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AFINAL, O FACHIN É “DE ALGUÉM”?

ANÁLISE SOBRE A DECISÃO DO HC 192.726 ED/PR

Álvaro Francisco Lima Silva


Carlos Fernando Rodrigues de Araújo
José Nicolas Duarte Correia
Luís André Duarte Falcão Neves
Lucas Ferreira Peixoto Santos
Pedro Fernando Brandão Alcântara Sobrinho

1. INTRODUÇÃO

Por meio de decisão monocrática no julgamento dos Embargos de Declaração


impetrados ao Habeas​Corpus ​193.726/PR, o Ministro Edson Fachin determinou a anulação
dos quatro processos (5046512-94.2016.4.04.7000/PR — referente ao Triplex do Guarujá;
5021365- 32.2017.4.04.7000/PR — caso do Sítio de Atibaia; 5063130-17.2018.4.04.7000/PR
— acusação de lavagem de dinheiro na construção da sede do Instituto Lula; e
5044305-83.2020.4.04.7000/PR — supostas doações irregulares ao Instituto Lula) interpostos
contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 13ª Vara Federal de Curitiba, pois, como
fundamentou o ministro, o juízo no qual os referidos pleitos foram tramitados é
territorialmente incompetente, o que implica na incidência causa de nulidade absoluta (art.
564, I, CPP) sob todos os atos decisórios presididos pelo ex-juiz Sérgio Moro nos casos
supracitados. Ainda que a tese da incompetência territorial seja alegada pela defesa do
ex-presidente desde o início das ações, Fachin argumentou que, somente agora, após a
formação de precedentes no Supremo Tribunal Federal relacionados à competência da 13ª
Vara Federal de Curitiba nos casos da Operação Lava-Jato — os quais a limitam ao
julgamento dos delitos diretamente relacionados à Petrobras S.A. — e pelo avanço das
investigações, pôde-se concluir que os crimes aos quais Lula é acusado, além de serem
conexos (o que acarreta na reunião para julgamento em um único juízo, sob os termos do art.
79 do CPP), não dizem respeito à delitos que prejudicam exclusivamente a empresa
petrolífera nacional, mas, sim, práticas que supostamente constituem um complexo modus
operandi governamental e estão intrinsecamente ligadas ao período em que o ex-presidente
Lula estava investido de seus poderes executivos no Palácio do Planalto.
Como consequência imediata da decisão, além da anulação dos atos decisórios
praticados nos referidos processos, os Habeas​Corpus ​anteriormente impetrados pela defesa
do ex-presidente que alegavam a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nas ações penais
supracitadas perdem, em tese, seus objetos jurídicos (possibilidade sobre a qual
discorreremos ao longo da presente análise), e, Lula, por ter sua condenação anulada, não é
mais atingido pela causa de inelegibilidade prevista na Lei Complementar nº 64/1990, art. 1º,
e, sendo, portanto, elegível ao pleito de 2022. Além disso, com a incidência da nulidade
absoluta abrangendo, inclusive, as decisões de recebimento de denúncia propostas ao juízo
incompetente, os crimes imputados aos ex-presidente podem vir a ser considerados como
prescritos, haja vista que, além do longo período transcorrido desde a suposta prática delitiva,
o acusado, por ter mais de 70 anos, tem os prazos prescricionais reduzidos à metade
(conforme determina o art. 115 do Código Penal).

Nesse contexto, o presente trabalho visa abordar as fundamentações legais e


doutrinárias utilizadas para declarar a incompetência territorial do juízo anterior, analisar as
possibilidades jurídicas das consequências (possíveis e certas) da decisão e compreender o
contexto político que entorna todo o julgamento, buscando visualizar se há alguma influência
externa no fato da decisão ter sido tomada somente agora, anos após as primeiras alegações
da defesa de Lula sobre a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba.

2. QUESTÃO PROCESSUAL

2.1 Considerações acerca da competência territorial

A competência consiste na delimitação física, material e local do exercício dos


poderes jurisdicionais do Estado, ou seja, a área onde o juiz pode prestar a jurisdição a qual
está investido (CAPEZ, 2020, p. 267). Nesse sentido, o art. 70 do Código de Processo Penal
explicita que a competência será determinada, em geral, pelo lugar em que se consumar a
infração, ou, no caso de tentativa, onde tiver sido praticado o último ato de execução.
Todavia, para um aprofundamento na análise do caso em questão, faz-se necessário
compreender as determinações previstas no artigo 76 e 78 do mesmo diploma legal, os quais
preceituam as hipóteses de cabimento da fixação (com caráter residual) de competência por
conexão — que se adequam às ações penais referidas, pois os delitos alegados nestas, além
de supostamente terem sido praticadas por um mesmo grupo de pessoas em concurso,
também foram praticadas para facilitar outros, como é o caso da lavagem de dinheiro, e,
possuem, portanto, conexão probatória entre si — e preconizam que na determinação do juízo
jurisdicionalmente apto preponderar-se-á , respectivamente, o local i​​) onde foram praticados
os crimes com penas mais graves e ii​​) onde tiver ocorrido o maior número de infrações, nos
casos em que os crimes sejam de mesma gravidade.

No âmbito da Lava-Jato, o entendimento fixado no Supremo Tribunal Federal acerca


da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba nas ações penais provenientes das
investigações da Operação Lava Jato é de que esta se limita aos delitos praticados em
detrimento da Petrobras S.A. e àqueles que, ainda que não relacionados diretamente à
referida estatal, tenham sido praticados dentro das circunscrições territoriais do estado do
Paraná. (vide INQ 4130; INQ 4327; Habeas Corpus nº 132.295/PR; PET 8090 AgR e PET
6863)

No entanto, na prática, o que se observou foi a ocorrência de um fenômeno o qual


Aury Lopes Júnior (2018), ironicamente, chama de “competência esponja”, haja vista que
esta absorve tudo o que for possível, inclusive o que não lhe cabe. Com efeito, a 13ª Vara
Federal de Curitiba utilizou-se do conteúdo presente nas colaborações premiadas instauradas
em processos já em trâmite neste foro para tomar a si a competência de julgar os crimes
imputados a terceiros pelos colaboradores, como foi o caso das ações penais interpostas
contra Lula. Assim, os fatos provenientes da colaboração premiada eram utilizados como
modificadores de competência, constituindo uma clara afronta ao princípio do juiz natural
(art. 5º, XXXVII e LIII, CF), haja vista que cabe ao magistrado, ao analisar os instrumentos
jurídicos em questão, aproveitar somente as informações relevantes aos processos em que
elas são realizadas, de modo que os delitos que não sejam conexos devem ser remetidos aos
foros competentes, como destacado pelo ministro Edson Fachin nas fls. 22 da decisão em
análise. Além disso, foi utilizada uma tentativa de interpretação (demasiadamente) extensiva,
na qual todos os delitos imputados ao ex-presidente Lula apontavam, aos olhos dos
procuradores do Ministério Público Federal do Paraná, para a mesma direção (fazendo jus ao
famoso powerpoint​1​​), de modo a generalizá-los como práticas contra a Petrobras S.A.

1
O powerpoint​ao qual o trabalho se refere ficou famoso nas redes sociais por apontar, ainda que da forma mais
abstrata e caricata possível, que todos os passos da Operação Lava Jato convergiam para uma única figura:
Lula.. Para entender melhorr, faz-se imprescindível a leitura da matéria elaborada pelo jornal Poder 360,
dosponível em: <<
Assim, ainda que se reconheça que as condutas investigadas possuem conexão, uma
vez que são revestidas de um mesmo “modus operandi, (a partir do qual) foram celebradas
contratações revestidas de ilicitudes em benefício de agentes públicos” (p. 31) , as quais, com
o decorrer das investigações demonstraram serem características de um “mesmo método de
governança" (p.36) em que Lula é tido como “figura central de um grupo criminoso
organizado, com ampla atuação nos diversos órgãos pelos quais se espalharam a prática de
ilicitude” (p.40), estas não se configuraram como diretamente (e exclusivamente) voltadas à

Petrobras S.A., de modo que, em observação aos próprios entendimentos supracitados


do STF, não se faz possível a união de todas as ações penais na 13ª Vara Federal de Curitiba.
Na mesma linha, a partir das premissas já apresentadas no art. 70 e 76 do CPP e da inferência
de que as práticas delitivas imputadas ao ex-presidente ocorreram no período em que este
estava em exercício de seu mandato no Executivo federal — na cidade de Brasília, portanto
—, o juízo competente para o julgamento das ações penais conexas é uma vara federal da
Seção Judiciária do Distrito Federal.

2.2 A (in)consequente perda do objeto dos Habeas​Corpus ​e o conflito com o


princípio do Juiz Natural e do Devido Processo Legal:

Em virtude da incidência do art. 567 do Código de Processo Penal, o reconhecimento


da incompetência territorial do juízo prevento implica na anulação de todos os atos decisórios
proferidos naquele processo, de modo a, nas palavras do ministro Edson Fachin, ser possível
a convalidação dos atos instrutórios pelo novo foro competente .(p.45)

Como consequência direta dessa nulidade, o objeto dos Habeas Corpus interpostos
pela defesa do ex-presidente alegando a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro estariam, em tese,
prejudicados, pois, se os atos decisórios foram anulados, não haveria o que se falar em
parcialidade.

Para compreendermos a (im)possibilidade jurídica desse efeito, faz-se necessário


definir o que seria a parcialidade e sua importância no processo penal. Nesse sentido, como
conceituado por Aury Lopes Júnior (2016, p.62), a imparcialidade é um princípio supremo do
processo, sendo, na prática, pressuposto intrínseco à posição de terceiro que o Estado ocupa

https://www.poder360.com.br/lava-jato/conheca-o-powerpoint-usado-pelo-ministerio-publico-contra-lula/.​ >>
Acesso em 15 mar. 2021.
no litígio, ou seja, a premissa do juiz estar alheio aos interesses das partes. De mesmo modo
preceitua Gomes Filho (2013, p. 32), citado pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto
proferido no julgamento do HC 164.493/DF:

“A imparcialidade constitui um valor que se manifesta


sobretudo no âmbito interno do processo, traduzindo a
exigência de que na direção de toda a atividade processual
– e especialmente nos momentos de decisão – o juiz se
coloque sempre super partes, conduzindo-se como um
terceiro desinteressado, acima, portanto, dos interesses em
conflito”. (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A
motivação das decisões penais. RT, 2013. p. 32)

Com efeito, a necessidade de sua efetivação no processo é corolária dos princípios do


Juiz Natural e do Devido Processo Legal, sendo esta inerente à essência do exercício dos
poderes jurisdicionais do Estado, como destaca Zaffaroni (2000, p. 86):

“A jurisdição não existe se não for imparcial. Isto deve ser


devidamente esclarecido: não se trata de que a jurisdição
possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra
eficazmente sua função, mas que sem imparcialidade não
há jurisdição. A imparcialidade é a essência da
jurisdicionalidade e não o seu acidente” (ZAFFARONI,
2000, p.86)

Sendo assim, a imparcialidade caracteriza-se como um pressuposto processual de


existência, constituindo, portanto, questão que deve preceder a análise da competência, a qual
se configura como pressuposto de validade dos atos processuais. O art. 96 do Código de
Processo Penal também exprime essa relação prioritária de análise, uma vez que posiciona a
arguição de suspeição como anterior à qualquer outra. Assim, não há o que se falar em
prejuízo dos objetos dos habeas corpus impetrados pela defesa do ex-presidente que eram
sustentados nessa matéria, pois, como alegado pelos próprios advogados de Lula: “a decisão
está em sintonia com o que a defesa alega há anos, mas não repara os danos causados pelo
ex-juiz Sérgio Moro à imagem do ex-presidente2​​”.

No mesmo sentido, a possibilidade de aproveitamento dos atos não decisórios


produzidos na 13ª Vara Federal de Curitiba, tais como a oitiva dos depoimentos, o

2
Disponível em: <<
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/03/08/defesa-de-lula-diz-que-decisao-de-fachin-naorepara-da
nos-causados-por-moro-e-pela-lava-jato.ghtml ​>>. Acesso em: 16 mar. 2021.
interrogatório e a produção de provas, enseja ainda mais a imprescindibilidade de se dar
continuidade ao julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro pois, afinal, como seria
possível utilizar os meios probatórios elaborados sob a égide de um magistrado parcial?
Assim, o reconhecimento da incompetência absoluta do julgador acarreta na necessidade de
anulação de todos os atos do processo. (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 317)

2.3 Demais consequências da decisão

A partir da anulação das condenações proferidas contra Lula, o ex-presidente deixa,


imediatamente, de ser incidido pela causa de inelegibilidade prevista na Lei Complementar nº
64/1990, art. 1º, a qual foi responsável pelo indeferimento de sua candidatura nas eleições
presidenciais de 2018, uma vez que, foi com base nela, que o ministro Luís Roberto Barroso,
relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fundamentou sua sentença para impedir
o registro da chapa petista no pleito daquele ano. Importante lembrar também, que a medida
supracitada foi tomada em desrespeito à medida liminar expedida pelo Comitê de Direitos
Humanos da Onu, o qual, à época, destacou a existência de indícios plausíveis que
evidenciavam a possibilidade de danos irreparáveis (os quais foram efetivados) ao candidato.

Além disso, como a anulação dos atos decisórios também engloba a decisão de
recebimento de denúncia, os delitos imputados à Lula podem ser atingidos pelo fenômeno da
prescrição — que consiste na perda do direito estatal de exercer a ação penal por fatos
puníveis ou de executar a pena criminal imputada contra os autores dos delitos (CIRINO
DOS SANTOS, 2007, p.677) —, pois, devido à incidência do art. 115 do Código Penal, Lula
tem seus prazos prescricionais reduzidos à metade (haja vista que tem mais de 70 anos de
idade), de modo a implicar, nos presentes casos concretos, na possibilidade de que suas
denúncias só possam ser apuradas até, no máximo, 2022.3​

3. O PANORAMA POLÍTICO

Como um fato criminoso, a Operação Lava Jato pode ser entendida em seu contexto
de ocorrência, seu planejamento e premeditação, suas fases preparatórias, sua execução

3
O prazo prescricional máximo dos crimes aos quais Lula está sendo imputado é de 16 anos e, segundo a
denúncia, as atividades ilícitas mais recentes praticadas pelo ex-presidente foram consumadas no ano de 2014.
Logo, devido à redução dos prazos prescricionais à metade (8 anos), a prescrição se daria, em sua mais
extensiva hipótese, no ano de 2022.
(continuada), a produção de seus resultados e consequências e, finalmente, às reações a si,
pela sociedade e pelo Estado.

O tempo histórico e o início de sua premeditação se confundem, podendo ser primeiro


rastreados ao ano de 2004, quando o então juiz federal Sérgio Moro publicou o artigo
intitulado de “considerações sobre a operação mani pulite”, cujo resumo trazia sinteticamente
a ideia geral do que se tratava:

Traça breves considerações sobre a operação mani pulite,


na Itália, uma das mais impressionantes cruzadas
judiciárias contra a corrupção política e administrativa.

Discute as causas que precipitaram a queda do sistema de


corrupção italiano e possibilitaram a referida operação —
entre elas os crescentes custos, aliados a uma conjuntura
econômica difícil —, bem como a estratégia adotada para o
seu desenvolvimento.

Destaca a relevância da democracia para a eficácia da ação


judicial no combate à corrupção e suas causas estruturais e
observa que se encontram presentes várias condições
institucionais necessárias para a realização de ação
semelhante no Brasil, onde a eficácia do sistema judicial
contra os crimes de “colarinho branco”, principalmente o
de corrupção, é no mínimo duvidosa. Tal fato não escapa à
percepção popular, constituindo um dos motivadores das
propostas de reforma do Judiciário

Desta peça acadêmica se extrai os conceitos que seriam cruciais para o processo de
desenvolvimento da Operação Lava Jato, tais como “cruzada judiciária”, “sistema de
corrupção”, “percepção popular”, mas principalmente aqueles que ficam subjacentes na
admiração e vontade declarada de reproduzir em cenário nacional o espetaculoso inquérito
italiano. Não há, portanto, como iniciar uma análise política da autointitulada “maior
iniciativa contra a corrupção da história” sem falar antes de sua fonte inspiradora de origem,
a famosa e controversa operação mani pulite.

O caso que também é conhecido por outra alcunha jornalística, Tangentopoli, ou


literalmente traduzido como “Cidade do Suborno”, começou em fevereiro de 1992, quando o
procurador Antonio Di Pietro interrogou sob custódia Mario Chiesa, membro do Partido
Socialista Italiano, por aceitar propina de uma empresa de limpeza que prestaria serviços à
cidade de Milão. Chiesa, incomodado pelo abandono que sentiu ter sofrido de seu partido –
cujos porta-vozes o chamavam na imprensa com adjetivos equivalentes ao de “maçã podre” –
fez a primeira delação, incriminando autoridades municipais e explicitando o modo de
operação do superfaturamento de licitações em obras e serviços públicos. (CHEMIM, 2019)

As investigações cresceram de tamanho e chamaram a atenção da mídia, que ao


momento que atingiram autoridades regionais da Lombardia, viraram caso de interesse
nacional, alimentado com prisões espetaculosas e vazamentos aos jornais que cobriam o caso
como um épico policial. Manter a opinião pública energizada com revelações constantes deu
sobrevida ao processo judicial que, a princípio circunscrito à cidade de Milão, alcançou sua
região administrativa, depois todo o norte da Itália e, finalmente, a península inteira; com
cada investigado sendo pressionado a incriminar alguém acima, dando a impressão aos
espectadores do processo, excessivamente publicizado, que a sistematização da corrupção
atingira o estado da arte e que todos os setores econômicos e políticos italianos estavam
entrelaçados em criminalidade. (BARBACETTA, GOMEZ E TRAVAGLIO, 2016)

As consequências políticas escalaram para além do ritmo da operação e, ao momento


em que as investigação alcançaram Roma, estando mais da metade da Câmara dos Deputados
como alvo de inquéritos de Di Pietro, o eleitorado havia se transfigurado em inimigos da
classe governante e do arco de partidos da governação, provocando o derrube sucessivo de
governos ao limite daquilo que analistas chamaram de queda da Primeira República Italiana,
ocorrida em 1994 quando a organização institucional e partidária que vinha desde o
pós-guerra, foi completamente dissolvida, com uma série de iminências políticas recorrendo à
renúncia, com a subsequente extinção de inúmeros partidos – como os cinco maiores em
representação no parlamento –, a reformulação completa do sistema eleitoral e da entrada da
Itália numa fase de chamada “pós-política” em que figuras da mídia, como apresentadores,
empresários e comediantes, ou acadêmicos e técnicos, passaram a assumir protagonismo
político no vácuo deixado pela operação. (BARBACETTA, GOMEZ E TRAVAGLIO, 2016;
CHEMIM, 2019)

Inexistindo a evidência concreta de que o objetivo dos procuradores e do juiz fosse


emular as formas e obter os resultados da mani pulite, as semelhanças entre o processo
histórico de ambas seriam muitas para serem ignoradas. Em fato, a análise realmente
complexa é a que busca diferenças entre a operação italiana e brasileira.
Igualmente iniciada com um caso de importância mínima — a prisão de Alberto
Yousseff, operador ligado ao Partido dos Trabalhadores —, a Operação Lava Jato expandiu a
si mesma, forçosamente, e tomou o noticiário nacional entre 2014 e 2018. Do posto de
gasolina em Curitiba usado para lavagem de dinheiro, as investigações alcançaram a capital
federal e todos os estados da federação, tendo como consequências políticas o impeachment
da Presidente da República, a prisão de Governadores, e principalmente a expressiva queda
na votação dos três maiores partidos políticos que se alternavam no poder desde a eleição de
1994, com a consequência da emergência de personagens políticos que não integravam as
primeiras fileiras de influência e importância no âmbito nacional.

A noção de que o combate à corrupção deveria ser feito na forma de uma cruzada
judicial promoveu a multiplicação de irregularidades e quebras de protocolos e normas
processuais com objetivo de fazer a operação avançar o mais rápido e o mais constantemente
possível. Para além de exemplos já citados no caso analisado em outros tópicos, podem ser
destacados ainda as quebras de sigilo telefônico da presidência da república, cujas conversas
foram publicizadas pouco antes do noticiário noturno, ou as prisões espetaculosas e com
intensa cobertura midiática de dois ex-presidentes.

Apelar à opinião pública foi ao mesmo tempo a garantia da manutenção da operação


como também a causa de sua dissolução. Ao passo que as irregularidades cometidas eram
abonadas pelas autoridades judiciárias superiores, a fim de não contrariar as simpatias
populares pela operação e não serem os órgãos de maiores instâncias alvo de suspeitas de
cumplicidade com os investigados, a necessidade de manter a atenção do público acabaria
por levar ao aumento de irregularidades, uma vez que a operação deveria manter um ritmo de
produção de furos e notícias para o judiciário, uma vez que a perda do interesse midiático
levaria ao fim de fato da operação.

O que de fato acabou ocorrendo. A consequência de maior impacto da mani pulite foi
a destruição da organização política italiana e a ascensão de novos políticos que não estavam
integrados ao sistema anterior, sendo o maior exemplo o do primeiro-ministro Silvio
Berlusconi, quem acabou sendo o responsável pelo encerramento da operação italiana ao
forçar a renúncia de Di Pietro em 1996 quando este começou a investigar suas atividades.
Igualmente, a eleição de Jair Bolsonaro, quem convidou Sérgio Moro para seu ministério,
retirando-o da magistratura em Curitiba e posteriormente o fazendo renunciar do governo,
marca o início do esforço para o encerramento da Operação Lava Jato, que acaba por se
concretizar em 2020 por determinação da Procuradoria Geral da República. (CHEMIM,
2019)

Ao momento que o ministro Luiz Edson Fachin anula monocraticamente as


condenações contra o ex-presidente Lula, a Operação Lava Jato já se encontrava encerrada,
depois de mais de um ano de ocaso, ao não fornecer fatos novos que pudessem continuar a
alimentar o interesse popular ao menos desde o início de 2018 e ter sido ferida de morte em
sua questão de intenções e objetivos com a divulgação em 2019 das mensagens obtidas ainda
que ilegalmente em que os procuradores e o juiz responsáveis pela operação assessoravam
uns aos outros, acaba a Lava Jato por ser quase definitivamente esquecida conforme
avançavam as notícias da pandemia de coronavírus em 2020.

Perdendo o manto protetivo da opinião pública e da benção da mídia, cujo assunto


principal passou a ser uma doença mortal a assolar o planeta, a Lava Jato corria o risco de ver
a inversão dos polos da cruzada judiciária, com a iminente possibilidade dos tribunais
superiores, desinibidos doravante, avançarem contra os procedimentos de sua força tarefa,
sendo inúmeros seus pontos frágeis pelas diversas irregularidades praticadas que tornavam o
processo inteiro pretensamente nulo.

A suspeição do então juiz Sérgio Moro era a questão principal nesse movimento,
estando pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal e, graças a forte mudança de
humor da corte, tendia-se eu seu reconhecimento e a consequente perda de todos os processos
julgados pelo magistrado no âmbito das denúncias de corrupção envolvendo a Petrobras e em
sendo o ex-presidente Lula o alvo principal perseguido pela força tarefa e o condenado pela
Lava Jato com maior influência política, grande parte da pressão pelo desfazimento dos atos
dos processos conduzidos por Sergio Moro vinham de seu caso em específico, o mais
publicizado dentre todos.

O relator da Lava Jato no STF, ministro Luiz Edson Fachin, toma então a decisão
monocrática de anular os processos do ex-presidente, garantindo inclusive a elegibilidade que
o próprio Fachin lhe negara em 2018, como então ministro do Tribunal Superior Eleitoral.

As razões que levaram o ministro a este ato, sendo aquele que anteriormente com
mais rigor referendou os procedimentos tomados pela força tarefa em Curitiba, são
naturalmente difíceis de afirmar com concretude, principalmente dado o pouco tempo desde
que este foi emitido, porém aparenta a cruzada ter se tornado em parte um ballet, em que
ministros dos tribunais superiores conduzem uns aos outros numa negociação de movimentos
afinados a fim de encontrarem ponto de equilíbrio entre responder às irregularidades
processuais e materiais da Operação Lava Jato e ainda preservar no possível os efeitos das
condenações para crimes muitas das vezes confessados.

O ministro Edson Fachin, diante da ofensiva dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo
Lewandowski, fez o primeiro movimento de abertura no que parece ser uma dança a se
prolongar pelos próximos anos, em que a influência do condenado por Sérgio Moro será
determinante para o grau de intervenção que conseguirá obter nas cortes mais altas e o
possível desfazimento definitivo de todos os processos respondidos pelo ex-presidente Lula é
o primeiro ato de cessão, como exatamente no ballet as demais dançarinas se retiram para
que uma bailarina apenas faça seu solo, ficando ainda a questão se este será suficiente ou se
demais integrantes do espetáculo pedirão também seus momentos de estrelato, como já teve o
juiz e os demais procuradores.

4. LINHAS CONCLUSIVAS

Conclui-se, dessa forma, que, ao anular apenas os "atos decisórios praticados nas
respectivas ações penais", o Ministro Edson Fachin omite as decisões proferidas por Moro na
fase de investigação, sobretudo no que diz respeito às ordens de investigação resguardadas
pela cláusula de reserva de jurisdição.

É evidente, então, que o Ministro encontrou uma forma de manter válidas as quebras
de sigilo, interceptações e material resultante de buscas e apreensões da fase policial da
persecução penal, o que seria contraditório com a declaração de suspeição do ex-Juiz Federal
– entendível como a solução mais cabível perante os escândalos que aparecem dia e noite
envolvendo Sérgio Moro e cia.

Portanto, o que, à primeira vista, poderia ser considerado uma vitória do ex-Presidente
Lula sobre Moro pode, na realidade, ser visto como uma articulação do Supremo Tribunal
Federal para tentar preservar a Operação Lava Jato. Vale dizer, para tanto, que há
aproximadamente 07 (sete) anos, vários juristas e a própria doutrina já alertavam que a
“República de Curitiba” não era competente para julgar os fatos, por ora, suscitados.

Na verdade, a Corte Suprema coleciona decisões em que há uma clara mitigação dos
ensinamentos doutrinários de nulidade absoluta e nulidade relativa (INFORMATIVO 775).
Com base na translatio iudici e com a redistribuição dos autos ao juiz competente, os atos
instrutórios do processo envolvendo Lula poderão ser convalidados e, assim, haverá somente
a formulação de novas sentenças.

Ante tudo que fora aqui exposto, o episódio narrado encontra sua maior relevância na
declaração do Ministro Gilmar Mendes, que, ao apreciar o tema, entendeu que os inúmeros
pedidos de suspeição de Sérgio Moro perderam o objeto. Resta, por fim, a expectativa dos
próximos capítulos protagonizados pelo guardião da Lei Maior, com a certeza de que a defesa
do ex-presidente não irá aceitar facilmente a tese levantada por Gilmar Mendes.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARBACETTO, Gianni; GOMEZ, Peter; TRAVAGLIO, Marco. Operação Mãos Limpas: a


verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato. CDG Edições e Publicações
LTDA, 2016.

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <<


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm >>.

_______.Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência


da República, 2021. Disponível em: <<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. >>. Acesso em: 15 mar.
2021

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal / Fernando Capez. — 27. ed. — São Paulo:
Saraiva Educação, 2020.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen
Juris/ICPC, 2007;

CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho. CDG
Edições e Publicações LTDA, 2019.

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. RT, 2013.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

____________. Supremo pode ter retirado a competência de Sergio Moro. Conjur, 2018.
Disponível em: <<
https://www.conjur.com.br/2018-jun-16/opiniao-supremo-retirado-competencia-sergio-moro
>>. Acesso em: 16 mar. 2021.
MORO, Sérgio F. Considerações sobre a operação Mani Pulite. Revista CEJ, Brasília, n.
26, p.56-62, jul/set 2004.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma, HC 192.726 ED/PR, Min. Luiz Edson


Fachin, 8 de março de 2021.

_________________. 2ª Turma, HC 164.493/PR, Min. Gilmar Ferreira Mendes, 9 de Março


de 2021.

_________________. Brasília, 18 a 27 de fevereiro de 2015 - Nº 775.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000.

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