidade, tranqüilidade, eu descobri isto em mim mesmo, que era
escondido, porque o orixá é isso, não somente aqueles estereótipos
que dizem por aí. Então na política eu procuro levar a sério esta
característica de Ogum, para estar sereno na minha prática política.
O exemplo que posso dar é que nesta crise da esquerda eu penso que
seja só um momento, sei que muitas pessoas estão desiludidas, saem
do PT, da militância, porém, Ogum me leva sempre adiante, porque
ele significa vanguarda, Exú é outro que me diz que estamos na crise,
mas isto vai passar, haverá outros momentos no qual superaremos a
crise, tudo se transforma, nada fica estático, eu trabalho assim. Exú
quando vê que as coisas estão andando bem demais ele cria situações

94 LEPINE, C. “Os esteriótipos da personalidade no candomblé Nagô”. In: MOURA, C.E.M. de. Ollorisá: escritos sobre
a religião dos orixás. São Paulo: Agora, 1981.
117

para que nós não nos conformemos, para nos colocar em movimento,
então é assim que vejo as coisas, o atual momento histórico que
vivemos. Eu acredito que sem Exú não existe transformação no
mundo, nas coisas.”

Massimo Canevacci, em seu livro sobre sincretismos, citando Vasantkumar, um


antropólogo indiano, observa que no processo de globalização não acontece somente uma
modernização das culturas nativas, mas também uma “indigenização” da modernidade95.
Nesse sentido Jorge Carneiro opera uma verdadeira politização do papel de Ogum
em sua vida e militância. Constrói, para os adeptos de uma tradicionalidade africana pura,
uma heresia. Para Jorge, a identidade de Ogum muda (e ele, como afirma, é parte de
Ogum), se torna politizada. Enquanto outros militantes constroem referências pessoais e
coletivas como, Che Guevara, Marx, Lênin, Jorge tem Ogum, “o ferreiro, aquele que abre
os caminhos e toma a vanguarda”.
Outra história interessante é aquela de Lúcia que tem como Orixá, Oxóssi. No
entanto, logo no primeiro encontro com essa investigação, expressou a seguinte história,
demarcando como relataria suas reinterpretações dos significados dos orixás:

"Um dia Oxum pediu aos orixás homens para participar da


reunião que eles organizavam, porém estes não a queriam na reunião.
Então Oxum se sentiu ofendida e com muita raiva decidiu secar todas
as águas do mundo até que ela participasse da reunião. Depois que
toda a terra ficou seca, os orixás se desesperaram, porque a vida no
Ayê corria o risco de desaparecer. Foi então que os orixás
imploraram a Oxum que ela desse a água de volta ao mundo, mas
Oxum era intransigente não queria escutar ninguém. Os orixás não
tendo resposta de Oxum foram a Olorum, eles perguntaram porque
que Oxum estava fazendo aquilo, Olorum respondeu dizendo que
enquanto Oxum não participasse da reunião eles estavam correndo o
118

risco de serem responsáveis pelo fim do mundo. Foi então que os


orixás decidiram pela participação de Oxum na reunião. Daquele dia
em diante a água retornou e a vida no Ayê se desenvolveu
tranqüilamente".

Logo depois ela deu a seguinte interpretação para essa história:

"eu vejo que nesta história Oxum nos dá o exemplo de como nós
mulheres temos força para transformar o mundo, para fazer valer
nossos direitos e mostrar aos homens como nós somos importantes
para a vida. Então não podemos nos deixar explorar, ser
discriminada pelo sistema machista. Acredito que Oxum nesta
história nos ensina muitas coisas para nossas lutas feministas."

Lúcia opera aqui a invenção de uma referência política sob o manto de Oxum. Se o
movimento feminista cria seus ícones e heroínas, ela inventa uma Oxum, que na terra,
inspira a luta feminista e anti-machista.
E não são apenas as histórias dos orixás que são reinterpretadas. Verdadeiras
histórias são inventadas para legitimar “a história de todo um povo de raiz africana”, no
sentido de referendar uma “nova” concepção política, como é o caso de Mãe Beata no seu
livro, Caroço de Dendê:

“Durante longos anos inventei histórias e hoje selecionei algumas


para publicar. O livro é para adultos e crianças. São histórias
simples, que contam a nossa cultura. Decidi escrever porque não
gosto que nossa cultura seja deturpada em outros escritos e depois
existe uma falta de conhecimento dos afro-brasileiros sobre nossa
identidade. Penso que as histórias que conto faz refletir sobre muitas
coisas importantes da nossa existência. Te faço um exemplo:

95 CANEVACCI, M. Sincretismi:Una esplorazione sulle ibridazioni culturali. Genova: Costa e Nolan, 1995.
119

Um homem tinha um filho que conhecia muitas coisas. O menino


era muito respeitado por todos, mas seu pai dizia: menino, basta!, eu
não quero te ver envolvido nestas coisas de adivinhação.
Mas o menino adquiria cada vez mais poder, chegava gente de
longe para escutar as suas palavras e os seus ensinamentos. Um dia
acordou e disse ao seu pai, que era marceneiro:
- papai, esta noite sonhei com um velho que me dizia que tinha visto
através dos búzios, que hoje o senhor não deve cortar a madeira
porque senão acontecerá alguma coisa desagradável.
O homem bateu nas costas do menino e foi embora para o bosque
trabalhar sem dar muita importância ao aviso do filho.
Chegando lá ele começou a cortar uma árvore. Perto dali, mal
começou a trabalhar chegou uma figura estranha para espiá-lo
fazendo:
- ei ! ei ! ei !
o homem escutava toda vez que levantava o machado para cortar a
árvore.
- mas isso é uma ilusão, estou me confundindo com a invenção do
garoto. Vou continuar trabalhando porque não será esta estupidez
que vai me dominar.
Deu um golpe na árvore com o machado e a cortou. A árvore então
caiu sobre sua perna o machucando muito.
O filho, que estava em casa, teve um pressentimento porque não
viu o pai chegar. Foi no bosque e encontrou seu pai desacordado com
a árvore sobre sua perna.
Chamou os vizinhos os quais o levaram para casa. Mas o
marceneiro ficou paralisado.
Este é o preço que paga as pessoas, no qual não escutam um
conselho e pensam que sabe de tudo. Todos os seres que habitam o
mundo têm a própria hora, as árvores também. Elas são responsáveis
120

pelo desenvolvimento da Mãe natureza e não devem ser


molestadas.”96
“Veja, eu conto esta história porque ela representa um ponto
importante de nossa visão de mundo, ou seja, todos nós temos algo
importante para dizer, então devemos escutar todos, mesmo quem diz
algo que achamos errado, por que somos diferentes mas somos
complementares, devemos sempre preservar o diálogo para construir
a harmonia entre nós, por isso que sou socialista.”

Utilizando-se de recursos mais acessíveis para ela, Mãe Beata, cria histórias para
não somente manter uma tradição oral, mas também para legitimar uma suposta identidade
socialista, no caso a sua.
No início de 2000, uma grande polêmica se instalou no Rio de Janeiro envolvendo
as comunidades afro-brasileiras e os pentecostais: a proposta da Empreiteira Lansa, que
construiu a Linha Amarela, de colocar nessa linha uma escultura de Exú. Iniciativa apoiada
pelo ex-prefeito da cidade, Luiz Paulo Conde. Os pentecostais reagiram de forma radical,
ameaçando inclusive com a realização de uma campanha pública contrária à escultura de
Exú na Linha Amarela. Poucas iniciativas conjuntas a favor da proposta foram realizadas, e
algumas declarações de sacerdotes e sacerdotisas foram feitas nos jornais, mas, a iniciativas
mais contundente foi feita pelo PT, publicando uma nota – no Jornal do PT - a favor da
iniciativa, através da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ. Numa nota
escrita pelos seus membros, intitulada “A quem incomoda Exú”, (dentre eles, Jorge
Carneiro, Lúcia e Paulo César) afirmavam o papel de Exú:

“Longe de ser o diabo, Exú é o princípio dinâmico de comunicação,


da existência cósmica e humana. Ele possibilita que as coisas venham
a tornar plena a sua vida interior, responde pelo movimento da vida,
introduzindo o acaso e a sorte no destino dos homens e mulheres,

96 BEATA DE YEMONJA, M. idem. 1997. Pp. 75.


121

rompendo os modelos conformistas do universo e nos levando a


possibilidade permanente de mudança.
Exú é a negação da negação. Ele nega os preconceituosos que
negam o direito à diferença; e as instituições que negam o direito à
liberdade de expressão e pensamento; ele nega a sociedade onde o
homem é inimigo do homem. Ele é rigoroso e duro sem jamais perder
a sua ternura.
Exú nos questiona constantemente a nos revelar que o mundo é
produzido e que pode ser produzido de maneira diferente: na visão de
mundo de origem africana Exú é o mediador entre os deuses e os
homens (o mesmo ocorre na cultura grega com o deus Hermes) enfim,
nos mostra a fragilidade das nossas tentativas de criar sistemas e
estruturas definitivas onde a vida fica limitada e sem horizonte.
Por analogia, Cristo também é avesso, como Exú, aos dogmas,
preconceitos e autoritarismo que predominam as instituições. Ele
parte em busca do seu espírito de liberdade na festa do fogo, de
Pentecostes, que como princípio dinâmico continua a animar a vida
dos homens e mulheres na liberdade, na ternura e na luta.
A polêmica que se instalou com a proposta da Lansa – Empreiteira
baiana que construiu a Linha Amarela – de colocar um escultura de
Exú na Linha Amarela, significa mais uma expressão do racismo e do
preconceito religioso no Brasil.
A nossa Constituição, no Título II, Capítulo 1, Art. 5, P. VI, afirma:
“é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da Lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além
disso o Estado e suas instituições são de caráter Laico, isto é, não
religioso.
Mas a realidade que se impõe é outra. Nas escolas, nos tribunais,
nas sedes dos governos, existe somente a imagem de Jesus Cristo
122

Crucificado. Nunca se perguntou a quem não é cristão se concorda


com este autoritarismo religioso. Algum tempo atrás até nossas
moedas tinham a escritura: “Deus seja louvado”. E se houvesse:
“Axé Brasil !” ?”

O texto ainda termina com as seguintes colocações:

“Portanto, nós, militantes do PT, somos a favor da colocação da


escultura de Exú na Linha Amarela. Pois esta dará visibilidade a uma
cultura milenar dos povos africanos e seus descendentes no Brasil.
Cultura esta muito mais antiga que os povos que deram origem ao
cristianismo.
A escultura não representa uma agressão às pessoas de outras
religiões, mas uma afirmação de que no Brasil existem diferenças
culturais e religiosas, um princípio que nos orgulha muito, pois essa
diversidade é enriquecedora.
Não podemos reviver situações de intolerância, preconceitos e
discriminações como existiu na Europa nazista e fascista. Somos um
povo que cultua a democracia e a pluralidade cultural.
Nós do PT sempre criticamos a intolerância e o racismo,
preservamos o que há de mais rico em nosso povo: a democracia e o
respeito pelas pessoas que pensam, oram, dançam, cantam e se
vestem de forma diversa.
Axé Brasil !!!
Axé Rio de Janeiro !!!
Larôie Exú !!!”

Revela-se aqui, o uso político de referências culturais afro-brasileiros, para a


apropriação de um espaço político, na luta anti-racista do Partido. Além disso, renova-se a
dimensão simbólica dos orixás, ressignificando os sentidos da figura de Exú, ou como
123

afirma M. C. da Cunha “a tradição cultural serve de porão, de reservatório onde se irão


buscar, a medida das necessidades do novo meio, traços culturais isolados do todo que
servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica. A tradição
cultural seria assim manipulada para novos fins, e não uma instância determinante.”97
O que se vê acima, na polêmica da escultura de Exú, aponta para, como afirma L.
Trindade, “o processo de reinterpretação e manipulação individualizada dos símbolos
sagrados. Esse processo de seleção dos conceitos e construção da lógica estrutural do
discurso é dirigido pelos interesses sociais em conflito, marcados pelas oposições existentes
em um mesmo momento histórico e social”.98
O texto “A quem incomoda Exú”, foi elaborado numa reunião da Secretaria
Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ, reunião essa na qual também estavam
presentes, Jorge Carneiro, PC e Lúcia. Eles pretendiam radicalizar a polêmica na cidade,
identificando o PT com a defesa de uma certa visão (a deles) da figura de Exú.
Como se vê, as histórias reinterpretadas ou inventadas são destinadas a facilitar
algumas operações práticas bem definidas, no caso, a legitimação de uma visão política
diferenciada do conjunto da esquerda tradicional. Um velho modelo de referências – as
histórias dos orixás ou seus significados –se adapta às novas condições políticas dos
militantes.
Mas, para Mãe Beata, parece que existe outro significado, ou seja, aquele de se
autopromover religiosa e politicamente. Seu livro, lançado em 1997, reflete isso. Ela rompe
com a chamada tradição oral e inaugura uma fase na qual começa a escrever, publicar
histórias, numa clara proposta de “preservar uma memória”, incorporando elementos não
tradicionais “africanos”, uma vez que seu objetivo é também ganhar respaldo no mundo da
literatura afro-brasileira.

97 CUNHA M.C. da. “Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em lagos”
In: Religião e Sociedade. n. 1, 1977. Pp. 53.
98 TRINDADE, L. “Exú, reinterpretações individualizadas de um mito”. In: Religião e Sociedade. n. 8, 1982. Pp. 37.
124

4.3 - O ecologismo

Outro exemplo de construção de associações que os militantes investigados fazem é


a luta ecológica e os princípios de relação com a natureza que o candomblé tem. Contudo
as inovações de apropriação do candomblé neste tema não é novidade.
Vilson Caetano de Sousa Júnior, num estudo sobre as comidas dos orixás, dá o
seguinte testemunho:

“Participei, certa ocasião, da festa de Nanã. Ao contrário das


comidas tradicionais associadas a este ancestral, havia somente frios,
queijos e saladas. E Nanã não deixou de dar a mesma volta ao redor
daquelas comidas que daria na mesa de seus mingaus. Parece que o
surgimento de alguns pratos, ou ainda, de certas concepções, não
significa que os fundamentos foram diluídos no contexto da cidade,
mas ao contrário, que permanecem apoiados em suportes que não
podem ser ignorados. A suposição de um impacto das novas
condições de vida sobre o papel desempenhado pela religião dos
Orixás deve ser mais uma pergunta do que um pressuposto. Mais
desafiadoras são as teias de comunicação, formas de diálogo
desenvolvidas pelos terreiros para marcarem sua presença e
colocarem estes produtos à serviço dos próprios Orixás”99.

Esse testemunho pode orientar, na leitura de que estes militantes resgatam, uma
expressão de religiosidade que tem uma profunda relação com a natureza, mas que não está
imune às transformações e reinterpretações, no contato com a civilização industrializada.

99 SOUSA JR, V. C. de - A cozinha, os orixás e os truques: entre a invenção e a recriação onde o tempo não pára...,
Trabalho apresentado no seminário temático ST03 "Os afro-brasileiros". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na
América Latina, São Paulo: 22 a 25 de setembro de 1998. Mimeo, pp. 23.
125

Nesse sentido, quando os militantes resgatam suas “origens” ecológicas eles as


redirecionam para uma crítica romântica aos nefastos efeitos catastróficos da civilização
industrial, a saber, a destruição do equilíbrio ecológico.
De fato, houve uma profunda reinvenção das comidas dos orixás, das folhas
utilizadas nos rituais, porém, uma relação de veneração e preservação dos elementos
naturais está presente nos candomblés desses militantes,. Essa evidência identifica esse
momento relevante de construção das associações feita pelos militantes.
M. Löwy, em um de seus recentes artigos100, afirma que a esquerda contemporânea
e o marxismo têm como desafio pensar os novos movimentos que surgiram no século XX,
dentre eles a luta ecológica. Para Löwy, essa luta não é separada da luta pelo socialismo,
pelo contrário, é elemento estratégico para se pensar as transformações necessárias na
sociedade capitalista.
Dentro do PT, os sujeitos investigados não se abstêm desta discussão. Pois além de
se defenderem dos ataques de outras denominações religiosas, eles, em alguns momentos,
se deparam com críticas vindas da própria esquerda e do movimento ecológico. Acusando-
os de práticas anti-ecológicas como, “matança de animais” e “poluição de florestas através
de Ebós”.
Por ocasião da Rio-92 O CENARAB, junto com Mãe Beata, realizaram várias
conferências e escreveram um documento a respeito da “natureza ecológica do
candomblé”101.
Vejamos algumas afirmações sobre a construção de associações entre luta
ecológica, vinculada à crítica ao sistema capitalista e a “natureza ecológica da visão de
mundo do candomblé”:

“A estrutura da sociedade brasileira caracteriza-se por sua


diversidade cultural, atualmente constituída ao lado do sistema
democrático burguês em construção. (...) as religiões afro-brasileiras
têm sofrido ataques injustificados de setores voltados para as

100 LÖWY, M. Por um marxismo crítico. Cadernos da Tendência Democracia Socialista do PT, 1999. Mimeo.
101 Cenarab. Idem. Junho/1992.
126

questões atuais sobre preservação do meio ambiente, sendo


classificadas como depredadoras, acusação esta motivada pela
presença das práticas de sacrifício animal e do depósito de oferendas
em áreas verdes. Tais práticas são então encaradas em si mesmas,
sem ligação com os aspectos culturais-religiosos que as
fundamentam.
A tradição religiosa afro-brasileira fundamenta-se numa
cosmovisão, onde homem e natureza se solidarizam, intermediados
pela esfera do sagrado. Isto difere dos atuais discursos ecológicos,
que se baseiam numa perspectiva ora utilitarista, ora
funcionalista.”102

Esse documento escrito pelos coordenadores do CENERAB, entre outros, inspirou


as intervenções e participação ativa de Mãe Beata na Rio-92.
Mãe Beata participou de eventos, conferências, palestras, nas quais demonstrava
“todos os fundamentos cosmológicos do candomblé”103. Afirmava sua natureza ecológica,
no sentido de que era inconcebível pensar em essência humana sem natureza. E que os
discursos acusadores ao candomblé demonstravam uma má fé, mesmo dos ecologistas, e
também um preconceito religioso e racial.
Em várias conferências da Rio-92, o CENARAB e Mãe Beata, afirmavam que o que
se estava em discussão era a contraposição de duas concepções de ecologismo, diversas de
um lado, da proposta burguesa de preservação de “nichos ecológicos”, fragmentados,
separados da artificialidade urbana, que para os afro-brasileiros é hipócrita e; de outro lado,
“uma visão de mundo de matriz africana que interage com a natureza, onde esta última é
elemento sagrado, constitutivo do humano”.
Reafirmando esta concepção ecológica, alguns anos mais tarde, em 1994, Jorge
Carneiro, escreve um artigo, para a Revista Teoria e Debate do PT:

102 Cenarab. Ibidem. Junho/1992. Pp. 2.


103 Mãe Beata foi a coordenadora dos trabalhos na Tenda “Planeta Fêmea” ECO-92
127

“Apesar dos constantes ataques desferidos pela cultura oficial,


afirmamos o caráter extremamente ecológico dessa cosmovisão, e sua
contribuição para a conservação da natureza e a conquista da paz.
(...) O exercício da fé nos orixás exige uma relação estreita com o
meio ambiente, indispensável nas práticas litúrgicas. KOSI EWE,
KOSI ORIXÁ, o orixá está onde está a natureza. Esta visão enfatiza o
respeito pela natureza, reforçando a necessidade de um equilíbrio
entre ação humana e a utilização das fontes naturais.”104

Mais adiante Jorge Carneiro afirma:

“Como dizia em seus ensinamentos a saudosa Mãe Aninha: ‘violência


à natureza é violência a orixá! Não se tira uma folha seca de uma
árvore sem precisar, é o mesmo que matar uma pessoa. Alguém gosta
de perder um braço, um olho, um pé? Por que arrancam uma folha e
jogam fora? O candomblé é natureza viva, não há culto a orixá sem
terra, mato, rio, trovão, raio, mar...tudo isso tem dono.”105

Num seminário do PT, em fevereiro de 1999, Jorge Carneiro, em uma de suas falas
afirma:

“A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a


nossa profunda visão ecológica, em contraposição radical com o
capitalismo que, com sua sede de lucros, destrói nosso planeta.”

O aspecto interessante desse “resgate ecológico” dos militantes, é que eles


redimensionam a relação que as culturas africanas supostamente tinham com a natureza, e a
transformam num discurso ecológico moderno, ou seja, tomam elementos pretéritos e os

104 CARNEIRO, J. Idem. 1995. Pp. 4.


105 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995. Pp. 4.
128

projetam no futuro, na utopia, entretanto, eles sabem que não é possível, nem desejável,
retornar ao passado mítico, mas esse passado por sua vez, se transforma em uma crítica aos
processos de modernização, industrialização e desenvolvimento do capitalismo.
Enfim, eles apropriam-se de elementos culturais considerados pela literatura como
“pré-modernos”, para fazer as mesmas críticas que faz o ecologismo moderno.

4.4 - O feminismo

Se o elemento ecológico demonstra um componente de como os militantes


constroem suas identidades, a questão do feminismo não é menos relevante.
O que se constrói dessa vez é uma aproximação entre o “papel histórico que a
mulher negra teve na construção dos candomblés no Brasil”106 e a luta pela emancipação
da mulher na sociedade machista e capitalista.
Desde o 1º Congresso do PT, em novembro de 1991, quando o partido deliberou a
participação de no mínimo 30% de mulheres na direção do partido, a discussão sobre a
condição da mulher, na sociedade capitalista, vem sendo amplamente debatida.
Atualmente, a discussão sobre a condição de gênero e do feminismo é parte
relevante na construção do Partido. Faz parte da sua estratégia política a combinação da
luta feminista com o projeto socialista.
Evidentemente, os militantes de nossa investigação também não se abstêm desta
discussão. E aqui se destacam as elaborações de Jorge Carneiro e principalmente de Lúcia e
Mãe Beata, apesar desta última militar menos dentro do partido.
Mãe Beata, desde a fundação de seu terreiro em 1985, fez de sua comunidade, um
espaço de participação política, articulado com vários movimentos. Pois o objetivo era, em
suas palavras, “a conscientização política das mulheres negras”. Com o intuito de levar
adiante esse objetivo, participou de vários eventos ligado à questão de gênero e da luta
feminista como: em novembro de 1988, 1º encontro nacional de mulheres negras,
participando como mentora espiritual; organizou o 2º e 3º encontro de mulheres da periferia

106 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995. Pp. 4.


129

em sua comunidade, em maio de 1989 e outubro de 1991 respectivamente; em março de


1992 foi palestrante de um ciclo de debates sobre Mulher Negra e Ecologia na ECO-92; em
1994 foi nomeada conselheira do CEDIM – Conselho Estadual dos Direitos da Mulher –RJ.
Segundo Mãe Beata, a participação nesses eventos representava, para ela, a
necessidade de divulgar a visão de mundo das negras africanas:

“A visão européia é sempre mais divulgada. Na visão do mundo


negro africano, a figura feminina tem a mesma importância da
masculina: os orixás femininos, por exemplo. Não há submissão, mas
um completa o outro”. Ou ainda: “a lógica do discurso feminino
europeu nos manda repetir que somos mulher, pobre e negra. Essa é
uma discriminação porque a mulher é sempre mulher: não existe isso
de ser negro ou pobre. Sou contra tudo que divide, porque discrimina.
Todos estamos no mesmo barco”.

Para Mãe Beata, ser mulher e Yalorixá é lutar contra todos os tipos de
discriminação:

“quero deixar claro que a vida de uma Yalorixá não deve se resumir
à casa de terreiro. Ela deve realizar trabalhos sociais, culturais, de
conscientização da nossa cultura e religião. É isso o que eu procuro
fazer.”

Um dos pontos que Mãe Beata destaca, nesta discussão sobre a mulher negra, é o
processo de esterilização de mulheres que ocorre na Baixada Fluminense.
Em 1996 a organização não governamental CRIOLA homenageou Mãe Beata, num
encarte sobre a mulher negra:

“(...) ela não se contentou em apenas cuidar dos seus quatro filhos,
sete netos, um bisneto e dezenas de filhos de santo, e partiu para fazer
130

de sua tarefa divina um compromisso com os excluídos(...) Beatriz,


também tem sido uma mulher negra preocupada como outras
mulheres negras, contribuindo com a sua organização através da
participação em fóruns, seminários e encontros dos movimentos de
mulheres negras, feministas, religiosos e negro”107.

A peculiaridade de Mãe Beata não reside no fato, simplesmente, de participar e ser


engajada politicamente, na luta feminista das mulheres negras do Rio de Janeiro, mas pelo
fato de tentar se basear, nessa luta, nos “fundamentos cosmológicos da tradição dos orixás”.
Vejamos o que afirmou Mãe Beata quando ouviu a história inventada por Lúcia,
sobre o exemplo de Oxum como feminista:

“Eu não vejo que só Oxum seja feminista ou que ela seja a mais
feminista. Oxum é muito potente porque ela há o segredo dos búzios,
teve esse poder de Exú. Porém existem outros orixás que são muito
poderosas, como Yansã, Yemanjá, Obá, etc., que para mim demonstra
como na vida as mulheres têm importância, não se pode discriminar
as mulheres dizendo que somos frágeis. Não, é também por causa das
mulheres que a vida se reproduz, se cria Axé”.

Como bem afirmou Jorge Carneiro, em um de seus artigos para a revista Teoria e
Debate do PT:

“A mulher negra teve e tem um papel fundamental na manutenção do


Axé, isto é, da tradição de orixá no Brasil. A mulher é representada
pela cabaça que contem e é contida, gera filhos, mas que ao mesmo
tempo administra energia e força para a comunidade”. “(...) Desde o

107 Cadernos CRIOLA. Encarte especial mulher negra yabá, Rio de Janeiro: Ano 2, n. 4, julho 1996.
131

seu estabelecimento no Brasil, as principais casas de candomblé


sempre foram dirigidas por mulheres”108.

De fato, a pesquisa sobre a história das mães de santo no Brasil, confirma que
muitas delas se destacaram no desempenho de suas funções e, em determinados momentos
históricos, foram perseguidas e até presas pela polícia.
Como disse Mãe Beata num desses encontros de mulheres negras:

“Com toda a colonização, toda opressão, a nossa cultura não acabou.


Ela deixou uma Beata de Yemanjá, deixou uma Olga, Dona Senhora,
que eu muito admiro, Dona Stella, deixou uma Menininha do Gantois;
tudo isso são forças que não se deixaram dominar, e esta cultura esta
aí.”

Ainda segundo Jorge Carneiro,

“As mulheres negras são as principais responsáveis pela preservação


e transmissão dos valores culturais negros expressos nas religiões
afro-brasileiras e, por isso, o movimento de mulheres e a teoria
feminista não podem
ser completos se não resgatar todo histórico destas “detentoras de
Axé”.

Enfim, o exemplo que ele dá é a figura de Iyá Naso Oka, primeira Mãe de Santo do
Brasil, que segundo Jorge, teve um papel decisivo na luta dos afrodescendentes.
Mas, em relação a uma discussão mais sistemática sobre a construção de
associações entre luta feminista e o papel da mulher na “cosmologia candomblecista”, e sua
divulgação no PT, foi Lúcia que mais explicitou essa discussão.

108 CARNEIRO, J. Ibidem, 1995, pp 5.


132

Citando um ITÃ109, Lúcia compara Oxum e as iabás, como um exemplo de


feministas. Essa história foi reproduzida num texto feito por ela para o Coletivo de
Combate ao Racismo do PT-NI, com o título “Universo feminino na tradição dos orixás”, e
discutida no debate, também no PT-NI, no dia 10 de março de 1999, sobre “O Universo
feminino na tradição dos orixás”. Esse debate fazia parte dos eventos do partido, em
comemoração ao dia internacional de luta das mulheres – o 8 de março. Vejam o que ela
escreveu no texto:

“Já de algum tempo, tornaram-se quase freqüentes as discussões


no interior do partido, com belíssimas intervenções sobre a questão
do papel da mulher na sociedade: o papel ocupado e o papel
desejado. As vezes fico me perguntando se não devíamos, de forma
profunda, Ter um olhar dirigido com a simplicidade da curiosidade
dos que procuram algo além. Dirigir um olhar para as culturas dos
candomblés, onde mulher ocupa o espaço de cidadã plena, espaço
este que consta dos primórdios de nossa existência de fé, e isto pode
ser constatado através de relatos da história dos orixás, quando
Obatalá ( força masculina ) e Oduduá ( força feminina ), dividem
entre si o ato de criação do mundo. Podemos nos deleitar nas
narrativas sobre o poder de Oxum, orixá da beleza, protetora do
útero, mas que não resume seu poder à esfera destes dotes,
secularmente aliado à figura feminina de mulher frágil. Oxum nos
mostra o poder da mulher geradora e participativa(...). (...) se
pararmos para observar a atuação das sacerdotisas das religiões
afro-brasileiras, encontraremos comunidades de terreiro sendo
dirigidas pelas chamadas mães de santo, mulheres que aglutinam em
torno de si todo o coletivo religioso e que acumulam não só o papel
de zeladora espiritual, mas que também são conselheiras, confidentes,
verdadeiras líderes comunitárias, que tem sua voz ouvida e respeitada

109 Aquele citado no ponto 2 deste capítulo


133

influenciando o grupo, sendo que este exercício de poder se dá sem


autoritarismo, já que uma casa de santo gira em torno das tradições
legadas a nós por nossos ancestrais(...)”.
“Precisamos estar atentos à esta parte da cultura do povo negro, pois
na simplicidade da tradição oral, nossos ancestrais nos deixaram
diversas lições de vida, concretizados nas práticas das comunidades
de terreiro, que com certeza, quem leu um pouco sobre humanismo,
feminismo ou socialismo, pode entender perfeitamente, e os que não
leram, mas convivem em uma casa de Axé, praticam por princípio de
fé”.

Entretanto, encontram-se por exemplo, no terreiro de Jorge Carneiro e Mãe Beata,


divisões de tarefas comuns aos papéis impostos para homens e mulheres. Ou seja, as
mulheres em alguns rituais fazem tarefas culinárias, enquanto os homens, outras tarefas que
exigem a força física.
Apesar das mulheres serem a maioria numericamente, elas ainda se restringem às
tarefas domésticas, porém como já foi dito, isso não inibe os militantes de recriarem um
suposta igualdade de gênero no candomblé.
Na verdade, se existem divisões de tarefas dentro dos terreiros, o que os militantes
teorizam é o fato de as mulheres serem maioria e comandarem os principais terreiros
existentes. Segundo eles, ser “dirigente de um terreiro não é uma tarefa fácil”, por isso,
ocorre a invenção de uma analogia entre feminismo e o papel da mulher no candomblé.
Mas, o curioso é que no terreiro de Mãe Beata, apesar dela ser a dirigente, só os
homens fazem todas as funções rituais e cotidianas, as quais, na sociedade mais abrangente,
as mulheres não fazem. Ou seja, se reproduz o que existe na sociedade machista; os
rigorosos papéis de homens e mulheres.
134

4.5 – Crítica à prática das esquerdas

Nos pontos anteriores acreditamos ter ficado claro como os militantes operam a
reinterpretação de elementos religiosos e as construções de identidade, baseadas em
algumas formas de apropriação política, da chamada cultural tradicional. Entretanto, para
entender melhor essas reinterpretações, é necessário identificar com quem eles estão
dialogando e com quem estão se diferenciando.
Stuart Hall, discutindo a noção de identidade na globalização, afirma que:

“Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o


sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é
automática, mas pode ser ganhada ou perdida. (...) Esse processo é,
as vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de
identidade para uma política de diferença”.110

A redefinição do conceito de Axé, a reinterpretação-invenção das histórias dos


orixás e a politização do papel da mulher no candomblé, ilustraram a política de identidade,
construída pelos militantes, mas além disso, na verdade, esta política dialoga diretamente
com a militância petista, na qual eles fazem questão de se diferenciarem.
Escrevendo sobre o candomblé, em fevereiro de 1999, Jorge Carneiro afirmava:

“Os elementos apontados acima representam um pouco do que o


nosso povo é capaz na construção de um projeto alternativo do povo
negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional.
Em vários momentos podemos identificar essa intenção tais como:
Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A
revolta dos Búzios, as comunidades de terreiro, as escolas de Samba,
os Afoxés, a capoeira, etc.

110 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. Pp. 14.
135

A esquerda no Brasil está desafiada a conhecer o seu povo e a sua


história, em particular a história e a trajetória dos afrodescendentes
no Brasil.
A gente só tem capacidade de transformar aquilo que conhece. De
certa forma a esquerda brasileira reproduz o preconceito, o
estereótipo, a discriminação em relação ao povo negro. Acreditamos
que essa relação se dá muito em função de um condicionamento
ideológico.
Mesmo estando na esquerda e acreditando no socialismo muitos dos
nossos companheiros adotam posturas e comportamentos que
reproduzem a ideologia racista entre nós. São questões sérias para
serem debatidas entre nós, isto é, no conjunto da esquerda.
Outra crítica que fazemos a esquerda e o seu condicionamento e de
certa forma a sua visão prisioneira em relação ao eurocentrismo.
Com isso desqualificando toda e qualquer contribuição na luta pelo
fim das opressões.
A esquerda nunca deu a devida importância a luta do povo negro
em nosso pais e as formas de como essas lutas se processaram. As
vezes tem a mesma visão da ideologia dominante achando que somos
fundamentalmente um grande elemento folclórico.
Não percebem que na nossa perspectiva fazemos a nossa luta
cantando, sambando, batendo tambor, fazendo poesia, seduzindo,
sobretudo através do corpo. É outra forma de fazer política e
acreditar na transformação geral da sociedade.
Fica a crítica e o questionamento a esquerda e gostaríamos de
refletir essas questões com o conjunto da esquerda até porque
também fazemos parte dela e somos revolucionários.”111

111 CARNEIRO, J. Filhos de Zumbi, Filhos de Yia Nasso. 1999. Mimeo. Pp. 2.
136

No III encontro de Negros e negras do PT-RJ, em 21 de junho de 1997, Jorge


Carneiro fez a seguinte intervenção:

“A esquerda também reproduz muito a ideologia e a visão de mundo


do dominador e, quando o vereador Gilberto Palmares112 falou da
questão das religiões afros, temos que lembrar que o PT também
tratou a relação com a comunidade afro de forma desrespeitosa,
preconceituosa e discriminante. Neste sentido, nós do PT,
reproduzimos muito o que a burguesia coloca. Por isso nós temos que
pensar nesses aspectos (...)
(...) precisamos conhecer nossa história, penso que o exemplo das
religiões afro, que as mães de santo deram e dão, na construção de
identidades, mantendo ainda uma cultura viva no Brasil, deve ser
pensada pela esquerda brasileira.”

Jorge Carneiro quando fala da pratica discriminadora do PT, cita o evento realizado
na campanha presidencial de 1994, quando setores do partido, ligados a Benedita da Silva,
não concordaram em realizar um diálogo entre o presidenciável Lula e uma comunidade de
terreiro na Baixada Fluminense.
Vejam o relato de um dirigente do PT (Augusto Tadeu – amigo de Jorge Carneiro)
sobre essa polemica na coordenação de campanha de 1994:

“Durante a campanha de Lula e Bittar, minha esposa Leila,


participava da coordenação regional da campanha, ali os membros
discutiam a agenda de Lula no RJ. Numa
destas reuniões, começaram a discutir e programar as visitas que
Lula deveria fazer aos bispos e pastores das igrejas. Foi então que
Leila fez uma intervenção dizendo que existiam militantes importantes
que pertenciam ao candomblé. Propondo assim uma visita também
137

num terreiro. Porém o setor representado por Benedita da Silva


argumentou que era danoso para a campanha esta visita, porque
poderia tirar voto de outras religiões a Lula. Foi então que explodiu
uma grande polêmica: de um lado Leila, eu, Jorge e Ivanir que
dizíamos que a campanha não seria prejudicada por este motivo, mas
que se usássemos este argumento, seria um claro sinal de preconceito
racial e religioso. Do outro lado Benedita da Silva e seus assessores
argumentavam, que os pastores retirariam seus apoios a Lula. Ao
final de uma grande discussão que se alongou até às 3 da manhã,
venceu a proposta de fazer um evento também num terreiro de
candomblé."

Mas a crítica mais contundente vem de um artigo de Jorge Carneiro, O Samba de


Roda e a militância Socialista, escrito em julho de 1998:

“ (...) a esquerda, na sua maioria, não considera relevante também a


questão negra e étnica, pois afirma que a prioridade é o confronto
entre as classes sociais. Sem contar o fato de que a maioria
esmagadora dos cursos de formação política, iniciam a “história da
esquerda no Brasil” a partir do início do século XX, esquecendo todo
o patrimônio de lutas e resistência do povo negro escravizado contra
a política colonialista do capitalismo em ascensão .
Na verdade, quando se afirma isto ou quando se realizam estes
cursos, conclui-se que, com o desaparecimento da opressão de classe,
desaparecem consequentemente as outras opressões (de gênero, de
raça, de geração e de opção sexual). Isto demonstra a incapacidade
da esquerda de entender que a burguesia exercita a sua hegemonia
além da dimensão de classe. A esquerda não compreende que a
discriminação racial, de opção sexual, de geração e de gênero,

112 Vereador do PT na cidade do Rio de Janeiro.


138

sociológica e antropologicamente, não é causada pela simples


dominação econômica de classe.”

Esse texto faz referências à cultura negra, à religiosidade, seu potencial


transformador e baseado em princípios “radicalmente democráticos”.113
O que está em discussão, nestas declarações, são as formas nas quais se negociam
com a adversidade, para obter ganhos políticos, modelando ao mesmo tempo uma
identidade.
Não é por acaso que Jorge Carneiro afirma que “A esquerda no Brasil está
desafiada a conhecer o seu povo e a sua história, em particular a história e a trajetória dos
afrodescendentes no Brasil”, pois o que ele coloca é a afirmação de sua diversidade para
uma crítica ao “eurocentrismo” do conjunto da esquerda. Ou seja, cria uma política de
diferença, afirmando que “bater tambor” é “outra forma de fazer política”.
Ao se levar em conta que o Movimento Negro tem como tradição erigir e inventar
símbolos de luta anti-racista e de resistência negra no Brasil, aqui se opera uma verdadeira
reconstrução de símbolos sobre símbolos, construídos pelos africanos e seus descendentes
no Brasil.
O contato cultural entre esses militantes e suas condições de iniciados ao candomblé
revela aquilo que M. Canevacci afirma: “o contexto do contato cultural deve ser
caracterizado pela reinterpretação ativa, pelas recombinações desconcertantes e pelas
revitalizações móveis”.114
Enfim, as associações construídas vão no sentido, para esses militantes, de produzir
novas elaborações políticas. Resgatando uma tradição para legitimar um perfil de militância
socialista, eles entram em contradição com o K. Marx de 18 brumário, quando diz que “a
tradição de todas as gerações mortas só oprime o cérebro dos vivos”115. Não deve perder
de vista que Marx é também a referência identitária de Jorge Carneiro.

113 CARNEIRO, J. Samba de Roda e a Militância Socialista. Rio de Janeiro: 1999, Mimeo.
114 CANEVACCI, M. ibidem. 1995. Pp. 11.
115 MARX, K. “O 18 Brumário de Luiz Bonaparte”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Textos. Vol. 3, São Paulo: Alfa-
ômega, 1975. Pp. 198.
139

Em relação aos outros militantes, eles não fazem a mesma crítica contundente de
Jorge, entretanto voltado-se as declarações de PC e Lúcia constata-se que no texto sobre a
“Falta de Axé no PT assinado pelos dois, há críticas semelhantes as de Jorge.
Na verdade, o que eles realizam é uma tentativa de construir espaços e poder de
influência sobre outros petistas, pois não possuem os recursos tradicionais que a esquerda
tem (conhecimento teórico do marxismo, leituras permanentes de autores socialistas,
linguagem rebuscada e saber acadêmico).
Isso se evidencia na trajetória dos três militantes, pois jamais fizeram cursos de
formação política no PT, entraram no partido lendo somente as resoluções dos encontros e
o estatuto e, eles não têm o hábito de escrever documentos teóricos sobre construção
partidária ou conjuntura nacional.
Entretanto, a utilização de traços culturais do candomblé, não serve somente por
causa dos poucos espaços, que os militantes possuem dentro do PT, mas também das
manifestações de racismo que sofrem dentro do partido.
No início desse tópico, falou-se da noção de identidade que se transforma de acordo
com a forma que o sujeito é interpelado ou representado. Os militantes aqui investigados,
constroem uma política de diferença justamente por causa das discriminações que ocorrem
sobre eles.
Quando Jorge Carneiro, Lúcia e PC afirmam no documento, “Falta Axé na Política
Petista”, que o Axé é uma concepção coletiva, que constrói solidariedade de grupo, e, além
disso, que no candomblé “não existe o princípio da exclusão, não se acumulam bens e sim
pessoas e que, aqui está o conflito com o padrão dominante”, eles estão se contrapondo ao
que observamos no dia a dia de suas militâncias: a falta de espaços políticos pelo fato de
serem negros(as).
Jorge Carneiro reclama por diversas vezes em reuniões do PT, na Secretaria de
Combate ao Racismo, que suas discussões sobre negros e negras, em sua tendência, a DS,
nunca é discutida. Mostra que em vários documentos para os encontros do PT, não se
escreve nenhuma linha sobre a questão racial, que por várias vezes nunca foi chamado para
discutir com a DS a questão racial.
140

Com PC ocorrem fatos semelhantes. Ele relata que no mandato de Jurema Batista,
só era chamado para discutir a questão racial para escrever um panfleto ou outro de
campanha eleitoral, e nunca para discussões de conjuntura política, construção partidária e
outros. Ele se sentia usado e não valorizado, enquanto militante do PT.
No caso de Lúcia, ocorreram dois fatos singulares. O Primeiro foi quando propôs ao
partido investir financeiramente no coletivo municipal do PT de combate ao racismo, de
Nova Iguaçu, a direção do Partido negou ajuda, entretanto, alguns meses depois, quando o
vereador Carlos Ferreira, do PT-NI, propôs que o partido investisse financeiramente numa
festa de lançamento do núcleo de evangélicos do PT, a direção liberou a verba. Lúcia conta
que ficou muito indignada. Afirma que esse fato para ela demonstrou a discriminação e o
racismo que sofre, tanto ela como seus parceiros, na questão racial. O segundo fato foi mais
grave. No ano de 1999 ela foi estuprada quando se encaminhava para uma reunião do PT de
Nova Iguaçu. Desesperada se dirigiu a sede do Partido para pedir ajuda mas não obteve
nenhum apoio de companheiros que achava que poderiam lhe dar uma assistência. Este fato
para ela demonstrou a falta de solidariedade dentro do PT local. Ela caracteriza isto como
racismo por que, segundo seu relato, outras mulheres do PT já sofreram agressões de seus
maridos e quando essas mesmas mulheres ( Brancas ) denunciaram ao Partido, isto foi
motivo de grandes discussões nas reuniões e de conseqüência foi acionada a comissão de
ética do partido para investigar os militantes agressores.
Portanto, quando se faz a crítica às esquerdas, os militantes tentam, de uma certa
forma, reagir com seus próprios recursos culturais, criando uma política de diferença, de
acordo com a forma como são interpelados.
Os espaços que não possuem dentro do PT provém, num certo sentido, de uma
discriminação racial.
Ou seja, dos lugares onde dominam recursos simbólicos – seus espaçõs religiosos –
eles os utilizam para reverter positivamente, à ocupação de mais espaços políticos dentro do
PT e na militância em geral. Nesses, seus companheiros de militância desconhecem a
“cosmologia” do candomblé, as “raízes” africanas e “milenares”, enfim o Axé.
A partir daqui, acreditam eles, é possível construir um movimento político, anti-
racista e socialista, que não os exclua.
141

4.6 – A busca das raízes africanas

Quando vimos a história de vida de Jorge Carneiro percebemos o desenvolvimento


de sua consciência racial. Jorge quando era jovem não se assumia enquanto negro, ao longo
de sua trajetória ele se inicia no candomblé e entra para o movimento negro, incorporando
um discurso e uma prática política que prioriza o movimento negro e a construção de sua
identidade racial.
Neste contexto ele cria uma diferenciação que, como vimos, produz uma dura crítica
a esquerda no qual participa, dentro e fora do PT. Mas essa crítica, ou produção de uma
política da diferença, expressa no seu artigo “Samba de roda e a militância socialista” vem
acompanhado de uma auto-afirmação como descendente de africano, herdeiro de uma
cultura original negra-africana. Atribuindo isto a sua identidade religiosa ele se identifica
com uma das teses expressas no congresso do MNU de 1998.
No capítulo três, quando ficaram evidentes aqueles quatro momentos que
permitiram contextualizar a construção das identidades dos militantes, afirmou-se que o
quarto momento - a elaboração de uma nova tática de luta anti-racista no MNU denominada
Raça e Território – era o mais elaborado, no sentido que aqui se observa nitidamente, o
esforço de alguns militantes construírem associações entre dois domínios socioculturais
diversos. Essas discussões, surgidas a partir de uma reorientação tática de uma entidade
negra em nível nacional, proporcionaram elementos relevantes de uma verdadeira
construção e reinvenção identitária.
Aqui será descrito ainda mais o significado dessas discussões, para a explicitação
dessas análises, que não se limita somente no território da investigação – o Rio de Janeiro,
mas toma dimensões inclusive nacionais.
A tese Raça e Território, lançada no XII congresso do MNU, criou uma profunda
polêmica dentro da entidade. Pois, como afirmam os defensores da tese:
142

“Mesmo nos EUA, e apesar das políticas afirmativas, a diferença


entre salário – hora de jovens negros e brancos, só vem aumentando
em favor dos jovens brancos. Até mesmo as políticas de quotas vem
sendo neutralizadas pelos efeitos da reestruturação produtiva no
mundo do trabalho”.116

Essa afirmação é uma crítica aberta a teoria Raça e Classe, que defende como tática
de luta anti-racista, a defesa das políticas de ação afirmativa. Por que:

“Não temos que fazer o mesmo movimento sindical, estudantil, de


moradia e outros, como fazem os brancos”... “O MNU hoje, não tem
mais como prioridade dar linha para organizar os negros nos
partidos, nos movimentos sociais. O MNU tem como prioridade
organizar o negro onde vive, construir suas formas organizativas,
construir o seu movimento e a partir daí interferir nos partidos, nos
movimentos sociais”.
“Nós negros-africanos temos que conquistar o nosso território. Onde
vivemos, onde criamos, onde trabalhamos, onde moramos, onde
produzimos, estudamos, oramos e brincamos. Não nos interessa
o

poder de direção que um militante exerce num determinado espaço,


mas sobre qual projeto ele está centralizado. Qual a sua visão de
mundo? Quais são suas prioridades? Quem são seus aliados?”

Segundo José Carlos dos Anjos117, angolano e militante do MNU, essa proposta de
políticas para MNU, “se baseia em análises históricas da condição dos africanos e
descendentes de africanos na diáspora”.

116 Tese apresentada no VI Encontro Nacional de Negras e negros/PT, ibidem, 1999, mimeo. Pp. 7.
117 Doutor em Antropologia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Sul.
143

Pois, quando do início do processo de colonização da África, segundo José Carlos, o


“branco europeu interrompeu um processo civilizatório, a existência de comunidades
autônomas africanas”118. E, segundo os defensores da tese, a resistência dos “negros na
diáspora” demonstrou todo um esforço de reterritorialização de seu ser africano, suas
culturas e cosmologias. Eles dão exemplo disso, reafirmando a história dos quilombos, dos
candomblés, etc.
A política anti-racista, dos defensores dessa tese, os leva a construir, fortalecer e
incentivar a criação de espaços e territórios de resistência, dando continuidade ao processo
civilizatório interrompido pelos europeus e reafirmando sua autonomia enquanto grupo
diferenciado.
Essas elaborações influenciaram Jorge Carneiro e Lúcia Barros. Entretanto, vários
militantes de outros estados e militantes do MNU, começaram um relacionamento político
com esses dois militantes do RJ. Alguns deles, que se encontram em MG, RS, SP e BA,
estão divulgando os textos e documentos de Jorge Carneiro, convidando-o para eventos e
ajudando a construir uma tese para o próximo congresso do MNU.
É nesse movimento que se identifica a construção das associações entre utopia
socialista e o candomblé – “que tem matrizes africanas”. Pois, vejamos o que afirmou um
militante do PT de SP, que é ogâ de Ogum, amigo de Jorge Carneiro, no encontro de
formação política da DS, em fevereiro de 1999:

“As comunidades de terreiro são territórios não institucionalizados,


espaços fora da lógica dominante capitalista e, portanto, referências
de resistência, luta e modelo de uma nova sociedade”.

Jorge Carneiro escreveu, na época, uma posição semelhante, que teve a


concordância de militantes do RS e MG – que também são iniciados:

“A construção do socialismo no Brasil passa também pelo projeto


político do povo negro que, sem dúvida alguma leva em consideração

118 Kilombo. Ibidem. 1998, Pp. 7.


144

a importância dos aspectos pluriétnicos e multicultural de nosso povo.


A defesa dessas culturas [ citando explicitamente o candomblé ], a
valorização de sua visão de mundo, da auto-estima afrodescendente,
pode se caracterizar inclusive como um dos pontos principais do
programa estratégico da esquerda. Pois estas bandeiras são
incompatíveis com a estrutura ideológica, política e social, de
exclusão, dominante no Brasil.”119

O que nos chama atenção é o fato de inventarem novas noções no Movimento


Negro: “negro na diáspora” ou “negros africanos na diáspora”.
Não é novidade o fato de o Movimento Negro reivindicar uma raiz para construir
uma “política da diferença”. Não é novidade também em termos de análise da história do
candomblé.
Dantas, analisando a construção social da pureza nagô, afirma que: “(...) a África
conota não apenas a idéia de terra mãe, mas também se constitui num ponto de referência
e identidade.” “(...) o mito de africanidade, na medida em que o texto apresentado como
um simples discurso sobre o passado termina agindo sobre ele, operando reconstruções,
evocando identidades, realizando enfim um trabalho de produção de sentido que visa
legitimar ações do presente. Essa legitimação pela África se torna possível na medida em
que existe na sociedade mais ampla um espaço em que o africano é valorizado”.120
Porém, mais do que isso, o Movimento Negro reinventa uma África no Brasil, a dita
africanização que primeiro foi promovida pelo contato continuado com africanos
(principalmente estudantes que, a partir da década de 70, vêm fazer sua formação no Brasil
e aqui redescobrem a importância das crenças nas divindades de seus ancestrais) e depois,
pelo processo de de-sincretização, promovido por algumas sacerdotisas dos candomblés da
Bahia.

119 CARNEIRO, J. idem. 1999. Pp. 3.


120 DANTAS, B.G. ibidem. 1988. Pp. 200.
145

Mas essa busca de uma raiz africana tem características discursivas curiosas. Uma
delas é a construção – feita também nos terreiros de candomblé desses militantes, por uma
série de iniciados – do conceito de ancestralidade.
Esta ressignificação de uma origem, para esses militantes, significa a construção de
uma nova cidadania para “o povo negro” e uma associação com a luta pelo socialismo. Pois
como afirma Jorge Carneiro:

“O medo da cultura negra na verdade representa o medo de uma


concepção que prega a autonomia, em que o Orí ( cabeça ) é o mais
importante. O candomblé é fundamentalmente um culto à cabeça,
voltado para o desenvolvimento pleno da pessoa, é autoconhecimento,
e a ideologia dominante não educa nesta perspectiva. O Borí (
alimentar a cabeça ) é um ritual importante que significa o
desenvolvimento do Axé, é alimentar as próprias energias. Axé, a
força vital que move o mundo. Desenvolver o Axé é sobretudo pensar
em coletividade, contrapondo-se à visão capitalista que prega o
individualismo, a competição.
Os iniciados ao candomblé são extensão da família africana no
Brasil. Na iniciação se passa a fazer parte dessa família, que na sua
concepção é extensiva, não tem preconceito, propiciando a
construção de uma identidade que pode ser partilhada por negros e
brancos de qualquer origem e, pelo processo iniciático todos tornam-
se irmãos, ao introjetarem os mesmos padrões simbólicos.
Os terreiros representam espaços de liberdade, territórios não
institucionalizados pela lógica sociocultural dominante. São
comunidades que tomam a forma simbólica africana, mantendo vários
aspectos da cultura Nagô com o culto aos Orixás ( forças da
natureza ) e o culto dos Egúns ( antepassados ). No Brasil esta
estrutura foi sintetizada e reelaborada”.
146

Ao mesmo tempo em que se reconhece a reelaboração dos cultos africanos no


Brasil, se afirma que o “candomblé é a extensão da família africana no Brasil”.
Ao mesmo tempo em que se critica os padrões preconceituosos da esquerda para
com os negros e “suas culturas” – como vimos no ponto anterior – eles reinventam
concepções políticas a partir de uma dimensão religiosa. Ou seja, os militantes empregam
velhos esquemas, velhas imagens, que todavia no novo contexto, se revestem de um diverso
significado estratégico.
Reafirmar a noção de “negros africanos na diáspora” e daí conectá-lo a sua
religiosidade, é utilizar “a África como um banco de símbolos, sacados de forma criativa”.
121 Abandonando os discursos ressentidos da “raça negra”, no sentido de lamentação da
condição de oprimido, para afirmar uma identidade autônoma, com outra história, outra
origem civilizacional.
Tradição aqui significa ao pé da letra, um espaço para irradiação de uma suposta
africanidade. A noção de tradicionalismo construída pelos militantes vai ao encontro do que
Hobsbawm e Ranger122 afirmam sobre o conceito de tradição, ou seja, elas são
reinventadas, tem um caráter fictício, é uma resposta a situações novas que assumem
formas, fazendo referência em algum aspecto do passado numa estrutura imóvel e imutável.
Aqui se constroem outras significações políticas e religiosas, pois, no tempo, já não
existe uma tradição, e no espaço, já não se está na África. Ou seja, uma ressignificação no
tempo e no espaço. Modernidade e tradição aqui se interagem em pólos dinâmicos de
elaboração e invenção cultural.
Das características de cada militante investigado, percebe-se que as invenções
identitárias são úteis para a formação de espaços diferenciados de sociabilidade. Ou seja,
para enfrentar o preconceito racial, o isolamento político e religioso e a disputa no mercado
religioso, eles precisam se afirmar diversos, criar o novo, usar recursos não tradicionais,
tanto na esquerda militante quanto no campo religioso afro-brasileiro.

121 SANSONE, L. O local e o global na afro-Bahia contemporânea Trabalho apresentado na XVIII Reunião anual da
Anpocs, GT. Relações Raciais e identidade étnica. Caxambu: 23-27 de novembro 1994.
122 HOBSBAWM, E.J. & RANGER, T. ibidem. 1983.
147

Isso se revela, como já foi confirmado, no uso de traços culturais, cuja semelhança
com congêneres africanos é apresentada, como prova de legitimidade política na luta contra
o racismo, e até na luta pelo socialismo.
Em nível ideológico, se apresenta uma africanidade como modelo de culto de
resistência, no qual os valores ditos oriundos da África permitem uma forma alternativa de
ser, com sinal distintivo de se socializar, de fazer política revolucionária.
Por outro lado, a noção de etnia é manipulada pelos militantes que, movidos por
interesses pessoais, buscam um espaço próprio e esboça uma resistência e uma nova forma
de atuação política e religiosa.
Se a noção de etnicidade é relacional, ela assim construída, torna-se operativa em
face da presença de outros, nos quais os militantes disputarão fiéis (Mãe Beata) ou outros
militantes para suas posições políticas (PC, Jorge Carneiro e Lúcia).
Aqui se evidencia um outro elemento, que está por trás das elaborações dos
militantes; a necessidade de adquirir mais poder de influência fora da linguagem e das
estruturas convencionais da esquerda petista.
Aproveitando-se da crise geral de referência das esquerdas, os militantes tentam
capitalizar influências, realizando determinados recortes culturais de forma seletiva. Nem
tudo é socialista e libertário no candomblé, mas somente alguns elementos. Aproveitam-se
do discurso feminista e inventam analogias e associações com o papel da mulher no
candomblé; na verdade, não é por esse papel, mas pelo fato de, por serem maioria,
realizarem tarefas e funções específicas de homens na sociedade mais abrangente.
Aproveitando-se do discurso ecológico eles operam a mesma elaboração. Com relação às
histórias de orixás, inventam-se e manipulam-se os mitos como recurso político de
referência.
Esses recortes não são por acaso, mas obedecem a uma lógica de um contexto
histórico, pois se não fosse assim, a hierarquia seria também alvo de invenções de
associações e não simplesmente de discurso defensivo quando questionados.
Essa lógica se encontra justamente nas atuais debilidades das esquerdas, nos seus
atuais pontos fracos: a prática da democracia, a falta de referenciais míticos e a emergência
de novos temas no interior da esquerda classista (o feminismo e o ecologismo). Pois, o
148

discurso da classe operária não seria mais abrangente no sentido de explicar todas as formas
de opressão existentes.
Com esses recortes seletivos, a “cosmologia africana” se transforma em linguagem
de autoridade de uma política dentro do PT e do candomblé, para conquistarem mais poder
de influência. Por outro lado, nas suas condições de negros, valorizar a África seria uma
tentativa de escamotear e combater o preconceito racial, escondendo-se sob o manto da
glorificação do africano, tornando esses militantes, sujeitos de sua história.
Dantas123, afirma que a exaltação da África foi uma produção intelectual, onde o
objetivo era tornar o trabalho intelectual mais popular e os afro-brasileiros mais respeitados
pelos poderes constituídos. Para isto, era necessário criar uma certa exaltação do exotismo
africano, dando-o maior valor na sociedade, maior autoridade política.
No caso dos militantes investigados, de forma semelhante, ou seja, através de uma
produção intelectualizada, exaltar a África é propor também uma alternativa à crise das
esquerdas e um combate ao racismo e ao capitalismo, conjugados, é claro, com seus
interesses pessoais.
A religiosidade politizada, através da linguagem, oculta a falta de expressão política
que esses militantes têm, a ausência dos recursos ( discursos com citações de teóricos
marxistas, formação política, acesso a leituras, etc. ) da esquerda convencional e, no caso
de Mãe Beata, se encobre o fato do terreiro dela ser menos antigo nas disputas do mercado
religioso do Estado.
Jorge, PC e Lúcia deram evidências sobre isso. O primeiro (Jorge) procura, através
da sua religiosidade, conquistar um espaço político dentro do PT e de sua tendência.
Percebe-se que seus textos são construções de linguagens pouco comuns na esquerda
tradicional, daí, podendo resultar, numa credibilidade e conquista de espaço, que somente
os intelectuais do PT teriam. Jorge tenta se afirmar como o intelectual desse “novo
movimento”, usando inclusive, sua condição de futuro Pai de Santo.
O segundo (PC), tendo uma vida marcada pelo preconceito racial, vai seguindo e
imitando a trajetória de Jorge, entretanto, sua meta seria muito mais o reconhecimento no
MNU e no PT do que ser um intelectual e, além disso, ao contrário do que foi sua vida
149

pessoal, PC tem necessidade de se afirmar pessoalmente perante seus irmãos de santo e


perante seus companheiros do MNU. Seu movimento inicial para tal fim, foi quando sai da
Umbanda e entra para o Candomblé.
A terceira (Lúcia), com uma vida marcada por uma atuação política independente de
grupos, tenta conquistar espaços de poder dentro do PT e do Candomblé, tenta influenciar
pessoas para suas idéias políticas e concepções religiosas. Seu objetivo é sair do isolamento
em que se encontra, tanto em nível pessoal quanto político. Não excluindo aqui o fato de
também querer se afirmar como faz PC.
Por último Mãe Beata, a qual utilizando-se de seu status de Mãe de Santo, tem por
finalidade construir seu nome como “a sacerdotisa de esquerda’, progressista, original,
diferente, exótica e que, por isso, consegue arregimentar muitos fiéis nas disputas do
mercado religioso afro-brasileiro.
Se essas motivações pessoais podem caracterizar aparentemente um movimento
político novo, isso é uma questão em aberto. O fato é que pode-se identificar, com o que foi
e está sendo realizado até hoje, um embrião em crescimento, um grupo de pessoas (ainda
não constituídos enquanto tal) que não obtendo os recursos tradicionais da política de
esquerda (capital teórico, leituras acadêmicas, discursos rebuscados, etc.), constroem de
fato uma tentativa de construção de novas identidades coletivas, novos meios de combater o
racismo, a intolerância religiosa e o capitalismo.
Enfim, as associações construídas pelos militantes conduzem à análise de que as
noções de identidade não significam a essência de um objeto, dependem ao contrário, das
decisões. A identidade é um fato de decisão. E sendo assim, ocorre abandonar a visão
essencialista e fixa de identidade. Principalmente, como vimos em M. Agier e S. Hall, no
contexto da globalização
Nesta ótica, as identidades não existem, mas sim formas diversas de organizar o
conceito de identidade. Dito em outros termos, a identidade é sempre de qualquer modo,
construída ou inventada. Na visão essencialista, a identidade é garantida na existência
preventiva da estrutura e dos confins dos objetos: estruturas e confins estão ali, atrás de

123 DANTAS, B. G. Ibidem. 1988.


150

aparências eventualmente enganáveis e, adotando oportunas formas de pesquisas, podem


ser vistas, ilustradas, indicadas.
Ao contrário dessa concepção, percebe-se que as identidades, longe de ser um
estrato rochoso, ela é construída, em boa parte, com lacunas, buracos, de indeterminações e
de potencialidades. Somente assim pode-se entender o processo de construção, associações
expostas teoricamente por Agier, Shalins e Clifford.
Essas associações demonstram que as identidades não são garantidas a partir de uma
base previamente determinada. Um exemplo disso é que na hipótese de se pensar as
identidades de forma essencialista, não se compreenderia o porquê de Mãe Beata utilizar a
escrita e métodos proselitistas não-tradicionais nas culturas afro-brasileiras.
O que ela inaugura, significa o rompimento com uma prática social comum entre os
terreiros de candomblé, de manter uma tradição oral. Para Mãe Beata, escrever um livro
significa também “fazer expandir o Axé” sem perder de vista as práticas da oralidade.
Mãe Beata não pode se fixar nas tradições, pois pode se arriscar à perda de espaço
religioso e político, em meio às disputas no mercado religioso de seu território geográfico.
Poderia, inclusive, perder a legitimidade enquanto Mãe de Santo. Ela percebe que a
tradição precisa se adaptar à modernidade, isso é, às disputas políticas de sobrevivência
religiosa.
151

Conclusões

No início deste trabalho indaguei a respeito do olhar do conjunto da esquerda – em


especial dos militantes do PT – a respeito do fenômeno religioso frente às lutas contra as
opressões e pela cidadania.
Percebeu-se uma naturalização de opiniões no que diz respeito à Teologia da
Libertação e uma resistência em compreender outras matizes religiosas que, através das
reelaborações de alguns militantes, tentam se colocar num mesmo patamar de discussão dos
teólogos da libertação.
Porém, a tarefa de leitura destes militantes socialistas e candomblecistas, que tentam
elaborar novas identidades, não é uma tarefa fácil. Aqui se entrelaçam noções e processos
históricos muito complexos. Observou-se, nesses militantes, que as práticas identitárias,
culturais, religiosas e políticas e seus conteúdos, passam por reelaborações e adaptações
frente a um novo contexto histórico de crise da esquerda brasileira.
A politização da religiosidade e pertencimento étnico, a ideologização de traços
culturais tradicionais se processam no momento em que a globalização tenta moldar todos
num mesmo padrão. As identidades viram fluxos contínuos de mudanças, não se encontram
paradas no estacionamento da história.
O que ocorre é um movimento em construção, portador de conflitos, contradições e
lutas pela afirmação do novo. Ou seja, ao mesmo tempo em que se tenta resgatar um tempo
mítico, inventando uma associação com um futuro socialista, se percebe que nem todos os
parceiros do espaço religioso e político desses militantes, aderem a esse “novo” em
construção.
A concepção de Axé, por exemplo, nesses militantes é também uma aposta, em que
se lança ao possível e não somente o reforço e a manutenção de uma tradição. Isso
demonstra que as generalizações realizadas por alguns estudos sócio-antropológicos, de
separar os domínios religiosos e políticos, caem por terra, na medida em que alguns
militantes afirmam a existência da noção de Axé, como ponto de contradição com o
capitalismo.
152

A utopia socialista e os supostos modelos míticos de “origem africana”, são


modelos conjugados e afins, que inspiram um discurso e uma prática em direção ao futuro.
Como foi dito, os militantes não obtendo todos os recursos que a modernidade oferece para
criticá-la, utilizam-se de recursos ditos tradicionais para a crítica da modernidade.
Para tal empreendimento, ainda em construção, eles elaboram um terreno comum
entre fé religiosa e a política e, por que não dizer, fé utópica. Ou por que não dizer ainda,
uma tentativa de reencantar as práticas políticas da esquerda com uma invenção mítico-
religiosa. Reapropriação moderna de uma tradição significa aqui o retorno romântico a um
tempo que se foi, para construir o que está por vir.
Acompanhando o processo histórico, esses militantes abandonam o discurso
ressentido da “raça negra” para inventar e abraçar uma identidade étnico-cultural de luta
por direitos e de constituição de direitos.
Aqui também, o marxismo clássico, os temas socialistas, não servem de forma
purificada como inspirador dessas lutas. Mas sim Xangô, Ogum, Oxum, Exú, etc. São eles
os inspiradores. A tradição e a África são símbolos norteadores de projetos, de apostas. Mas
onde está a tradição desta África? Passados 500 anos, ela já não existe mais na África
contemporânea. É evidente que ela se encontra nas reinvenções destes militantes e do
movimento negro.
O que esses militantes afirmam é que a África, a ancestralidade, não se constitui
como um período ultrapassado da vida de um povo, mas uma forma permanente um faz-se,
desfaz-se e refaz-se. Ou então, eles mostram que os acontecimentos e histórias “originais”
africanas, são reorientados para a ação política que transmitem força e autoridade aos
acontecimentos atuais. Aqui, a reinvenção de mitos, tradições e práticas políticas são
destinadas a conduzir pensamentos e comportamentos para lidar com realidades modernas.
Assim, Oxum torna-se a grande feminista, o Axé portador e condutor de socialismo,
a relação do candomblé com a natureza inspiradora de lutas ecológicas, a africanidade uma
autoridade equivalente àquela européia e branca, o orixá portador de uma ética correta e,
por fim, essas reinvenções se chocam com os pensamentos “dogmáticos” dos parceiros nos
espaços políticos do PT. É interessante notar que estas reconstruções de mitos, tradições e
práticas tornam-se, para esses militantes, elas mesmas, novos mitos e novas tradições.
153

A partir daí pode-se afirmar que nenhum indivíduo ou sociedade nunca conseguiram
construir e manter a própria identidade sob uma forma de esfera compacta e inatacável. “A
bem redonda identidade”124 é uma miragem.
Se a identidade não é uma esfera compacta e imóvel, se ao invés a identidade é
continuamente negociada e, em primeiro lugar com o tempo, isso significa que os contínuos
processos de sua formação, formam também processos metabólicos, processos de
transformação e de alteração. Se ela é construída, se é uma “ficção”, se impõe a
necessidade de colher a lógica de como foi construída. Foi o que se tentou realizar no
terceiro capítulo.
É naquele contexto, de renovação política da esquerda, representada pelo PT, em
relação ao fenômeno da religiosidade, no crescimento do movimento negro e na maior
presença das comunidades de candomblé na sociedade brasileira, que permitiram o
surgimento dos militantes investigados. Apesar de não se proporem ainda enquanto um
coletivo compactamente organizado. Pois, como foi dito, existem reinterpretações
diferenciadas dependendo de suas várias modalidades de engajamento, lutas e conflitos
com parceiros iniciados ou não no Candomblé.
James Clifford, afirma que com a crise do colonialismo e o advento do
neocolonialismo, ocorre a emergência de uma pluralidade de sujeitos que querem assumir a
própria história e reafirmar a própria diferença em novos modos.
Contrariamente às previsões catastróficas projetadas pelos profetas da homologação
cultural e daqueles que choram a “destruição dos trópicos”125, o fim da autenticidade das
tradições, a perda de identidade e o fim das culturas e da história, a antropologia vê
delinear-se um contexto diverso, conflitual, no qual a formação incessante de novas
identidades, tradições justapostas e contaminações difusas, apresentam novas possibilidades
de existência.
Diz Clifford: “uma difusa condição de perda da centralidade num mundo de
distintos sistemas de significados”126. Para o Autor, a identidade coletiva hoje – ou seja, a

124 REMOTTI, F. Contro L’identitá. Roma: Laterza, 1996.


125 CANEVACCI, M. idem. 1995
126 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 198.
154

cultura – é “um processo inventado, híbrido e freqüentemente descontínuo”. “(...) a


identidade é conjuntural, não essencial”.127
M. Sahlins também é da mesma opinião, com outras palavras. Falando de um nativo
da Nova Guiné, Epeli Hau’ofa, que é também doutor em antropologia pela universidade
Nacional da Austrália, relata que os acadêmicos indígenas falam uma língua estrangeira,
enquanto as pessoas comuns se esforçam em adaptar seus discursos ancestrais à sua
situação corrente: “(...) ao excluir deliberadamente de qualquer discurso sério nossa
tradição em transformações, não levamos em conta o fato de que a maior parte das
pessoas ainda as usam e as adaptam como instrumentos de sobrevivência”128. Citando
Bonnemaison, Sahlins mostra que “hoje a identidade dos povos não emerge como uma
ruptura com o passado, mas como continuidade. No entanto não se trata de uma mera
repetição do passado; a mobilidade, mesmo circular, ampliou horizontes”.129
E finaliza: “a grande surpresa para os que vêem de fora, sem dúvida, é a
capacidade destas sociedades recriar à sua própria imagem a partir de um complexo de
diversos padrões conceituais e realidades político-econômicas”.130
Ou seja, para Sahlins, as culturas locais reapropriam de forma moderna as suas
tradições, inventando novos significados simbólicos. Essa reapropriação moderna, no caso
dos militantes investigados, opera a construção de novos símbolos, mitos, identidades,
práticas políticas, associações, etc. Eles representam uma tentativa de construir uma nova
prática militante e cultural dentro do PT e do candomblé.
Não é certo que poderão ter sucesso, pois os conflitos são variados. Entretanto, eles
revelam que as tentativas de compreensão dessas identidades fazem com que os estudos
sócio-antropológicos ainda tenham muitos caminhos pela frente. Isso obriga os estudiosos,
a se preocuparem sempre com sua atualização, diante dos novos e embaraçantes fenômenos
que surgirão no novo século.

127 CLIFFORD, J. ibidem, 1984. Pp. 198.


128 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 198.
129 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 102.
130 SAHLINS, M. ibidem. 1997. Pp. 103.
155

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não é um objeto em via de extinção” ( parte II). In: Mana. n. 3/2, 1997, pp. 41-150.

SANSONE, L. O local e o global na afro-Bahia contemporânea. Trabalho apresentado na


XVIII Reunião anual da ANPOCS, GT. “Relações Raciais e identidade étnica”. Caxambu:
23-27 de novembro 1994.

SANTOS, J. E. dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1976.

SILVERSTEIN, L. M. “Mãe de todo mundo – modos de sobrevivência nas comunidades de


candomblé da Bahia”. In: Religião e Sociedade. n. 4, 1979, pp. 21-39.
159

SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.

SOUSA JÚNIOR, V. C. de A cozinha, os orixás e os truques: entre a invenção e a


recriação onde o tempo não pára..., Trabalho apresentado no seminário temático ST03
"Os afro-brasileiros". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, São
Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998.

TRINDADE, L. “Exú, reinterpretações individualizadas de um mito”. In: Religião e


Sociedade. n. 8, 1982, pp.29-36.

Documentos Consultados:

CENARAB, Manifesto das tradições religiosas e culturais afro-brasileiras sobre meio


ambiente e cidadania, Rio de Janeiro: Junho de 1992, Fórum internacional de Ongs e
movimentos sociais – ECO 92, Mimeo.

CRIOLA, Cadernos. Encarte especial mulher negra yabá, Rio de Janeiro: Ano 2, n. 4,
julho 1996.

DOCUMENTOS DO INARAB. Rio de Janeiro: 1989, Mimeo.

ESTATUTOS DO CENARAB, Aprovado na 3° Assembléia Geral Extraordinária, São


Paulo: de 14 à 16 de Julho de 1995, mimeo.

ESTATUDOS do MNU. São Paulo: 1978, Mimeo.

KILOMBO – Um olhar do povo negro. Tese apresentada no XXII congresso do MNU.


Salvador: 1998, Mimeo.

PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções de encontros e congressos/ Org.:


Diretório Nacional do PT/Secretaria de Formação e Fundação Perseu Abramo/projeto
memória. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

RAÇA E CLASSE. Tese apresentada no XXII congresso do MNU. Salvador: 1998, mimeo.

RESOLUÇÕES DO 1º CONGRESSO DO PT. São Paulo, Publicação do Diretório


Nacional do PT, 1992.
160

Anexos

Anexo 1
Manifesto do PT em apoio à colocação da Escultura de Exú na Linha
amarela fev/2000
(Escrita pelo coletivo estadual de combate ao racismo do PT-RJ)

A QUEM INCOMODA EXÚ ?

Os leigos na religião dos Orixás imersos no simbolismo do mal, construídos pelas igrejas e pelos detentores do poder
durante a escravidão, diziam que Exú era princípio demoníaco da feitiçaria, da bruxaria e da maldade. Além disso, a
representação simbólica de Exú com chifres talvez possa ter influenciado, pelo ideário caricaturado das igrejas, a sua
identificação com o diabo. Esta representação, no entanto, é anterior à construção do Antigo Testamento, cujos livros
foram escritos após o Exílio do povo de Israel e que, com certeza, tiveram toda a influência dos símbolos e arquétipos
africanos.
O chifre tem o sentido originário de elevação e seu simbolismo é o poder: “farei germinar com chifre, um corno para
David”(Sl 132.17). Ele simboliza a força de Deus e evoca o prestígio da força vital (Axé), da vida inesgotável e das
grandes divindades da fecundidade.
Longe de ser o diabo, Exú é o princípio dinâmico de comunicação, da existência cósmica e humana. Ele possibilita que
as coisas venham a tornar plena a sua vida interior, responde pelo movimento da vida, introduzindo o acaso e a sorte no
destino dos homens e mulheres, rompendo os modelos conformistas do universo e nos levando a possibilidade
permanente de mudança.
Exú é a negação da negação. Ele nega os preconceituosos que negam o direito à diferença; e as instituições que negam o
direito à liberdade de expressão e pensamento; ele nega a sociedade onde o homem é inimigo do homem. Ele é rigoroso e
duro sem jamais perder a sua ternura.
Exú nos questiona constantemente a nos revelar que o mundo é produzido e que pode ser produzido de maneira diferente:
na visão de mundo de origem africana Exú é o mediador entre os deuses e os homens (o mesmo ocorre na cultura grega
com o deus Hermes) enfim, nos mostra a fragilidade das nossas tentativas de criar sistemas e estruturas definitivas onde
a vida fica limitada e sem horizonte.
Por analogia, Cristo também é avesso, como Exú, aos dogmas, preconceitos e autoritarismo que predominam as
instituições. Ele parte em busca do seu espírito de liberdade na festa do fogo, de Pentecostes, que como princípio
dinâmico continua a animar a vida dos homens e mulheres na liberdade, na ternura e na luta.
A polêmica que se instalou com a proposta da Lamsa – Empreiteira baiana que construiu a Linha Amarela – de colocar
um escultura de Exú na Linha Amarela, significa mais uma expressão do racismo e do preconceito religioso no Brasil.
A nossa Constituição, no Título II, Capítulo 1, Art. 5, P. VI, afirma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da Lei, a proteção aos locais de culto e
suas liturgias”. Além disso o Estado e suas instituições são de caráter Laico, isto é, não religioso.
Mas a realidade que se impõe é outra. Nas escolas, nos tribunais, nas sedes dos governos, existe somente a imagem de
Jesus Cristo Crucificado. Nunca se perguntou a quem não é cristão se concorda com este autoritarismo religioso. Algum
tempo atrás até nossas moedas tinham a escritura: “Deus seja louvado”. E se houvesse: “Axé Brasil !” ?
Portanto, quando o reitor da PUC, Padre Jesus Hortal afirma, que “Para mim, Exú não tem qualquer significado
religioso. Mas pode ofender as convicções de alguém”; ou quando os plesbiterianos afirmam, através de seu Pastor
161

Guilhermino Cunha, que “É uma agressão as outras crenças”, se esta confirmando que no Brasil ainda existe
intolerância, racismo e discriminação para com as pessoas que tem convicções diferentes das religiões dominantes.
Até mesmo quando uma leitora de O Dia propõe que cada religião deva doar uma obra de arte que ilustre sua crença
para acabar com a polêmica da Linha Amarela, criando assim uma suposta Linha Ecumênica, se está reforçando a
mesma intolerância religiosa. Pergunta-se: por que não fazemos então um Corcovado Ecumênico ?
A polêmica da Linha Amarela revela a continuidade da tentativa de destruição e desqualificação dos cultos de origem
africana. Os cultos dominantes, que destruíram as culturas africanas e indígenas em nome de Jesus Cristo, exterminaram
milhões de seres humanos.
Portanto, nós, militantes do PT, somos a favor da colocação da escultura de Exú na Linha Amarela. Pois esta dará
visibilidade a uma cultura milenar dos povos africanos e seus descendentes no Brasil. Cultura esta muito mais antiga que
os povos que deram origem ao cristianismo.
A escultura não representa uma agressão às pessoas de outras religiões, mas uma afirmação que no Brasil existem
diferenças culturais e religiosas, um princípio que nos orgulha muito, pois essa diversidade é enriquecedora.
Não podemos reviver situações de intolerância, preconceitos e discriminações como existiu na Europa nazista e fascista.
Somos um povo que cultua a democracia e a pluralidade cultural.
Nós do PT sempre criticamos a intolerância e o racismo, preservamos o que há de mais rico em nosso povo: a
democracia e o respeito pelas pessoas que pensam, oram, dançam, cantam e se vestem de forma diversa.

Axé Brasil !!!


Axé Rio de Janeiro !!!
Larôie Exú !!!

Secretaria Estadual de Combate ao Racismo PT-RJ

Anexo 2

Texto escrito por Jorge Carneiro para a Escola de formação da DS


Fev/1999

FILHOS DE ZUMBI, FILHOS DE IYA NASO OKA


Em respeito aos nossos ancestrais, nós afrodescendentes, temos a importante tarefa de dar continuidade à luta
histórica do povo negro em nosso país. Sabemos que não é uma luta fácil, sobretudo nesta conjuntura em que apontam-se
extremas dificuldades, em particular para o povo negro.
O neoliberalismo e a globalização acirram os níveis de desigualdades, miséria, extermínio, falta de perspectiva
de vida e exclusão de nossa gente.
Em um quadro histórico de extrema dificuldade, essa tem sido a condição dos negros nesses quase 500 anos de
trajetória no Brasil.
Chegamos ao nosso limite, não temos condições de aceitar um modelo político e econômico profundamente
injusto, que é o da burguesia brasileira branca e racista, que historicamente nunca garantiu nada ao povo negro neste
pais. Muito pelo contrário, sempre procuraram na sutileza ou não ignorar, exterminar, desqualificar os afrodescendentes
enquanto sujeito político.
A nossa história nunca foi ou será o lamento e o choro. Somos um povo que tem identidade e isso não se
arranca de dentro de nós. Acreditamos na vida e por isso na nossa perspectiva sempre ao longo da nossa trajetória no
Brasil, apresentamos, através de várias manifestações e formas, um projeto alternativo ao poder vigente.
Insistimos na nossa visão de mundo que é a africana ligada a nós pelos nossos antepassados, que procuramos
aqui simbolizar na figura de zumbi e Iyá Naso Oka, duas figuras extremamente importantes da nossa história.
162

Sobre Zumbi todos conhecemos todos conhecemos a sua histórica luta em Palmares, mas é sobre o papel dessa
grande Mãe-iyá Naso que queremos falar e refletir um pouco, e que na verdade, tem muito haver com uma alternativa ao
poder vigente.
Quando simbolizamos a figura de Iyá naso Oka, na verdade também estamos falando da mulher negra e na sua
decisiva e importante participação na luta dos afrodescendentes.
Iya Naso Oka é a fonte do axé no Brasil, fundadora da casa de Candomblé mais antiga em nosso país, e a
instituição negra mais duradoura na nossa história, a Casa Branca do Engenho Velho – Salvador. Iya iniciou um
processo que se mantém forte e que estamos dando continuidade até hoje e, com certeza, continuaremos a dar
prosseguimento.
Até hoje temos procurado manter a tradição dos Orixás, tal qual ela nos ensinou e isso nunca foi uma tarefa
fácil, pois sempre representou um enfrentamento com a ideologia dominante e o pensamento dogmático, sobretudo
judaico cristão.
Com humildade mas com determinação procuramos passar para o conjunto da sociedade essa visão de mundo
das comunidade de terreiros que representam espaços de resistência e opção ao padrão dominante.
O que Iyá Naso e os nossos ancestrais nos ensinaram é que temos condições de construir uma perspectiva
diferente dessa dominante que está colocada para nós.
Somos um povo que temos axé, e axé é vida. Logo lutamos pela vida, vida em todos os seus aspectos.
Respeitamos as diferenças e o nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for sempre observada.
Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção do axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não
existe entre nós o princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui está o conflito com o padrão
dominante.
A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a nossa profunda visão ecológica.
Acreditamos no pleno desenvolvimento do ser, no auto-conhecimento e na autonomia de cada um.
Os elementos apontados acima representam um pouco do que o nosso povo é capaz na construção de um
projeto alternativo do povo negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional. Em vários momentos
podemos identificar essa intenção tais como: Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A revolta dos
Búzios, as comunidades de terreiro, as escolas de Samba, os Afoxés, a capoeira, etc.
A esquerda no Brasil está desafiada a conhecer o seu povo e a sua história, em particular a história e a
trajetória dos afrodescendentes no Brasil.
A gente só tem capacidade de transformar aquilo que conhece. De certa forma a esquerda brasileira reproduz o
preconceito, o estereótipo, a discriminação em relação ao povo negro. Acreditamos que essa relação se dá muito em
função de um condicionamento ideológico.
Mesmo estando na esquerda e acreditando no socialismo muitos dos nossos companheiros adotam posturas e
comportamentos que reproduzem a ideologia racista entre nós.
São questões sérias para serem debatidas entre nós, isto é, no conjunto da esquerda. Outra crítica que fazemos
a esquerda e o seu condicionamento e de certa forma a sua visão prisioneira em relação ao eurocentrismo. Com isso
desqualificando toda e qualquer contribuição na luta pelo fim das opressões.
A esquerda nunca deu a devida importância a luta do povo negro em nosso pais e as formas de como essas
lutas se processaram. As vezes tem a mesma visão da ideologia dominante achando que somos fundamentalmente um
grande elemento folclórico.
Não percebem que na nossa perspectiva fazemos a nossa luta cantando, sambando, batendo tambor, fazendo
poesia, seduzindo, sobretudo através do corpo. É outra forma de fazer política e acreditar na transformação geral da
sociedade.
Fica a crítica e o questionamento a esquerda e gostaríamos de refletir essas questões com o conjunto da
esquerda até porque também fazemos parte dela e somos revolucionários.
Temos certeza e confiança na contribuição que podemos dar na construção do socialismo e de uma sociedade
com oportunidade para todos. Garantir cidadania para todos hoje não deixa de ser uma luta revolucionária,
consideramos um avanço na organização do nosso povo.
Mojubá Iya Naso Oka
Mojubá Zumbi
Mojubá à todos nossos ancestrais.
Mo dupé
Jorge Carneiro de Macedo
163

Anexo 3

Relatório do Seminário Eleitoral do PT-RS, no qual Jorge Carneiro faz


uma palestra sobre religiosidade Junho/2000

Relatório Final do Seminário Eleitoral para Candidaturas Negras.

Com o objetivo de socializar e fomentar Políticas para as candidaturas negras do estado e reconhecer como
fórum legitimo de desenvolvimento e participativo para estas candidaturas, foi instalada no sábado dia 03 de Junho de
2000, as 09 horas, o seminário Eleitoral de candidaturas negras e militantes de combate ao Racismo, com participação
dos Palestrantes e convidados para este debate. No sentido de achar de vital importância para esta setorial e partido qual as
políticas que devemos aplicar em nossas administrações.
Estiveram Presente neste evento 38 pessoas que priorizaram o debate e se propuseram, colaborar, com esta
discussão mostrando o compromisso de fato com esta setorial, acreditamos que estes companheiros querem desenvolver
sim um debate mais aberto e coletivo, avaliando assim quem tem discurso e pratica dentro desta setorial, não adianta
termos o discurso de que temos que cobrar do Partido se quem esta inserido neste debate não priorizou este trabalho, que
de fato quem contribui para este evento tem sim responsabilidade com a setorial e quer fazer crescer e descentralizar para
o interior o debate das lutas dos movimentos que dirigimos, acreditamos que as candidaturas que estiveram presente neste
Seminário e ajudaram a construir, são as que tem compromisso de verdade com a questão da Luta de Combate ao
Racismo .
Apesar dos contra tempos, tendo adiado o ato de abertura para Sábado pela manha, por entender a dificuldade
do pessoal do interior, que chegaram pela manha, lembramos que estiveram presente para o ato de abertura na Sexta feira
a noite, o Presidente Estadual do Partido dos Trabalhadores Júlio Quadros, o Secretario Nacional de Combate ao Racismo
Carlos Porto, a companheira Marlise Fernandes foi avisada pela troca de horário para Sábado do ato de abertura das
atividades, mas estava preparada para contribuir com a construção do debate do seminário.
Agradecemos a compreensão e dedicação destes Dirigentes pelo incentivo e comparecimento a atividade desta
Setorial, é clara a preocupação e vontade de que esta setorial cresça e tenha junto do Partido uma intervenção
responsável, junto aos militantes e candidatos que representam a questão racial de fato.
Candidato a Prefeito: Edson Portilho - Sapucaia
Candidatos a Vereadores que estiveram presentes ao Seminário:

Ataides Rodrigues dos Santos - Uruguaiana


Isaura Maria Oliveira - São Leopoldo
Ivan Braz da Conceição - Sapucaia
Juberlei Bacelos - Porto Alegre
Luciano da Silva - Encruzilhada.
Maria Conceição Lopes Fontoura - Porto Alegre.
Noeli T. Souza da Silva - Carazinho.
Perci dos Santos - Caxias.
Quener Chaves Santos - Canoas.

Palestrantes:
Adriano Bueno - Coletivo Nacional de Combate ao Racismo
Almira Maciel - Coletivo Nacional de Combate ao Racismo
Fernando Moreira - Instituto Brasil África.
Jorge Luís Carneiro - Secretario Estadual de Combate ao Racismo PT/RJ.
Jorge Luís Nascimento - Movimento Negro Unificado.
Jorge Senna - Secretario Adjunto de Combate ao Racismo PT/RS.
Karla Cristiane Gomes Xavier - Juventude Negra - Mov. HIP HOP
Maria Conceição L. Fontoura - Coletivo de Combate ao Racismo PT/RS
Sebastião Arcanjo - Vereador da Cidade de Campinas - SP.
Stenio Dias Pinto Rodrigues - Assessor Sindical da Sec. Estadual da Saúde.
164

Ubirajara Toledo - Movimento Negro Unificado.

Militantes que Participaram:

Iara Maria Cidade Mendes - Canoas


Luís Felipe de Camargo Gonçalves - Porto Alegre
Celso Henriquea - Alvorada
Gilson Mendes - Canoas
Ricardo Dorneles Lopes - Poro Alegre
Nadia Prestes Batista - Caxias
Ione Navegantes Cardoso - Caxias
Gleidson Renato Martins - Porto Alegre
Juliana Pinto Rodrigues - Porto Alegre
Lori Machado da Silva - Carazinho
Gilmar Pinheiro - Pelotas
Andréa Rodrigues da Silva - Porto Alegre
Pedro Roberto Trindade - Canoas
Wilmar da Silva Francisco - Esteio

Religiosidade

Palestrante: Jorge Carneiro - Secretario Estadual de Combate ao Racismo PT/RJ

Apresentamos como proposta de debate para as candidatura negras e de Combate ao Racismo desenvolver na
sua candidaturas, a visão de mundo africano, como forma de organização Política para as comunidades negras.
Se desenvolvermos a analise, do projeto político da sociedade socialista, esta visão tem muito a contribuir para a
pratica da política que queremos implementar para militantes de combate ao racismo e outras forma de opressão, para
trabalharmos um dialogo com a comunidade fora do partido e que militam no movimento negro, acreditamos que a visão
de mundo africano na sua forma de se organizar e na sua forma de funcionamento.
Uma das organizações que se apresentam como exemplo de coletividade são os terreiros de candomblé ou como
falamos no Rio Grande do Sul de terreiros de batuque, se avaliarmos ela como uma organização política Social , esta
apresenta sinais de construção de um raciocínio político, na sua forma coletiva de trabalhar, a relação que fazem com o
sagrado e com o espaço social. Neste espaço as pessoas se interagem e organizam na forma de buscar a igualdade entre
todos.
Mas o poder dominante racista sempre apresentou como um movimento folclórico e cultural ou como seita da
comunidades negras.
Se estudarmos os movimentos que se deram, nos cultos aos orixás, que esta cultura milenar apresenta, e
desenvolvermos um raciocínio político, podemos detectar um processo político de formação e consciência de uma
comunidade, onde todos são iguais homens e mulheres, quando passamos a estudar o panteon dos orixás, esta se apresenta
da mesma forma, onde nenhum orixá se sobrepõe ao outro, cada um tem uma função e significado.
A maneira que se expressam e se organizam para sua reuniões, sempre desenvolveram em rodas, onde todos
podem ver os movimentos por inteiro e assim fazem suas intervenções e movimento através do histórico de seus orixás.
Mas a sociedade Burguesa cristã sempre apresentou sua resistência e seu preconceito ora por ser uma religião
primitiva, ou de negros ou de predominância de homossexuais, vulgarizando assim suas praticas, podemos afirmar que
nesta religião, através do respeito do direito dos que nela convivem, se desenvolve muita política.
Resgatando o histórico das forma de organizativas africanas como elemento de participação popular, até mesmo as
organizações de quilombo que até os dias de hoje se expressam nos remanescentes de quilombos, que existem no Brasil,
podemos constituir ao afirmar esta formação de concepção, o resgate da cidadania étnica nestes espaços apresentam o
respeito entre os sujeitos que nela convivem homens, mulheres e crianças estão sempre presente e gravados no histórico
de cada orixá, com esta analise podemos avaliar que cada ser tem sua potencialidade de conter consigo um axé dos orixás
basta desenvolver, seja ele branco ou negro ou de outra etnia.
Podemos então detectar que neste universo religioso, estão presente os elementos que se trabalha dentro do
sistema de opressões, na busca de desconstituir as praticas e preconceitos que existem no meio social, que foram
constituído pelo capitalismo durante séculos, tendo como conseqüência racista e preconceituosa a opressão sobre os
terreiros de umbanda e candomblés no Brasil, o poder de cada axé desenvolvido pelos escravos assustavam os senhores.
Estudando os cultos da umbanda, também localizamos a pratica do internacionalismo da classe trabalhadora, os
negros que aqui chegaram seqüestrados do seu território, absorveram aos seus cultos as divindade indígenas, por
identificar nos ancestrais indígenas, elementos que contribuíam para uma integração entre etnias que sofriam o mesmo
165

tipo de discriminação ora pela igreja e pelos colonizadores europeus, mas por querer acumular riqueza e expandir o
catolicismo, a igreja intervém no processo, degenerando e desqualificando a pratica destes cultos.
O movimento negro, com dificuldades de fazer esta leitura, do modelo de organização política, não consegue
entender de que a luta dos escravos foi por que esta cultura prevaleceu como forma de resistência, ora por ter na sua
formação e educação acadêmica oficial, baseada na estrutura eurocentrica, deixando de lado a visão de mundo africano.
Podemos afirmar que o papel do militante negro e de seus parlamentares, é que encontre uma relação destes
elementos, na sua plataforma, mas como um meio de política afirmativa dentro da realidade das comunidades negras.

Redator: Jorge Senna (Fitas Transcritas dos debatedores).

Anexo 4

Artigo escrito por Jorge Carneiro – Setembro 1999

O Samba de Roda e a Militância Socialista

1ª CENA

Maria Aparecida, a Cida, foi criada na favela, tem 28 anos, solteira, mas com 2 filhos. Viveu sempre uma vida
difícil, trabalhando desde os 12 anos e não gozando muito dos prazeres da vida e dos divertimentos da comunidade onde
mora. Tendo que sustentar os dois filhos sozinha, pois órfã de pai e mãe, Cida é uma mulher negra, tímida, de sorriso
difícil de se cativar. Talvez seja porque a vida ascética de trabalho, não a permite, e também é claro, uma preocupação
constante com os futuros dos filhos.
Os seus dias passam, entre a casa e os bicos que arruma na cidade e na favela. Desde lavadeira, passadeira até
costureira, etc. Com muita força de vontade ela segue rumo aos seus únicos objetivos de vida: construir um futuro melhor
para seus filhos e evitar as doenças.
Cida não pertence a nenhuma religião, nunca foi batizada e nem nunca teve interesse pelas igrejas ou a
comunidade de terreiro perto de sua casa. A vida dura a faz muito cética em relação as forças transcendentes que a possam
ajudar. Confia nela mesma e toca a bola pra frente.
Mas certo dia, encontrou um trabalho interessante na cidade através dos jornais que ela comprava todos os
domingos - exclusivamente para ler os classificados.
Um restaurante italiano precisava de um cozinheiro, que soubesse fazer comidas populares. Ela resolveu ver o
emprego, pois no anuncio dizia que o salário era bom. Porém a coisa que a interessava é que ela como Baiana, herdou de
sua mãe, a sabedoria de todos os pratos típicos do nordeste e assim resolveu fazer o teste e disputar a única vaga entre
mais de 200 cozinheiros profissionais.
Cida sabia que não tinha muita chance, porém resolveu arriscar. Pois sendo negra, favelada e mulher, apesar de
sua beleza e corpo de top-model, era difícil entrar em espaços tipicamente europeu e Branco. Assim ela resolveu, no teste
que o restaurante pediu, fazer um prato típico da Bahia: o Acaçá ( na verdade sem que Cida soubesse essa é uma comida
essencialmente usada nas comunidades de candomblé, como a comida de Oxalá ).
Para a surpresa de Cida entre os concorrentes ela tirou o primeiro lugar. Alegria geral entre os seus vizinhos,
Cida pela primeira vez, foi reconhecida pelo seu talento culinário.
Começando a trabalhar no restaurante, suas comidas começaram a fazer muito sucesso. Na cidade se começa a
espalhar a voz de que no Restaurante dos Italianos se fazem as melhores comidas Baianas. Os turistas também
espalhavam as vozes, e assim em menos de um ano o restaurante dos Italianos era conhecido em toda a Europa e nos
EUA.
O proprietário do Local, resolveu ampliar os negócios, além de restaurante queria construir um local de dança, pois
sabemos o quanto o Brasil lá para os turistas é famoso pelas suas danças, principalmente o Samba. E este, com o sucesso
166

das comidas de Cida, pediu o seu apoio para organizar o setor de danças populares. Mas ai pintou o primeiro problema:
Cida com a vida ascética que sempre viveu, não sabia dançar nada. O que fazer então.
Cida não querendo decepcionar seu patrão resolveu procurar os grupos de pagode da favela e os vizinhos para
ajuda-la. Com isto, sem que Cida se dê-se conta, ela começava uma vida comunitária que nunca imaginou ter.
Os grupos de pagode já a conheciam e os vizinhos aceitaram ajudá-la. Porém os grupos de pagode, além de estarem
interessados em trabalhar no restaurante, queriam que Cida aprendesse a dançar. Sabiam que ela era filha de Baiana e
como negra não poderia não saber dançar.
Cida relutou, era tímida, não conseguia mexer os quadris nem quando caminhava normalmente. Porém os
amigos da favela aos poucos conseguiram que ela começasse a freqüentar as festas e as rodas de samba.
Indo freqüentemente ao samba de roda, ela aos poucos conseguia aprender a dançar. Mas isto demorou muito.
Mas o povo pagodeiro e sambista tinha paciência. O melhor jeito para ensiná-la era desinibí-la com muita naturalidade. E
nada mais perfeito que o Samba de Roda, onde todos devem dançar, mesmo aqueles sem ginga, sem rebolado, como Cida.
O samba rolava todos os finais de semana na favela, e para ajudar Cida a dançar, todos entravam na dança.
Alguns desajeitados, outros exímios bailarinos e Cida, que não sentia vergonha de dançar, na frente de tantos bailarinos,
pois a emoção que sentia em participar, sem ser obrigada, era maior que a lembrança de sua vida ascética.
Os grandes mestres da dança no morro - muitos deles analfabetos, marginais perseguidos pela policia, pessoas
pobres, etc. - seduziam Cida com belíssimos movimentos de seus corpos.
No meio da roda, Cida, os bailarinos e outros formavam uma grande alegoria de jubilo intenso, o mais importante era
bailar juntos, sem se importar se alguns sabiam ou não dançar como os bailarinos. Estes na verdade encantavam mais do
que ensinavam aos outros. E assim em pouco tempo Cida se tornou uma grande dançarina, uma negra que da muito
orgulho a sua comunidade.

2ª CENA

Tião era um rapaz tímido, 22 anos, toda a sua família era membro de uma comunidade de terreiro - Candomblé - e ele
naturalmente freqüentava todos os ritos e festas dos orixás.
Mas, apesar de ser muito tímido, Tião tinha uma enorme vontade de entrar na roda, no xirê - como é chamado o primeiro
momento de uma festa de candomblé.
Um dia um orixá incorporou uma das filhas do terreiro. Era Ogum, o orixá dos ferros, o abridor de caminhos, o
guerreiro. Ogum lhe disse que compreendia a sua timidez, mas que ele não deveria temer os olhares de seus irmãos da
comunidade, pois todos ali, só aprendem a dançar dançando.
Mas Tião não se impressionou com Ogum. Sabia que era muito difícil para ele entrar com os outros no xirê. Porém, certo
dia Ogum retornou e no meio do xirê, pegou Tião pelo braço e o levou a roda. Tião constrangido começou a chorar. Não
podia fazer esta disfeita ao seu orixá, mas ao mesmo tempo começava a sentir uma emoção muito forte, incontrolável, de
prazer, pois estava realizando, apesar de sua timidez, um grande sonho.
Depois desta festa de Ogum, e durante os 12 meses sucessivos, os outros orixás que baixaram no terreiro, chamaram Tião
para entrar na Roda, todos eles, Oxossi, Yemanjá, Omulu, Yansã, Oxum, Oxumaré, Nanã, Xangô, Oxalá, Ossaim, Obá e
Exú. Depois de um ano Tião perde a timidez e em todas as festas ele dança tão bem como seus irmãos e filhos de santo da
comunidade.
Tião diz que, apesar de ser obrigado a dançar com Ogum na primeira vez, se sentiu mais a vontade com os outros orixás.
Diz que o xirê não o faz sentir vergonha e que apesar de não ser iniciado ao candomblé, ele se sente bem junto aos Orixás
e seus irmãos.
Para ele o xirê o faz um membro da comunidade, o faz membro de uma grande comunhão, pois aprendendo a dançar
naturalmente com os Orixás, ele se sente importante para todos, o estimularam a vencer a timidez espontaneamente. Nada
mais prazeroso para ele do que aprender as danças do xirê, dançando. Mas a dança não a faz aprendê-la por si só, o que
ele aprendeu também foi a cosmologia do mundo afro-brasileiros, se integrou ao grupo comunitário através da expressão
de seu corpo.
Cida e Tião, duas pessoas simples, humildes, com poucas ambições na vida, mas que conseguem realizar seus sonhos com
a força do encantamento dos amigos e parentes.
Nestas duas histórias vimos um caso típico na cultura dos afrodescendentes que nos revela, e num certo sentido,
se contrapõe a alguns métodos de construção política da esquerda no Brasil e no Mundo. O samba de roda e o xirê são
dois aspectos da cultura dos afrodescendentes com um significado muito claro na perspectiva de construção de uma
sociedade extremamente participativa e integradora. Na verdade a visão de mundo africana faz esse chamamento
participativo e isto é uma constante.
O que nos propomos neste artigo é uma analise das contradições entre os propósitos de construção dos objetivos
políticos de certos setores da esquerda e a sua prática cotidiana de democracia.
Porém, antes de mais nada, queremos afirmar que não se tratará de uma crítica destrutiva, com o intuito de
infamar a esquerda e desqualificá-la, como fazem hoje muito bem os neoliberais e a direita. O que nos propomos a fazer,
como estudiosos da cultura negra, é identificar os limites e a ineficiência da esquerda quando identificamos discursos
167

contrapostos a práticas. Limites que inconscientemente toma corpo mesmo naqueles setores e indivíduos identificados
sem sombra de dúvidas como revolucionários, socialistas e comunistas.
A construção de nossa análise passa pela descrição de alguns momentos cotidianos da esquerda brasileira e a
identificação de suas contradições internas.
Por outro lado identificaremos como as praticas culturais de origem africana, se qualificam enquanto uma
possível crítica as práticas políticas viciadas da esquerda brasileira.

A PRAXI INVISÍVEL

É comum na esquerda brasileira reuniões nas quais existe um (a) palestrante e uma platéia de militantes. Esta
prática é muito comum inclusive na esquerda mundial.
Porém o que identificamos como mecanismos invisíveis de contradição entre prática e discurso, é que nas
dinâmicas destas reuniões o que ocorre é uma hipervalorização da competência subjetiva diante de uma pretensa platéia
não especializada. Ou seja, uma maneira muito sutil de limitar a participação democrática das pessoas.
É certo que existem grupos que consentem a livre expressão e organização de divergências, mas na prática que
descrevemos se conserva uma dinâmica elitizada, onde o confronto ocorre entre lideranças que “possuem” conhecimentos.
Nestas reuniões onde se encontra um dirigente de partido, sindicato, etc., este detém a palavra no inicio e no fim
( a réplica ), a platéia pode até contestar, mas sempre, ao final, a replica prevalece.
Sem contar que nestes encontros, somente os mais experientes na militância falam, não estimulando os mais
tímidos, pelo contrário inibindo-os com grandes citações teóricas, que são geralmente mulheres, trabalhadores manuais,
ou jovens. Enfim o que ocorre freqüentemente são momentos onde poucos falam de maneira até repetitiva e logorréica.
A lógica que prevalece é uns que falam muito de democracia mais que ocupam grande parte do tempo das
reuniões, não permitindo o desenvolvimento oratório ( e não só ) dos menos experientes. Enfim uma democracia formal
mas que nas sutilezas cotidianas fortalecem o militância de elite, ou na linguagem mais comum, os “capa pretas”.
Uma outra conseqüência destes tipos de reuniões ( pequenas ou grandes ) é a posição da mesa que dirige os
trabalhos. Como numa organização militar ( diferente do Samba de Roda), existe a mesa e a platéia.
Pode parecer um elemento organizador de debates muito natural, mas o simbolismo de poder que a mesa
confere, nunca foi discutido pelos famosos métodos de construção da militância socialista.
A simbologia da verticalidade é que prevalece. A mesa organiza, dirige os trabalhos ( coisa muito natural se
pensarmos nas acirradas disputas da esquerda contra o status quo dominante ), porém a centralidade da mesa confere a
quem está nela uma capacidade de manobra quase incontrolável. Controle de inscrições, de tempo e até da centralidade do
espaço da reunião, ou seja, uma grande oportunidade de cultivar o personalismo.
Ao final o discurso, a democracia interna soa de forma brilhante, mas na verdade ela não acontece de fato, não
se limitam os faladores para incentivar os mais tímidos e inseguros, não se cultiva o espirito coletivo, mas a dinâmica de
disputas entre lideres.
Uma outra contradição que existe entre o discurso de esquerda e sua prática, é o fato de delegar poderes de
direção sem o devido aprofundamento dos riscos que isto ocorre. Porém antes de analisá-lo queremos ressaltar que não
entraremos no mérito se delegar poderes é justo ou não, democrático ou não, enfim, se é necessário ou não. O que nos
interessa é constatar que nesta prática comum na esquerda não se percebe e não se discuti as sutilezas da concentração de
poderes.
O que ocorre muitas vezes é que parlamentares, dirigentes de partidos, representantes de base, se eternizam nos
cargos de delegação. O espirito cotidiano é “sou delegado(a)” e não estou delegado(a). Neste sentido se desenvolve um
pequeno grupo de direção que obtém muitas informações, contribuindo para sua formação política. Diz o ditado que saber
é poder.
Sendo assim a distorção na construção da democracia dentro de partidos é muito grande, apesar de todos os
mecanismos estatutários ou programáticos.
Ao nosso ver o circulo vicioso deste aspecto se constitui da seguinte forma: em um grupo existe obviamente
pessoas com formação política diversa, para se resolver isto e chegar a um proposta comum, se discuti democraticamente
as questões, logo em seguida se elege um corpo dirigente. A direção será responsável por encaminhar as políticas
cotidianas deste grupo ( seja partidos, correntes, etc. ). Mas é aqui que começam as sutilezas.
Este corpo de direção obtém, no embate político, muitas informações, acumula experiência, obtém contatos com
varias pessoas e situações e assim se legitima diante da base por ter uma visão mais global das “lutas”.
O que ocorre geralmente quando chega os sucessivos congressos, encontros, etc. para renovar as direções, é uma
direção que acumulou experiências e que diante de sua base se repropõe enquanto direção. Mesmo incorporando pessoas
novas ( pouquíssimas ), esta direção acumulará mais autoridade política, e assim começa-se a criar a distorção, ou o
abismo entre os que sabem e os que não sabem, os que tem experiência e aqueles que não tem, os que desenvolveram sua
capacidade oratória e aqueles que se sentem inseguros ou tímidos diante de “grandes quadros”.
168

Jamais um grupo de esquerda no Brasil, na atualidade, radicalizou na democracia propondo como


funcionamento interno a política da rotatividade, seja ela no parlamento, nas direções dos partidos, ou na eleição de
delegados para os congressos ou encontros. Veremos mais adiante que esta rotatividade ( organizada ) é uma das
características principais da Roda de Samba.
Um outro aspecto grave, que identificamos na contradição entre discurso e prática, é a ausência de políticas
afirmativas que contribuam para a participação de alguns setores marginalizados pela sociedade. Negros, mulheres e
jovens são oprimidos e discriminados em nossa sociedade por vários fatores. Porém na esquerda, apesar dos programas
dos partidos, e de seus discursos, estas discriminações são veladamente reproduzidas, de forma explícita ou implícita.
Podemos citar alguns exemplos.
Muitos jovens entram para a militância de esquerda ou porque se sentem oprimidos pelo adultos (a opressão de
geração) ou porque querem descobrir novas possibilidades de convivência (o espírito utópico). Assim, muitos grupo de
esquerda realizam simplesmente um trabalho de doutrinação teórica, não levando em consideração os fatores subjetivos
que levam jovens entre 15 e 20 anos à militância quase que integral na esquerda.
Além disso, um jovem que decide entrar num partido revolucionário ou numa corrente encontra sempre um
esquema adulto de se fazer política, carregado de preconceitos paternalistas, desde que a juventude se mostre dócil e haja
acordos nas táticas de lutas. Porém, quando os jovens entram em desacordo com os adultos, estes recordam sempre a
inexperiência daqueles. Desse modo, muitas vezes se reproduzem na esquerda as relações adulto - jovem de forma
semelhante à da micropolítica do poder na família.
Por fim, para levantarmos somente alguns exemplos, a esquerda, na sua maioria, não considera relevante
também a questão negra e étnica, pois afirma que a prioridade é o confronto entre as classes sociais. Sem contar o fato de
que a maioria esmagadora dos cursos de formação política, iniciam a “história da esquerda no Brasil” a partir do início do
século XX, esquecendo todo o patrimônio de lutas e resistência do povo negro escravizado contra a política colonialista
do capitalismo em ascensão .
Na verdade, quando se afirma isto ou quando se realizam estes cursos, conclui-se que, com o desaparecimento
da opressão de classe, desaparecem consequentemente as outras opressões (de gênero, de raça, de geração e de opção
sexual). Isto demonstra a incapacidade da esquerda de entender que a burguesia exercita a sua hegemonia além da
dimensão de classe. A esquerda não compreende que a discriminação racial, de opção sexual, de geração e de gênero,
sociológica e antropologicamente, não é causada pela simples dominação econômica de classe.

A PRAXI VISÍVEL

Todos os esforços que a esquerda realiza no sentido de construir mecanismos de democracia tem o objetivo de
edificar, antes da tomada do poder, um modelo de nova sociedade.
Entretanto, como vimos, existem mecanismos invisíveis que não permitem uma total assimilação desta proposta
democrática de sociedade.
Porém, como vimos no início deste artigo, a dinâmica das culturas negras, de origem africana, nos revela uma crítica, ao
nosso ver, mais radical que todas as tentativas europocêntricas de superar estas debilidades da esquerda brasileira.
O Samba de Roda, o Xirê e as danças africanas, nos permite e exibe um outro método de convivência democrática entre
pessoas e grupos.
Samba de Roda é um folguedo e uma herança da época da escravidão, constituído de danças, passos muito
requebro, umbigada e cantoria. O ritmo é marcado por atabaques, pandeiros, berimbaus e batidas de palmas.
No Recôncavo Baiano o samba de roda é uma forma típica de samba, geralmente dançado somente por
mulheres, cuja coreografia se desenvolve no círculo de participantes, tendo ao centro uma solista, que executa
movimentos ágeis e graciosos, acompanhados de instrumento de percussão e de palma
A dança de Umbigada é definida pelo escritor português Alfredo Sarmento da seguinte forma: "num círculo
formado pelos dançadores, vai para o meio um negro ou uma pessoa negra que, depois de executar vários passos, escolhe
uma pessoa e dá-lhe uma Umbigada, a que chamam de Semba. A pessoa que toma a Umbigada substitui a outra no meio
do círculo".
A dança de Umbigada possui o mesmo sistema das rodas cariocas de Pernada, nas quais forma-se também um círculo,
depois o dançador fica sambando no meio da roda até tirar outro para dançar com um suave toque de perna, se o Samba
for leve, ou com uma pernada, se o Samba for pesado.
Um dos aspectos mais relevantes do Samba de Roda africano é o erotismo. É uma dança essencialmente lasciva, acentua
Alfredo Sarmento, que diz: "Entre o gentio do Congo, o samba de Roda e o Batuque são uma espécie de encenação em
que o assunto obrigatório é sempre a história de uma virgem a quem são explicados os prazeres misteriosos que a esperam
no casamento".
Nestas manifestações culturais, se expressa uma visão de mundo muito peculiar dos afrodescendentes na
diáspora. Ou seja, a dança negra é um meio de identificar um consenso comunitário, uma harmonia participativa, onde
todas as pessoas devem colocar suas qualidades e potencialidades em beneficio do grupo.
169

Além disso, não podemos esquecer que a dança negra, no contexto da opressão escravista, era também,
basicamente, um meio de afirmação pessoal, graças ao qual o descendente de escravo deixava de sentir-se objeto da ação
para converter-se em agente do mundo.
Para Muniz Sodré, a dança negra faz parte de um elemento da cosmologia africana, é um “sentir, mas de uma
experiência radical, de uma comunicação original com o mundo, que se poderia chamar de cósmica, isto é, de um
envolvimento emocional dado por uma totalização sagrada de coisas e seres”.
O samba de Roda expressa muito bem essa maneira de ser de um povo, que procura se construir na coletividade, não
tendo outra alternativa. E a roda respeita cada participante como ele é, e com a contribuição que ele tiver. A cada
momento cada um é o centro e nesse momento e por alguns momentos ele ou ela é o dirigente máximo do processo, ou
melhor dizendo da roda.
No centro da roda cada um faz o que pode e o que sabe, não existe uma exigência. De certa forma é um exercício da
plenitude humana e da construção da cidadania, é um movimento alegre e festeiro, como tem que ser a vida nessa visão de
mundo, em que, a cada momento, uma pessoa é o centro da roda, é observado por todos, como também de certa forma,
ensina a todos. Nesse momento dar-se a plenitude da pessoa.
O samba de roda nos ensina a sermos profundamente democráticos e acreditarmos nesse princípio como um valor
importante na construção do processo coletivo. Ela também nos ensina a lidar com a alternância de poder. O poder que
precisa ser compartilhado, socializado. Ela também nos ensina o respeito a todos, as várias alternativas, posições,
expressões, as diferenças.
É uma lógica interessante pelo respeito as diferenças. É uma relação profundamente coletiva no envolvimento, na
sedução, na participação e no papel de direção.
No xirê dos orixás também observamos esse aspecto de participação, expressando-se também numa roda em que se dança
no sentido contrário dos ponteiros do relógio. Esse fato não se dá por acaso, pois esse movimento é o movimento do
universo e procura-se manter o mesmo.
Observamos também nesse aspecto da cultura dos afrodescendentes um forte conteúdo democrático na homenagem a
todos os orixás sem um maior peso para um ou para outro. Cada orixá tem a sua importância no seu momento específico,
nenhum orixá se sobrepõe a outro.
Neste sentido, o que identificamos na história e Cida e Tião é uma capacidade de realização a partir deste
elemento cósmico. Alcançaram seus objetivos através de um envolvimento comunitário que por sua vez não se basearam
por atitudes puramente racionais. Mas através também de uma concepção sagrada de mundo.
Está visão sacra de mundo, nas culturas de origem africana, tem como eixo fundamental o espírito coletivo, ou
como diria os iniciados ao candomblé, o fortalecimento do Axé. Assim, a realização dos objetivos de Cida e Tião, só
foram possíveis com a participação deste espírito coletivo ( a força do Axé ), desta energia sagrada.
Mas obviamente isto representa pouco para explicarmos comparativamente a crítica imbuída aqui à praxi
invisível presente na esquerda.
A diferença consiste nos meios empregados pelas culturas negras para o alcance de certos objetivos, para a
construção do futuro.
No samba de roda todas as pessoas são chamadas a dança, mesmo que algumas delas não saibam mexer o corpo,
ou seduzir o grupo. Além disto o elemento principal da dança não é a demonstração das habilidades de cada um, da
capacidade de dançar, mas a confraternização do grupo, criar a harmonia comunitária através da linguagem corporal, pois
o corpo é um dos centros sagrados do mundo.
No xirê conta-se as histórias dos orixás, os acontecimentos históricos de um povo, as virtudes, os defeitos de
cada um, enfim a vida dos orixás dentro do corpo dos seus filhos.
Assim, o que diferencia as culturas negras dos métodos da esquerda é a necessidade de envolvimento total do
ser na construção da coletividade. Cada um tem o seu papel, mas na hora da dança todos serão capazes de conduzi-la, pois
como sabemos, toda dança implica em participação integral dos sujeitos, mesmo quando ela é espetáculo, não é apenas
com os olhos que a acompanhamos, mas com os movimentos esboçados de nosso próprio corpo. A dança enfim, tem o
grande poder de mobilização dos corpos e das consciências.
No samba de roda a realização de cada um é a realização do grupo, em função da alegria coletiva. É a realização
pessoal de cada um dentro do grupo, toda a roda toma parte do bailado. Assim, diferenciando-se das estruturas de
organização da esquerda e de seus discursos, o samba de roda se caracteriza como um recurso pedagógico, um meio
permanente de iniciação à sabedoria e da sociabilidade do grupo.
Identificando mais a fundo, o samba de roda realiza um encontro entre pessoas com suas possibilidades
corporais, emotivas e racionais. Ela não discrimina quem não domina a ginga, o bailado “correto”, mas promove uma
troca de experiências. Ninguém é posto fora da roda por não saber dançar, por outro lado ninguém é obrigado a ficar nela,
pelo contrário, as pessoas são convidadas a dançar para compartilhar a alegria do grupo, seu Axé, para enfim, usufruir dos
prazeres do grupo, que por sua vez vêm de cada pessoa presente na roda.
Como vimos, a praxi invisível das esquerdas, apesar de propor métodos democráticos, não viabiliza por
completo a plena realização do sujeito político. Nas dinâmicas de reuniões da esquerda não se torna presente os corpos e
capacidades de cada sujeito, a dinâmica das trocas, mas fica recalcado nas disputas de poder entre conhecedores de teorias
revolucionárias.
170

Vejamos o que diz uma velha cantiga do Samba de Roda:

Você que é forte


Só pensa em pegar peso
Quero ver entrar na roda
E mostrar que é forte mesmo...

O verso pode ser interpretado da seguinte forma: se um indivíduo é especializado numa função, isto não
significa necessariamente que possa contribuir na construção de uma harmonia comunitária.
De fato, se formos resgatar a proposta originária no manifesto comunista de Marx e Engels, veremos que a idéia
de uma nova sociedade requer que o sujeito seja capaz de filosofar, trabalhar, caçar, produzir uma obra de arte, dançar,
educar e ser educado. Saber fazer e realizar coisas que hoje, no atual modelo econômico não é possível.
Sendo assim, as culturas negras e suas manifestações rituais, nos revela a possibilidade de identificar nelas uma
crítica ao modelo vigente de sociedade. Crítica estas, feita também pelas esquerdas mas que, como vimos, ainda não a
assimilaram por inteiro, no sentido de se desvencilhar de mecanismos que impedem uma total coerência entre pratica e
discurso.
O samba de roda desafia os métodos da esquerda e propõe uma outra organização comunitária, baseada na
rotatividade de participação, nos momentos crucias de combate e crítica a ordem vigente. Propõe a possibilidade de que
todos os indivíduos desenvolvam suas potencialidades subjetivas, evitando mecanismos contraditórios entre intenção e
ação. Pois afinal, a dança, assim como as artes, são os caminhos mais curtos de união entre dois homens e como diz
Candeia “enquanto se luta se samba também”.

Jorge Luiz Carneiro – economista e militante do Movimento Negro Unificado


Luiz Fernandes de Oliveira – Sociólogo e Militante do MNU

Anexo 5

Artigo escrito por Jorge Carneiro – Maio 2000

Religiões de matriz africana e luta Anti-racismo

O fenômeno da religiosidade de matriz Africana é o lugar onde mais se expressa o racismo no Brasil, entretanto, é
também onde a resistência negra demonstrou uma capacidade de afirmação de identidades surpreendente.
O candomblé por exemplo, refere-se ao ser humano em sua totalidade existencial, na qual espírito e matéria não
se dissociam. É uma cosmovisão, em que tudo interage e tem ligação, onde nada pode ser isolado da vida.
O medo a cultura negra na verdade representa o medo de uma concepção que prega a autonomia, em que o Ori (
cabeça ) é o mais importante. O candomblé é fundamentalmente um culto à cabeça, voltado para o desenvolvimento
pleno da pessoa, é autoconhecimento, e a ideologia dominante não educa nesta perspectiva. O Borí ( alimentar a cabeça )
é um ritual importante que significa o desenvolvimento do Axé, é alimentar as próprias energias. Axé, a força vital que
move o mundo. Desenvolver o Axé é sobretudo pensar em coletividade, contrapondo-se à visão capitalista que prega o
individualismo, a competição.
Os iniciados ao candomblé é a extensão da família africana no Brasil. Na iniciação se passa a fazer parte dessa
família, que na sua concepção é extensiva, não tem preconceito, propiciando a construção de uma identidade que pode ser
partilhada por negros e brancos de qualquer origem e, pelo processo iniciático todos tornam-se irmãos, ao introjetarem os
mesmos padrões simbólicos.
Os terreiros representam espaços de liberdade, territórios não institucionalizados pela lógica sociocultural
dominante. São comunidades que tomam a forma simbólica africana, mantendo vários aspectos da cultura Nagô com o
culto aos Orixás ( forças da natureza ) e o culto dos Eguns ( antepassados ). No Brasil esta estrutura foi sintetizada e
reelaborada.
171

Quando se afirma isto o que se evidencia é que este patrimônio negro brasileiro afirmou-se na diáspora como
território político-mitico e religioso para sua transmissão e preservação. Expressou a grande possibilidade de
reterritorialização de um patrimônio de identidade africana, consubstanciado nos cultos aos deuses, à institucionalização
de festas, dramatizações e formas musicais. É o chamado Egbé, o terreiro que aparece na primeira metade do século
dezenove.
Nas suas mais variadas formas – Candomblé, xangô, pajelança, catimbó, tambor de mina, Umbanda – permanece ainda
hoje o paradigma ( conjunto organizado de representações litúrgicas, de rituais ) nagô, mantido em sua maior parte pela
tradição Ketu.
Estes espaços africanos, na sua matriz, não surgiu para excluir os parceiros do jogo ( brancos, mestiços, índios,
etc. ), nem para rejeitar o território local, mas para permitir a prática de uma visão de mundo exilada.
Algumas dessas formas litúrgicas foram definidas como sincréticas, mas para as comunidades negras o objetivo era
reelaborar e redefinir as regras de origem com o objetivo de preservar uma matriz fundadora, a Arkhé. O exemplo disto é
o caboclo e seu culto. Apesar de toda sua simbologia indígena, é uma reelaboração do culto negro aos ancestrais, pois o
índio, para o terreiro é o dono original desta terra.
O chamado sincretismo ( na visão branca ) na verdade foi uma transação, um acerto inter-étnico, pois o
entrecruzamento das diferenças foi um jogo de contatos, com vistas a preservação de um patrimônio comum de origem e a
conquista de um território social mais amplo para os negros.
A posição liturgico-existencial do negro foi sempre a de trocar com as diferenças, de entrar num jogo de
sedução simbólica, de encantamento, desde que pudesse assegurar alguma identidade e expandir-se. Não vigora, nesta
cosmovisão, o princípio do terceiro excluído, a contradição, os contrários se atraem, banto também é nagô, sem deixar de
ser banto.
Ao contrário de alguns estudiosos, isto não é sincretismo, pois este se define por transformações litúrgicas de
parte a parte. O que não houve no Brasil, porque o catolicismo é uma visão de mundo incompatível com a cosmologia
negra.
Sendo o catolicismo comprometido com uma economia industrialista, vocacionada para a dominação universal
do espaço humano ele não se compatibiliza com os cultos nagô que tem motivações patrimonialistas de grupo, ecológicas
e não apenas religioso.
As associações feitas entre santos e orixás, não sincretizava nada para os negros mas o respeito e a sedução das
diferenças, graças a analogia de símbolos e funções. Ou seja, uma estratégia de reterritorialização.
Vários exemplos disto pode ser vistos em diversos terreiros espalhados pelo país, como vemos numa
comunidade da Baixada Fluminense, onde um quadro com a figura de São Jorge nunca foi cultuada. Mas quando acontece
de um santo católico ser cultuado num terreiro – Umbanda por exemplo – ele é na verdade um orixá nagô. Ou seja, o
conteúdo pode ser católico, ocidental, religioso, mas a forma litúrgica é negra, africana, mítica. Ao invés de salvação, o
culto a São Jorge se articulará em torno do crescimento de Axé.
Isto nos demonstra mais uma estratégia negra, ou seja, consolidar uma identidade própria e firmar-se no
território brasileiro era uma questão política crucial. E hoje isto se mantém como uma questão essencial para o povo
negro.
Quando simbolizamos a figura de Iyá Naso Oka, por exemplo, na verdade também estamos falando da mulher negra e na
sua decisiva e importante participação na luta dos afrodescendentes.
Iyá Naso Oka é a fonte do Axé no Brasil, fundadora da casa de Candomblé mais antiga em nosso país, e a
instituição negra mais duradoura na nossa história, a Casa Branca do Engenho Velho – Salvador. Iyá iniciou um processo
que se mantém forte e que estamos dando continuidade até hoje e, com certeza, continuaremos a dar prosseguimento.
Até hoje temos procurado manter a tradição dos Orixás, tal qual ela nos ensinou e isso nunca foi uma tarefa
fácil, pois sempre representou um enfrentamento com a ideologia dominante e o pensamento dogmático, sobretudo
judaico cristão.
Com humildade mas com determinação procuramos passar para o conjunto da sociedade essa visão de mundo
das comunidade de terreiros que representam espaços de resistência e opção ao padrão dominante.
O que Iyá Naso e os nossos ancestrais nos ensinaram é que temos condições de construir uma perspectiva
diferente dessa dominante que está colocada para nós.
Somos um povo que temos Axé, e Axé é vida. Logo lutamos pela vida, vida em todos os seus aspectos.
Respeitamos as diferenças e o nosso projeto, que é coletivo, só será pleno se essa máxima for sempre observada.
Cada um de nós tem a sua contribuição a dar para a manutenção do Axé, da vida, da sociedade, do mundo. Não
existe entre nós o princípio da exclusão, não acumulamos bens e sim pessoas, aqui está o conflito com o padrão
dominante.
A nossa perspectiva é uma visão integradora natureza-homem, daí a nossa profunda visão ecológica.
Acreditamos no pleno desenvolvimento do ser, no auto-conhecimento e na autonomia de cada um.
Os elementos apontados acima representam um pouco do que o nosso povo é capaz na construção de um projeto
alternativo do povo negro. Somos sujeitos participantes legítimos na construção nacional. Em vários momentos podemos
identificar essa intenção tais como: Palmares e vários quilombos, Canudos, a Revolta dos Malês, A revolta dos Búzios, as
comunidades de terreiro, as escolas de Samba, os Afoxés, a capoeira, etc.
172

Estes exemplos nos remete ao entendimento que para o negro estes espaços implicam num continum cultural, na
permanência de uma forma de relacionamento com o real, mas também resposta, com elementos reformulados e
transformados, num impulso de resistência à ideologia dominante, na medida em que a ordem originária, no Brasil
reterritorializada, comporta um projeto de ordem humana, alternativo à lógica vigente de poder. Estes territórios rompem
limites espaciais, para ocupar lugares imprevistos na trama das relações sociais urbanas da vida brasileira, orquestrada em
consciência de causa pelo branco europeu.

Xangô vivendo em nós

Acreditamos que o movimento negro e todos aqueles que tenham um compromisso de lutar para acabar com o
racismo no Brasil e no mundo deveriam compreender melhor o que representou e continua representando nesses 500 anos
de luta e resistência dos africanos e seus descendentes no Brasil.
A vida do povo brasileiro está permeada pela cultura negra em vários aspectos e de várias formas. Podemos com
certeza afirmar que no campo cultural se deu de forma espetacular a melhor forma da nossa luta e resistência contra o
opressor e a cultura dominante. Não podemos ser ingênuos. Sambar, tocar, dançar, cantar, sorrir, fazer poesia é saber
seduzir, resistir e lutar.
Infelizmente muitos irmãos e irmãs de lutas do movimento negro não tem a devida compreensão dessa forma ou
método de saber lutar. Na verdade é lutar mostrando Axé, propondo mudanças de comportamentos de entendimentos. É
saber relacionar-se com o mundo, com a natureza, com o universo.
Essa forma de saber viver na interação homem-natureza-cosmo. É uma filosofia de vida de matriz africana
legada a nós pelos nossos antepassados, pelos nossos ancestres. Que está para além de uma plena cidadania.
Quando a gente observa cada manifestação cultural dos afrodescendentes, percebemos esse significado. Seja na
capoeira, no maracatu, da folia de reis, nas escolas de samba, no jongo, no maculelê, no fank, no hip hop, no samba de
roda, no baile charm, etc.
Certa vez xangô disse que não queria mais comer no silêncio, um silêncio imposto pela intolerância e repressão
ao culto e a tradição dos orixás. O terreiro Axé Opó Afonjá do Rio de Janeiro mudou-se do centro do Rio de Janeiro para
a periferia, onde xangô teve a sua vontade atendida e todos puderam louvar esse orixá da forma que não só ele, mas todos
os orixás merecem, com muito toque ( batuque ), fogos e muita alegria.
Nós homens e mulheres, descendentes de africanos temos isso dentro de nós. A alegria da vida, isso é Ter Axé.
Acreditamos que existe uma grande lacuna a ser entendida e preenchida pelo movimento negro e todos os
lutadores sociais na busca de um mundo melhor. Que foi e é o papel das religiões de matriz africana cumpriram na luta, na
resistência e na afirmação de uma herança africana e identidade dos afrodescendentes.
Xangô ensinou o caminho do não conformismo, da insubordinação, da continuidade da luta, da alegria e do Axé.

Rio de Janeiro, 31 de maio de 2000


Jorge Carneiro – Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT-RJ e Militante do MNU
173

Anexo 6

Capa do Livro de Mãe Beata

Anexo 7

Manifesto das tradições religiosas e


cultura afro-brasileiras sobre meio
ambiente e cidadania

Anexo 8

Folder de convocação do seminário


“300 anos de Zumbi dos Palmares (
Organizado por PC )
174

Anexo 9

Folder do Seminário sobre


africanidades - UERJ jun/1997

Anexo 10

Programação da Escola de
Formação e Ativo Nacional da DS
sobre a questão racial

Anexo 11

Lei n. 2663 que institui, no


calendário das festividades do
Município do RJ, a Semana da
Lavagem do Bofim.
175

Anexo 12

Reportagen de “O DIA” sobre o


Presente de Yemanjá Fev/2000 e
Fotos da Lavagem do Bonfim e do
Presente de Yemanjá – RJ

Anexo 13

Documentos do Debate do PT-NI “O


universo feminino na Tradição dos
Orixás”
Anexo 14

Seminário Nacional do MNU


176

Anexo 15

Artigos de Jorge Carneiro no Jornal


Em Tempo e revista Teoria e Debate

Anexo 16

Tese Nacional ao 2º Congresso do


PT ( Escrito por Jorge Carneiro, PC
e Lúcia )
Anexo 17

Adesivos da Chapa apresentada por


Jorge Carneiro, PC e Lúcia ao VI
Encontro Nacional de negros e
negras do PT
177

Anexo 18

Convite e Panfleto de convocação à


visita de Lula no Terreiro de Jorge
Carneiro

Anexo 19

Reportagens de Jornal e revista da


Visita de Lula ao terreiro de Jorge
Carneiro

Anexo 20

Documento entregue a Lula em sua


visita ao terreiro de Jorge Carneiro
178

Anexo 21

Matérias na Imprensa do RJ, sobre


a atuação política de Mãe Beata.

Anexo 22

Tese apresentada por Jorge


Carneiro e PC ao XII Congresso
Nacional do MNU- Abril/1998

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