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Mostra Perspectivas do Cinema Português

por Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins

Homens que extraem minério, transformam madeira em carvão e saudades em cartas,


enquanto são filmados por realizadores que, com suas câmeras, tripés e microfones,
colhem e burilam seus gestos. O esforço para dobrar a matéria, o aprendizado da sua
manipulação, o artesanato, tudo isso é o que nos dão a ver os oito filmes apresentados na
mostra Perspectivas do Cinema Português, que acontece no dia 24/07 na Cinemateca
Brasileira, com produção da Foco – Revista de Cinema e da Pena Capital.

Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram
dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal,
conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores
subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A
câmera - apenas uma - e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se
fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como
monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada.

A extração do minério em Wolfram é marcada por uma violência que faz os planos
vibrarem, se chocarem, e que tem a sua contraparte em Terra (2018), de Hiroatsu Suzuki e
Rossana Torres. À beira de um lago, trabalhadores fabricam carvão em fornos artesanais,
num demorado processo filmado como um ritual quase panteísta em que a presença do
mundo e a metamorfose de seus elementos são celebradas. A luz natural, os estalos da
brasa e o sopro do vento preenchem os longos planos e a banda sonora, como também
acontece, de forma menos concentrada, mais desprendida, nos dois outros filmes da dupla,
Cordão verde (2009) e O sabor do leite creme (2012).

À exuberância visual e sonora dos filmes de Hiroatsu e Rossana e de Wolfram contrapõem-


se The Last Day of Leonard Cohen in Hydra (2018), de Mário Fernandes, e Longe
(2016), de José Oliveira, filmes nos quais o fundamental está no fora-de-campo. Um homem
vaga por uma ilha, embalado por reminiscências da mulher amada; outro, pelo mundo,
vindo não se sabe de onde. Dois solitários, dois náufragos, reclusos em ilhas de silêncio
onde são encontrados o que foram, o que são e os seus sonhos; ilhas raramente acessadas
pelos outros, mas algumas vezes por nós, testemunhas de suas confissões e das andanças
por ruínas com as quais parecem se identificar.

As pessoas e a paisagem: características comuns a todos os filmes da mostra, mas cujo


apelo pictórico é especialmente sentido em dois. Marta Mateus, em Farpões baldios
(2017), filma uma comunidade de camponeses, velhos, adultos e crianças, como pinturas
de Jules Breton: imponentes, inquietos, seus olhares lançados em direção ao passado e ao
futuro. Daniel Pereira, em Pró ano há mais (2008), mostra seu próprio pai revirando o solo
com um forcado à procura de batatas. A ação do único plano do filme se resume a isso,
mas assistir ao progressivo acúmulo das batatas num canto do quadro, os efeitos da luz na
vegetação ao fundo e os sucessivos reposicionamentos do homem em ação é como ver
uma pintura se fazendo, sendo inventada aos olhos da plateia.

Nos filmes da mostra Perspectivas do Cinema Português há temas, paisagens,


inspirações em comum, porém o que salta aos olhos, principalmente, é a heterogeneidade
entre eles: mudam os enfoques plásticos, estilísticos, temperamentais. Algo inusitado,
considerando que os seus realizadores são próximos, frequentam a Cinemateca
Portuguesa, conversam depois das sessões. Talvez seja isso mesmo o que une essas
obras: não elementos específicos, mas a intenção de quem as fez de se servir de modelos
os mais variados, para, de forma independente, adequando-os às condições materiais em
que se encontram, experimentar, lapidar, colher a sua própria voz.

Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins são os programadores da mostra


Perspectivas do Cinema Português.

Mostra Perspectiva do Cinema Português

24/7, às 17h e às 20h30

Cinemateca Brasileira – Largo Senador Raul Cardoso, 207 – São Paulo (SP)

UMA CHAMA NO ESCURO - CARTA BRANCA A PEDRO COSTA

Nascido em Lisboa, em 1959, Pedro Costa possui uma das mais sólidas e incontornáveis
trajetórias do cinema contemporâneo. “Vitalina Varela” (2019), sua produção mais recente,
venceu o Golden Leopard (Leopardo de Ouro), prêmio máximo do Festival Internacional de
Locarno. “Juventude em Marcha" foi candidato à Palma de Ouro no Festival de Cannes em
2006 e considerado o segundo melhor filme estreado em França em 2008, pela icônica
revista Cahiers du Cinema. O filme do cineasta português ficou em primeiro lugar nas listas
pessoais dos críticos Jen Pierre Rehm, Charlotte Garson e Cyril Neyrat.

Dono de um estilo bastante característico, os filmes do Costa são caracterizados por


enquadramentos rigorosos, planos de longa duração e um trabalho de fotografia que os
aproxima dos chiaroscuros de pintores barrocos, como Caravaggio e Tophime Bigot. Em
sua obra, o realizador registra o seu país assombrado pelo legado colonialista. A partir de
“Casa de Lava” (1994), filma os imigrantes cabo-verdianos que fazem a diáspora entre a
antiga colônia e Portugal, onde começam a trabalhar como mão de obra barata e morar nos
“bairros de lata”, comunidades periféricas nos arredores de Lisboa.

Foi na realização de “Ossos” (1997), filmado nos bairros Estrela D'África e Fontainhas, em
Lisboa, que o cineasta percebeu que a forma tradicional de fazer cinema o impedia de se
aproximar daquele universo. No seu filme seguinte, “No quarto da Vanda” (2000), Costa
abdica das grandes equipes e maquinários para passar a utilizar câmeras digitais portáteis
(DV) em longos períodos de filmagens nos quais constrói uma relação íntima e profunda
com as pessoas que retrata, e assim, acaba por tensionar as fronteiras entre documentário
e ficção. Pelo que extrai das novas tecnologias, “No quarto da Vanda” é considerado um
filme pioneiro e objeto de enorme influência no cinema feito nos anos 2000 em diante. Nas
palavras do crítico francês Cyril Neyrat, “Costa foi o primeiro a colocar a DV à altura de Ozu
e de Straub e a extrair dela as luzes de Tourneur para reanimar no ecrã a energia primitiva
do cinema”.

Pedro Costa traz no bojo de sua obra as marcas de quem entende o cinema como uma
forma de arte popular e, ao mesmo tempo, testemunha do mundo, expondo e refletindo
seus principais conflitos. A incorporação de traços de cineastas de outras épocas à estética
de Pedro Costa se deu ao longo de anos de formação cinéfila, seja através das aulas na
Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa ou frequentando as sessões da Cinemateca
Portuguesa, onde tomou conhecimento dos grandes autores do passado e das experiências
enérgicas da modernidade.

Costa manteve uma compreensão ativa da história do cinema, entendendo que os filmes do
passado fecundam o presente: existe neles um manancial de formas e temas à espera de
atualização por quem as descobre em épocas seguintes. Por isso, é possível traçar a partir
dos seus filmes filiações diversas com outros autores. Da mesma forma que a
compreensão dos filmes de Pedro Costa se aprofunda a partir do conhecimento dessas
obras, seus filmes permitem uma reflexão nova e inusitada em cima do que veio antes,
revelando e estabelecendo conexões que, de outra maneira, poderiam permanecer
invisíveis.
A mostra “Uma Chama no Escuro - Carta Branca a Pedro Costa" propõe reunir um conjunto
de obras que atravessam mais de um século de história do cinema, através de um convite
ao realizador português, para que ele escolha os filmes que o influenciaram e foram base
para a sua formação enquanto cineasta. Seguir o fio da história do cinema através da
curadoria de um realizador imprescindível como este é uma oportunidade ímpar que terá o
público do CCBB de se aventurar por novos caminhos pelo desenvolvimento desta arte.

O título escolhido para esta a possui múltiplos significados. Primeiro, faz alusão ao próprio
cinema de Pedro Costa, composto de planos escuros, preenchidos principalmente por
sombras, mas iluminados aqui e acolá pela luz que entra por frestas, janelas, portas, e
principalmente, pelos rostos e olhares de suas personagens, que parecem chamejar na
escuridão. Também podemos pensar no dispositivo cinematográfico como um todo: no
interior de uma sala de cinema: na tela, vibra a luz vinda do projetor, dando vida às formas
que nos fascinam e nos interessamos em acompanhar por determinada duração.
Finalmente, a metáfora nos traz a imagem de uma fogueira. Em volta dela, podem ser
contadas histórias vindas de um passado distante, que atravessaram gerações até chegar
ao presente para serem recontadas por quem as recebe. Este será o principal intuito da
mostra que terá em Pedro Costa o seu principal narrador.

Auxiliando o trabalho de Pedro Costa na concepção da mostra, escolha de filmes e


debates, estão os co-curadores e idealizadores deste projeto: Yuri Lins, realizador de
cinema e produtor/curador da mostra “Perspectivas do Cinema Português”, Bruno Andrade
e Matheus Cartaxo, ambos críticos de cinema e editores da Foco - Revista de Cinema. A
equipe curatorial ficará responsável por mediar as mesas com os pesquisadores
convidados, bem como promover, ao final de cada dia de exibição, debates acerca dos
filmes exibidos.

ANÁLISE DE MECANISMOS DE CONFLITO E ELEMENTOS DE ESTRUTURA EM


FILMES

“The Deer Hunter (Michael Cimino, 1978)”


Por Yuri Lins

The Deer Hunter é um drama de guerra de 1978, escrito e dirigido por Michael Cimino. Sua
narrativa centra-se na história de três amigos Michael (Robert De Niro), Steven (John
Savage) e Nick (Christopher Walken), operários de uma fábrica na Pensilvânia e que
decidem se alistar nas forças armadas para lutar na Guerra do Vietnã. Lá, eles acabam
sendo capturados pelos soldados vietcongues e passam a sofrer torturas físicas e
psicológicas, sendo obrigados a jogar roleta-russa entre eles. Michael e Steven conseguem
voltar para casa, tendo este último tornado paraplégico, ao passo que Nick, completamente
zumbificado pelos traumas da guerra, entrega-se às disputas de vida ou morte em roletas-
russas clandestinas no que restou do país asiático. Caberá a Michael voltar ao Vietnã para
tentar resgatar o seu amigo.

Podemos destrinchar “The Deer Hunter” em quatro blocos narrativos que se sucedem a
partir de elipses bem delimitadas: no primeiro ato, nos são apresentados os protagonistas
e o universo que os rodeiam: acompanhamos a saída do grupo de amigos de um
expediente na fábrica metalúrgica onde trabalham. Todos estão animados, pois aquele será
o dia do casamento de Steven com a sua companheira Ângela (Rutanya Alda), além de ser
a festa de despedida deste grupo que irá à guerra. Esta sequência dura a primeira hora do
filme, somando-se também a algumas cenas que precedem a viagem, como o momento em
que os amigos fazem uma caça aos cervos nas matas e montanhas da cidade, prática que
evoca toda a cultura local e de seus habitantes, bem como a natureza dos protagonistas,
em especial Michael, que possui uma relação quase metafísica com o ato de caçar,
integrado completamente à paisagem e à natureza.

Cimino filma esta primeira hora da narrativa sob o signo de uma tragédia que espreita e que
marcará aquele universo de forma irreconciliável, relação tal que faz com que, ao final do
filme, estes primeiros momentos ganhem uma preciosidade ímpar. Seu grau de
negatividade é o “positivo”, pois ele é a própria síntese deste conceito: o bloco de ações
que precede a ida ao Vietnã é marcado por uma combustão de vida, uma representação do
ápice da alegria, da amizade, da vida em comunidade e do sonho americano. Diante dos
olhos dos espectadores desaguam uma vastidão de situações de uma pureza quase
inatingível, como se a nós fosse permitido contemplar a verdadeira face da felicidade uma
última vez. No entanto, a chegada da guerra anuncia o trágico e o segundo ato do filme.

Do idílio enérgico do primeiro ato, uma elipse brusca nos joga diretamente no conflito da
guerra do Vietnã. Podemos compreender a guerra como a própria força antagônica do
filme, dado que ela é o seu tema, ampliado na premissa de versar sobre os profundos
impactos que os processos de violência do conflito armado têm sobre aqueles que
participam dele - e, sendo assim - a articulação que o roteiro opera é o de equilibrar as
dimensão externa do conflito com a realidade sensível dos seus protagonistas,
adentrando no universo interior de suas psiques no momento em que são confrontados
com a violência, além de demonstrar a forma como isto se perpetua nas suas constituições
enquanto indivíduos e membros da sociedade.

Cimino opta por suprir tudo o que seria responsável por apresentar o novo lugar sob a ótica
das personagens; ele já as insere num contexto de alta voltagem de violência e horror:
Michael, Nick e Steven estão em desvantagem em um cenário dantesco, onde um soldado
vietnamita, quase um autômato, explode granadas dentro de um bunker de refugiados e
atua para matar os soldados americanos. Por fim, os três amigos acabam sendo capturados
e levados a um cativeiro, no qual, estando prisioneiros, precisam se submeter a um jogo de
roleta-russa, onde a vida e a morte dependem do giro certeiro no tambor da arma. A captura
dos protagonistas é o incidente essencial apresentado neste segundo ato, pois, é a partir
dele que a narrativa avançará numa dinâmica de fratura, separação e reencontro, os
problemas dramáticos da narrativa. Seu grau de negatividade equivaleria ao “contrário”,
pois o cenário e a tragédia da guerra são diametralmente opostos a tudo o que é construído
e apresentado no primeiro ato: se lá temos a profusão da vida, aqui temos demolição
completa.

Nesta cena, é interessante observar como Cimino concentra toda a abjeção da guerra numa
sequência de enclausuramento em um espaço limitado, onde os conflitos e tensões se dão
com as personagens frente a frente, há menos de um metro de distância. “The Deer Hunter”
não é um filme como “Platoon” (Oliver Stone, 1986) ou, mais recentemente, “1917” (Sam
Mendes, 2019), onde o campo de batalha é visto em sua vastidão caótica, sendo ele o
palco onde dilemas são enfrentados. Aqui, pouco se vê da guerra como um oceano de
confrontos, e sim como ela opera no corpo e na mente das personagens. Cimino encara a
morte de frente: o que seus personagens experienciam é o máximo da ambivalência que
existe entre estar vivo ou morto. Vemos toda essa conturbação limite nos rostos e gestos: o
desespero num urro visceral e sem voz de Steven ao ouvir o som da bala atingindo o
crânio dos perdedores do jogo e o riso animalesco dos carcereiros que se regozijam com o
horror, ou nas expressões de Nick, indescritível através de palavras, no momento certeiro
em que ele precisa acionar o gatilho da arma com ela apontada contra a própria cabeça. A
crueza destas cenas é como se Cimino estivesse a documentar, com rigor científico, sem
cortes ou elipses, o preciso momento em que um espírito é quebrado.

O dilema deste ato é a necessidade da sobrevivência a qualquer custo: os três amigos


conseguem fugir do cativeiro através de um plano de Michael, o único que conseguiu se
manter racional diante de tal experiência, ao ponto de pensar na única saída possível,
suicida em essência, de propor aos soldados inimigos que ele, na sua rodada do jogo,
jogasse não apenas com uma bala, mas com três - o que aumentaria a sua chance de cair
morto, mas que, caso isto não acontecesse, teria munição para um último gesto
desesperado de sobrevivência - o que acaba acontecendo numa sequência tão intensa
quanto uma contenção que explode. O segundo ato termina no momento em que os três
amigos são separados: depois de adentrarem num rio para tentar escapar, eles são
resgatados por um helicóptero aliado. Nick consegue subir a bordo, mas Steven cai nas
águas, onde fratura as pernas, que acabarão por serem amputadas, e Michael pula para
tentar salvar o seu amigo. O sucesso da fuga e a separação do grupo são os pontos de
virada do segundo ato e a situação central para o desenvolvimento subsequente da
narrativa. No seu final, Michael entrega Steven para ser cuidado em um hospital e
desaparece para retornar, no terceiro ato, à sua cidade como herói de guerra. Nick, por sua
vez, internado em o hospital vietnamita, começa a demonstrar traços de estresse pós-
traumático, culminando em sua deserção do exército e no seu desaparecimento no país
asiático. Podemos afirmar que este episódio consiste no incidente acessório do filme, uma
vez que ele semeia algo que será mote do quarto ato do filme.
O terceiro ato inicia com uma elipse em que acompanhamos o regresso de Michael à
cidade de Clairton. Retornamos às paisagens do primeiro momento do filme, no entanto,
vistas pela ótica um homem profundamente marcado pela experiência do horror, de forma
que seu corpo se movimenta como que em dissociação com o entorno . A cidade e a vida
contida nela já não possui para Michael o mesmo sentido como aquele que ficou
preservado no primeiro ato. A partir dos graus de negatividade, aqui temos o
“contraditório”, uma vez que retornamos ao espaço do positivo, porém, agora em outra
chave, sem o peso da alegria e beleza que compreendia no primeiro ato. Duas cenas
sintetizam bem este movimento de descompasso: logo na sua chegada, de dentro de um
Táxi, Michael vê, na aproximação, a festa de boas vindas que os seus amigos prepararam
em sua casa. Instintivamente, ele abaixa-se dentro do carro e pede para o motorista seguir
em frente, acabando por ficar uma noite num hotel qualquer, lugar de simbólica
impessoalidade e deriva. Noutra cena, mais uma de caça, vemos novamente Michael
andando pelos bosques e montanhas na espreita de sua presa, acompanhamos os passos
meticulosos de sua busca pelo cervo; mas há algo errado com seus gestos, ele erra a mira
e o animal foge. O protagonista está em desarranjo com o seu mundo, como que extirpado
da sua lógica intrínseca; ele só encontrará âncora no reencontro com a mulher amada,
Linda (Meryl Streep) e com o companheiro de armas Steven, que agora vive sobre uma
cadeira de rodas e encarcerado, por trauma e por medo do mundo de fora, dentro de um
hospital para veteranos.

Michael faz o esforço de retirar Steven de seu clausuro no hospital, fazendo com que ele
retorne para a família. Neste encontro, ele descobre que Nick, aquele que não retornou,
manda regularmente uma quantia de dinheiro para Steven em cheques remetidos do
Vietnã. O quarto ato do filme começa com um novo dilema: Michael precisa voltar ao
cenário da guerra para resgatar o seu amigo e, de alguma forma, restituir um mundo que se
perdeu. Aqui a narrativa ganha ares mais próximos do modelo clássico de conflito proposto
por D. Howard e E. Mabley: já possuímos a empatia necessária com as personagens,
Michael é alguém que quer desesperadamente encontrar algo, encontra imensas
dificuldades na busca, tendo que lidar com um país destruído e em processo de convulsão
social e emigração. O impacto emocional é profundo, uma vez que Michael encontra Nick
em uma roda de roleta-russa clandestina, onde homens bestiais apostam contra ou a favor
da morte de um dos participantes, reproduzindo o mesmo jogo de horrores que o
traumatizou completamente. Nick agora é praticamente um zumbi sem alma ou memória,
completamente dissociado e entregue a uma dinâmica suicida - ele é a própria negação da
negação, visto que é corpo vivo, mas de alma morta, um ser humano desumanizado pelo
trauma. Caberá a Michael entrar no jogo para, dentro das próprias regras da psique de Nick,
tentar trazê-lo novamente à vida, fazendo com que, a cada rodada da roleta, seu amigo
recorde do tempo que antecede a guerra; das pessoas, paisagens e sentimentos que
esperam o seu regresso. No entanto, chegamos ao clímax do filme e a afirmação de sua
natureza trágica: quando surge um lampejo de humanidade na face de Nick ao recordar da
caça com os amigos, a bala acionada atinge seu crânio e o faz morrer diante do desespero
de seu amigo.

O final do quarto ato funciona como um epílogo e uma culminância, uma assinatura final
da fratura irreconciliável que acometera aquele grupo de jovens operários americanos que
perderam tudo por uma guerra abjeta: após o funeral de Nick, os amigos se reúnem para
tomar café manhã; completamente fatigados pelo gesto de despedida, como se o próprio
processo fúnebre fosse um campo de batalha onde as esperanças são perdidas.
Inconscientemente, afundados no luto, eles começam a cantar a música "God Bless
America" (Deus Salve a América) uma música patriota americana, originalmente escrita por
Irving Berlin em 1918, e que sintetiza a mentalidade estadunidense sobre sua superioridade
perante o mundo e a necessidade de que cada cidadão afirme os valores do país. A
canção, cantada depois de tudo que os personagens experienciaram, ganha uma potente
conotação política e aponta para o irracional intransponível da natureza da guerra e da
essência dos preceitos morais que regem aquela cultura. A complexidade deste epílogo é
fazer confluir todos os graus de negatividade construídos ao longo do filme: o grupo de
amigos está reunido novamente, mas com uma ausência significativa, a cidade é a mesma
mas ela jamais será igual a antes, o patriotismo continua, mas agora completamente
necrosado, a guerra terminou, mas a vergonha é certa e não há honra possível que
justifique o que Michael, Steven e Nick passaram. Ao fim, “The Deer Hunter” faz lembrar a
última frase dita pelo Capitão Boeldieu (Pierre Fresnay) antes de morrer, em “A Grande
Ilusão” (Jean Renoir, 1938): “Para um homem do povo é terrível morrer na guerra”.

“Rear Window (Alfred Hitchcock, 1954)”

Por Yuri Lins


O gênero dramático consiste, principalmente, na sucessão de ações imbricadas a partir da
noção de causa e efeito. O cinema clássico americano talvez tenha sido aquele que melhor
desenvolveu as potencialidades do gênero dramático dentro das próprias possibilidades que
o cinema oferecia enquanto forma de arte - a mise en scene como palco para o drama, a
montagem como encadeamento e harmonia, o som como imagem do fora de campo; tudo
confluía para que todas as histórias almejadas pudessem ser narradas e experienciadas
através de um meio e uma linguagem inteligível, como se o cinema pudesse dar a ver, na
fisicalidade da sua construção, a dimensão da alma das suas personagens e o sentido
universal da moral empreendida. Se, nos anos 30, o cinema chegou à sua perfeição
narrativa (Stagecoach, Bringing Up Baby), os anos 40 inauguram a era da psicanálise e da
vanguarda aplicada ao drama, aumentando seu lastro de ação (Citizen Kane, Pursued,
Spellbound), os 50 já consegue olhar para a sua história e apontar traços de
autoconsciência e depuração das suas formas (Sunset Boulevard, Some Came Running),
já apontando para o que virá a ser o cinema moderno dos anos 60. É pensando neste
sentido de depuração e autoconsciência que a escolha de Rear Window (Alfred Hitchcock,
1954) é basilar para compreendermos o gênero dramático.

O filme acompanha o fotógrafo L. B. "Jeff" Jefferies (James Stewart), que, devido a uma
perna engessada, está confinado a seu apartamento em Greenwich Village, Nova York.
Entediado, ele passa a observar seus vizinhos através de sua janela: uma bailarina que
ensaia passos de dança, uma mulher solitária e seus encontros fortuitos, um compositor
em bloqueio criativo, um casal e seu cachorro, e um vendedor e a sua esposa enferma, a
quem Jeff suspeita de ter sido assassinada pelo marido. Com a ajuda de sua namorada
Lisa (Grace Kelly) e a sua enfermeira Stella (Thelma Ritter), Jeff vai, a todo custo, tentar
provar tal crime.

Em Rear Window há uma redução substancial à uma forma essencial do fazer


cinematográfico. Se em filmes como “ The 39 Steps” (1935) ou “Spellbound” (1948) a
narrativa dá-se a partir de uma trama que se desenvolve em vários cenários, personagens e
trânsitos, em Rear Window estamos condicionados ao que uma janela permite de
contemplação e indagação sobre as coisas do mundo exterior; os limites da narrativa e do
suspense são reduzidos ao campo de visão que o protagonista possui, aquilo que de sua
janela é possível captar da vida privada de seus vizinhos. A dimensão dramática é
atomizada na ação e na reação do protagonista diante daquilo que experiencia na
exterioridade de seu microcosmo.

Suspense de distâncias, teatro de fragmentos da vida cotidiana. Um homem reage ao que


vê e, através de um jogo de dedução e elucubração, traça em sua mente os passos lógicos
da trama de um crime. Sabe-se que Rear Window é uma superprodução de Hollywood,
fruto da estatura de Alfred Hitchcock no seio da indústria; a aparente sensação de realismo
de suas locações são fruto de uma reconstituição detalhista (e cara) nos estúdios da
Paramount. É interessante observar como a produção empreendeu tantos esforços para
possibilitar um filme que, em essência, retoma e potencializa um dos experimentos mais
fundamentais da gramática cinematográfica: a encenação e a montagem de Hitchcock parte
daquela utilizada pelo realizador e teórico soviético Lev Kuleshov em seu famoso
experimento (“Efeito Kuleshov”): um plano de alguém que contempla em associação ao
plano daquilo que é contemplado por ele, para logo em seguida a montagem retornar ao
plano de quem observa, por vezes com uma variação na sua escala, significando o maior
ou menor interesse por parte da personagem naquilo que seus olhos apreenderam.

Uma cena ilustrativa: já na noite avançada, como usualmente, sem vírgula Jeff observa,
entre cochilos, o movimento de alguns moradores dos prédios frente ao seu. Em
determinado momento, algo chama a sua atenção de forma mais contundente: o vendedor
Lars Thorwald (Raymond Burr) deixa seu apartamento carregando uma mala de viagem.
Uma elipse feita com dois planos consecutivos, em close, do relógio de Jeff anunciam a
passagem de tempo transcorrida até o retorno de Lars. Aqui, os cochilos do protagonista
atuam como elipses, sempre retornando para o momento em que Lars Thorwald sai e
retorna ao seu apartamento carregando uma mala. Todo este jogo é mostrado através de
uma cadência de planos que, inicialmente, mostram Jeff olhando através de sua janela,
para logo em seguida entrar um plano daquilo que Jeff olha; este plano configura-se como
um produto subjetivo do protagonista, uma imagem mental selecionada por seus olhos.

É certo que a principal característica do estilo de Alfred Hitchcock é o seu talento em guiar
e manipular a atenção do espectador através do olhar da câmera. O que Rear Window
desvela de forma tão concreta é o poder do diretor em nos fazer habitar a dimensão dos
desejos das personagens, um lugar onde os afetos mais conflitantes habitam em choque
com a moral; e este habitar é construído com elementos muito concretos em articulação
dentro de estrutura dramática frontal e que acaba por atingir coeficientes abstratos da
experiência humana (seus medos, desejos, suspeitas,...) - e que poderia ser desenvolvido,
de forma mais íntima e sensorial, dentro do gênero lírico.

O gênio de Hitchcock é fazer com que se tenha acesso às suas mente no momento em que
elas refletem e reagem ao que os seus olhos contemplam da exterioridade do mundo.
Sendo assim, o espectador é colado com muita precisão à experiência subjetiva do
protagonista, sendo permitido que suspeite, reflita e calcule junto com ele. Em Hitchcock,
filma-se o nascimento de um pensamento e o seu crescimento no desenvolvimento do
drama.

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