As últimas semanas têm sido, no mínimo, agitadas na região do
Centro de São Paulo, mormente na localidade popularmente conhecida como Cracolândia, que compreende as imediações das Avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero, Rua Mauá, Estação Júlio Prestes e da Praça Princesa Isabel.
Há mais de vinte anos os Poderes Executivos estaduais e/ou
municipais planejam investidas para erradicar o uso do crack na Cracolândia. Dentre as medidas, a última – coordenada pelo prefeito João Dória, em parceria com o governador Geraldo Alckmin – pode ser considerada, polêmica, desastrada ou, sem exagero, desumana.
No dia 21 de maio, a prefeitura paulistana e o governo deflagraram
uma grande ação policial na região para combater tráfico de drogas. Em entrevista pela manhã, João Dória afirmou que o programa de redução de danos criado pela gestão de Fernando Haddad, o Braços Abertos, foi finalizado: “Não haverá mais pensão, hotel, nenhum tipo de acomodação desse tipo, como existia anteriormente. Toda a área será reurbanizada, os hotéis serão fechados e a área passará por amplo projeto de reurbanização”. Um projeto de reurbanização foi priorizado em detrimento das vidas já marginalizadas e ceifadas pela droga.
O desastre não acabou no equívoco da tentativa de sanar problema
de saúde pública com ação policial violenta. Pensões foram demolidas, dentre as quais o Hotel Laide – retratado como um caso de sucesso do Braços Abertos em um documentário da cineasta Débora Diniz. Ademais, o pedido à Justiça para internar compulsoriamente os viciados. Tal medida é criticada até mesmo por quem defende ou crê que ao menos foi necessária a ação policial no local. Adiante, tratar-se-á desses dois vieses: os excessos (ou desnecessidade) da ação policial na Cracolândia e a (i)legalidade (e a eficácia) de uma internação coletiva compulsória.
A ação policial constituiu uma série de violações de direitos, desde
direitos de ir e vir, de acesso a uma saúde pública decente etc. Foi um ato de extrema truculência e autoritarismo exacerbado tendente a crescer. Além disso, a desapropriação realizada pela prefeitura não seguiu o rito legal, o que incluiria indenizações aos proprietários. A ação (co)ordenada pelo prefeito foi regada a excessos e representa a sistemática com que os problemas que demandam estudos aprofundados são encarados pelos gestores do nosso Brasil, porquanto a descontinuidade com a política de redução de danos implementada pela gestão de Fernando Haddad, que, apesar das carências e críticas recebidas, vinha obtendo resultados significativos, dando ao menos um poder de escolha aos usuários.
Somada à operação policial, houve o pedido judicial para que fosse
autorizada à gestão municipal, extirpando qualquer autonomia dos usuários, a internação coletiva compulsória. Se há dúvida dos especialistas se era um caso de segurança ou de saúde pública, aqui não existe nenhuma. É unânime a opinião de que não é a saída enclausurar compulsoriamente essas pessoas.
A maioria dos habitantes da Cracolândia são egressos do sistema
prisional. São pessoas que passaram boa parte, senão a vida inteira, à margem da sociedade, sem escolhas, sem perspectiva alguma. Saindo das prisões, continuaram sem perspectiva e caíram no uso excessivo da droga. Daí depreende-se que a vida que levam é consequência de anos de marginalização. Seria possível resolver o problema com internações contra a vontade dos dependentes químicos?
Agir dessa forma seria encarcerar, higienizando a cidade a todo custo,
quem já não tem esperança nenhuma. A professora de psicologia Clarice Madruga, que defendeu a operação policial, pensa diferente em relação ao tema da internação compulsória dos dependentes químicos. Para ela, o erro está na solicitação, feita por Doria, de uma espécie de autorização coletiva, sem necessidade de análise individual pelo Judiciário. Atualmente, cada caso de internação compulsória deve ser respaldado por laudo médico e autorizado de modo individualizado pela Justiça.
O que vem à tona é que a política e outros interesses estão sendo
colocados à frente das pessoas. É necessário descobrir um modo de reinseri-las na sociedade. Para mudar a realidade dessas pessoas e recuperá-las, será necessário demonstrar empatia por elas, o que claramente ainda não foi feito pelo nosso gestor.