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100 anos depois.

A prática analítica hoje – 3

Antes de continuar com o nosso trabalho sobre a violência queria resgatar uma postagem que o Ítalo fez no
dia seguinte da nossa reunião passada no grupo de Whatsapp do seminário.
Para ilustrar o empobrecimento da narrativa citou um poema de Manoel de Barros que diz assim (*):
“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem”.
Comentei que esse poema me fez lembrar um texto de Michel Leiris, escritor francês, amigo de Lacan e
reconhecido por ele como alguém que sabe da língua e que “domina melhor que eu essas brincadeiras
glossolálicas”, como diz em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946).
Michel Leiris, junto com a sua mulher Louise que tinha uma famosa galeria de arte, formava parte desse
grupo de artistas e intelectuais que se reuniam após a segunda guerra em Paris e que, cada um no seu
campo, tiveram um grande destaque na cultura como Picasso, Merlau-Ponty, Levy-Strauss, Sartre,
Simone de Beauvoir, Albert Camus, George Bataille e Lacan. (*) Foto.
O texto que lembrei, que trabalhamos alguns anos atrás, é (*) ...Reusement (...Lizmente) onde separa as
dimensões de alíngua e a linguagem de maneira exemplar a partir de uma lembrança da primeira infância.
Não se trata da mesma coisa que o poema de Manoel de Barros na medida em que, no poema, aquilo
que é denominado de imagem é, na verdade, uma metáfora que acaba sendo desfeita pelo homem que
aparece repentinamente o que, certamente, produz esse efeito de empobrecimento da linguagem.
Lembremos que a metáfora é o mecanismo linguístico privilegiado na poesia.
No texto de Leiris há também a intervenção de uma pessoa; ela não desfaz uma metáfora, como no caso
anterior, mas corrige uma expressão d’alíngua da criança e a inclui na dimensão da linguagem articulada
causando, com isso, uma perda de gozo assim como a escrita de um outro gozo mortificante.
Vários dos escritos de Leiris são autobiográficos e isso se explica a partir da função que dava à literatura.
No prefácio do livro A Idade viril (1939) diz: “o desafio maior da literatura é de tornar compreensível para
si mesma e para os outros aquilo que foi sofrido e pessoalmente experimentado”.
Esse desafio toma a forma de uma pesquisa que visa desvelar o que ele denomina de uma obscuridade
na sua vida, através de jogos de linguagem, sonhos, atos falhos, lembranças da infância e confissões
presentes nos seus escritos.
Essa lembrança se encontra no primeiro volume do livro A regra do jogo (1948) e a cena acontece num
lugar da sua casa que o autor não consegue identificar com clareza (“sala de visita? sala de jantar?”) onde
há uma mesa ou um aparador e encima uma coleção de soldados de papel machê ou chumbo.
Pega um soldado (“novo ou antigo”, igual a outros ou não, talvez francês) que cai “escapando de minhas
mãos inábeis, ainda inaptas para traçar, num caderno, nem mesmo meros garranchos”.
O autor esclarece que o essencial não era que um soldado tivesse caído posto que “um soldado não
evocava nenhum eco definido em mim”.
O importante é que o soldado é um objeto que lhe pertence, algo dele com o qual encontra uma sat. na
brincadeira, depois da qual, o objeto é guardado, isolado do resto do mundo, até a próxima brincadeira.
Ao ver que o brinquedo muito querido não quebra quando cai da sua mão expressa o júbilo com o fonema
“reusement” (“lizmente”).
Imediatamente um adulto, provavelmente a mãe, faz uma observação (*): “não se diz ‘reusement’
(lizmente), se diz ‘heureusement’ (felizmente)”.
Ele esclarece que esse fonema é uma interjeição que define como “uma palavra ou uma locução (duas ou
mais palavras que funcionam como uma unidade) com que se exprime um sentimento de dor, de alegria, de
admiração, de aplauso, de irritação, etc.”.
Trata-se de um fonema amalgamado a um afeto.
Nesse sentido, trata-se de um sgte. grampeado a um gozo sem relação com a sgção.
Ele diz que utilizava esse sgte. “sem nenhuma consciência de seu sentido real”.
“A observação cortou minha alegria ou, melhor -me deixando um breve instante desconcertado- não
demorou em substituir a alegria, pela qual meu pensamento tinha sido inicialmente preenchido por inteiro,
por um sentimento curioso, do qual mal consigo, hoje, desvelar a estranheza... Essa palavra, empregada
por mim até então sem nenhuma consciência de seu sentido real, como uma interjeição pura, está ligada
a “heureux” (“feliz”) (*) e, pela virtude mágica de tal aproximação, se viu inserida de repente em toda uma
sequência de significações precisas. Apreender de uma vez na sua integridade essa palavra que antes
eu sempre tinha arranhado tomou uma feição de descoberta, como o rasgar brutal de um véu ou o
ofuscar de alguma verdade. Eis que esse vago vocábulo –que até o presente me tinha sido totalmente
pessoal e permanecia como fechado- ficou, por um acaso, promovido ao papel de elo de um ciclo
semântico.Não era mais algo meu: participa desta realidade que é a linguagem de meus irmãos, de
minha irmã, e a de meus pais. De algo que me pertence, tornou-se coisa comunitária e aberta. Aí está
ele, num piscar, tornado coisa compartilhada ou -se quiserem- socializada. Ele não é mais agora a
exclamação confusa que escapa de meus lábios -ainda bem próxima de minhas vísceras, como o riso ou
o grito- ele é, entre outros milhares, um dos elementos constitutivos da linguagem, desse vasto
instrumento de comunicação... essa palavra que disse incorretamente, e da qual acabo de descobrir que
ela não é na verdade o que tinha acreditado até então, me preparou para sentir confusamente -através de
uma espécie de desviou ou deslocamento impresso no meu pensamento- como a linguagem articulada,
teia de aranha das minhas relações com os outros, me ultrapassa, estendendo para todos os lados suas
antenas misteriosas”.
Aqui o escritor ilustra muito bem as duas funções do sgte.: o sgte. sozinho na sua função de letra,
assemântico, isto é, fora do sentido posto que é também fora da cadeia, amarrado ao gozo e a sua
passagem para a outra função que tem a ver com a criação de sentido na medida em que se articula a
outros significantes; um elemento que vai mais além daquele que fala e que forma a teia de aranha na
qual o sujeito se constitui na linguagem na relação com os outros.
A linguagem de cada um é feita com os elementos d’alíngua embora a linguagem recubra e deixe alíngua
no esquecimento produzindo até uma certa desmaterialização.
A materialidade da palavra d’alíngua (“moterialité”), a sua materialidade fonemática, é diluída e encoberta
pela sua absorção no campo da linguagem, capturada nessa teia de aranha constituída pelo Outro como
lugar do código onde o “lizmente” de Leiris fica absorvido pelo “felizmente” do adulto que o enquadra na
regra socializada.
Aqui podemos ver como se abre uma dimensão além (ou aquém) do Outro que é a dimensão do Um e
que traz como consequência uma báscula dos efeitos semânticos aos efeitos de gozo.
E. Laurent, ao citar essa lembrança num texto intitulado A carta roubada e o voo sobre a letra, aponta
que a resposta do Outro neutraliza a sua ligação com a alegria, a palavra perde a vivacidade, fica
mortificada e mortifica o sujeito, tanto no sentido simbólico como no sentido do afeto.
A resposta do Outro fez com que o ‘feliz’ (associado com o “lizmente”) se perdesse ficando o $ atrelado à
infelicidade.
O “lizmente” não se inscreveu como signo da sua felicidade, pelo contrário, escreveu o gozo perdido como a
letra da sua tristeza.
E. Laurent faz notar que a felicidade ficou perdida na medida em que a sua posição subjetiva ficou ligada à
infelicidade que sempre se fazia presente através de todos os efeitos de sentido, uma sgção. absoluta, que
acompanhou o $, e que o levou a uma tentativa de suicídio a partir da qual iniciou uma análise.
Como escritor nunca permitiu que ninguém mais o corrigisse pois ele próprio estabeleceu todas as
deformações que introduziu na sua escrita junto com a criação de códigos e regras.
Para concluir, poderíamos dizer que no primeiro caso, verificamos os efeitos de sentido produzidos pelo
significante, no caso o efeito metafórico, assim como no segundo os efeitos de gozo que o sgte. também
produz, marcando assim a polaridade entre o sujeito do significante e o sujeito do gozo que Lacan aponta na
Apresentação das Memórias de um doente dos nervos.

Na nossa última reunião começamos a trabalhar aquilo que denominei, no início, A civilização em
tempos de cólera, parafraseando o escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, quer dizer o ódio e a
violência nos pandêmicos tempos de hoje.
Vimos que justamente, nos tempos pre-pandêmicos, quando o empuxo à felicidade se faz mais premente,
com mais intensidade se manifestam os fenômenos de ódio e violência mostrando a propriedade da
elaboração freudiana quando afirma que o projeto da felicidade é impossível na medida 59/300 em que os laços
sociais estão permeados pela plx. de morte, conceito apresentado de maneira inaugural em Além do
princípio do prazer; plx. de Após
morte quediscussões
essas não pode ser eliminada,
estamos preparadosnem
paraeducada e nem domesticada e que
oferecer uma
adota determinadas formasfórmula
de manifestação dependendo
relativa à constituição dosde
libidinal mandatos
uma massa. daPelo
cada momento histórico.
Dai que não seja surpresa menos
que de
nauma massa
época tal como
que vimos até aqui,
se caracteriza pelaisto é, que dos
queda tem ideais, dos significantes
um líder e não
mestres, o declínio das referências pôde adquirir
simbólicas e a secundariamente,
promoção do gozo, através de exces-
o ódio e a violência apareçam a
céu aberto, sem véus nemsiva “organização”, as características de um indivíduo. Um a
pudores.
Vimos que a constituiçãomde assa
umprim ária desse
grupo socialtipo é um a quantidade
implica de indivíduos
numa distribuição que
e tratamento das forças plx.,
puseram um
sendo que a vida em comunidade únicoem
requer, objeto no lugar
parte, de seu ideal
a renúncia do Eu
às plx. e, em con-para possibilitar o laço
destrutivas
do grupo.identificaram -se uns com os outros em seu Eu. Essa
libidinal entre os membros sequência,
É o fundamento básico do condição
contratoadmite
social.uma representação gráfica:
A renúncia à hostilidade possibilita o estabelecimento de laços libidinais entre os membros de um grupo a
partir dos quais podem se estabelecer também laços de identificação recíproca na medida em que todos
compartilham de um mesmo ideal que pode assumir a forma de uma ideia ou encarnar-se num líder. (*)

Um aspecto importante é que a ideia não precisa ser positiva no sentido de representar um ideal fundado
no amor, mas pode ser, pelo contrário, uma ideia que tenha como base o ódio, o ódio do Outro que, como
podemos observar, é cadaIXvez mais
. OINST INTfrequente
O e manifesto, mesmo que seus partidários não saiam nas
ruas com tochas e roupas Gas
REGestilo
ÁRIOKKK.
Afinal, na economia plx. de um grupo, grande parte da hostilidade tem que estar orientada para fora dele
para que possa subsistir como tal e tempo
Por pouco ganhargozaremos
coesão. da ilusão de haver solucionado o
enigma da massa com essa fórmula. Logo seremos incomodados
pela advertência de que no essencial apenas remetemos tudo ao
enigma da hipnose, em que muita coisa resta a esclarecer. E
agora uma outra objeção nos mostra o caminho a seguir.
É lícito dizer que as fartas ligações afetivas que vemos na
massa bastam inteiramente para explicar uma de suas
Outro ponto importante que abordamos foi como se constituem novos grupos a partir do declínio dos
sgtes. que representam um ideal e que podiam dar uma identidade ao sujeito.
Observamos que os sgtes. da ciência podem ocupar esse lugar, mesmo que possuam um caráter
negativo (bipolar, autista, hiperativo).
Também um grupo pode ser constituído a partir das modalidades de gozo ou de compartilhar um mesmo
objeto de consumo que possua um valor de gozo (comunidades de marca).
Finalmente mencionamos os grupos de consternação, nome proposto por E. Laurent para denominar os
grupos que surgem de movimentos mais o menos espontâneos a partir de situações de crise provocadas
pelo sistema político e econômico que gera pobreza e exclusão.
Ex. Indignados, Occupy Wall Street, Coletes amarelos.
Esses movimentos materializam as duas vertentes do fantasma, o $ e a: 1) o grito do $ perante uma
perda; 2) o objeto mau, causa da perda, o outro que encarna o mal interior do qual o $ quer se separar.
Concluímos que, seja no grupo conformado na base do ideal ou no grupo regido pela lógica fantasmática,
criam-se entre os membros laços libidinais enquanto que os estão de fora são depositários da hostilidade.
Trouxe, para ilustrar alguns aspectos fundamentais do grupo como a coesão e a liderança, problemas
cruciais em tempos de estabelecer políticas públicas de saúde, trechos do texto de Lacan sobre A
psiquiatria inglesa e a guerra (1946).
Tentei aplicar a diferença que Lacan marca entre a atuação francesa e inglesa na segunda guerra às
diversas políticas que alguns governos utilizam para enfrentar a pandemia.
Finalmente trouxe alguns trechos de romance de George Orwell 1984, para ilustrar o que é uma
sociedade que se constitui na base do ódio e se desenvolve de acordo com seus princípios, inclusive para
tentar mostrar como alguns elementos que aparecem nessa ficção se tornaram, para nós, parte do nosso
dia a dia (*): 1) o reinado da vigilância e a coleta de dados dos indivíduos cujo processamento e
instrumentação podem decidir eleições em países democráticos; 2) o controle e a manipulação mediática
ao serviço de um projeto político tanto dos meios tradicionais quanto das redes sociais virtuais; 3) a
possibilidade que qualquer enunciado possa ser colocado no lugar da verdade e sancionado como tal; 4)
o estabelecimento de uma cultura do ódio a serviço de um governo ou um projeto político; 5) a
banalização da violência; 6) o ódio como via de derivação da insatisfação cotidiana, produzida, no nosso
caso, pela injunção de um ideal impossível de felicidade; 7) a destruição dos laços sociais; 8) a
desvalorização da arte, da literatura e da ciência (“Ignorância é força”); 9) a simplificação da linguagem
que traz como consequência a limitação do pensamento; 10) o deixar de lado as coisas do amor, como
sublinha Lacan a respeito do discurso capitalista. (Ministério do amor = tortura para “reabilitação”).

Já colocamos a ideia que as duas forças que fazem com que uma sociedade se mantenha coesa são a
violência e os laços libidinais (as identificações)
Como dizia Freud no diálogo que mantem com Einstein em 1932, Por que a guerra?: “Já vimos que uma
comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos afetivos
(identificações é o nome técnico) entre seus membros”.
Por outro lado temos que lembrar que o ódio, na constituição subjetiva, marca a relação do sujeito com o
objeto e se mostra anterior ao amor.
No texto sobre As plx. e suas vicissitudes (1915) Freud afirma: “O ódio, enquanto relação com o objeto,
é mais antigo que o amor. Provém do repúdio primordial do eu narcisista ao mundo externo fornecedor de
estímulos”.
O ódio surge do primitivo rechaço do eu que expulsa ao mundo externo um elemento que sente como
hostil ou causador de desprazer.
Como vai sustentar dez anos depois em A negação (1925), o eu prazer originário incorpora aquilo que
julga bom e expulsa o que é mau e isso resulta na separação do eu do mundo sendo que o eu coincide
com o amado e o mundo, o objeto, como o mau, o odiado.
Poderia se dizer que é a marca inaugural do sujeito com o Outro e os outros e que aparece de maneira
muito clara na psicose, particularmente nas formações paranoicas, onde o Outro é, sem dúvida, o Outro
mau que quer gozar do sujeito e do qual o sujeito tem que se separar.
Como temos trabalhado algumas vezes o Outro representa o kakón, o objeto que causa o mal do sujeito.
Dai que o golpe que elimina o Outro comporta a certeza da eliminação do mal estar do sujeito.
Esse é o fundamento do chamado crime paranoico sobre o qual Lacan trabalhou nos anos 30.
Isso mostra também que o Outro não é um elemento exterior ao sujeito, mas êxtimo, um externo íntimo.
Por esse motivo o Outro remete o sujeito àquilo que é mais rechaçado em si próprio, seu próprio gozo.
Aqui podemos notar que há duas vertentes do ódio.
Uma primeira que faz laço na medida em que é depositado fora do grupo favorecendo os laços libidinais e
identificações entre os membros do grupo. Só uma porção do ódio circula dentro do grupo.
Trata-se do ódio que dá consistência ao Um do grupo ou ao Um do sujeito frente à maldade do Outro.
Em ambos os casos, como veremos, o ódio é localizado “fora” (numa topologia plana de superfície).
Como fenômeno social podemos citar os grupos que se reúnem a partir da xenofobia e o racismo, seja
pela cor da pele, da religião, ou pelo gozo sexual.
A ideologia nazista de final dos anos 20 e 30 pode servir de paradigma desse tipo de laço como assim
também os nacionalismos extremos observados na história recente da Europa (Hungria – Viktor Orbán).
Todos esses casos vem nos mostrar que a lógica que funda a unidade se suporta na lógica da exclusão.
Mas temos uma outra vertente que é o ódio que se manifesta em ato, no ato violento, sem sentido e que
sempre envolve o corpo, seja o corpo do outro ou do próprio sujeito na medida em que o ódio pode
também se endereçar a si próprio. Ex. os que põe fogo em moradores de rua ou os que se imolam.
A violência sempre existiu, mas na nossa sociedade regida fundamentalmente pelo discurso capitalista,
que se caracteriza pelo “sem limites”, ela se molda a esse imperativo que encarna o supereu atual.
Em maio de 1972, numa conferência na Universidade de Milão –Do discurso psicanalítico-, Lacan
formula o discurso capitalista sobre o qual se moldam os laços sociais atuais, uma modificação do
Discurso do Mestre.

Rapidamente podemos evocar algumas das características desse discurso:


É o único discurso onde o agente do discurso não se endereça ao Outro. Os outros discursos:

Nesse discurso o sujeito, colocado como agente do discurso é reduzido a sua condição de consumidor,
subsumido e consumido no capital que é o sgte. que ocupa o lugar da verdade.

Esse discurso transmuta a função do agente na medida em que fica subsumido no sgte. que está no lugar
da verdade, sem se endereçar a um Outro sgte. para efetivamente comandar o discurso.
É um discurso que contraria a lógica circular dos discursos e dai que possamos dizer que é um discurso
paradoxal posto que é um discurso que não faz laço social, ou melhor, que atenta contra o laço social.
Nesse discurso o sujeito é reduzido a um consumidor, seja de objetos ou de ideias (candidato=sabonete),
e aquilo que determina o $ permanece oculto para ele e, no entanto, o sujeito se acredita dono da suas
escolhas num narcisismo extremo.
Dai o grande boom dos livros de auto-ajuda e o coaching para o sujeito acertar na suas escolhas na vida
pessoal e profissional tornando-se um “empresário de si mesmo” de sucesso.
Subsumido no significante mestre recalcado colocado no lugar da verdade, o sujeito se acredita o tal,
manifestação que corresponde à exacerbação do narcisismo na atualidade mas, no entanto, ele não faz
laço diretamente com o Outro.
Quem faz esse laço é o capital que se endereça ao saber -a tecnologia- para produzir objetos mais de
gozar, objetos de consumo, que comportam uma promessa de felicidade e de sat. permanente
principalmente porque o sujeito acaba acreditando na capacidade de complementação dos objetos,
deixando o sujeito numa sempre renovada posição de consumidor num gozo aditivo ou toxicômano.
Dessa maneira o que acaba sendo privilegiado é a satisfação auto erótica, autista do sujeito fundido com
seu objeto de gozo numa relação que prescinde do Outro.
Esse discurso mostra muito bem o imperativo pós-moderno que o $ não só pode como deve gozar de
tudo, propiciando um direito à sat. que é promovido à categoria de um ideal de mercado.
No entanto, sabemos do impossível de toda satisfação, que nas propagandas toma a forma do “ilimitado”
e que cria no sujeito o sentimento de estar em falta, em dívida em relação a esse ideal.
A decepção frente à impossibilidade de satisfação renova a demanda de sat., retroalimentando um círculo
que se torna aditivo (como colocamos em anos anteriores ≅ mais uma carreirinha).
Devemos acrescentar que, diferentemente do discurso do mestre (*), no discurso capitalista o objeto é
acessível ao sujeito; está à sua disposição de maneira direta enquanto que o discurso do mestre
tradicional está marcado pela impossibilidade do sujeito aceder ao objeto a não ser na forma fantasmática
($<>a), o que comporta em si uma limitação, um menos que denominamos de castração que é o que é
deixado de fora no discurso capitalista, como diz Lacan na Conf. de 06/01/72 publicada em Estou
falando com as paredes quando diz (*): “O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung,
a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei - rejeição de
quê? Da castração”.
Mas o discurso capitalista deixa de lado também as coisas do amor na medida em que o amor é uma
cobertura e um véu sobre a dimensão do gozo que coloca questões tanto ao nível do simbólico quanto do
imaginário, isso numa civilização onde o gozo está em primeiro lugar.
Como disse Lacan naquela intervenção (*): “Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo
deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocês
veem, não é pouca coisa, certo?”.
A violência contemporânea, dentro da lógica do empuxo ao gozo, é muitas vezes a expressão da plx. de
morte desligada do simbólico, aparecendo como uma satisfação fora de sentido, como um puro
divertimento que expressa o prazer de realizar ou assistir o maltrato, a humilhação ou o espancamento do
outro na sua realidade corporal.
Um fenômeno adicional dos tempos atuais, possível pelo desenvolvimento da tecnologia, é a filmagem
dos atos violentos por parte dos próprios autores ou por colegas –as vezes meninas- que ficam
incentivando a agressão, registrando desde diversos ângulos, cada detalhe.
Esses vídeos são compartilhados e assistidos posteriormente pelos agressores e seus amigos ou
seguidores elevando a uma segunda potência o gozo do ato, através da plx. escópica.
Ex. Morte de jovem em Villa Gesell. Notícia.
Como vimos através desse caso, a violência implica em machucar ou destruir o corpo do outro, mas
também há uma violência que não apenas machuca o corpo do outro senão, simultaneamente, o próprio
corpo, como vimos quando falamos daqueles que se sacrificam em nome de um deus obscuro.
Em Gozo e radicalização, Éric Laurent aponta que os jovens que se engajam nessas causas tentam
restituir um sentido perdido para as suas vidas.
Frente ao vazio tentam dar novamente um sentido à vida através do dispositivo religioso.
Assim como tentam “vingar a vida” –expressão que se repete em muitos casos-, tentam também vingar
um ideal ferido retornando a um ideal querendo tornar-se mártires e encontrando um gozo na
autodestruição, um gozo especial que permite que o sujeito alcance o novo mundo no qual nos
encontramos, um mundo no qual o ideal empalidece frente à ascensão do objeto a, objeto de gozo.
A plx. de morte e o além do princípio do prazer -o gozo- colocam um obstáculo intransponível aos ideias
de felicidade e progresso ao serviço de bem comum que se colocaram na modernidade.
O ódio que vai mais além da agressividade constituinte do ser humano, tem uma cara mais real que
Lacan situa no Sem. XX ao propor que isso é justamente “o que mais se aproxima ao ser, que chamo de
ex-sistir. Nada concentra mais o ódio que esse dizer onde se situa a ex-sistência”.
Nessa perspectiva, o ódio está na base de todo ser falante e, mais além da tensão agressiva que se gera
na dimensão imaginária, o ódio se dirige ao mais real do Outro, ao ser do Outro e a sua ex-sistência.
Se dirige não apenas à existência do Outro como corpo –como no ex. daqueles que ateiam fogo em
moradores de rua- mas também ao ser do Outro através das palavras que visam ferir seu mais íntimo.
Aqui quero evocar um pequeno texto que trouxe o ano passado chamado O insulto e suas delícias de
Gustavo Dessal apresentado nas XVIII Jornadas da ELP em Valencia em novembro de 2019.
Evoco esse texto porque, como o autor aponta, o insulto é uma manifestação contemporânea que
expressa a degradação da vida e que seu uso tem se tornado muito presente na vida política.
Essa degradação tornou a linguagem que forma parte da disputa cotidiana num instrumento de
desqualificação presente em todo o espectro social que vai de líderes políticos a formadores de opinião,
passando por muitos daqueles que fazem uso das redes sociais.
Ele considera que o insulto forma parte daquilo que podemos denominar de “a nova normalidade”, “isto
é, a sinistra comprovação que apenas se requer de tempo para que uma aberração ganhe carta de
cidadania e se integre à paisagem, e que passemos ao largo, indiferentes, anestesiados perante o
rebaixamento moral da civilização”.
Para ele, essa normatização ocupa um lugar privilegiado na engenharia social contemporânea que se
rege pela aliança do neoliberalismo com a tecnociência, como trabalhamos o ano passado quando
tratamos do cientificismo no início do seminário.
Essa normatização se realiza através do esvaziamento ético dos conteúdos na medida em que todas as
opiniões passam a ser legítimas de acordo com um conceito de liberdade que segue os imperativos do
mercado, “a impunidade das palavras, a inconsequência dos atos, mas fundamentalmente a exaltação do
ódio como base para a criação de uma ontologia renovada: ‘Odeio, logo existo’”.
A degradação dos semblantes e dos ideais faz surgir uma verdade: a incerteza do que se encontra mais
além das figuras do outro e que se manifesta na suspeita.
Finaliza o texto assinalando que “frente à suspeita do amor, o ódio, em compensação, não se pergunta
nada. O ódio afirma, trabalha a favor do fechamento do inconsciente, promove a exaltação do eu”.
Dessa maneira podemos concluir que o ódio é solidário desse narcisismo extremo com o qual nos
deparamos hoje em dia e que faz com que o diferente, aquilo que não é eu, seja o depositário do mais
puro ódio dissociado do simbólico, juntando as duas vertentes do ódio num mesmo ato.

A disseminação da violência, principalmente quando se manifesta no âmbito social, gera uma sensação
de medo ou, mais propriamente angústia ou, utilizando um significante bem arraigado na cultura
contemporânea, “pânico”, significante que nos remete à mitologia grega posto que esse era o sentimento
despertado pelo semideus Pan, figura com a metade superior do corpo humano com chifres e a metade
inferior de bode. (*)
Abandonado pela mãe (ninfa Dríope) - por causa de seu aspecto - é levado pelo pai Hermes ao Olimpo.
Pelo seu jeito alegre e brincalhão despertou a simpatia dos deuses que o batizaram de Pan (Tudo).
Era o protetor das florestas e rebanhos e os ataques de medo súbito, aparentemente sem razão, dos
caminhantes noturnos das florestas eram atribuídos a esse personagem mitológico que também se
caracterizava pelo seu excesso de atração sexual pelas ninfas a ponto que algumas das suas
representações o mostram com um enorme falo (*).
É interessante que Pan acaba herdando alguns atributos mitológicos de seu pai Hermes que era
considerado um deus da fertilidade, dos rebanhos, das estradas e das viagens assim como também o
guia das almas dos mortos para o reino de Hades, o deus do mundo dos mortos.
A figura de Pan foi utilizada pelo catolicismo da Idade média para representar o Diabo.
Silvia Ons, no seu livro Violências, fornece um dado interessante embora eu não tenha achado essa
referência: ela diz que Pan gostava de aparecer nas encruzilhadas de caminhos dos viajantes.
Acrescenta que a partir dai o cristianismo da idade média herda a tradição e coloca o diabo nas
encruzilhadas. Por esse motivo nesses lugares se costumavam erguer cruzes de pedra com uma
pequena capela para a Virgem. Essa lenda se estende pelas civilizações e pelo tempo.
Ex. Robert Johnson e o pacto com o Diabo na encruzilhada da 61 com a 49 (Mississipi).
Letras com alusão ao encontro e sua morte: Crossroads Blues (Encruzilhada) o momento do pacto; Hell
Hound on My Trail (Cão do inferno na minha trilha) as mudanças por causa da perseguição de cães do
inferno e seu arrependimento pelo pacto e Me And The Devil Blues (Eu e o blues do diabo) onde o Demo
bate na sua porta pronto para pegar a sua parte no pacto. Maldição dos 27 (Jimi, Brian, Janis, Jim, Amy)
De todas maneiras é interessante que o pânico demoníaco se faça presente nas encruzilhadas, quer
dizer, quando o caminho único, preestabelecido, se bifurca e o individuo tem que fazer a sua escolha,
uma escolha rodeada de incertezas e inquietações perante o desconhecido.
Sabemos que quando há um único caminho, uma trilha preestabelecida, podem surgir temores, mas
dificilmente a angústia. Na Idade Média tinha o caminho do bem estabelecido por Deus.
Alguém poderia ficar temente a Deus por pensar em se afastar dessa trilha, mas, por outro lado, sabia
que era a única que poderia transitar ou se perder, sabia-se onde cada caminho ia dar.
As alternativas estavam muito bem colocadas.
Podemos também evocar os relatos de Stephan Zweig no seu livro O mundo de ontem sobre o que ele
chamou da Idade de Ouro da Segurança, onde tudo parecia estar muito bem demarcado, estabelecido e
previsto na vida das pessoas... até chegar a primeira grande guerra.
Quando os caminhos e as balizas que orientam as vidas se diluem (como nos tempos de pandemia) e as
alternativas e incertezas se multiplicam, obrigando o ser humano a realizar escolhas a cada momento, se
cria um terreno muito fértil para o surgimento do pânico e da angústia.
Frente à ausência dos ideais que possam nortear um caminho comum, cada um está sozinho de noite na
floresta a mercê do deus Pan.
Aqui podemos evocar as elaborações de Freud na Psicologia das massas, que citei há pouco, posto
que o individuo que sente pertencer a um grupo, a uma comunidade, sente-se mais seguro.
Lembrem que Freud atribui a coesão do grupo –que, como vimos, está fundado na exclusão- à
identificação dos indivíduos entre si na medida em que compartilham do mesmo ideal encarnado no líder.
Freud observa que quando a figura do líder entra em declínio –ou o líder desaparece ou é morto- a
identificação entre os membros cai e dessa quebra surge o pânico posto que cada um se sente
desamparado e indefeso.
“Outro indicio que a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem pode ser
encontrada no fenômeno do pânico, que pode ser melhor estudado nos grupos militares. Surge o pânico
se um grupo desse tipo se desintegra. Suas características são a de que as ordens dadas pelos
superiores não são mais atendidas e a de que cada indivíduo se preocupa apenas consigo próprio, sem
qualquer consideração pelos outros. Os laços mútuos deixaram de existir e libera-se uma angústia
enorme, sem sentido… Se um indivíduo com angústia pânica começa a se preocupar apenas consigo
próprio, dá testemunho, ao fazê-lo, do fato de que os laços afetivos, que até então haviam feito o perigo
parecer-lhe mínimo, cessaram de existir. Agora que está sozinho, a enfrentar o perigo, pode certamente
achá-lo maior. Dessa maneira, o fato é que a angústia pânica pressupõe o afrouxamento da estrutura
libidinal do grupo”.
Freud observa que não é a intensidade do perigo que causa o pânico, mas a sensação de desamparo
perante ele devido ao afrouxamento dos laços libidinais que mantinham os membros ligados entre si
causado pela queda do ideal.
Nesse sentido a vida comunitária, os laços sociais orientados por um ideal parecem servir de um certo
anteparo à “angústia pânica” (*) (Amorrortu) (“panische angst”), como se expressava Freud.
Essa observação tem uma importância muito atual posto que, como temos trabalhado repetidas vezes,
estamos num momento da civilização onde os ideais, assim como os laços, estão em franca decadência.
Essas condições sociais, potencializadas pelo apagamento do Outro da garantia (que tradicionalmente se
materializava na proteção e assistência por parte do estado), coloca os indivíduos perante múltiplas
encruzilhadas de maneira constante e permanente.
Dai que as chamadas crises de pânico (ou crises de angústia na terminologia freudiana) tenham se
disseminado de maneira tão expressiva. Clinicamente desaparece quando o sujeito toma uma decisão.
Isso no nosso mundo pre-pandemia, posto que nesse momento essas crises se redobram na medida em
que os dois fatores mencionados (o desamparo e a ausência de uma liderança) aparecem conjugados.
Em primeiro lugar, a pandemia provoca uma sensação de fragilidade análoga ao estado de desamparo (*)
(Hilflosigkeit) que Freud menciona em Inibição, sintoma e angústia: “O fator biológico é o longo período
de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo (Hilflosigkeit) e
dependência (*) (Abhängigkeit). Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a da
maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como resultado, a
influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial entre o Eu e o Isso
é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o
valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é
enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de perigo e cria a
necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida”.
Em segundo lugar, a falta de liderança, o cada um por si que Freud materializa na morte ou
desaparecimento do líder que representa um ideal, reduplica o sensação de desamparo.
Chama a atenção o comportamento da população nos países onde uma liderança se faz presente para
conduzir uma política sanitária que se espera possa proteger os cidadãos e nos países onde essa
liderança está totalmente ausente. Inclusive independentemente do resultado (SsS). Ex. Suécia.
As respostas a esse desamparo potencializado vem se manifestando através de algumas reações bem
tipificadas como a negação do perigo, o estado de vigilância que, em alguns casos chega perto da
paranoia, o medo, a segregação (o leproso da idade média) e a xenofobia (vírus = chinês).
Trata-se de uma situação na qual se materializa de maneira muito crua e didática a definição de Lacan
que diz que “o real é o impossível de suportar” (Abertura da Seção Clínica - 1977).
Freud trabalhou essas condições tomando fundamentalmente a experiência dos grupos militares posto
que esses mecanismos ficaram em evidência no período da guerra que tinha terminado três anos antes.
A guerra também foi decisiva para Além do princípio do prazer, não apenas para firmar o conceito de
plx. de morte, mas também para conceitualizar a experiência traumática que hoje se faz tão presente na
pandemia.
Lembrem que, na nossa primeira reunião, disse que as mudanças provocadas pela violência do vírus, seu
poder de replicação, a sua rápida disseminação e o número de mortes que disso decorre, representam
verdadeiras rupturas da ordem estabelecida em cada um de nós e têm o valor de um trauma, quer dizer,
da emergência de um real que desestabiliza o nosso sistema simbólico e nos obriga a dar uma resposta.
Nesse texto Freud se opõe à clássica teoria do trauma como resultado de um choque que afeta o sistema
nervoso, teoria antiga que ressuscita nos nossos tempos com ares de novidade e da última palavra da
ciência no diagnóstico rotulado de “stress pós-traumático”.
Nesse texto Freud diz que podemos considerar a neurose traumática “como o resultado de uma grande
ruptura causada no escudo protetor contra os estímulos” e acrescenta que “isso pareceria restabelecer a
antiga e ingênua teoria do choque, em aparente contraste com a teoria posterior e psicologicamente mais
refinada que atribuiu importância etiológica não aos efeitos da violência mecânica, mas ao terror e ao
perigo de morte. Esses pontos de vista opostos não são, entretanto, irreconciliáveis, nem tampouco a
concepção psicanalítica das neuroses traumáticas é idêntica à teoria do choque em sua forma mais
grosseira. Esta última considera a essência do choque como sendo o dano direto à estrutura molecular
ou mesmo à estrutura histológica dos elementos do sistema nervoso, ao passo que aquilo que nós
procuramos compreender são os efeitos produzidos sobre o órgão anímico pela ruptura do escudo contra
estímulos e pelos problemas que isso coloca”.
Freud parte da ideia que o organismo tem um escudo protetor contra estímulos externos, mas não existe
esse escudo, essa proteção para estímulos internos que produzem a série prazer-desprazer.
Assim, acabam prevalecendo as sensações de prazer-desprazer por sobre os estímulos externos e as
sensações de desprazer são tratadas como se fossem de fora para que o organismo possa se defender
delas. (projeção).

Freud considera que as excitações externas com força para atravessar o escudo protetor são traumáticas.
Mas, um trauma externo altera a economia do sistema e mobiliza as defesas.
E isso acontece porque, como já tinha trabalhado cinco anos antes no texto sobre as plx., os estímulos
fisiológicos, uma vez que entram no organismo, se tornam estímulos plx. que trabalham dentro de uma
outra economia.
Nesse momento Freud observa que o princípio do prazer é deixado fora de ação e o problema é como
dominar a irrupção de estímulos e ligá-los psiquicamente para que possam ter uma derivação.
Mas aqui já nos encontramos plenamente na dimensão dos estímulos plx.
Ex. dor corporal.
O desprazer da dor é causada pelo atravessamento do escudo protetor num determinado lugar por onde
fluem as excitações para o aparelho como se elas viessem do interior, o que é verdadeiro.
De todas partes se mobilizam investimentos produzindo um “contra investimento” em favor do qual se
empobrecem todos os outros sistemas produzindo uma extensa paralisia ou rebaixamento de qualquer
operação psíquica.

Dessa situação se infere que um sistema de elevado investimento é capaz de receber uma carga
adicional de energia e convertê-la em investimento quiescente (ruhende Besetzung), estacionário, inativo,
em repouso, quer dizer, “ligá-lo” (binden) psiquicamente.
“Quanto mais elevado seu investimento quiescente, maior será a sua força de ligação” (bindende Kraft).
Por outro lado, quanto menor for o investimento menos o sistema será capaz de absorver a energia que
entra e mais violentas serão as consequências desse avanço na proteção contra estímulos.
A neurose traumática, e o terror concomitante, seriam o resultado de uma grande ruptura da proteção
sem a disposição para a angústia que seria capaz de provocar o sobreinvestimento onde se produz a
ruptura e a consequente concentração de estímulos plx.
Por isso Freud conclui que a disposição para a angústia é a última linha de proteção contra os estímulos.
As elaborações de Além do princípio do prazer e de Psicologia das massas, que vem na sequência,
mostram as duas dimensões que se colocam em jogo capazes de deixar o individuo a mercê do pânico.
Se a Psicologia das massas mostra que o laço social é capaz de fornecer uma proteção ao individuo
contra os perigos que são representados como externos, no Além Freud afirma que o individuo também
pode ficar a mercê dos perigos internos representados pela irrupção dos estímulos pulsionais que não
podem ser assimilados pelas vias do princípio do prazer.
Se consideramos que hoje os indivíduos estão inseridos num modelo social onde os ideais se encontram
diluídos -o que acarreta também a fragmentação e até a dissolução dos laços sociais- e por outro lado,
levamos em conta que um dos imperativos dessa sociedade é a oferta de estímulos e objetos para a sat.
plx. constante, poderemos começar a entender a frágil situação em que se encontram as subjetividades
da nossa época.
Essas subjetividades se encontram em permanente tensão entre a exigência de sat., de sucesso, de
felicidade, de ter a imagem perfeita, o corpo perfeito, os objetos que não apenas podem fornecer sat.,
mas também um bom estatuto social e, por outro lado, a vivência de desamparo e solidão onde cada um
é por si e Deus foi tratar de outros assuntos muito mais importantes em outro lugar do universo.
Dai que surjam a toda hora os messias que prometem cobrir o vazio deixado por esse Um que falta,
deixando os indivíduos a mercê daqueles que tentam reconstruir o Um em algum lugar, seja na fé ou
invocando a ciência como trabalhamos o ano passado quando tratamos do cientificismo.
É ai que se abre a brecha para que o messias, cultive o ódio como via de derivação da insatisfação de
uma vida cotidiana despojada e sem atrativos, como observa Winston Smith, personagem de 1984, onde
os Dois Minutos de Ódio se prolongam na Semana do Ódio para finalmente chegar a se constituir no ideal
representado nessa figura de “uma bota pisoteando um rosto humano—para sempre”.
Só para concluir queria mencionar dois fenômenos que têm chamado muito a atenção nesses tempos de
isolamento social e reclusão forçada.
O primeiro fenômeno é que junto com o isolamento ou distanciamento social surgiu, simultaneamente,
uma prática de aproximação e retomada de laços com pessoas com as quais se vinha mantendo um
distanciamento voluntário, aparentemente sem sentir falta desses laços ou sempre dando prioridade para
outras relações ou atividades.
Dá a impressão que a interdição, a limitação ou a impossibilidade do laço chama à necessidade do laço,
um resgate do Eros, no sentido freudiano. Ex. chá com a tia.
O segundo fenômeno se afasta de Eros e tem a ver com a irrupção de estímulos que representa a
presença constante de um Outro, de um Outro com corpo, ao ponto de se tornar insuportável a
convivência forçada com esse Outro em confinamento permanente.
Esse confinamento com o Outro, principalmente num espaço reduzido, pode produzir dois efeitos
diferentes pelo que tem sido observado.
O primeiro efeito é o surgimento da angústia que a proximidade causa sem possibilidade de separação.
Essa situação pode ser uma boa ilustração da afirmação de Lacan no Sem. X, A angústia quando diz
que a angústia começa no momento em que a falta vem a faltar.
O segundo efeito é o ato violento como tentativa de uma separação que não pode dar-se num outro nível.
Por esse motivo no mundo todo se verifica um grande aumento da violência doméstica na quarentena.
Segundo relatório das Nações Unidas, na China, na província de Hubei, os casos de violência doméstica
em janeiro desse ano triplicaram em comparação com o mesmo período do ano anterior.
Na França, a violência doméstica aumentou 32% e no Reino Unido os telefonemas para o serviço
nacional de denúncia contra abuso cresceram 65% no final de março.
Foram verificados também aumentos significativos em Espanha, Canadá, Alemanha, EUA, entre outros.
No Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também houve um crescimento expressivo.
Em São Paulo o aumento dos feminicídios chegou a 46% na comparação de março de 2020 com março
de 2019 e duplicou na primeira quinzena de abril.
No Acre o crescimento foi de 67% no período e no Rio Grande do Norte o número triplicou em março de
2020 com relação ao ano passado.
Em São Paulo a violência doméstica teve um crescimento de 45% nas ocorrências registradas via 190
comparado com o ano passado.
A pesquisa em redes sociais mostrou aumento de 431% nos relatos de brigas de casal com indícios de
violência doméstica entre fevereiro e abril de 2020.
Finalmente, o Tribunal de Justiça de RJ verificou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica
entre março e final de abril.
Esses números alcançados durante as quarentenas apenas refletem o aumento de uma situação que
existia antes da pandemia e que forma parte da clínica de hoje posto que alguns desses casos acabam
batendo na porta dos analistas.
É a nós que cabe analisar, em cada caso, a complexidade da situação e, principalmente, da subjetividade
que se nos apresenta mais além do fenômeno sociológico e mais além da tendência de estabelecer um
culpado e uma vítima preponderante no direito e na psicologia.
É um dos desafios da prática clínica de hoje que Luiza vai pegar na sequência.

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