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Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram
dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal,
conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores
subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A
câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se
fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como
monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada.
A extração do minério em Wolfram é marcada por uma violência que faz os planos
vibrarem, se chocarem, e que tem a sua contraparte em Terra (2018), de Hiroatsu Suzuki e
Rossana Torres. À beira de um lago, trabalhadores fabricam carvão em fornos artesanais,
num demorado processo filmado como um ritual quase panteísta em que a presença do
mundo e a metamorfose de seus elementos são celebradas. A luz natural, os estalos da
brasa e o sopro do vento preenchem os longos planos e a banda sonora, como também
acontece, de forma menos concentrada, mais desprendida, nos dois outros filmes da dupla,
Cordão verde (2009) e O sabor do leite creme (2012).
Cordão verde (Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres, 2009)O sabor do leite creme (Hiroatsu
Suzuki e Rossana Torres, 2012)
Cinemateca Brasileira – Largo Senador Raul Cardoso, 207 – São Paulo (SP)
Nascido em Lisboa, em 1959, Pedro Costa possui uma das mais sólidas e incontornáveis
trajetórias do cinema contemporâneo. “Vitalina Varela” (2019), sua produção mais recente,
venceu o Golden Leopard (Leopardo de Ouro), prêmio máximo do Festival Internacional de
Locarno. “Juventude em Marcha" foi candidato à Palma de Ouro no Festival de Cannes em
2006 e considerado o segundo melhor filme estreado em França em 2008, pela icônica
revista Cahiers du Cinema. O filme do cineasta português ficou em primeiro lugar nas listas
pessoais dos críticos Jen Pierre Rehm, Charlotte Garson e Cyril Neyrat.
Foi na realização de “Ossos” (1997), filmado nos bairros Estrela D'África e Fontainhas, em
Lisboa, que o cineasta percebeu que a forma tradicional de fazer cinema o impedia de se
aproximar daquele universo. No seu filme seguinte, “No quarto da Vanda” (2000), Costa
abdica das grandes equipes e maquinários para passar a utilizar câmeras digitais portáteis
(DV) em longos períodos de filmagens nos quais constrói uma relação íntima e profunda
com as pessoas que retrata, e assim, acaba por tensionar as fronteiras entre documentário
e ficção. Pelo que extrai das novas tecnologias, “No quarto da Vanda” é considerado um
filme pioneiro e objeto de enorme influência no cinema feito nos anos 2000 em diante. Nas
palavras do crítico francês Cyril Neyrat, “Costa foi o primeiro a colocar a DV à altura de Ozu
e de Straub e a extrair dela as luzes de Tourneur para reanimar no ecrã a energia primitiva
do cinema”.
Pedro Costa traz no bojo de sua obra as marcas de quem entende o cinema como uma
forma de arte popular e, ao mesmo tempo, testemunha do mundo, expondo e refletindo
seus principais conflitos. A incorporação de traços de cineastas de outras épocas à estética
de Pedro Costa se deu ao longo de anos de formação cinéfila, seja através das aulas na
Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa ou frequentando as sessões da Cinemateca
Portuguesa, onde tomou conhecimento dos grandes autores do passado e das experiências
enérgicas da modernidade.
Costa manteve uma compreensão ativa da história do cinema, entendendo que os filmes do
passado fecundam o presente: existe neles um manancial de formas e temas à espera de
atualização por quem as descobre em épocas seguintes. Por isso, é possível traçar a partir
dos seus filmes filiações diversas com outros autores. Da mesma forma que a
compreensão dos filmes de Pedro Costa se aprofunda a partir do conhecimento dessas
obras, seus filmes permitem uma reflexão nova e inusitada em cima do que veio antes,
revelando e estabelecendo conexões que, de outra maneira, poderiam permanecer
invisíveis.
A mostra “Uma Chama no Escuro - Carta Branca a Pedro Costa" propõe reunir um conjunto
de obras que atravessam mais de um século de história do cinema, através de um convite
ao realizador português, para que ele escolha os filmes que o influenciaram e foram base
para a sua formação enquanto cineasta. Seguir o fio da história do cinema através da
curadoria de um realizador imprescindível como este é uma oportunidade ímpar que terá o
público do CCBB de se aventurar por novos caminhos pelo desenvolvimento desta arte.
O título escolhido para esta a possui múltiplos significados. Primeiro, faz alusão ao próprio
cinema de Pedro Costa, composto de planos escuros, preenchidos principalmente por
sombras, mas iluminados aqui e acolá pela luz que entra por frestas, janelas, portas, e
principalmente, pelos rostos e olhares de suas personagens, que parecem chamejar na
escuridão. Também podemos pensar no dispositivo cinematográfico como um todo: no
interior de uma sala de cinema: na tela, vibra a luz vinda do projetor, dando vida às formas
que nos fascinam e nos interessamos em acompanhar por determinada duração.
Finalmente, a metáfora nos traz a imagem de uma fogueira. Em volta dela, podem ser
contadas histórias vindas de um passado distante, que atravessaram gerações até chegar
ao presente para serem recontadas por quem as recebe. Este será o principal intuito da
mostra que terá em Pedro Costa o seu principal narrador.
The Deer Hunter é um drama de guerra de 1978, escrito e dirigido por Michael Cimino. Sua
narrativa centra-se na história de três amigos Michael (Robert De Niro), Steven (John
Savage) e Nick (Christopher Walken), operários de uma fábrica na Pensilvânia e que
decidem se alistar nas forças armadas para lutar na Guerra do Vietnã. Lá, eles acabam
sendo capturados pelos soldados vietcongues e passam a sofrer torturas físicas e
psicológicas, sendo obrigados a jogar roleta-russa entre eles. Michael e Steven conseguem
voltar para casa, tendo este último tornado paraplégico, ao passo que Nick, completamente
zumbificado pelos traumas da guerra, entrega-se às disputas de vida ou morte em roletas-
russas clandestinas no que restou do país asiático. Caberá a Michael voltar ao Vietnã para
tentar resgatar o seu amigo.
Podemos destrinchar “The Deer Hunter” em quatro blocos narrativos que se sucedem a
partir de elipses bem delimitadas: no primeiro ato, nos são apresentados os protagonistas
e o universo que os rodeiam: acompanhamos a saída do grupo de amigos de um
expediente na fábrica metalúrgica onde trabalham. Todos estão animados, pois aquele será
o dia do casamento de Steven com a sua companheira Ângela (Rutanya Alda), além de ser
a festa de despedida deste grupo que irá à guerra. Esta sequência dura a primeira hora do
filme, somando-se também a algumas cenas que precedem a viagem, como o momento em
que os amigos fazem uma caça aos cervos nas matas e montanhas da cidade, prática que
evoca toda a cultura local e de seus habitantes, bem como a natureza dos protagonistas,
em especial Michael, que possui uma relação quase metafísica com o ato de caçar,
integrado completamente à paisagem e à natureza.
Cimino filma esta primeira hora da narrativa sob o signo de uma tragédia que espreita e que
marcará aquele universo de forma irreconciliável, relação tal que faz com que, ao final do
filme, estes primeiros momentos ganhem uma preciosidade ímpar. Seu grau de
negatividade é o “positivo”, pois ele é a própria síntese deste conceito: o bloco de ações
que precede a ida ao Vietnã é marcado por uma combustão de vida, uma representação do
ápice da alegria, da amizade, da vida em comunidade e do sonho americano. Diante dos
olhos dos espectadores desaguam uma vastidão de situações de uma pureza quase
inatingível, como se a nós fosse permitido contemplar a verdadeira face da felicidade uma
última vez. No entanto, a chegada da guerra anuncia o trágico e o segundo ato do filme.
Do idílio enérgico do primeiro ato, uma elipse brusca nos joga diretamente no conflito da
guerra do Vietnã. Podemos compreender a guerra como a própria força antagônica do
filme, dado que ela é o seu tema, ampliado na premissa de versar sobre os profundos
impactos que os processos de violência do conflito armado têm sobre aqueles que
participam dele - e,sendo assim - a articulação que o roteiro opera é o de equilibrar as
dimensão externa do conflito com a realidade sensível dos seus protagonistas,
adentrando no universo interior de suas psiques no momento em que são confrontados
com a violência, além de demonstrar a forma como isto se perpetua nas suas constituições
enquanto indivíduos e membros da sociedade.
Cimino opta por suprir tudo o que seria responsável por apresentar o novo lugar sob a ótica
das personagens; ele já as insere num contexto de alta voltagem de violência e horror:
Michael, Nick e Steven estão em desvantagem em um cenário dantesco, onde um soldado
vietnamita, quase um autômato, explode granadas dentro de um bunker de refugiados e
atua para matar os soldados americanos. Por fim, os três amigos acabam sendo capturados
e levados a um cativeiro, ao que, estando prisioneiros, precisam se submeter a um jogo de
roleta-russa, onde a vida e a morte dependem do giro certeiro no tambor da arma. A captura
dos protagonistas é o incidente essencial apresentado neste segundo ato, pois, é a partir
dele que a narrativa avançará numa dinâmica de fratura, separação e reencontro, os
problemas dramáticos da narrativa. Seu grau de negatividade equivaleria ao “contrário”,
pois o cenário e a tragédia da guerra são diametralmente opostos a tudo o que é construído
e apresentado no primeiro ato: se lá temos a profusão da vida, aqui temos demolição
completa.
Nesta cena, é interessante observar como Cimino concentra toda a abjeção da guerra numa
sequência de enclausuramento em um espaço limitado, onde os conflitos e tensões se dão
com as personagens frente a frente, há menos de um metro de distância. “The Deer Hunter”
não é um filme como “Platoon” (Oliver Stone, 1986) ou, mais recentemente, “1917” (Sam
Mendes, 2019), onde o campo de batalha é visto em sua vastidão caótica, sendo ele o
palco onde dilemas são enfrentados. Aqui, pouco se vê da guerra como um oceano de
confrontos, e sim como ela opera no corpo e na mente das personagens. Cimino encara a
morte de frente: o que seus personagens experienciam é o máximo da ambivalência que
existe entre estar vivo ou morto. Vemos toda essa conturbação limite nos rostos e gestos: o
desespero num urro visceral e sem voz de Steven ao ouvir o som da bala atingindo o
crânio dos perdedores do jogo e o riso animalesco dos carcereiros que se regozijam com o
horror, ou nas expressões de Nick, indescritível através de palavras, no momento certeiro
em que ele precisa acionar o gatilho da arma com ela apontada contra a própria cabeça. A
crueza destas cenas é como se Cimino estivesse a documentar, com rigor científico, sem
cortes ou elipses, o preciso momento em que um espírito é quebrado.
Michael faz o esforço de retirar Steven de seu clausuro no hospital, fazendo com que ele
retorne para a família. Neste encontro, ele descobre que Nick, aquele que não retornou,
manda regularmente uma quantia de dinheiro para Steven em cheques remetidos do
Vietnã. O quarto ato do filme começa com um novo dilema: Michael precisa voltar ao
cenário da guerra para resgatar o seu amigo e, de alguma forma, restituir um mundo que se
perdeu. Aqui a narrativa ganha ares mais próximos do modelo clássico de conflito proposto
por D. Howard e E. Mabley: já possuímos a empatia necessária com as personagens,
Michael é alguém que quer desesperadamente encontrar algo, encontra imensas
dificuldades na busca, tendo que lidar com um país destruído e em processo de convulsão
social e emigração. O impacto emocional é profundo, uma vez que Michael encontra Nick
em uma roda de roleta-russa clandestina, onde homens bestiais apostam contra ou a favor
da morte de um dos participantes, reproduzindo o mesmo jogo de horrores que o
traumatizou completamente. Nick agora é praticamente um zumbi sem alma ou memória,
completamente dissociado e entregue a uma dinâmica suicida - ele é a própria negação da
negação, visto que é corpo vivo, mas de alma morta, um ser humano desumanizado pelo
trauma. Caberá a Michael entrar no jogo para, dentro das próprias regras da psique de Nick,
tentar trazê-lo novamente à vida, fazendo com que, a cada rodada da roleta, seu amigo
recorde do tempo que antecede a guerra; das pessoas, paisagens e sentimentos que
esperam o seu regresso. No entanto, chegamos ao clímax do filme e a afirmação de sua
natureza trágica: quando surge um lampejo de humanidade na face de Nick ao recordar da
caça com os amigos, a bala acionada atinge seu crânio e o faz morrer diante do desespero
de seu amigo.
O final do quarto ato funciona como um epílogo e uma culminância, uma assinatura final
da fratura irreconciliável que acometera aquele grupo de jovens operários americanos que
perderam tudo por uma guerra abjeta: após o funeral de Nick, os amigos se reúnem para
tomar café manhã; completamente fatigados pelo gesto de despedida, como se o próprio
processo fúnebre fosse um campo de batalha onde as esperanças são perdidas.
Inconscientemente, afundados no luto, eles começam a cantar a música "God Bless
America" (Deus Salve a América) uma música patriota americana, originalmente escrita por
Irving Berlin em 1918, e que sintetiza a mentalidade estadunidense sobre sua superioridade
perante o mundo e a necessidade de que cada cidadão seu afirme os valores do país. A
canção, cantada depois de tudo o aquelas personagens experienciaram, ganha uma
potente conotação política e aponta para o irracional intransponível da natureza da guerra
e da essência dos preceitos morais que regem àquela cultura. A complexidade deste
epílogo é fazer confluir todos os graus de negatividade construídos ao longo do filme: o
grupo de amigos está reunido novamente, mas com uma ausência significativa, a cidade é a
mesma mas ela jamais será igual a antes, o patriotismo continua, mas agora
completamente necrosado, a guerra terminou, mas a vergonha é certa e não há honra
possível que justifique o que Michael, Steven e Nick passaram. Ao fim, “The Deer Hunter”
faz lembrar a última frase dita pelo Capitão Boeldieu (Pierre Fresnay) antes de morrer, em
“A Grande Ilusão” (Jean Renoir, 1938): “Para um homem do povo é terrível morrer na
guerra”.
O filme acompanha o fotógrafo L. B. "Jeff" Jefferies (James Stewart), que, devido a uma
perna engessada, está confinado a seu apartamento em Greenwich Village, Nova York.
Entediado, ele passa a observar seus vizinhos através de sua janela: uma bailarina que
ensaia passos de dança, uma mulher solitária e seus encontros fortuitos, um compositor
em bloqueio criativo, um casal e seu cachorro, e um vendedor e a sua esposa enferma, a
quem Jeff suspeita de ter sido assassinada pelo marido. Com a ajuda de sua namorada
Lisa (Grace Kelly) e a sua enfermeira Stella (Thelma Ritter), Jeff vai, a todo custo, tentar
provar tal crime.
Uma cena ilustrativa: já na noite avançada, como usualmente, Jeff observa, entre cochilos,
o movimento de alguns moradores dos prédios frente ao seu. Em determinado momento,
algo chama a sua atenção de forma mais contundente: o vendedor Lars Thorwald
(Raymond Burr) deixa seu apartamento carregando uma mala de viagem. Uma elipse feita
com dois planos consecutivos, em close, do relógio de Jeff anunciam a passagem de tempo
transcorrida até o retorno de Lars. Aqui, os cochilos do protagonista atuam como elipses,
sempre retornando para o momento em que Lars Thorwald sai e retorna ao seu
apartamento carregando uma mala. Todo este jogo é mostrado através de uma cadência
de planos que, inicialmente, mostram Jeff olhando através de sua janela, para logo em
seguida entrar um plano daquilo que Jeff olha; este plano configura-se como um produto
subjetivo do protagonista, uma imagem mental selecionada por seus olhos.
É certo que a principal característica do estilo de Alfred Hitchcock é o seu talento em guiar
e manipular a atenção do espectador através do olhar da câmera. O que Rear Window
desvela de forma tão concreta é o poder do diretor em nos fazer habitar a dimensão dos
desejos das personagens, um lugar onde os afetos mais conflitantes habitam em choque
com a moral; e este habitar é construído com elementos muito concretos em articulação
dentro de estrutura dramática frontal e que acaba por atingir coeficientes abstratos da
experiência humana (seus medos, desejos, suspeitas,...) - e que poderia ser desenvolvido,
de forma mais íntima e sensorial, dentro do gênero lírico.
O gênio de Hitchcock é fazer com que se tenha acesso às suas mente no momento em que
elas refletem e reagem ao que os seus olhos contemplam da exterioridade do mundo.
Sendo assim, o espectador é colado com muita precisão à experiência subjetiva do
protagonista, sendo permitido que suspeite, reflita e calcule junto com ele. Em Hitchcock,
filma-se o nascimento de um pensamento e o seu crescimento no desenvolvimento do
drama.