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pedagogia

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 315, 03 de Setembro | 2018

Violência nas escolas

Violência na Colômbia: Medellín


combate anos de terror com
pedagogia
Na cidade colombiana que ficou conhecida por seu cartel de drogas, décadas
de violência são superadas com investimento em Educação e mobilização
social
Juliana Holanda

CAMINHOS: Mónica aponta a alunos de regiões violentas alternativas de vida fora do tráfico.
Crédito: Felipe Alarcon

Mónica Galeano chega para trabalhar às seis. As aulas na Instituição Educativa La Esperanza, assim
como na maior parte das escolas de Medellín, começam às 6h30. Ao entrar na sala para ministrar sua
disciplina, Cátedra para a Paz, ela tem em mente discutir os impactos da violência do narcotráfico na
comunidade, uma das mais atingidas pela guerra entre os cartéis da droga e o Estado entre 1980 e
1990. Quando fala sobre as vítimas de Pablo Escobar, é questionada por um dos alunos: “Mas,
professora, o Escobar deu uma casa à minha mamá”.

É inegável que, 24 anos depois da Grande Desordem, período em que o país enfrentava a violência
armada do Cartel de Medellín, a cultura do enriquecimento rápido e a presença do narcotráfico
continuam visíveis. Mesmo em menor escala, as instituições educativas ainda enfrentam desafios
relacionados ao poderio de organizações criminosas herdeiras dessa fase sombria.

O narcotráfico e o Cartel de Medellín são a face mais visível da violência colombiana. Mas o país foi
palco de um cenário muito mais complexo de disputas. E a capital da Antioquia, Medellín, foi o
epicentro da urbanização da guerra. Paramilitares (semelhantes às milícias), guerrilheiros,
narcotraficantes e agentes do Estado implantaram um repertório de atrocidades.

Nas escolas, o conflito armado afetou alunos e professores. Além das vítimas de assassinato, muitos
sofreram ameaças e tiveram que sair de seus locais de origem às pressas.

O bem-sucedido acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), assinado
em 2015, veio acompanhado de um intenso processo de mobilização social e da implantação de novas
políticas de segurança. E hoje a cidade de Medellín é reconhecida internacionalmente como um centro
de superação e inovação, acumulando prêmios em diversas áreas.

DÉCADAS DE VIOLÊNCIA

MEMÓRIA: Professores lidam com efeitos da violência na Cátedra para a Paz. Crédito: Felipe
Alarcon

O conflito armado colombiano remonta à década de 1960, mas foi dos anos 1980 até meados dos anos
2000 que viveu seu período mais intenso de disputa entre grupos guerrilheiros de extrema esquerda,
como as Farc, e o Estado.

Nos anos 1990, surgiram os paramilitares (grupos armados de extrema direita para acabar com as
guerrilhas). Ambos os lados se beneficiaram dos recursos financeiros do narcotráfico.

Sem força para garantir a ordem, o Estado apelou para práticas ilegais como desaparecimentos e
atentados. “O fortalecimento político e econômico do paramilitarismo foi usado como estratégia de
erradicação dos insurgentes. E esse foi o período de mais sangue na Colômbia”, relata Ariel Gómez,
professor e pesquisador do mestrado em Educação e Direitos Humanos da Universidade Autônoma
Latino-americana.

E, nesse processo, o paramilitarismo também tomou Medellín. “Especialistas afirmam que 50% dos
bairros estavam monopolizados por paramilitares”, diz. Entre 1980 e 2005, a cidade ficou conhecida
como a mais violenta da Colômbia, da América Latina e do mundo.

Nesse contexto, o ambiente escolar não foi poupado, e, ao contrário das balas perdidas que acometem
o Rio de Janeiro, na Antioquia os tiros foram direcionados para dentro das escolas. Em 20 anos, quase
400 professores foram assassinados. Especialmente nas zonas rurais, escolas foram usadas como
quartéis e centros de tortura e recrutamento. Em 2005, 20% das crianças que deixavam a escola
justificavam a evasão por “violência do bairro”, de acordo com a secretaria de Educação. Segundo o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Colômbia era, em 2003, o terceiro país do mundo
com maior número de crianças-soldados, atrás do Congo e da Libéria. As escolas também foram
fortemente afetadas pelos “deslocamentos forçados”: famílias obrigadas a mudar de cidade por causa
da violência.

Segundo um relatório elaborado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
(Unesco) de 2011, a Colômbia era o segundo país do mundo com mais população nesse cenário de
migração: mais de 7 milhões de pessoas haviam saído de suas casas. Metade delas eram menores de
18 anos. O professor Jhon Jairo Osorio viu, na prática, as consequências desse “desenraizamento”.
Pesquisando o comportamento agressivo dos alunos em Turbo, a 300 quilômetros de Medellín,
percebeu que a maioria vinha de outros municípios, deslocados pelo conflito e pela violência armada.
“Todo esse entorno se refletia no comportamento dos alunos, no tom de voz alto, agressivo e violento
que impedia a aprendizagem”, diz Jhon.

Ainda na década de 1990, Medellín começou uma tentativa de acordo de paz com as milícias populares,
enquanto ocorriam processos de negociação entre o governo colombiano e as Farc. Mas ambas as
tentativas foram frustradas. Foi neste momento, então, que se organizaram grupos juvenis, culturais e
ONGs contra a violência.

A partir de 2004, a cidade viveu um período de políticas educacionais progressistas. “Esta é uma das
cidades que mais avançaram: gratuidade, infraestrutura, construção de parques bibliotecas [centros
culturais com espaço verde], colégios de qualidade”, lembra Ariel Gómez.

O governo atual, entretanto, tem privilegiado ações como o Rota Segura, que coloca policiais ao redor
das escolas para garantir o deslocamento. “Mas isso é muito conjuntural. Em uma semana voltam o
medo, as ameaças”, diz o professor de Ciências Sociais Elkin Ospina.

PEDAGOGIA PARA A PAZ

Em 2015, um decreto legislativo estabeleceu que todas as escolas colombianas, deveriam adotar uma
Cátedra para a Paz. Hoje há mais de 30 projetos diferentes. Na escola La Esperanza, a professora
Mónica Galeano coordena aulas de uma hora por semana, para alunos do 6º ao 9º ano (11 a 18 anos).
Inspirada em Paulo Freire e Hannah Arendt, Mónica trabalha com a memória. Ela diz que os alunos
mais novos ainda validam os “sicários” (pistoleiros do Cartel de Medellín), e os presentes de Pablo
Escobar. Mas, ao chegarem ao 9º ano, já se distanciam dessa cultura e passam a ser mais reflexivos
sobre a violência.

Quando lhe pergunto o que diria a um professor do Brasil que passe por uma situação semelhante,
Mónica responde sem titubear: “Uma aula pode ser um lugar para dizer ao estudante que, por mais
que ele esteja em um território afundado em narcotráfico, em assassinatos, não é preciso atuar da
mesma maneira. Que sua aula seja tão inspiradora que implique que o outro veja que essa não é a
única opção”.

PAULO FREIRE INSPIRA


PROJETO

Programa voltado para a comunidade


escolar foi construído com base nos
princípios do educador pernambucano
Fundado em Medellín em 1982, o
Instituto Popular de Capacitação (IPC)
foi inspirado nos princípios de
Educação popular do pernambucano
Paulo Freire (1921-1997):
transformação, leitura crítica da
realidade e construção da democracia,
poder popular e direitos humanos. Dos
anos 1990 até 2014, a ONG manteve,
com financiamento internacional, o
Programa de Educação e Cultura
Política, que visava trabalhar o direito
à Educação no contexto da violência.
Voltado para alunos, professores,
diretores, famílias e agentes públicos,
o programa formava a comunidade
escolar para a construção da
democracia e da paz. Os trabalhos se
organizavam em eixos temáticos
usando televisão, rádio, vídeo, grafite,
serigrafia e teatro. Hoje falta dinheiro
para os projetos. “Desde que a
Colômbia passou da categoria de
baixa para média renda, os
financiamentos foram para África e
Ásia”, diz Ariel Gómez, diretor do IPC.

ENTREVISTA: FLOR ALBA ROMERO

“É preciso encontrar um lugar e desaprender a guerra”

Segundo pesquisadora, escolas devem trabalhar para construir a paz com uma perspectiva
pedagógica

NOVA ESCOLA: Por que os docentes foram vítimas diretas da violência?


Flor Alba Romero: Ou eles eram defensores dos direitos humanos; ou eram militantes da
esquerda; ou eram pessoas que queriam defender a escola desde a perspectiva do direito
humanitário. Professores eram incômodos.

NE: A mobilização da sociedade civil foi determinante para que a Colômbia saísse do
conflito armado?
FAR: As iniciativas da sociedade civil foram importantes, mas ocorreram muitas pressões.
Acredito que outro fator importante para o acordo de paz foi um certo cansaço dos atores
armados com a guerra. Havia a percepção de que eles mantiveram essa guerra por muito
tempo e não conseguiram tomar o poder.

NE: Qual o papel da escola hoje?


FAR: É fundamental que o sistema educativo trabalhe a memória do que aconteceu, mas
também é preciso encontrar um lugar desde uma perspectiva de construção de paz, de
desaprender a guerra. Porque quando os conflitos armados duram muito tempo ocorre uma
naturalização da violência e o autoritarismo ganha espaço. O importante é que possamos
entregar elementos para a construção de paz com uma perspectiva pedagógica.

Flor Alba Romero é defensora dos direitos humanos na Colômbia. Em 2001, recebeu a
menção honrosa do Prêmio Unesco em Educação em Direitos Humanos.

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