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FRENTE 2 Literatura
MÓDULO 1 A Lírica Trovadoresca
1. AS RAÍZES DA eram, muitas vezes, autores de poesia sua coita, ou seja, sua dor de amar
LITERATURA PORTUGUESA e música. sem ser correspondido. Muitas vezes,
Pode-se mencionar ainda que porém, esse amor ardente confes-
O aparecimento da Literatura nesse período, além da produção líri- sado encobre ora um apelo sexual,
Portuguesa coincide, a bem dizer, ca propriamente, houve também ora um conveniente galanteio de
com o aparecimento de Portugal produção literária em prosa, repre- inspiração política. (O sistema polí-
como nação livre. A primeira mani- sentada pelas novelas de cavalaria, tico-social da Idade Média, chamado
festação literária portuguesa de que pelos cronicões e livros de linhagem. feudalismo, reforçava a necessi-
se tem notícia, a “Cantiga da Garvaia” dade de o vassalo agradar sempre a
ou “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio 3. OS CANCIONEIROS seu suserano — seu “senhor” — e à
Soares de Taveirós, é de aproximada- sua família.)
mente 1198 (ou 1189), ou seja, cerca O Trovadorismo é anterior ao a- As cantigas de amor não nasce-
de cinquenta anos apenas após o parecimento da imprensa. Por isso, ram em Portugal, mas na Provença
ano de 1143, data em que Portugal as cantigas medievais eram manus- (sul da França) e dali se espalharam
conseguiu sua independência da Es- critas e, colecionadas, formavam os por muitas cortes da Europa. A língua
panha, ou, mais propriamente, data cancioneiros, nome que se dá aos provençal também havia provindo do
em que foi reconhecida sua eman- códices (manuscritos antigos) que latim. Todo trovador que se prezasse
cipação dos Reinos Católicos (Leão, abrigam a poesia medieval. deveria conhecer um pouco o proven-
Castela, Navarra e Aragão). Como a Os cancioneiros da fase trova- çal. Nas canções provençais é que ele
“Cantiga da Garvaia” não é o início da doresca são três e foram descober- buscava inspiração para compor suas
Literatura Portuguesa, mas apenas o tos a partir do fim do século XVIII: cantigas em português arcaico. Quan-
documento literário mais antigo que • Cancioneiro da Ajuda, o mais to ao português destas cantigas — o
chegou até nós, podemos conjec- antigo, com 310 cantigas; chamado português arcaico —, trata-
turar que já se produzia literatura em • Cancioneiro da Vaticana, que se de uma língua permeada de gale-
Portugal desde o começo de sua vida contém 1.205 cantigas, distribuídas en- guismos. Esse fato não é surpreen-
como país independente. tre as quatro modalidades (amigo, dente, dada a proximidade linguística,
amor, escárnio e maldizer). Reúne a geográfica e cultural entre Portugal e
maioria das composições de El-Rei D. Galiza e dado que diversos trovadores
2. O TROVADORISMO — alguns entre os mais importantes —
Dinis, o mais notável trovador por-
tuguês; eram galegos, não portugueses. Daí
O primeiro período da Literatura • Cancioneiro da Biblioteca Na- ser mais apropriado que se fale em
Portuguesa é denominado Trovado- cional de Lisboa, que contém 1.647 trovadorismo galego-por tuguês, ou
rismo, e está compreendido aproxi- cantigas das quatro modalidades. É galaico-português, em vez de tro-
madamente entre os anos de 1198 também conhecido como Cancionei- vadorismo português simplesmente.
ou (1189) e 1418. ro Colocci-Brancutti.
São chamados trovadores os
TEXTO I
poetas da fase final da Idade Média, os 4. AS CANTIGAS DE AMOR
quais iniciaram um novo tipo de litera- CANTIGA DE AMOR
tura — o princípio das literaturas de lín- As cantigas de amor são com-
guas modernas, entre as quais o por- posições líricas em que o trovador Estes meus olhos nunca perderán,
tuguês. Os trovadores não eram ape- senhor, gran coita, mentr’ 1eu vivo for;
exalta as qualidades de uma mulher,
e direi-vos, fermosa mia senhor,
nas poetas, mas também músicos: a quem chama minha senhor (o fe- destes meus olhos a coita que han2:
eles compunham as melodias com minino dessa palavra ainda não se choran e cegan quand’alguen non veen,
que cantavam seus poemas. A poesia havia formado). Trata-a, portanto, se- e ora cegan por alguen que veen.
era sempre associada à música e se gundo o sistema hierárquico da so-
fazia presente tanto nas reuniões ciedade feudal, como a alguém de Guisado tẽen de nunca perder
palacianas da alta aristocracia quanto meus olhos coita e meu coraçon3,
condição superior, a quem ele se sub- e estas coitas, senhor, mias son,
nas festas populares. Os jograis mete, a quem “presta serviço” e de mais4 os meus olhos, por alguen veer,
eram executantes das composições quem espera benefício (ben). Na choran e cegan quand’alguen non veen,
dos trovadores, mas eles mesmos cantiga de amor, o poeta confessa a e ora cegan por alguen que veen.

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E nunca já poderei haver ben5, Conforme o lugar ou as circunstân- Comentários


pois que amor já non quer nem quer Deus; cias em que ocorre o episódio senti- • Observa-se a existência de duas solis-
mais os cativos destes olhos meus mental, a cantiga de amigo recebe o tas: a primeira (versos de 1 a 12) interroga as
morrerán sempre por veer alguen: flores, e a segunda (versos de 13 a 24)
título de cantiga de romaria, ser-
choran e cegan quand’alguen non veen, assume o papel das flores para a resposta.
e ora cegan por alguen que veen. ranilha, pastorela, marinha ou
Ambas se aliam às demais moças presentes
barcarola, bailada ou bailia, alba para entoar o refrão: “Ai, Deus, e u é?”, em que
(Joan Garcia de Guilhade, século XIII) ou alvorada, serena, malmariada o suspirar de amor pelo amado ausente passa
etc. Essas configurações das cantigas a ser compartilhado por todas.
Vocabulário e Notas de amigo traduzem os vários mo- • Observa-se também a técnica parale-
1 – Mentr’: enquanto. lística, que consiste em ir repetindo a ideia
mentos do namoro, desde a alegria
2 – Han: têm. central em duas séries de estrofes paralelas,
3 – Meus olhos e meu coração têm o hábito de da espera até a tristeza pelo aban-
isto é, a segunda estrofe repete a primeira, só
nunca deixar de sofrer (“perder...coita”). dono ou pela separação forçada.
alterando a palavra final para efeito de rima,
4 – Mais: mas. As cantigas de amigo são mais pri- sempre com estribilho (refrão):
5 – Haver ben: ter prazer. mitivas que as cantigas de amor; a pre-
sença do paralelismo e do refrão é Ai flores, ai flores do verde pinho, A
5. AS CANTIGAS DE AMIGO quase obrigatória e reflete mais a tra- se sabedes novas do meu amigo? B
dição poética e musical dos povos pe- Ai, Deus, e u é? (Refrão)

Além das cantigas de amor, os ninsulares que a influência provençal.


Ai flores, ai flores do verde ramo, A’
trovadores galego-portugueses dedi- se sabedes novas do meu amado? B’
caram-se a um outro tipo de compo- TEXTO II Ai, Deus, e u é? (Refrão)
sição lírica: a cantiga de amigo.
CANTIGA DE AMIGO
Esta é originária da Península
Ai flores, ai flores do verde pinho1, 6. AS CANTIGAS SATÍRICAS
Ibérica; ela não provém da tradição
se sabedes novas2 do meu amigo?
do trovadorismo provençal, pois não Ai, Deus, e u3 é? Do ponto de vista social e linguís-
se encontram, na obra dos trova-
Ai flores, ai flores do verde ramo, tico, as cantigas satíricas são de
dores de Provença, poemas com as
se sabedes novas do meu amado? extraordinária importância, já que
características da cantiga de amigo. Ai, Deus, e u é? compõem um retrato de vários usos e
Nesta, em primeiro lugar, o emissor, o
Se sabedes novas do meu amigo,
costumes medievais, em linguagem
eu lírico, não é um homem, mas
aquel que mentiu do que pôs4 comigo? mais popular, refletindo o falar das
uma mulher. Isso, evidentemente, Ai, Deus, e u é? camadas inferiores. Nem sempre é
não quer dizer que os poemas eram
fácil distingui-las, pois, às vezes, as
compostos por mulheres. Os poetas Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que m’a jurado? duas modalidades (escárnio e maldi-
eram os mesmos que compunham as Ai, Deus, e u é? zer) se misturam.
cantigas de amor, com a diferença
de que, nas cantigas de amigo, eles Vós me preguntades pelo voss’amigo?
E eu ben vos digo que é san’e vivo5 ❑ A cantiga de escárnio
fingiam um eu lírico feminino. A cantiga de escárnio continha
Ai, Deus, e u é?
Uma segunda característica im- sátira indireta, realizada com sutile-
portante das cantigas de amigo é o Vós me preguntades pelo voss’amado?
za, valendo-se da ambiguidade, de
E eu ben vos digo que é viv’e sano:
seu ambiente familiar. Elas não são “palavras cubertas que ajam dois
Ai, Deus, e u é?
composições que refletem o mundo en ten dimentos para lhe lo non
palaciano, típico das cantigas de E eu ben vos digo que é san’e vivo,
entenderem ligeiramente”. A sátira
amor. Ao contrário, as cantigas de e será vosc’ant’o prazo saído 6.
Ai, Deus, e u é? era artificialmente arquitetada e não
amigo põem em cena uma moça do permitia a identificação da pessoa
povo, que pode estar acompanhada E eu ben vos digo que é viv’e sano,
atacada.
de sua mãe ou de suas amigas, e e será vosc’ant’o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?
que canta seu amor pelo namorado,
TEXTO III
o amigo (notemos que essa palavra (Dom Dinis, séculos XIII-XIV)
tem a raiz am–, do verbo amar). CANTIGA DE ESCÁRNIO
Vocabulário e Notas
Na cantiga de amigo, o amor da 1 – Pinho: pinheiro.
mulher em relação ao homem desen- 2 – Novas: notícias. Ũa dona, non digu’eu qual,
3 – U: onde. non agoirou ogano mal
volve-se num plano concreto. O amor
4 – Pôs: combinou. polas oitavas1 de Natal:
é realizado e a mulher lamenta-se 5 – San’e vivo: são e vivo. ia por sa missa oir
justamente por causa da ausência do 6 – E estará convosco quando terminar o prazo e ouv’un corvo carnaçal
amado. do serviço militar. e non quis da casa sair.

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A dona, mui de coraçon2, algum. Constituía a maioria das can- en que vos loarei toda via;
oíra sa missa enton tigas satíricas e era comum o empre- e direi-vos como vos loarei:
e foi por oir o sarmon, dona fea, velha e sandia!
go de termos baixos e chulos, no
e vedes que lho foi partir3 (Joan Garcia de Guilhade, século XIII)
ouve sig’4 un corvo acaron5 mais das vezes a resvalar para os
e non quis da casa sair. limites da mais grosseira obsce- Vocabulário e Notas
nidade. Mesmo os mais elevados 1 – Ora: agora.
A dona disse: — Que será? trovadores compunham cantigas de 2 – Loarei: louvarei.
E i6 o clérigu’7 está já 3 – Sandia: louca.
maldizer, consideradas ancestrais da
revestid’e maldizer-m’-á
se me na igreja non vir. sátira palavrosa de poetas como
Gregório de Matos e Bocage. Elas Em linguagem atual, teríamos:
E diss’o corvo: — quá, acá8,
e non quis da casa sair. testemunham a “vocação” luso-brasi-
Ai, mulher feia! você se queixou
leira para o chiste e para o palavrão. de que eu nunca a louvei em minha poesia;
Nunca taes agoiros vi,
A referência a atos fisiológicos e à mas agora eu vou fazer uma cantiga
des aquel dia que nasci,
com’aquest’ano ouv’aqui9; escatologia é frequente. em que eu a louvarei completamente;
e veja como a quero louvar:
e ela quis provar de s’ir10
mulher feia, velha e louca!
e ouv’un corvo sobre si
e non quis da casa sair. TEXTO IV
Ai, mulher feia! Deus me perdoe!
(Joan Airas de Santiago, século XIII)
pois você tem tão grande esperança
CANTIGA DE MALDIZER de que eu a louve por justiça,
Vocabulário e Notas
quero agora louvá-la completamente;
1 – Oitavas: missas. Ai, dona fea! fostes-vos queixar e veja qual será a louvação:
2 – Mui de coraçon: de muito boa vontade. porque vos nunca louv’en meu trobar; mulher feia, velha e louca!
3 – Partir: acontecer. mais ora1 quero fazer un cantar
4 – Sig’: consigo. en que vos loarei2 toda via; Ai, mulher feia! nunca a louvei
5 – Acaron: colado ao corpo. e vedes como vos quero loar: em minha poesia, e eu muito escrevi;
6 – I: ali (na igreja).
dona fea, velha e sandia3! mas agora farei uma bela cantiga
7 – Clérigu’: padre.
em que a louvarei completamente;
8 – Quá, acá: aqui, vem cá.
Ai, dona fea! se Deus me perdon! e vou lhe dizer como a louvarei:
9 – Com’aquest’ano ouv’aqui: como aquele
e pois havedes tan gran coraçon mulher feia, velha e louca!
ano houve aqui.
que vos eu loe en esta razon,
10 – Provar de s’ir: tentar ir.
vos quero já loar toda via; Comentários
e vedes qual será a loaçon: • Trata-se de uma sátira individual, con-
Comentário
dona fea, velha e sandia! tundente e, ainda que o nome da ofendida não
• Na cantiga anterior, o poeta zomba de
apareça, é dada como cantiga de maldizer.
uma mulher que, ao se dirigir à missa, ouviu
Dona fea, nunca vos eu loei • A mesma mulher, idealizada nas can-
um corvo em sua casa e, com medo do mau
en meu trobar, pero muito trobei; tigas de amor, é, nas cantigas de maldizer,
agouro (as pessoas na Idade Média eram
mais ora já un bon cantar farei, rebaixada à mais ínfima condição.
muito supersticiosas), não quis sair de casa.
Mas a cantiga é toda baseada em duplos
sentidos, a partir do segundo verso, pois a ex-
pressão “non agoirou ogano mal” pode signi-
ficar tanto “teve bastante [mau] agouro este
ano” quanto “não teve mau agouro este ano”.
Depois, a forma verbal ouve pode tanto cor-
responder ao verbo haver como ao verbo
ouvir. De início, parece que a mulher ouviu um
corvo, mas logo percebemos que ela teve
(ouve = houve) junto de si, colado à sua carne
(acaron), um “corvo carnaçal ”, que não é uma
ave de rapina, mas um homem faminto de
carne... E ela “non quis da casa sair ”... O
poema atinge o clímax quando imita o crocitar
do corvo (“E diss’o corvo: — quá, acá,” ), com
duas palavras do português arcaico que
podem significar “aqui, vem cá” — o corvo
sedutor chamando avidamente a sua presa.

❑ A cantiga de maldizer
A cantiga de maldizer encerrava
sátira direta, agressiva, contundente, A lírica provençal influenciou todas as literaturas da Europa, fazendo do amor e da
em linguagem objetiva, sem disfarce mulher o centro de uma inspiração poética e musical poderosa e refinada.
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MÓDULO 2 A Poesia Palaciana


da prosperidade, voltando-se para a A Revolução de Avis (1383-
CONCEITO E ÂMBITO
terra, para a inteligência, para o cor- 1385) marcou a substituição da Di-
A POESIA PALACIANA
po, para o prazer e para a aventura. nastia de Borgonha pela Dinastia de
FERNÃO LOPES
É, portanto, oposto ao espírito medie- Avis. Esta iniciou o processo de cen-
val, feudal e teocêntrico. tralização monárquica, aliando-
Historicamente, o Humanismo cor- se à burguesia ascendente. Foi o
responde a uma fase de profundas princípio do Estado Nacional
transformações sociais: o desenvol- Português, orientado na direção do
vimento do comércio, o surgimento da absolutismo e do mercantilis-
burguesia e das cidades, a aliança mo. O palácio tornou-se o centro
entre o rei e a burguesia (fermento das vital das decisões políticas, econô-
monarquias nacionais), o aparecimen- micas e da atividade cultural e artís-
to da imprensa, a divulgação da cultu- tica. A expansão dos interesses eco-
nômicos da burguesia e dos próprios
ra clássica e as Grandes Navegações.
políticos da monarquia lançou o país
Os primeiros anúncios desse pro-
na aventura ultramarina, cujo marco
cesso de transição foram registrados,
inicial foi a Tomada de Ceuta, em
na literatura, pelos italianos Dante
1415. Consolidou-se o nacionalis-
Alighieri (1265-1321), Francesco
mo português, e a nação começou
Petrarca (1304-1374) e Giovanni
a ganhar uma fisionomia própria na
Boccaccio (1313-1375).
Península Ibérica. No período ante-
A característica central do perío- rior, havia uma cultura mais ibérica
do humanista é o bifrontismo: a que especificamente portuguesa.
coexistência de resíduos medievais e Além do aparecimento do me-
Capa dos Adágios, de Erasmo de Roterdã,
com retratos dos autores gregos e latinos instituições antecipadoras do Renas- cenatismo oficial, outro fato cultural
traduzidos pelo humanista holandês. cimento. Teocentrismo e antropocen- relevante foi o surgimento de uma
trismo, feudalismo e mercantilismo, língua portuguesa, autônoma em
ideais cavaleirescos e pragmatismo relação ao primitivo dialeto galego-
1. HUMANISMO E
burguês são simultâneos. português. A prosa ganhou excelên-
PRÉ-RENASCIMENTO
cia literária com Fernão Lopes, o
primeiro bom prosador da língua.
❑ Localização ❑ O contexto
O apogeu do Humanismo cor-
histórico-cultural português (1434-1527)
respondeu aos reinados de D.
O Humanismo (no sentido que Em Portugal, o Humanismo ini-
Afonso V, D. João ll e D. Manuel,
aqui nos interessa) foi o movimento ciou-se em 1434, com a nomeação marcados pela intensa produção
intelectual que precedeu ao Renasci- de Fernão Lopes para Primeiro cultural e artística e pelo auge,
mento e constituiu um atento debruçar- Cronista-Mor do Reino, incum- também, das Grandes Navegações.
se do homem sobre sua própria bido por D. Duarte de escrever a Literariamente, os três fatos mais
condição. Se durante a Idade Média o história dos reis que o antecederam. relevantes do Humanismo português
homem se voltou para Deus, agora ele A criação do cargo de cronista- foram: a poesia palaciana, compi-
se volta para si mesmo (antropocen- mor e a nomeação de Fernão Lopes lada no Cancioneiro Geral de Garcia
trismo), readquirindo a consciência inauguraram, em 1434, o mecena- de Resende; a prosa historiográ-
de que é uma força criadora, capaz de tismo oficial e os reis tornaram-se fica de Fernão Lopes e o teatro
dominar o universo e transformá-lo. protetores da cultura e da arte, abri- medieval e popular de Gil Vicente.
Desenvolve-se a consciência de que é gando na Corte artistas e intelec-
necessário o saber e de que é por tuais, incentivados e subvenciona- 2. A POESIA PALACIANA
meio do conhecimento e da ação que dos pela própria monarquia. O perío- DO CANCIONEIRO GERAL
o homem e o mundo se transformam. do estendeu-se até 1527, ano em DE GARCIA DE RESENDE
Esse novo homem identifica-se que se iniciou o Classicismo-
com a cultura clássica greco-roma- Renascimento em Portugal, com a A produção poética da fase do
na, com o racionalismo, com a ciên- introdução da medida nova por Sá Humanismo, abrangendo os reina-
cia, com o ideal burguês do lucro e de Miranda. dos de D. Afonso V, D. João II e D.

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Manuel, foi compilada em 1516, por Dentre os 286 poetas que figu- dada no anseio de encontrar algo perdurável,
para além da fugacidade cósmica.
Garcia de Resende, no Cancio- ram no Cancioneiro Geral, os mais
Coube a Sá de Miranda trazer da Itália,
neiro Geral que leva o seu nome. famosos são Bernardim Ribeiro, Sá onde viveu de 1520 a 1527, a medida nova
Esse cancioneiro nada tem a ver de Miranda e Gil Vicente, que, po- (versos decassílabos, a forma fixa do soneto,
com os primitivos cancioneiros trova- rém, irá celebrizar-se, não como o terceto etc.), introduzindo em Por tugal
formas e temas característicos do Classicismo
dorescos. Nele, observa-se uma poeta lírico, mas como o maior autor renascentista, que os italianos denominavam
grande amostra da chamada “poesia teatral de língua portuguesa. dolce stil nuovo (= doce estilo novo). Como
palaciana”, ou poesia da Corte, que Camões, foi grande sonetista e tem, também,
parte de sua obra comprometida com a heran-
se praticou em Portugal no período TEXTOS ça medieval, nas composições que fez na me-
imediatamente anterior ao chamado dida velha, como a trova em questão.
Classicismo. É uma produção TROVA À MANEIRA ANTIGA • O tema da cisão da personalidade, a
sutil exploração dos mistérios do eu, a
poética que pode ser considerada fragmentação do sujeito lírico, em tensão
Comigo me desavim1,
pré-clássica, pois nela já se sou posto em todo perigo; consigo e por si, prestes a consumar a ruptura
encontram alguns dos componentes não posso viver comigo interior, é o tema de um belíssimo vilancete de
que caracterizarão a poesia do nem posso fugir de mim. Bernardim Ribeiro. Observe a aproximação
com o poema de Sá de Miranda anteriormente
período posterior. A poesia palaciana apresentado:
Com dor, da gente fugia,
representa uma evolução formal antes que esta assim crescesse;
em relação ao período trovadoresco. agora já fugiria Entre mim mesmo e mim
de mim, se de mim pudesse. não sei [o] que s’ alevantou1
A poesia separa-se da música, que tão meu imigo2 sou.
Que meio espero ou que fim
e o trovador cede lugar ao do vão trabalho que sigo,
poeta. Este escreve não mais para pois que trago a mim comigo, Uns tempos com grand’engano
tamanho imigo2 de mim? vivi eu mesmo comigo,
cantar, mas para ler e recitar nos
(Francisco Sá de Miranda) agora, no mor3 perigo,
serões da Corte. Como não depende se me descobre o mor dano.
mais da música, os refrãos e o Vocabulário e Notas Caro custa um desengano,
paralelismo são menos marcantes. 1 – Desavir: desentender, desencontrar. e pois m’este não matou,
2 – Imigo: forma arcaica de inimigo. quão caro que me custou!
Os poetas da fase palaciana
consolidaram a medida velha, nome Comentários De mim me sou feito alheio;
genérico que se dava às composições • A trova de Sá de Miranda, composta na entre o cuidado e cuidado
medida velha (versos redondilhos maiores), fo- está um mal derramado
em versos curtos — os chamados que por mal grande me veio.
caliza o desencontro do eu consigo mesmo, a
versos redondilhos. A estes, dá-se o partir do dilema viver comigo x fugir de mim, Nova dor, novo receio
nome de redondilhos menores, ambas as situações impossíveis para o poeta. foi este que me tomou,
quando têm cinco sílabas poéticas, Essa dilaceração do eu expressa as perple- assi4 me tem, assi estou.
xidades do homem diante das transformações (Bernardim Ribeiro)
e de maiores, quando têm sete nos limiares da Idade Moderna e projeta a
sílabas. Esses versos são até hoje, personalidade grave e reflexiva do autor. Sua Vocabulário e Notas
em Portugal e no Brasil, os versos postura estoica, cética e desiludida já se 1 – Alevantar: erguer. 2 – Imigo: inimigo.
integra nos quadros da cultura clássica, fun- 3 – Mor: maior. 4 – Assi: assim.
mais tradicionais e populares,
dada a facilidade de memorização, o
ritmo e a musicalidade envolventes. É o
verso mais comum nas composições
folclóricas e populares (cantigas de
roda, cantigas de ninar, acalantos,
modinhas, desafios etc.); foi, e ainda é,
o verso mais utilizado pelos autores que
buscaram e buscam as raízes mais tra-
dicionais da poesia e da música.
No plano temático, o caráter po-
pular e sentimental da poesia trova-
doresca é substituído pela poesia
frívola e galante, composta para o
deleite do público palaciano; disso
de cor re certa afetação e artifi -
cialismo.
Poemas satíricos, religiosos e nar-
rativos coexistem com poemas de
tema amoroso. As influências greco-
latina e italiana começam a aparecer. Capa da primeira edição do Cancioneiro Geral.

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MÓDULO 3 Gil Vicente


1. GIL VICENTE terceira esposa do Rei D. Manuel; sa. Foi cognominado O Genial
E AS ORIGENS DO alcançou uma situação de grande Criador do Teatro Português,
TEATRO PORTUGUÊS prestígio junto à Corte de Avis, o que em alusão ao fato de ter sido o
Ihe permitiu, em 1531, por ocasião primeiro autor a impor o texto escrito
❑ Os antecedentes de um terremoto, num discurso feito às encenações teatrais. Como para a
do teatro vicentino aos frades de Santarém, censurar Literatura o importante é o texto
Durante a Idade Média, o teatro energicamente os sermões terríficos que se escreve para a representa-
clássico greco-romano desapareceu. em que estes explicavam a catás- ção, Gil Vicente é considerado o
Ficaram ignoradas as tragédias e co- trofe como resultado da ira divina. fundador do teatro português.
médias, que expressavam, do subli- Quando Gil Vicente atinge a
me ao grotesco, a densa visão (In: LOPES, Óscar e SARAIVA,
plena maturidade de sua arte,
clássica do homem, do mundo e dos Antônio José. História da Literatura
opera-se a secularização com-
deuses. Portuguesa. 10.a ed., Porto: Porto pleta e definitiva de seu teatro. A
Não se pode falar propriamente Editora, p. 200.) galeria de tipos alarga-se e enri-
de teatro medieval, já que as encena- quece-se para nos oferecer uma
ções que se faziam em Portugal, Outra prova de sua influência substancial reconstituição da
antes de Gil Vicente, não pressupu- nos meios palacianos é a carta que sociedade de seu tempo: dos
nham um texto escrito, uma produ- escreveu ao rei, na qual se pronun- beberrões aos nobres, passando
ção literária de natureza dramática. ciava contra a perseguição movida pelos camponeses, ciganos, judeus,
Havia representações cênicas, mas aos judeus e cristãos-novos. alcoviteiras, bobos, padres moral-
estas eram, principalmente, figura- Suas encenações alcançaram mente relaxados, fidalgos decaden-
tivas. Não havia o texto dramático, largo sucesso na Corte e são referi- tes, burgueses gananciosos, artesãos
que é o que interessa à Literatura. das por vários contemporâneos do ambiciosos, usurpadores, corruptos.
As encenações, àquela época, dramaturgo. Sua última peça, Flores- Esses tipos são definidos não só
dividiam-se em duas vertentes: pro- ta de Enganos, foi encenada em pelas ações, hábitos e vestuários,
fanas (apresentadas nos palácios) 1536 e, posteriormente a essa data, mas também pela linguagem pecu-
e litúrgicas (nas igrejas e abadias). nada mais se sabe de seu autor. liar a cada um deles. Gil Vicente
No início da carreira de Gil Supõe-se que tenha morrido em revela toda sua força dramática,
Vicente, a tradição teatral portuguesa 1537, mas não há provas documen- captando os flagrantes da vida real,
que o precedeu foi irrelevante. Em tais. tipos e ambientes, com grande
suas primeiras peças, o modelo foi o Em 34 anos de atividade teatral, poder de evocação realista e relevo
castelhano Juan del Encina. da estreia, em 1502, à última ence- caricatural.
nação, em 1536, escreveu, encenou A crítica social e a dramaturgia
2. O GENIAL CRIADOR e representou cerca de 46 autos e religiosa revestem-se de forte inten-
DO TEATRO PORTUGUÊS farsas, sendo 17 em português, 18 ção moralizadora, pelas alegorias
bilíngues (com uso do espanhol e do que aproveitam temas bíblicos,
O pouco que se sabe a respeito dialeto saiaguês, falado em Sala- bucólicos, cavaleirescos e mitoló-
do primeiro e maior dramaturgo de manca) e 11 em castelhano. Foi, ao gicos.
Por tugal reduz-se ao seguinte: mesmo tempo, autor, diretor e ator de Gil Vicente traz ao palco toda a
nasceu por volta de 1465; encenou muitos de seus autos e farsas. nação portuguesa. Apesar de ser, do
sua primeira peça, O Monólogo do Um de seus filhos, Luís Vicente, ponto de vista cênico, um teatro
Vaqueiro ou Auto da Visitação, em foi o organizador de sua obra, publi- rudimentar, primitivo, baseado na
1502, sob proteção da rainha D. cada em 1562, sob o título espontaneidade e na impro-
Leonor; foi colaborador do Copilaçam de Todalas Obras de Gil visação, está vazado em alta poe-
Cancioneiro Geral de Garcia de Vicente, com muitas falhas e sia dramática. É um teatro que revela
Resende; desempenhou, na Corte, a omissões, devidas, pelo menos em o profundo pensamento cristão de
importante função de organizador parte, à censura. um artista a serviço de uma causa;
das festas palacianas, como, por É considerado o maior dramatur- sua obra é uma arma de combate, de
exemplo, a recepção, em Lisboa, da go ou teatrólogo da língua portugue- acusação e de moralidade.
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3. AUTOS E FARSAS morreu lhe garantiria a ida para o Dia. Ora, ponde aqui o pé...
Brí. Hui! e eu vou pra o Paraíso!
céu... Só são aceitos pelo Anjo o
Dia. E quem te dixe19 a ti isso?
❑ Autos Parvo (idiota), camponês explorado e Brí. Lá hei de ir desta maré20.
Inspirados no teatro religioso da sofredor, e quatro cavaleiros que mor-
Idade Média, nos mistérios, milagres reram em defesa da fé de Cristo. Nes- Eu sô ũa mártela21 tal,
e moralidades, os autos encerram uma se desfile de almas, temos um amplo açoutes22 tenho levados
e tormentos soportados23
intenção moralizante e trazem perso- quadro crítico da sociedade portu- que ninguém me foi igual.
nagens alegóricas (anjos, demônios guesa da época, apresentado em ver- Se fosse ò24 fogo infernal,
etc.), que são personificações de sos de enorme encanto, pois são alta- lá iria todo o mundo!
virtudes ou de defeitos humanos. mente refinados e não se afastam da A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
linguagem falada da época, em seus
Auto da Barca do Inferno vários registros. Por tais motivos, Gil Barqueiro mano, meus olhos25,
Vicente é considerado, por críticos prancha a Brísida Vaz!
Representada pela primeira vez de importância, como o poeta mais
Vocabulário e Notas
em 1517, a peça de Gil Vicente faz original de Portugal e o maior drama- 1 – Tanto que: assim que.
parte de uma trilogia em que assisti- turgo europeu de sua época. 2 – Alcouveteira: alcoviteira, caftina, isto é, “mu-
mos a um desfile de almas de mortos lher que serve de intermediária nas relações
prestes a embarcar para a eter - amorosas” (dicionário Aurélio); prostituta.
nidade. Os títulos das peças indicam TEXTO 3 – Ea: eia!
4 – Como: por que.
os possíveis destinos da viagem: 5 – Joana de Valdês: alcoviteira conhecida.
AUTO DA BARCA DO INFERNO
Auto da Barca do Inferno, da Barca 6 – Arrecear: recear, temer.
do Purgatório e da Barca da Glória. Tanto que1 o Frade foi embarcado, veio 7 – Catar: procurar.
8 – Fato: roupas e outros bens móveis.
Na primeira peça, os mortos são con- ũa Alcouveteira2, per nome Brísida Vaz, a qual,
9 – Virgo: hímen.
frontados com o Diabo, que, com fina chegando à barca infernal, diz desta maneira:
10 – Que nom podem mais levar: porque não
ironia (é um diabo muito bem-humo- se pode levar mais.
Brí. Hou lá da barca, hou lá!
rado e com grande presença de 11 – Almário: armário.
Dia. Quem chama? 12 – Enlheo: enredo, confusão.
espírito), apresenta-lhes as razões Brí. Brísida Vaz. 13 – Alheo: alheio.
pelas quais devem embarcar no seu Dia. Ea3, aguarda-me, rapaz! 14 – Encobrir: disfarçar, iludir.
“batel” (navio), que vai para a “terra Como4 nom vem ela já? 15 – Movediço: móvel.
perdida”. Todos resistem e se Com. Diz que nom há de vir cá 16 – Coxim: almofada.
sem Joana de Valdês5. 17 – Mor cárrega: maior carga.
dirigem ao Anjo, que guarda a barca
Dia. Entrai vós, e remarês. 18 – Bofé: na verdade (em boa fé).
do Paraíso. O Anjo, em tom solene Brí. Nom quero eu entrar lá. 19 – Dixe: disse.
(ele não tem a graça do Diabo), 20 – Maré: vez.
mostra a quase todos (só há exceção Dia. Que saboroso arrecear6! 21 – Mártelo: mártir.
22 – Açoute: chicotada (punição dada às pros-
em dois casos) que seu caminho é Brí. Nom é essa barca que eu cato7.
titutas).
irremediavelmente o inferno, tendo Dia. E trazês vós muito fato8?
23 – Soportado: suportado.
Brí. O que me convém levar.
em vista a vida que levaram. E quem 24 – Ò: ao.
Dia. Que é o qu’havês d’embarcar?
são os mortos? São figuras alegó- 25 – Meus olhos: meu bem.
Brí. Seiscentos virgos9 postiços
ricas que representam classes ou e três arcas de feitiços
categorias sociais, como o Fidalgo, que nom podem mais levar10.
❑ Farsas
arrogante e falso, o Onzeneiro (usu- Inspiradas no teatro profano (não
Três almários11 de mentir, religioso), as farsas visam a ca-
rário), explorador dos outros, o Sapa-
e cinco cofres de enlheos12, racterizar, em simples episódios ou
teiro, ladrão de seus fregueses, o
e alguns furtos alheos13, em narrativas mais complexas, tipos
Frade, que vem acompanhado de assi em joias de vestir, característicos da sociedade portu-
sua amante, a Alcoviteira (cafetina), guarda-roupa d’encobrir14, guesa, na transição da Idade Média
que fornecia moças para homens de enfim – casa movediça15;
para o Renascimento.
dinheiro e poder, o Judeu, contra um estrado de cortiça
com dous coxins16 d’encobrir.
quem até o Diabo demonstra pre- Além das peças até aqui men-
venção, o Corregedor (juiz), pompo- cionadas, podem-se destacar ainda:
A mor cárrega17 que é:
so e corrupto, o Procurador, deso- essas moças que vendia. Auto da Alma, Farsa de Inês Pereira,
nesto como o juiz, o Enforcado, que Daquesta mercadoria Quem Tem Farelos?, Juiz da Beira,
acreditava que a forma por que trago eu muita, bofé18! Auto da Fé, Auto da Lusitânia etc.
– 43
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MÓDULO 4 A Medida Nova – Luís de Camões


ças a grandes cometimentos: des- estilo renascentista expressivo a
CONCEITO E ÂMBITO
coberta do caminho marítimo para partir de 1527, quando o poeta Sá de
A MEDIDA NOVA
as Índias, empreendida por Vasco Miranda regressou da Itália, local em
LUÍS DE CAMÕES
da Gama em 1498; descobrimento que viveu, entre 1520 e 1527, e onde
do Brasil em 1500; conquista de Goa esteve em contato com a literatura da
1. O RENASCIMENTO e de regiões da África entre 1507 e Renascença italiana, com o dolce stil
1513; Viagem de Circunavegação nuovo, e iniciou a divulgação, em Por-
❑ Conceito e âmbito realizada por Fernão de Magalhães tugal, das modalidades poéticas clás-
O Renascimento foi um dos perío- entre 1519 e 1520. sicas. Esse conjunto de procedimen-
dos mais férteis da cultura ocidental: Desses fatos sobreveio uma ex- tos artísticos, que, em território luso,
Dante, Camões, Petrarca, Sha- traordinária prosperidade econômi- chamou-se medida nova, consistia
kespeare, Rabelais, Ronsard, ca: Lisboa transformou-se num impor- • na utilização do verso decas-
Cervantes, Tasso, Ariosto, Miche- tante centro comercial; na Corte im- sílabo, em lugar dos redondilhos tra-
lângelo, Da Vinci alinharam-se perava o luxo desmedido, na certeza dicionais;
como as mais portentosas figuras da de que a Pátria houvesse chegado a • na predileção pelas formas fi-
arte em todos os tempos. Foi um uma inalterável riqueza material. Este xas, inspiradas nos modelos latinos e
período marcado pela supervalo- ufanismo, contudo, foi declinando italianos: o soneto, o terceto, a sexti-
rização do homem, pelo antro- até a derrocada final em Alcácer- na, a oitava, a ode, a elegia, a can-
pocentrismo, pelo hedonismo, Quibir, em 1578, com a destruição do ção, a écloga, a epístola, o epigrama,
em oposição ao teocentrismo, misti- exército português e morte de D. o epitalâmio; além do teatro clássico,
cismo e ascetismo medievais. Sebastião. A literatura começou a com a tragédia grega e a comédia
O interesse pelo homem e pelo refletir a comoção épica gerada pelo latina, regidas pela “lei das três uni-
que ele poderia realizar de alto, progresso nas primeiras décadas do dades” (de tempo, de lugar e de ação);
profundo e glorioso (Humanismo) século XVI, mas refletiu também, vez • na assimilação da influência
inspirou o conceito de homem in- por outra, o desalento e a advertên- temática e formal de autores como
tegral, senhor do mundo, sequioso cia, lúcidos perante a dúbia e provi- Horácio, Virgílio, Ovídio, Plauto, Te-
para conhecê-lo totalmente. sória superioridade. rêncio, Homero, Píndaro, Anacreonte,
O Renascimento português não Sannazzaro, Boccaccio, Boiardo, Tor-
❑ Características representou, como nos países protes- quato Tasso, Ariosto, Dante Alighieri e
centrais do Renascimento tantes, uma revolução cultural tão Petrarca, além da releitura dos filóso-
• Equilíbrio e harmonia de extensa e profunda. Na facção pro- fos gregos Platão e Aristóteles, filtra-
forma e fundo. Clareza, mentalida- testante, as condições foram mais dos pelo pensamento cristão de São
de aberta, intensidade vital, ímpeto favoráveis à liberdade de pensa- Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
progressista, euforia, ânsia de glória mento e à difusão popular da cultu- Contudo, o espírito medieval não
e perenidade, apreço pelo humano. ra, graças à propagação da impren- foi completamente abandonado. Por
• Universalismo, apego aos sa, veículo privilegiado pela Refor- isso, o Quinhentismo luso constituiu
valores transcendentais (o Belo, o ma Luterana. Em Portugal, como na uma época bifronte, pela coexistên-
Bem, a Verdade, a Perfeição) e aos Espanha e Itália, a Contrar-reforma cia e, não raro, a interinfluência das
sistemas racionais; simplificação por Católica inaugurou, precocemente, duas formas de cultura: a medieval,
lucidez técnica, simetria. um período de recalque ideológico popular, tradicional, materializada na
• Culto da Antiguidade gre- e de repressão. Em 1547, o Santo medida velha, e a clássica, erudi-
co-latina. Deuses pagãos usados co- Ofício visitou casas e livrarias à ta, renascentista, que se expressou
mo figuras literárias e claras alegorias. procura de livros heréticos. Gil Vicente, por meio da medida nova. Esse
Camões, Sá de Miranda, Antônio bifrontismo foi lugar-comum entre os
❑ O Renascimento português Ferreira, entre outros, foram consi- autores portugueses da época renas-
O Renascimento em Portugal derados “agentes contra a Fé e os centista, cujas aparentes contradi-
correspondeu ao período de apogeu Costumes”. ções só podem ser explicadas quan-
da Nação, cujo império, à semelhan- do se tem em vista a ambivalência
ça do império inglês do século XIX, cultural da época.
abrangia do Oriente (China, Índia) 2. A ESCOLA CLÁSSICA RE- No caso português, acresce não
ao Ocidente (Brasil), e marcou, com NASCENTISTA (1527-1580) ter havido um Renascimento típico,
Camões, a plena maturação da lín- pois, dada a prevalência do catoli-
gua portuguesa. Ainda que, já no fim da Idade cismo e do poder eclesiástico, o ra-
Sob o reinado de D. Manuel, o Média, os autores da Antiguidade Clás- cionalismo e a ideologia burguesa
Venturoso, Portugal gozou de mo- sica fossem conhecidos em Portugal, não vingaram de modo tão expres-
mentânea mas intensa euforia, gra- só se pode falar na existência de um sivo como ocorreu em outros países.
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3. LUÍS DE CAMÕES plesmente como um sentimento, mas ❑ As redondilhas de Camões


como uma força vital, uma força Sem muita rigidez, pode-se dizer
A biografia de Camões apre- cósmica que pode elevar o espírito. que a grande maioria das composi-
senta problemas insolúveis por falta Camões celebrou amores, a beleza ções na medida velha, em versos
de dados seguros. Lisboa, Coimbra, feminina, o prazer sensual (os versos redondilhos, ao gosto do público pa-
Alenquer e Santarém disputam o seu em que descreve o encanto da es- laciano, e à maneira do Cancioneiro
nascimento. Mais provável Lisboa ou crava negra, a menina dos olhos ver- Geral de Garcia Resende, data da
Coimbra, por volta de 1525. Morreu des, a moça que vai buscar água na mocidade de Camões. Em geral, as
em 1580, em Lisboa. fonte); mas celebrou também o amor redondilhas são leves, brincalhonas,
Em 1552, num dia de Corpus espiritual (o amor dito “platônico” e madrigalescas e destinam-se à reci-
Christi, numa rixa com um funcio- que mais propriamente se deve tação na Corte. Revelam a habili-
nário do paço, Gonçalo Borges, foi considerar um sinal do neoplato- dade formal do poeta, que usa ima-
ferido com um golpe de espada, ten- nismo camoniano). Neste último gens, trocadilhos e ambiguidades
do sido recolhido à prisão do Tronco. caso, o amor é visto como força que
mais voltados para a magia verbal,
No ano seguinte, como aventureiro, pode libertar o espírito do mundo da
para a demonstração da habilidade
tomou parte em várias expedições, matéria e elevá-lo a um plano mate-
na manipulação de palavras e con-
refazendo assim toda a rota de Vasco rial superior.
ceitos, do que para a expressão
da Gama, na viagem do descobri- Outros temas da obra lírica ca-
pessoal e individualizada.
mento do caminho marítimo para as moniana são a mudança constan-
Índias, que mais tarde se converteu te de tudo, ou seja, a instabilidade
na ação central de Os Lusíadas. da vida humana, e o desconcerto TEXTOS
Em 1555, envolveu-se em traba- do mundo, ou seja, a desordem e a
lhos de guerra em Goa, cujo gover- desrazão que governam tudo. Dessas DESCALÇA VAI PARA A FONTE
nador era Afonso de Albuquerque. características, também decorre a MOTE
Por volta de 1558, esteve em Macau necessidade de um mundo supe-
(China), primeiro estabelecimento rior, liberto deste mundo de aparên- Descalça vai para a fonte
europeu no Extremo Oriente. Aí foi cias enganosas, no qual o próprio Lianor pela verdura;1
Provedor-Mor de Bens de Defuntos e amor não passa de fonte de desen- Vai formosa, e não segura.
Ausentes, importante cargo adminis- ganos e sofrimentos.
VOLTAS
trativo. Acusado de irregularidades, Os livros didáticos, sem muito
voltou preso a Goa, para justificar- rigor, abordam duas vertentes da Leva na cabeça o pote,
se. Durante a viagem (1559), naufra- lírica de Camões: O testo2 nas mãos de prata,
gou às margens do Rio Mekong, no • a primeira, tradicional, popu- Cinta de fina escarlata,
Camboja. Em Os Lusíadas há uma lar, de inspiração medieval, vazada Sainho de chamalote3;
alusão a este fato e ao seu salva- em trovas, vilancetes, cantigas e es- Traz a vasquinha4 de cote5,
mento com o manuscrito de Os parsas, composta em versos redondi- Mais branca que a neve pura;
Vai formosa, e não segura.
Lusíadas, o que faz ver que a obra lhos, na medida velha, com utiliza-
devesse estar quase completa ção frequente de motes e glosas. É Descobre a touca a garganta,
(Canto X, 127-128). É da tradição uma poesia leve, galante, madriga- Cabelos de ouro o trançado,
que tenha perdido neste naufrágio lesca, como as composições do Can- Fita de cor de encarnado6,
seu grande amor oriental (Dina- cioneiro Geral de Garcia de Resende; Tão linda que o mundo espanta!
mene), em memória de quem fez o • a segunda, clássica, erudita, Chove nela graça tanta,
soneto “AIma minha gentil que te de inspiração italiana, vazada em Que dá graça à formosura;
Vai formosa, e não segura.
partiste”, além de outros. sonetos, canções, odes, oitavas,
Morreu miserável em 1580, após éclogas, tercetos, sextinas e elegias, Vocabulário e Notas
o desastre militar de Alcácer-Quibir, composta em decassílabos, na me- 1 – Verdura: vegetação.
que antevia a anexação de Portugal dida nova. É a maturidade de Ca- 2 – Testo: tampa do pote.
aos domínios da Espanha. Poucos mões, marcada pelo tom reflexivo, 3 – Chamalote: tecido de lã e seda.
dias antes de morrer, em carta a um pela dialética cerrada e pela reflexão 4 – Vasquinha: saia de vestir por cima de toda
amigo, D. Francisco de Almeida, densa sobre o tema lírico-amoroso, a roupa, com muitas pregas na cintura.
5 – De cote: de uso diário.
dizia: “Enfim acabarei a vida e verão sobre os transes existenciais do poe-
6 – Encarnado: vermelho.
todos que fui tão afeiçoado à minha ta e sobre o desconcerto do mundo.
pátria, que não me contentei em Em ambas as vertentes, Camões Comentário
morrer nela, mas com ela”. foi o maior poeta de seu tempo. Sua • Trata-se de um vilancete, com mote e
obra abrange as diversas correntes glosa, na medida velha (redondilha). Faz parte
❑ Camões lírico artísticas e ideológicas do século XVI de um ciclo de redondilhas em torno do tema
O tema central da lírica camo- e reflete uma experiência pessoal da donzela que caminha descalça para algum
lugar (para a fonte, pela neve etc.)
niana é o amor, concebido não sim- múltipla.
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De inspiração medieval e popular (pela ❑ A lírica clássica camoniana É querer estar preso por vontade;
forma, pela protagonista e pelo sentimento É servir a quem vence, o vencedor;
Sob influência da escola renas-
amoroso expresso), a redondilha acentua a É ter com quem nos mata lealdade.
tendência para a elaboração engenhosa de
centista italiana, ou escola petrar-
conceitos, para o jogo de ideias e para a cons- quista, Camões realizou a parcela Mas como causar pode seu favor
trução antitética e paradoxal, pressagiando a mais densa e perfeita de sua lírica. Nos corações humanos amizade,
vertente conceptista da poesia barroca. Com os decassílabos da medida Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
À maneira das cantigas de amigo, a
protagonista, Leonor, é uma mulher do povo,
nova e com as formas fixas do Clas- ***
de hábitos simples. O poeta oscila entre a des- sicismo (sonetos, canções, odes, Alma minha gentil, que te partiste
contração e o realismo das cantigas, a expres- elegias, éclogas, oitavas e sextinas), Tão cedo desta vida, descontente,
são direta do sentimento amoroso e a ex- Repousa lá no Céu eternamente,
o poeta conseguiu o mais alto
pressão elevada e conceitual do amor, que irá E viva eu cá na Terra sempre triste.
marcar a lírica clássica dos sonetos.
equilíbrio entre a disciplina, o virtuo-
sismo formal e a reflexão profunda Se lá no assento etéreo, onde subiste,
ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO sobre o sentido do amor e da vida. Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Os bons vi sempre passar Amor é um fogo que arde sem se ver; Que já nos olhos meus tão puro viste.
no mundo graves tormentos;
É ferida que dói e não se sente;
e, para mais me espantar,
É um contentamento descontente; E se vires que pode merecer-te
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos. É dor que desatina sem doer. Alguma coisa a dor que me ficou
Cuidando alcançar assim Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
o bem tão mal ordenado, É um não querer mais que bem querer;
fui mau, mas fui castigado. É um andar solitário entre a gente; Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Assim que só para mim É nunca contentar-se de contente; Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
anda o mundo concertado. É um cuidar que ganha em se perder. Quão cedo de meus olhos te levou.

MÓDULO 5 Os Lusíadas – I
1. EPOPEIA CAMONIANA pansão geográfica custou caro para rior). Além de Os Lusíadas, Camões
os outros, os povos das terras “des- não publicou nenhum outro livro.
Epopeia é um poema do gê- cobertas”, para os quais a chegada
nero épico, poesia de tom elevado, dos europeus significou, na maioria 2. DIVISÕES FORMAIS:
heroica, que conta uma história e dos casos, dominação, destruição CANTOS E ESTROFES
celebra um herói, em aventuras ge- cultural, escravidão e morte.)
ralmente guerreiras, cujo sentido O assunto é um grande episó- • O poema divide-se em dez
grandioso se liga à vida da socieda- dio da conquista dos mares e avanço cantos (cantos são as principais divi-
de a que pertence. Depois das gran- sobre terras distantes e desconhe- sões materiais ou partes de um poe-
des epopeias da Antiguidade (a cidas: o descobrimento do caminho ma, correspondendo, na prosa, aos
Ilíada e a Odisseia, de Homero, do marítimo para as Índias, realizado no capítulos). Cada canto contém em
século VIII a.C.), a poesia épica raras fim do século XV por um português, média 110 estrofes ou estâncias. O
vezes atingiu a altura a que se Vasco da Gama, numa época em Canto VII é o mais curto, com 87
elevam Os Lusíadas. Neste poema, que Portugal vivia seu apogeu e estrofes; o Canto X é o mais longo,
os grandes ingredientes do gênero estava na vanguarda da aventura com 156 estrofes.
épico estiveram presentes: um mo- conquistadora da Europa. • O poema compõe-se de 1.102
mento grandioso, um assunto É com Os Lusíadas que a língua estrofes, com 8 versos em cada uma,
grandioso e um poeta grandioso. portuguesa adquire, definitivamente, dispostos em oitava-rima (esquema
O momento foi o Renascimento, sua maioridade. ABABABCC).
uma época fervilhante, de expansão Datadas do ano de 1572, há duas
das fronteiras do mundo conhecido edições de Os Lusíadas, praticamen- 3. AS PARTES DO POEMA
— expansão no espaço (descobriu- te idênticas. Não se sabe se as duas
se grande parte do planeta), no tem- foram feitas pelo poeta naquele ano A proposição (estrofes 1 e 2) é
po (redescobriu-se toda a Antiguida- ou se uma delas (não se saberia qual) parte obrigatória do poema épico. É a
de) e no espírito (ampliou-se enorme- é falsificação posterior, feita para iludir apresentação do assunto. O núcleo da
mente o conhecimento e iniciou-se a a Inquisição (que fora tolerante quan- proposição está nos versos 15 e 16
investigação científica do mundo). do da primeira edição do poema, mas (“Cantando espalharei por toda parte /
(Hoje, procura-se lembrar que a ex- exigiu alterações em edição poste- Se a tanto me ajudar o engenho e arte”):
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As armas e os barões1 assinalados, Em seguida, propõe uma infla- Da branca escuma1 os mares se mostravam
Que, da Ocidental praia Lusitana2, mada dedicatória a D. Sebastião, Cobertos, onde as proas vão cortando
Por mares nunca dantes navegados3, As marítimas águas consagradas2,
Passaram ainda além da Taprobana4,
estimulando-o a uma grande empre- Que do gado de Próteu3 são cortadas,
Em perigos e guerras esforçados sa de conquista que o elevasse à
Mais do que prometia a força humana, altura de seus ilustres antepassados Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
E entre gente remota5 edificaram (sabe-se do desastre em que termi- Onde o governo está da humana gente,
Novo Reino, que tanto sublimaram6. Se ajuntam em consílio4 glorioso,
naria, poucos anos depois, a aven- Sobre as coisas futuras do Oriente.
E também as memórias gloriosas tura de D. Sebastião na África): (…)
Daqueles Reis que foram dilatando7
A Fé, o Império, e as terras viciosas8 E, enquanto eu estes canto, e a vós não Vocabulário e Notas
De África e de Ásia andaram devastando, [posso, 1 – Escuma: espuma.
E aqueles que por obras valorosas Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, 2 – Consagrado: sagrado, santificado.
Se vão da lei da Morte libertando9: Tomai as rédeas vós do Reino vosso: 3 – Próteu: deus marinho, guardador do gado
Cantando espalharei10 por toda parte, Dareis matéria a nunca ouvido canto. de Netuno. Tinha o dom de tomar todas as
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Comecem a sentir o peso grosso formas possíveis.
(Que pelo mundo todo faça espanto) 4 – Consílio: conselho, assembleia.
Vocabulário e Notas De exércitos e feitos singulares
1 – Armas: guerras; barões: varões.
De África as terras e do Oriente os mares. No canto décimo, a narrativa se
2 – Portugal é o país mais ocidental da Euro- encerra e o poema se fecha com um
pa.
3 – Verso célebre, muito repetido. Na estrofe 19, inicia-se a nar- epílogo desalentado, em que o poe-
4 – Taprobana: Ceilão (hoje Sri Lanka), pon- ração de Os Lusíadas, a qual com- ta lamenta a situação presente de
to-limite primeiro ultrapassado pelos por-
preende três ações principais: a seu país e se dirige de novo a D.
tugueses. Sebastião, retomando a exortação
5 – Gente remota: povos distantes. viagem de Vasco da Gama, a
6 – Sublimar: elevar, enaltecer. história de Portugal e a luta que a ele fizera na dedicatória do
7 – Dilatar: ampliar, ou seja, espalhar pelo dos deuses do Olimpo (Baco x poema.
mundo.
Vênus); são, portanto, duas ações Contrapondo-se ao tom vibrante
8 – A Fé, o Império: O Cristianismo e o Impé-
históricas e uma ação mitológica. e ufanista do início do poema, o des-
rio português; terras viciosas: países não
cristãos. fecho contém uma dolorosa crítica à
Essas ações são entremeadas de di-
9 – Se vão da lei da Morte libertando: Vão-se decadência do país, corroído pela
gressões (dissertações) poéticas de
tornando imortais, porque serão sempre ambição desmedida de conquista e
lembrados. Camões sobre a moral, sobre a des-
de riqueza. É uma clara premonição
10 – Cantando espalharei: nessa expressão consideração de seus contempo-
está o verbo principal, do qual tudo o que da derrocada do país, submetido à
râneos pela poesia, sobre o verda-
veio antes é objeto. Espanha, e de seu Império Oriental:
deiro valor da glória, sobre a onipo-
tência do ouro e sobre o destino de Não mais, Musa1, não mais, que a Lira tenho
Depois dessa proposição — es-
palhar pelo mundo, com seu poema, Portugal. Destemperada2 e a voz enrouquecida,
O início da ação (I, 19) se dá, E não do canto, mas de ver que venho
os grandes feitos dos portugueses Cantar a gente surda e endurecida3.
—, o poeta faz a invocação, não não no início da viagem de Vasco da O favor com que mais se acende o engenho
das Musas (deusas que presidiam às Gama, mas quando os navegadores Não no dá a pátria, não, que está metida
já estão em pleno Oceano Índico, na No gosto da cobiça e na rudeza
artes), mas das Tágides, ou ninfas D’uma austera, apagada e vil tristeza.
do Rio Tejo, para que o inspirem. costa leste da África, à altura da Ilha
de Madagáscar. Só mais tarde é que Vocabulário e Notas
E vós, Tágides minhas, pois criado se irão narrar o início da viagem, a 1 – Musa: Camões dirige-se novamente a
Tendes em mim um novo engenho partida das naus e os incidentes da suas inspiradoras, as Tágides, para
[ardente1, informá-las de que vai parar o poema, não
Se sempre, em verso humilde, celebrado navegação no Atlântico. porque tivesse se cansado do canto, mas
Foi de mim vosso rio alegremente, Camões, na estrofe 19 do primei- porque sente falta do maior estímulo à sua
Dai-me agora um som alto e sublimado, ro canto, apresenta rapidamente os poesia: o reconhecimento do povo, da
Um estilo grandíloquo e corrente, pátria.
navegadores já no Índico, para, a se-
Por que de vossas águas Febo2 ordene 2 – Destemperado: desafinado.
Que não tenham inveja às de Hipocrene3. guir, apresentar a primeira ação mito- 3 – Gente surda e endurecida: o povo portu-
lógica, a primeira intervenção do guês. Para alguns críticos, Camões refere-
Vocabulário e Notas se apenas àquela parcela corroída pela
“maravilhoso pagão”, no episódio do
1 – Engenho ardente: refere-se à inspiração ganância e pelo individualismo. Para ou-
épica (heroica). “Consílio dos Deuses no Olimpo”: tros, o sentido da crítica é mais amplo e
2 – Febo: Apolo, deus do sol e aquele que presi- atinge toda a Nação, entregue ao obscu-
de as musas. Já no largo Oceano navegavam, rantismo religioso (a Contrarreforma), ao
3 – Hipocrene: fonte que o cavalo alado Pé- As inquietas ondas apartando; autoritarismo político (o Absolutismo), à
gaso fez brotar no Hélicon. Quem bebesse Os ventos brandamente respiravam, decadência econômica e à retórica pedan-
de suas águas se tornaria poeta. Das naus as velas côncavas inchando; te e esterilizante da ignorância e do medo.

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MÓDULO 6 Os Lusíadas – II
A narração da Viagem de Melin- no Palácio de Netuno, desembocan-
de até Calicute, na Índia, é retomada do na “llha dos Amores”, onde os planos
pelo poeta no Canto Vl. Seguem-se histórico e mitológico se fundem.
os episódios da conquista do Oriente.
No Canto IX inicia-se a viagem de re- ❑ Resumo dos cantos
gresso à pátria, interrompida na “Ilha
dos Amores”, onde os navegadores CANTO I
são recebidos por Tétis e pelas Ninfas, Proposição, invocação, de-
que amorosamente os recompensam dicatória, início da narração
dos duros trabalhos do mar; (rápida referência a que os portugue-
• a segunda ação histó- ses já navegavam no Oceano Índico);
rica, o relato da história de Portugal, Consílio dos Deuses no Olimpo; em
com dois narradores: Vasco da Gama Moçambique, Quiloa e Mombaça,
e seu irmão, Paulo da Gama. Vasco ciladas de Baco contra os navegado-
da Gama conta ao rei de Melinde a res e intervenções de Vênus e das
Luís de Camões fundação do País; os feitos dos reis e Nereidas a favor dos portugueses;
heróis portugueses, as principais bata- reflexões morais do poeta.
1. A NARRAÇÃO DO POEMA lhas que venceram (Ourique, Salado
e Aljubarrota); o episódio lírico-amoro- CANTO II
Já vimos, na aula anterior, que a so de Inês de Castro; o sonho proféti- Em Mombaça, narram-se as ma-
narração da viagem de Vasco da co de D. Manuel; o início da viagem; quinações de Baco e as interven-
Gama inicia-se na estrofe 19 do Can- o episódio do Gigante Adamastor, per- ções de Vênus e das Nereidas;
to I, com os navegadores já no meio sonificação do Cabo das Tormentas Vênus sobe ao Olimpo e queixa-se a
da viagem, em pleno Oceano Índico. e símbolo da superação do medo do Júpiter, que profetiza os feitos lusos;
Vimos também que a narração “Mar Tenebroso”. chegada a Melinde, onde os portu-
compreende duas ações históricas e A relação dos heróis portugueses gueses são bem recebidos.
uma ação mitológica. Dessas ações
e de seus atos é completada no Canto
destacam-se inúmeros episódios de CANTO III
Vlll, por Paulo da Gama, que conta ao
natureza simbólica, profética, lírica, Vasco da Gama invoca a inspira-
catual, a pretexto de explicar o signi-
naturista, histórica ou mitológica. ção de Calíope e inicia a narração da
ficado das bandeiras de Portugal, os
Particularizando melhor a nar- história de Portugal, destacando: os
feitos heroicos da gente lusitana.
ração, temos primeiros heróis (Luso e Viriato), a fun-
As narrativas são entremeadas de
• a primeira ação histórica, dação do País e os reis de Portugal, as
intervenções do poeta, principalmen-
que principia com os navegadores já batalhas de Ourique e Salado e o epi-
te no final dos cantos, em que Camões
em pleno Oceano Índico, próximos sódio lírico-amoroso de Inês de Castro.
lança suas reflexões morais, invectivas
de Moçambique.
contra o desprezo dos portugueses CANTO IV
Vencidos os perigos do mar e as
armadilhas de Baco, em Quiloa e pela arte, considerações sobre o ver- Vasco da Gama prossegue a nar-
Mombaça, os portugueses aportaram dadeiro valor da glória, sobre a sub- ração da história de Portugal: a Bata-
em Melinde. missão dos homens ao dinheiro e lha de Aljubarrota (centralização mo-
Do Canto lll ao V a ação (viagem) é sobre a decadência do país; nárquica — início da Dinastia de Avis).
interrompida, e Vasco da Gama • a ação mitológica, que prin- As primeiras conquistas, a Tomada de
conta ao rei de Melinde a história de cipia no Canto I, 20, com o episódio Ceuta, o sonho profético de D. Manuel,
Portugal, desde os heróis primitivos, do Consílio dos Deuses no Olimpo. que confia a Vasco da Gama o des-
passando por todos os reis, heróis e Baco é contrário aos portugueses: cobrimento do caminho marítimo para
feitos relevantes, até a inserção do Vênus é favorável a eles, e acaba con- as Índias. A partir desse ponto, Vasco
próprio narrador (Vasco da Gama) na vencendo Marte e Júpiter. A interven- da Gama passa a narrar a própria via-
história, narrando, ele próprio, a ção de divindades mitológicas (“ma- gem, a partida das naus e a adver-
partida das naus, os incidentes da ravilhoso pagão”) desdobra-se em ou- tência do Velho do Restelo (censura
viagem de Portugal a Melinde, a tros episódios: as ciladas de Baco, às navegações, representando a
travessia do Cabo das Tormentas, ou as intervenções de Vênus e das Nerei- sobrevivência da ideologia medieval,
da Boa Esperança. das, o Consílio dos Deuses Marinhos feudal e conservadora).
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CANTO V (a “Máquina do Mundo”), apontan- ❑ Inês de Castro (III,118-135)


Vasco da Gama conclui a nar- do os lugares onde os portugueses Episódio de natureza Iírico-amo-
ração da sua viagem. Fala do Cruzeiro iriam praticar grandes feitos. Camões rosa, simboliza a força e a veemência
do Sul, do fogo-de-santelmo, da narra o episódio de São Tomé, em do amor em Portugal.
tromba marítima, do episódio cômico que se fundem o “maravilhoso cris- Valendo-se de fontes medievais
de Veloso e do Gigante Adamastor tão” (bíblico), o “maravilhoso pagão” (as Trovas, de Garcia de Resende) e
(monstro de pedra que personifica o (mitológico) e o plano histórico. Tétis clássicas (a tragédia A Castro, de
Cabo das Tormentas, simbolizando a despede-se dos portugueses. Re- Antônio Ferreira), Camões, pela boca
superação do medo do “Mar Tene- gresso à pátria. Camões lamenta a de Vasco da Gama, inscreve na
broso”). De novo em Melinde, Vasco decadência de Portugal (Epílogo), epopeia a narrativa lírica da jovem
da Gama exalta a tenacidade portu- faz exortação a D. Sebastião e va- condenada pelo crime de amar. Inês,
guesa. Aqui se encerra o primeiro ticina as futuras glórias. jovem da pequena nobreza de
ciclo épico. Camões recrimina os por- Castela, apaixonou-se pelo Príncipe
tugueses pelo desapego à poesia. 2. EPISÓDIOS NOTÁVEIS D. Pedro (depois D. Pedro I, de Por-
tugal). A corte portuguesa opunha-se
CANTO Vl Os episódios de Os Lusíadas a tal união, e o Rei D. Afonso IV, mes-
Camões retoma a narração da via- são ações acessórias às ações mo reconhecendo a inocência da
gem de Melinde para a Índia. Os deu- principais. Além das ações históri- moça, não impede sua morte. Pedro,
ses reúnem-se no Palácio de Netuno cas, reais, narradas diretamente pelo na época em trabalhos de guerra na
para o Consílio dos Deuses Marinhos. poeta, por Vasco da Gama, ou por África, regressa a Portugal e encon-
A bordo das naus, os portugueses se seu irmão, Paulo da Gama, há epi- tra a amada morta (de onde vem a
entretêm com a narrativa cavaleires- sódios mitológicos, proféticos, líricos expressão popular “agora Inês é
ca do episódio dos Doze da Ingla- e naturistas (descrições da natu-
morta”). Diz a lenda que, treslouca-
terra (inspirada nos torneios da cava- reza), entremeados uns aos outros,
do, o príncipe teria desenterrado Inês,
laria medieval). Meditações do poeta de forma que um mesmo episódio
coroando-a rainha após a morte, e teria,
sobre o verdadeiro valor da glória. pode ter vários significados.
ainda, obrigado a corte a beijar a mão
da rainha-defunta. O certo é que, as-
CANTO VII ❑ O Consílio dos
sumindo o trono, foi um dos reis mais
Os portugueses chegam a Cali- Deuses no Olimpo (I, 20-41)
cruéis do país, obcecado pela vingan-
cute, na Índia. Camões descreve o Reunidos sob a presidência de
ça contra os algozes da amada.
Oriente exótico. Júpiter, os deuses discutem o futuro
das navegações portuguesas e da ❑ O Velho do
CANTO Vlll viagem de Vasco da Gama. Baco é Restelo (IV, 94-104)
Paulo da Gama, atendendo a um contrário aos portugueses, pois teme Quando as naus de Vasco da
pedido do catual (autoridade re- que eles suplantem seus feitos no Gama se despediam do porto de Be-
gional da Índia), explica o significado Oriente. Também Netuno (deus do lém, um velho, o Velho do Res-
das bandeiras de Portugal e refere- mar) fará depois oposição aos nave- telo, elevando a voz, manifestou sua
se aos heróis portugueses e aos gadores, invejoso de seus sucessos oposição à viagem às Índias. A sua
seus feitos. Camões narra os perigos marítimos. Vênus (deusa do amor) e fala pode ser interpretada como a
enfrentados no Oriente. Vasco da Marte (deus da guerra) tomam par-
Gama é feito prisioneiro e é res- sobrevivência da mentalidade feudal,
tido dos lusos, considerados pela deu- agrária, oposta ao expansionismo e
gatado em troca de mercadorias sa como os maiores amantes e, por-
europeias. Camões tece conside- às navegações, que configuravam os
tanto, seus protegidos, e tidos por interesses da burguesia e da monar-
rações sobre a onipotência do ouro.
Marte como os guerreiros mais valen- quia. É a expressão rigorosa do con-
tes. Após o debate, Júpiter decide a servadorismo. Certo é que Camões,
CANTO IX
favor dos portugueses. Baco, incon- mesmo numa epopeia que se propõe
Os portugueses iniciam a viagem
formado, desce à Terra e tenta im- a exaltar as Grandes Navegações,
de regresso. Vênus e as Ninfas prepa-
ram a “llha dos Amores”, prêmio e re- pedir o êxito da viagem, armando ci- dá a palavra aos que se opõem ao
pouso para os navegadores. É a fusão ladas e ataques traiçoeiros. projeto expansionista.
dos planos histórico e mitológico. Essa ação mitológica, a disputa
entre Vênus e Baco, interfere no plano ❑ O Gigante
CANTO X histórico, e tem o claro propósito de ele- Adamastor (V, 37-60)
Na “llha dos Amores”, Tétis e as var os navegadores à altura dos deu- Quando a esquadra de Vasco da
Ninfas oferecem um banquete aos ses olímpicos. Inspiradas na tradição Gama atravessava o Cabo das Tor-
navegadores. Tétis mostra a Vasco clássica, essas alegorias constituem mentas, passando do Oceano Atlân-
da Gama uma miniatura do Universo alguns dos pontos altos do poema. tico para o Índico, um monstro disfor-
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me e ameaçador interpela os navega- portugueses iriam fincar sua ban- De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
dores, condenando sua ousadia, pro- deira, incluindo aqui o Descobri-
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
fetizando desgraças e miséria. O Gi- mento do Brasil. Quando um gesto suave te sujeita.
gante narra, a seguir, a causa de sua Esse longo episódio é riquíssi- Vendo estas namoradas estranhezas,
transformação na figura monstruosa O velho pai sisudo, que respeita
mo em sugestões e significados.
O murmurar do povo e a fantasia
que guarnecia o Cabo das Tormentas: Simboliza a elevação dos navega- Do filho, que casar-se não queria,
tendo-se apaixonado por Tétis (filha dores à condição de semideuses, (III, 122)
de Dóris e Nereu), foi por ela repudia- interseccionando os planos histórico
do e tentou tomá-la à força. Derrota- Tirar Inês ao mundo determina,
e mitológico. Na exibição da Má- Por lhe tirar o filho que tem preso,
do e punido pelos deuses, foi transfor- quina do Mundo, os portugueses tor- Crendo com sangue só da morte indina11
mado num monstro de pedra. Inspi- nam-se senhores dos segredos do Matar do firme amor o fogo aceso.
rada na mitologia clássica (Homero e Que furor consentiu que a espada fina,
Universo, e Vasco da Gama triunfa Que pôde sustentar o grande peso
Ovídio), é uma das alegorias mais mais uma vez sobre Adamastor, tor- Do furor Mauro12, fosse alevantada
ricas do poema. Simboliza, no plano Contra hũa fraca dama delicada?
nando-se amante de Tétis, ninfa do
histórico, a superação, pelos portu- (III, 123)
mar. Inspirado em Virgílio, Horácio e
gueses, do medo do “Mar Tenebro-
Ovídio, o episódio é um hino ao amor (...)
so”, das superstições medievais. No
e à sensualidade.
plano lírico, desenvolve o tema do A corte, contudo, exige a morte
amante infeliz e desenganado (Tétis de Inês (nobre, mas bastarda), com
era esposa de Peleu, e enganou o TEXTOS quem o príncipe tinha filhos e de
Gigante); o amor-tragédia. Curiosa- quem não queria se afastar. Levada à
mente, o primeiro navegante a atraves- EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO presença do rei, Inês suplica a cle-
sar o Cabo das Tormentas, Bartolomeu (fragmentos) mência de D. Afonso IV, não por ela,
Dias, morreu exatamente ali, quando, ou pela sua vida, mas por seus filhos.
Passada esta tão próspera vitória1,
12 anos depois, em 1500, comanda- Tornado Afonso à Lusitana Terra, Observe a elegância e concisão do
va uma das quatro naus que Pedro A se lograr da paz com tanta glória poeta na estrofe que se segue:
Álvares Cabral perdeu na costa afri- Quanta soube ganhar na dura guerra,
cana, num naufrá gio. Era a O caso triste e digno da memória, Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
Que do sepulcro os homens desenterra, (Se de humano é matar uma donzela,
vingança do Gigante, ou do Cabo Aconteceu da mísera e mesquinha Fraca e sem força, só por ter sujeito
da Boa Esperança, como o batizou Que depois de ser morta foi Rainha. O coração a quem soube vencê-la),
Bartolomeu Dias, em 1488. (III, 118) A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Mova-te a piedade sua e minha,
❑ A llha dos Pois te não move a culpa que não tinha.
Que os corações humanos tanto obriga,
Amores (IX, 18 a X, 143) Deste causa à molesta2 morte sua, (III, 127)
Após a conquista do Oriente, lan- Como se fora3 pérfida inimiga. Vocabulário e Notas
çadas as sementes do Império Por- Se dizem, fero Amor, que a sede tua 1 – Esta... vitória: refere-se à vitória dos cris-
Nem com lágrimas tristes se mitiga4, tãos na Batalha do Salado.
tuguês que aí surgiria, os navegado-
É porque queres, áspero e tirano, 2 – Molesto: lastimoso, lamentável.
res estão voltando a Portugal. Vênus, Tuas aras5 banhar em sangue humano. 3 – Fora: fosse.
entretanto, prepara-lhes uma surpre- (III, 119) 4 – Mitigar: abrandar.
sa, como recompensa aos seus es- 5 – Ara: altar.
Estavas, linda Inês, posta em sossego, 6 – Fruito: fruto.
forços e sacrifícios. Numa ilha para- 7 – Engano: êxtase, enlevo.
De teus anos colhendo doce fruito6,
disíaca, os navegadores são recebi- Naquele engano7 da alma, Iedo e cego, 8 – Fortuna: na crença dos antigos, deusa que
dos pelas ninfas do mar, que Cupido, Que a Fortuna8 não deixa durar muito, presidia ao bem e ao mal; destino, fado.
Nos saudosos campos do Mondego9, 9 – Mondego: rio que banha Coimbra.
por ordem de Vênus, fez enamora-
De teus formosos olhos nunca enxuito10, 10 – Enxuito: enxuto.
das dos portugueses. Emoldurados 11 – Indino: indigno.
Aos montes ensinando e às ervinhas
por uma natureza exuberante, vivem O nome que no peito escrito tinhas.
12 – Mauro: mouro.
instantes de prazeres ilimitados. (III, 120)
EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO
Homenageados por Tétis com um
Do teu Príncipe ali te respondiam
banquete, uma ninfa profetiza os Mas um velho, de aspecto venerando,
As lembranças que na alma Ihe moravam, Que ficava nas praias, entre a gente,
futuros feitos portugueses. Após, Que sempre ante seus olhos te traziam, Postos em nós os olhos, meneando
Tétis, do alto de um monte, mostra a Quando dos teus formosos se apartavam; Três vezes a cabeça, descontente,
Vasco da Gama a Máquina do De noite, em doces sonhos que mentiam, A voz pesada um pouco alevantando,
De dia, em pensamentos que voavam; Que nós no mar ouvimos claramente,
Mundo, espécie de miniatura do
E quanto, enfim, cuidava e quanto via C’um saber só de experiências feito,
Universo. Particularizando o globo Eram tudo memórias de alegria. Tais palavras tirou do experto1 peito:
terrestre, aponta os lugares onde os (III, 121) (IV, 94)

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“Ó glória de mandar, ó vã cobiça Deixas criar as portas o inimigo, Que a tua estátua ilustre não tivera
Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Por ires buscar outro de tão longe, Fogo de altos desejos que a movera!
Ó fraudulento gosto, que se atiça Por quem se despovoe o Reino antigo, (IV, 103)
C’uma aura popular, que honra se chama! Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Que castigo tamanho e que justiça Buscas o incerto e incógnito perigo Não cometera o moço miserando8
Fazes no peito vão que muito te ama! Por que a Fama te exalte e te lisonje O carro alto do pai, nem o ar vazio
Que mortes, que perigos, que tormentas, Chamando-te senhor com larga cópia, O grande arquitector com o filho9, dando,
Que crueldades neles exprimentas2! Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia. Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
(IV, 95) (IV, 101) Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Condenando a temeridade de Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Deixa intentado a humana geração.
se lançarem os portugueses na con- Nas ondas vela pôs em seco lenho5! Mísera sorte! Estranha condição!”
Digno da eterna pena do Profundo6, (IV, 104)
quista do Oriente, adverte para o pe- Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
rigo representado pelos árabes e Nunca juízo algum, alto e profundo, Vocabulário e Notas
amaldiçoa as navegações: Nem cítara sonora de vivo engenho, 1 – Experto: experiente, sábio.
Te dê por isso fama nem memória, 2 – Exprimentas: experimentas.
Não tens junto contigo o Ismaelita3, Mas contigo se acabe o nome e glória! 3 – Ismaelita: referente a Ismael, filho de
Com quem sempre terás guerras sobejas? (IV, 102) Abraão, segundo o Velho Testamento.
Não segue ele do Arábio a Lei maldita, 4 – Pola: pela.
Se tu pola4 de Cristo só pelejas? Trouxe o filho de Jápeto7 do Céu 5 – Seco lenho: embarcação, navio.
Não tem cidades mil, terra infinita, O fogo que ajuntou ao peito humano, 6 – Profundo: inferno.
Se terras e riqueza mais desejas? Fogo que o mundo em armas acendeu, 7 – Filho de Jápeto: Prometeu.
Não é ele por armas esforçado, Em mortes, em desonras (grandeengano!). 8 – Miserando: digno de pena.
Se queres por vitórias ser louvado? Quanto melhor nos fora, Prometeu, 9 – Grande arquitector com o filho: Dédalo
(IV, 100) E quanto para o mundo menos dano, (da mitologia grega) e seu filho, Ícaro.

MÓDULO 7 Barroco
1. CONCEITO E ÂMBITO tações liberais do protestantismo e ção do espaço é perceptível em Vitória,
racionalismo na Inglaterra, Holanda e Palestrina, Bach e Haendel, no vir-
A apreciação do Barroco França. Nessa dimensão, o Barroco tuosismo dos esquemas polifônicos,
oscila entre a recusa e a posi- designa um certo número de estrutu- geradores do contraponto e da fuga.
ção negativista dos críticos ras formais que tendem a fundir e a Em sentido mais restrito, es-
que acusam o estilo de rebuscado, conciliar atitudes opostas, correspon- pecialmente espanhol, Barroco é a
artificial e vazio de conteúdo e a dentes à coexistência e interdepen- expressão artística e literária da Con-
apologia entusiasmada de ou- dência, mesmo conflituosa, de formas trarreforma católica e do absolutismo
tros, maravilhados com a engenho- sociais profundamente diferentes na das cortes dos Habsburgos. Expres-
sidade e sutileza da linguagem artís- Europa. Essa ânsia de fusão dos con- sa a dualidade cultural da Contrar-
tica barroca, voltada para a novida- trários fornece os principais elemen- reforma: Humanismo renascentista
de, para a alusão, para a suges- tos para a cosmovisão do Barroco: (valorização da cultura pagã do
tão e para a ilusão, entendida como 1) na Filosofia, a passagem de mundo greco-latino) mais a religiosi-
fuga da realidade convencional. uma concepção finitista e estática do dade tridentina, gerada na estufa da
Em sentido amplo, tomado como mundo para uma concepção infini- nobreza e do clero romano, espanhol,
constante universal, no homem e na tista, energética e dinâmica, com austríaco e português (valorização
arte, barroco designa um conjunto de Pascal, Newton e Giordano Bruno; da cultura cristã do mundo medieval).
características estéticas e formais que, 2) nas Artes Plásticas, essa A dualidade, o bifrontismo (Teo-
aparentemente, ressurgem em certas ânsia de expressar o movimento, a centrismo x Antropocentrismo, Fé x
épocas, como no Helenismo, no profundidade e a irregularidade pro- Razão, Céu x Terra, Alma x Corpo,
Gótico flamejante, no século XVII, no jeta-se em Michelângelo, Bernini, Virtude x Prazer, Ascetismo x He-
Romantismo e no Impressionismo, mar- Rubens, Velásquez, El Greco, Cara- donismo, Cristianismo x Paganismo),
cadas pela tendência à intensifica- vaggio, Rembrandt, Tintoretto e faz do Barroco ibérico-jesuítico a ex-
ção, ao exagero, e pela ânsia de ex- Zurbarán, na criação de um espaço pressão de um sentimento de dese-
pressar a tensão e a irregularidade. tumultuado que busca sugerir atmos- quilíbrio, de frustração e de instabili-
O Barroco designa as caracterís- feras ora místicas, ora imprecisas, dade, relacionado com a repressão
ticas que assumem a arte e a cultura repletas de elementos ornamentais e inquisitorial, com o terror político e re-
seiscentistas, condicionadas, de início, pormenores significativos; ligioso e com a decadência do mun-
pelo Absolutismo e pela Contrar- 3) na Música, esse mesmo sen- do católico, abalado com a derrota
reforma, incluindo, depois, manifes- tido de profundidade labiríntica e dilui- da invencível Armada, em 1588.
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A transição do ideal clássico para cupação, ao lado da consciência da metáforas), num estado de verda-
o barroco é definida por Heinrich fugacidade do tempo, e da incerteza deiro delírio cromático, apoiado em
Wölfflin, em termos de uma passagem e inconstância da vida. sugestões intensivas de cores e de
1) do linear ao pictórico, sons. Esse processo de identificação
incluindo o pitoresco e o “colorido”; ❑ A religiosidade (ilusória, sensorial, não racional)
2) da visão de superfície à Projetando uma época de intensos apoia-se nos jogos de palavras, nos
visão de profundidade, implican- conflitos espirituais, o tema religioso trocadilhos, nos enigmas, nas metá-
do o desdobramento de planos e mas- aparece muitas vezes mesclado com foras e nas perífrases ou circunló-
sas; a sensualidade; as alegorias bíblicas quios (= torneio em redor do termo
3) da forma fechada à for- do Antigo e do Novo Testamento mis- próprio e adoção de muitas palavras
ma aberta, denotando as perspec- turam-se com a mitologia pagã; a fé para evitá-lo). Assim, em vez de lá-
tivas múltiplas do observador; cristã e o misticismo aliam-se ao racio- grima, o barroco diz o “cristal dos
4) da multiplicidade à uni- nalismo, no arrependimento e na bus- olhos”; em vez de dentes, as “pérolas
dade, subordinando vários aspectos ca do perdão. Os argumentos lógicos da boca”; em vez de leque, o “zéfiro
a um único sentido; sobrepõem-se à revelação mística e manual”. O abuso artificioso da fan-
5) da clareza absoluta dos a consciência do pecado não inibe a tasia no campo psicológico da repre-
objetos à clareza relativa, a su- esperança de salvação. É uma reli- sentação sensível faz do poeta gon-
gerir formas de expressão esfuma- giosidade tensa e conflituosa. górico um verdadeiro alquimista, que
das, ambíguas, não finitas. busca extrair do real uma natureza
❑ Atitude lúdica supranatural, imaterial e arbitrária.
2. CARACTERÍSTICAS O propósito da arte barroca é, O aspecto exterior, imediata-
ESTÉTICO-ESTILÍSTICAS muitas vezes, o de surpreender o lei- mente perceptível, no Barroco cultis-
tor pelo virtuosismo, pela engenhosi- ta ou gongórico, é o abuso no empre-
❑ O dualismo dade, enredando-o em verdadeiros go de figuras de linguagem.
O Barroco é a arte do conflito, do labirintos de imagens e ideias. Mani-
contraste, da contradição, do dilema, pulando as palavras, abusando das
TEXTO I
e da dúvida, que se expressam pelo figuras de linguagem, privilegia o as-
acúmulo de antíteses, parado- pecto formal, o significante, em A serpe1, que adornando várias cores2,
xos e oxímoros. detrimento do significado. Assim, Com passos mais oblíquos3, que serenos,
alguns textos barrocos parecem Entre belos jardins, prados amenos,
❑ O fusionismo vazios de conteúdo, meros pretextos É maio errante de torcidas flores4;
O artista barroco não se limita a para o artista exibir a sua habilidade
Se quer matar da sede os desfavores5,
expor os contrários; quer conciliá-los, na exploração de sutilezas, de Os cristais6 bebe coa peçonha7 menos,
fundi-los, integrá-los por meio das fi- trocadilhos e de construções Por que não morra cos mortais venenos,
guras de linguagem: inusitadas. Esse niilismo temático, Se acaso gosta8 dos vitais licores9.
“Incêndio em mares de água dis- essa “pobreza” de conteúdo é mais
Assim também meu coração queixoso,
farçado; / Rio de neve em fogo con- frequente no aspecto gongórico ou Na sede ardente do feliz cuidado,
vertido.” cultista do Barroco. Bebe cos olhos teu cristal 10 fermoso11;

❑ O feísmo 3. O BARROCO Pois para não morrer no gosto amado,


Depõe logo o tormento venenoso,
Expressando uma época de in- CULTISTA OU GONGÓRICO Se acaso gosta o cristalino agrado12.
certeza, de repressão, de obscuran- (Manuel Botelho de Oliveira)
tismo, o homem barroco tem acen- Denomina-se cultismo ou cultera-
tuada predileção pelos aspectos nismo o aspecto do Barroco voltado Vocabulário e Notas
1 – Serpe: cobra, serpente.
cruéis, dolorosos e sangrentos, pelo para o jogo de palavras, para o
2 – Adornando várias cores: perífrase de “co-
“belo horrendo”, pelo espetáculo trá- rebuscamento da forma, para a orna- lorida”.
gico, deformando as imagens pelo mentação estilística, para o precio- 3 – Passos ... oblíquos: coleante, como o movi-
exagero, a resvalar o grotesco. sismo linguístico, para a erudição mi- mento da serpente.
4 – É maio errante de torcidas flores: multico-
nuciosa. Retrata-se a realidade de
lorida, a serpe é tão colorida quanto a
❑ O pessimismo modo indireto, realçando mais a ma- primavera (maio, na Europa); torcidas
Vivendo na órbita do medo e da neira de representar que propriamen- flores sugere a imagem de cores em
dúvida, o Barroco manifesta-se por te o apresentado. Constitui o aspecto espiral, pelo movimento coleante da
uma visão desencantada do mundo. sensual do Barroco, voltado para a serpente (“passos oblíquos”).
5 – Se quer matar da sede os desfavores: é
Como na Idade Média e no Roman- descrição do mundo por meio das perífrase de “se quer beber água”.
tismo, a morte é uma constante preo- sensações (analogias sensoriais = 6 – Cristais: metáfora de “água”.

52 –
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7 – Peçonha: veneno; os cristais bebe coa falsa. Há conceptismo, por exemplo, Comentário
peçonha menos – bebe água, mas sem o na poesia sacra e reflexivo-filosófica • A propósito do achamento de um braço
veneno que nela se deposita. de uma estátua perdida de Cristo, o poeta,
8 – Gostar: beber, provar.
de Gregório de Matos, uma variante partindo de constatações óbvias (versos 1-2: o
9 – Vitais licores: água. da poesia a lo divino, dos místicos todo depende da parte e a parte, do todo),
10 – Cristal: brilho, beleza. espanhóis, em que o Homem é desenvolve um raciocínio sutil e paradoxal
11 – Fermoso: formoso. divinizado e Deus humanizado, por (versos 3-4: se a parte é que faz o todo, a parte
12 – Gosta o cristalino agrado: aqui o verbo é tudo — é essencial — para que haja o todo),
meio de sutilezas conceituais, na
gostar está em lugar de ver : vê o rosto exemplifica com um artigo de fé (Deus está
esteira de Quevedo, modelo concep- inteiro em cada hóstia, que é parte de seu
amado.
tista muito reproduzido em Portugal e corpo), chegando à conclusão de que o braço
4. O BARROCO CONCEPTISTA no Brasil. da imagem de Cristo vale não apenas como
O conceptismo é a vertente bar- parte, mas como a imagem toda.

O conceptismo, ou concep- roca mais diretamente influenciada


tualismo, é o aspecto construtivo pela visão de mundo da Companhia TEXTO III
do Barroco, voltado para o significa- de Jesus, pela fé inaciana e contrar-
do, para o jogo de ideias, para a reformista: os recursos da lógica aris- VOS ESTIS SAL TERRAE – Math., V, 13

argumentação sutil, para a dia- totélica e tomista postos a serviço do


Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com
lética cerrada. Configura a atitu- convencimento religioso; a expres-
os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-
de intelectual do Barroco, o seu são da angústia de ter ou não ter fé, lhes sal da terra, porque quer que façam na
modo de reconhecer e conceituar os de amar a Cristo e revoltar-se contra terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir
objetos. Opera por meio de trocadi- suas determinações. Evitando a apa- a corrupção, mas quando a terra se vê tão

lhos, de associações inesperadas e rência brilhante do cultismo, o con- corrupta como está a nossa, havendo tantos
ceptismo procura economizar pala- nela que têm ofício de sal, qual será ou qual
dos mecanismos da Lógica: o silo- pode ser a causa desta corrupção? Ou é por-
gismo, o sofisma e o paradoxo. Há vras e imagens. Mas têm em comum
que o sal não salga, ou porque a terra se não
um constante esforço dialético orien- o desejo de surpreender pela novida-
deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
tando a organização convincente de, pela excentricidade, requerendo Pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
das ideias. A um certo caos plástico ambos do leitor um elevado grau de ou porque a terra se não deixa salgar, e os
(cultismo) opõe-se a ordem raciona- atenção, dado o obscurantismo deli- ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes
berado, a propor verdadeiros labi- dão, a não querem receber; ou é porque o sal
lista (conceptismo). Há uma tese a não salga, e os Pregadores dizem uma coisa e
demonstrar e o interlocutor tem de rintos de imagens e ideias.
fazem outra, ou porque a terra se não deixa
ser convencido. salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
Enquanto o cultismo (gongoris- TEXTO II eles fazem, que fazer o que dizem: ou é
mo) procura apreender o como dos porque o sal não salga, e os Pregadores se
ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO pregam a si, e não a Cristo; ou porque a terra
objetos, por meio da captação (des-
MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de
crição) de seus aspectos sensoriais servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é
QUE DESACATARAM
e plásticos (contorno, forma, cor, vo- INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA tudo isto verdade? Ainda mal. (…)
lume), num verdadeiro frenesi cromá- (Padre Antônio Vieira,
tico e imagético, o conceptismo pes- O todo sem a parte não é todo; Sermão de Santo Antônio aos Peixes)
quisa a essência dos objetos, bus- A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Comentário
cando saber o que são, buscando
Não se diga que é parte, sendo o todo. • A partir de um “conceito predicável”,
apreender a face oculta das coisas, extraído da citação bíblica, Vieira desenvolve
apenas acessível ao pensamento, ou Em todo o Sacramento está Deus todo, o raciocínio explorando as possibilidades
seja, aos conceitos. O cultismo e o E todo assiste inteiro em qualquer parte, sugeridas pelo tema, por meio de antíteses e
conceptismo não podem ser vistos E feito em partes todo em toda a parte, associações de ideias que, dispostas em
como polos construtivos opostos. Em qualquer parte sempre fica o todo. movimento circular, vão sendo retomadas e
ampliadas. A estrutura paralelística revela-se
Como observou Dámaso Alonso,
O braço de Jesus não seja parte, em várias orações — “Ou é porque o sal não
“esta paixão barroca, podería- salga, ou porque a terra se não deixa salgar”.
Pois que feito Jesus em partes todo,
mos dizer que o Gongorismo a Assiste cada parte em sua parte. O título, Sermão de Santo Antônio aos
expressa como uma labareda Peixes, indicia o fato de que, alegoricamente,
para fora e o Conceptismo co- Não se sabendo parte deste todo, Vieira irá falar aos “peixes”, que agrupam, se-
mo uma reconcentração para Um braço que lhe acharam, sendo parte, gundo ele, categorias humanas. Parte da lenda
Nos diz as partes todas deste todo. medieval segundo a qual o franciscano Santo
dentro”. São como duas faces de
Antônio, numa de suas pregações, não sendo
uma mesma moeda chamada Bar- ouvido pelos homens, lança a sua palavra ilumi-
(Gregório de Matos)
roco. Costuma-se dizer que o nada na praia deserta, e os peixes levantam a
conceptismo predomina na prosa e o Vocabulário e Notas cabeça à superfície das águas, como sinal da
gongorismo, na poesia. Esta noção é 1 – Parte: nada. força da palavra do santo pregador.

– 53
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MÓDULO 8 O Barroco Conceptista – Padre Antônio Vieira


1. PADRE ANTÔNIO VIEIRA semente é a palavra de Deus”. Trans- Encaminhando-se para a pero-
(Lisboa, 1608 – Bahia, 1697) formando o tema em pergunta, o ração (ou epílogo), lembra que os
pregador indaga: “E se a palavra de pregadores “pregam palavras de
Pregador da Companhia de Jesus Deus é tão poderosa e tão eficaz, co- Deus, mas não pregam a palavra de
que exerceu intensa atividade como mo vemos tão poucos frutos da Deus” e finaliza advertindo:
missionário no Brasil, nas diversas palavra de Deus?”
vezes em que aqui esteve. A serviço Depois de considerar todas as TEXTO III
da Coroa Portuguesa, foi como embai- condições pelas quais a palavra de
xador à França, Holanda e Itália. Na Deus não pode frutificar, passa a de- Semeadores do Evangelho, eis aqui o
Europa, foi perseguido pela Inquisição finir as qualidades exigíveis de um que devemos pretender nos nossos sermões,
por suas ideias favoráveis em relação pregador: não que os homens saiam contentes de nós,
senão que saiam muito descontentes de si; não
aos judeus. Chegou a ser expulso do
que Ihes pareçam bem os nossos conceitos,
Maranhão por opor-se aos colonos TEXTO I mas que Ihes pareçam mal os seus costumes,
que queriam escravizar os índios. as suas vidas, os seus passatempos, as suas
Brilhou como pregador na Itália, na Mas como em um pregador há tantas ambições e, enfim, todos os seus pecados.
qualidades, e em uma pregação tantas leis, e
corte da rainha Cristina da Suécia. No
os pregadores podem ser culpados em todas,
fim da vida, dedicou-se a compilar os em qual consistirá essa culpa? — No pregador 3. SERMÃO DE SANTO
sermões que havia pronunciado. podem-se considerar cinco circunstâncias: a ANTÔNIO AOS PEIXES
Além dos sermões, sua obra in- pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz.
clui três volumes de cartas e obras
Pregado em São Luís do Mara-
proféticas, como História do Futuro e, No quinto capítulo inicia o ata-
nhão, em 1654, revela fina ironia, rique-
em latim, Clavis Prophetarum (“Chave que ao preciosismo da oratória
dos Profetas”), ainda inédita. za nas sugestões alegóricas e agudo
gongórica, investindo contra os exa-
senso de observação sobre os vícios
geros ornamentais praticados por
e vaidades do homem, comparando-
❑ Estrutura dos sermões muitos sermonistas, especialmente o
o, por meio de alegorias, aos peixes.
Os sermões de Vieira têm estru- dominicano Frei Domingos de S.
Critica a prepotência dos gran-
tura tradicional: Tomás: “O estilo culto não é escuro, é
des que, como peixes, vivem do sa-
• proposição do tema, em ge- negro, e negro boçal e muito cer-
crifício de muitos pequenos, os quais
ral trecho da Bíblia; rado”. À condenação do gongorismo
• introito, em que expõe o pla- “engolem” e “devoram”. O alvo são
segue-se a defesa do conceptismo e
no segundo o qual se desenvolverá o os colonos do Maranhão, que no Bra-
do primado da lógica, da clareza, do
sermão; sil são grandes, mas em Portugal
rigor da sintaxe e do pensamento:
• invocação, geralmente, à “acham outros maiores que os co-
Nossa Senhora; mam, também, a eles”.
TEXTO II Censura os soberbos (= ronca-
• argumentação, que consis-
te no desenvolvimento do tema e in- Há de tomar o pregador uma só matéria, dores); os pregadores (= parasitas);
clui exemplos e sentenças; há de defini-la para que se conheça, há de os ambiciosos (= voadores); os hipó-
• peroração ou epílogo. dividi-la para que se distinga, há de prová-la critas e traidores (= polvos).
com a Escritura, há de declará-la com a razão,
há de confirmá-la com o exemplo, há de
2. SERMÃO DA SEXAGÉSIMA amplificá-la com as causas, com os efeitos, TEXTO IV
com as circunstâncias, com as conveniências
Pregado na Capela Real de Lis- que se hão de seguir, com os inconvenientes O polvo, com aquele seu capelo na
boa, em 1655, o Sermão da Sexagé- que se devem evitar; há de responder às cabeça, parece um monge; com aqueles seus
dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há raios estendidos, parece uma estrela; com
sima é uma teorização sobre a arte
de impugnar e refutar com toda a força da aquele não ter osso nem espinha, parece a
de pregar, um sermão sobre o ser- mesma brandura, a mesma mansidão. E,
eloquência os argumentos contrários, e depois
mão, uma aula de oratória sacra. Por debaixo dessa aparência tão modesta ou
disso há de colher, há de apertar, há de
isso, Vieira o escolheu para abrir sua concluir, há de persuadir, há de acabar.
dessa hipocrisia tão santa, testemunham
obra, como um prefácio, ou uma de- constantemente (...) que o dito polvo é o maior
claração de princípio. É uma defesa traidor do mar.
(...)
do conceptismo, um ataque aos exa-
geros do barroco cultista ou gon- As razões não hão de ser enxertadas, hão 4. SERMÃO DA PRIMEIRA
górico. O tema do sermão é extraído de ser nascidas. O pregar não é recitar. As
DOMINGA DA QUARESMA
razões próprias nascem do entendimento, as
de uma passagem bíblica escolhida alheias vão pegadas à memória e os homens
para a ocasião: “Semen est verbum não se convencem pela memória, senão pelo Também denominado Sermão
Dei” (São Lucas, Vlll, 11), ou seja, “A entendimento. do Cativo, foi pregado no Maranhão,
54 –
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em 1653. Nele o orador tenta per- Oh! se a gente preta tirada das brenhas
TEXTO VI de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhe-
suadir os colonos a libertarem os
cera bem quanto deve a Deus e à sua
indígenas, que compara aos hebreus Em um engenho sois imitadores de Cristo Santíssima mãe por este que pode parecer
cativos do faraó. Na corte, atuou na Crucificado: porque padeceis em um modo
desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão
muito semelhante ao que o mesmo Senhor
defesa do índio contra os colonos e padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão.
milagre e grande milagre!
lá pregou, em 1662, o Sermão da A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a
Epifania: “que os homens de qual- vossa em um engenho é de três. (...) Cristo
6. SERMÃO DO BOM LADRÃO
despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e
quer cor, são todos iguais por natu-
vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós
reza, e mais iguais ainda por fé”, maltratados em tudo. (...) Eles mandam, e vós Pregado em 1655, em Lisboa,
afirma o pregador, defendendo a servis; eles dormem, e vós velais; eles traz a distinção entre o ladrão co-
filiação comum e universal do descansam, e vós trabalhais; eles gozam o
fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis
mum, que eventualmente furta para
homem a um Deus criador e único. deles é um trabalho sobre outro. Não há sobreviver, e o ladrão que, amparado
trabalhos mais doces que os das vossas pelo poder, rouba cidades e reinos. A
oficinas; mas toda essa doçura para quem é? notória atualidade do tema tem tor-
TEXTO V Sois como as abelhas, de quem disse o poeta:
“Sic vos non vobis mellificatis apes”1.
nado frequente a transcrição de tre-
chos desse sermão em diversos ves-
No Sermão da Primeira Dominga
Vocabulário e Notas tibulares:
da Quaresma, imagina-se no lugar 1 – Verso atribuído a Virgílio: “Assim vós, mas
dos colonos que tivessem de se des- não para vós, fabricais o mel, abelhas”.
fazer de seus escravos e indaga: TEXTO VII
Mas, paradoxalmente, estabele-
Quem nos há de ir buscar um pote de ce uma cabal diferença entre o negro (...) Não só são ladrões, diz o Santo
água ou feixe de lenha? Quem nos há de fazer [Basílio Magno], os que cortam bolsas, ou
gentio, entregue à sua própria sorte espreitam os que se vão banhar para Ihes
duas covas de mandioca? Hão de ir nossas
na África, e o negro submetido à fé colher a roupa; os ladrões que mais própria e
mulheres? Hão de ir nossos filhos?
católica. Chega a bendizer a escra- dignamente merecem este título são aqueles a
vidão que trouxe o negro ao Brasil e quem os reis encomendam os exércitos e
5. SERMÃO XIV DO ROSÁRIO ao cristianismo: legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais, já com
Pregado na Bahia para uma irman- (...) Deveis dar infinitas graças a Deus manha, já com força, roubam e despojam os
por vos ter dado conhecimento de si e por vos povos. Os outros ladrões roubam um homem,
dade de negros, revela a repulsa ao
ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e estes roubam cidades e reinos; os outros
preconceito de cor e ao tratamento vós viveis como gentios, e vos ter trazido a furtam debaixo do seu risco, estes sem temor
cruel a que eram submetidos os es- esta, onde, instruídos na Fé, vivais como cris- nem perigo; os outros, se furtam, são enfor-
cravos: tãos e vos salveis. (...) cados, estes furtam e enforcam.

MÓDULO 9 Gregório de Matos


1. CONTEXTO 3) o terceiro momento com- nem consentissem que se impri-
HISTÓRICO-CULTURAL preende as primeiras décadas missem livros ou papéis avulsos”.
(SÉCULO XVII E PRIMEIRA do século XVIII, ainda centrado na Fomos o último povo da América a
METADE DO SÉCULO XVIII) Bahia, quando entram em moda as aca- conhecer a imprensa. A Impressão
demias literárias e científicas, por in- Régia foi implantada em 1808, com a
• Reconhecem-se três momen- fluência europeia. É o apogeu do Ma- vinda de D. João Vl, e nosso primeiro
tos no Barroco brasileiro: neirismo barroco, mercê das novas con- jornal, a Gazeta do Rio de Janeiro,
1) o primeiro momento cor- dições sociais que se vão criando com apareceu em 10 de setembro de
responde à primeira metade a descoberta de pedras e metais pre- 1808. Não havia o que ler na Colônia,
ciosos em Minas Gerais. Exagerando salvo os compêndios escolares,
do século XVII, marcado pela
o estilo barroco em suas linhas mes- obras religiosas e catequéticas,
dominação filipina, pela ocupação
tras, presencia-se o progresso no sen- coletâneas de leis e uns raros ro-
holandesa no Nordeste e pela hege-
tido de uma afetação cada vez maior, mances de cavalaria. As poucas
monia de Pernambuco, a capitania
correspondente ao estilo rococó. bibliotecas das casas religiosas reu-
mais adiantada; Não houve tipografia e imprensa niam algumas centenas de volumes
2) o segundo momento ocu- nos séculos coloniais e as tímidas ini- hagiográficos (de vidas de santos) e
pa a segunda metade do sécu- ciativas foram categoricamente proi- apologéticos (de defesa da fé).
lo XVII e marca a preeminência da bidas pela Metrópole. A Carta Régia Mesmo a circulação manuscrita era
Bahia, sede do Governo Geral, da de 8 de junho de 1706 determinava dificultada pelo alto preço do papel.
Diocese, da Relação, do principal “sequestrar as letras impressas e Até a expulsão da Companhia
presídio de tropas, do porto mais notificar os donos delas e os oficiais de Jesus, em 1759, os jesuítas
ativo e da economia mais dinâmica; de tipografia que não imprimissem detiveram o monopólio do
– 55
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ensino. Era um ensino “literário” e 1) Academia Brasílica dos Matos e não se encontrarão dois poe-
retórico, desdenhoso dos compor- Esquecidos (Bahia, 1724-1725) – mas absolutamente iguais nas diver-
tamentos científicos e técnicos Sebastião da Rocha Pita, o Acadêmi- sas edições que se seguiram à pri-
perante a realidade, infenso a toda co Vago, foi seu membro mais notório. meira tentativa de organizar, já no sé-
manifestação artística que escapas- 2) Academia Brasílica dos culo XX, sua suposta “obra comple-
se ao âmbito vocabular e oral. Renascidos (Bahia, 1759) – Propu- ta”. Nada tendo publicado em vida, e
Formávamos sacerdotes e ba- nha-se a reviver os Esquecidos. expurgado de nossa vida literária
charéis. Essa educação medie- 3) Academia dos Felizes durante dois séculos, os códices (=
valizante, retórica e contrarreformista (Rio de Janeiro) – Reuniu-se entre manuscritos antigos) e compilações
abafou, durante três séculos, os 1736 e 1740. trazem infinitas variantes, muitos
apelos da nova terra, a força de 4) Academia dos Seletos (Rio poemas que comprovadamente não
atração do meio tropical e a cons- de Janeiro, 1752) – Foi or-ganizada são de Gregório de Matos e inúmeros
ciência que os agrupamentos hu- em homenagem a Gomes Freire de casos de autoria duvidosa.
manos, mestiçados ou não, iam Andrade. Esquematicamente, podemos a-
tomando de sua diferenciação. grupar assim a poesia de Gregório
Esses apelos de nova terra irão 2. GREGÓRIO de Matos:
desaguar no sentimento nativista, DE MATOS GUERRA
fermento de várias rebeliões que, a (BA, 1623 – PE, 1699) I – Poesia satírica
partir de 1640, atestam a presença amorosa

{
de pruridos autonomistas (Amador ❑ O Boca do Inferno
erótico-irônica
Bueno, Beckman, Guerra dos Filho de senhores de engenho na
II – Poesia lírica sacra ou
Mascates, Emboabas, Vila Rica, Bahia, viveu entre a Colônia e a
religiosa
Inconfidência Mineira, Revolução Metrópole.
Bacharel em leis, advogado na reflexiva ou
dos Alfaiates, os Suassunas e a
Corte, teve vida atribulada. Andari- filosófica
Revolução Pernambucana de 1817).
Até meados do século XVIll lho, violeiro, conheceu a prisão e o
III – Poesia encomiástica
houve duplicidade linguística: o exílio em Angola por dois anos.
emprego do português e do tupi. O Incompatibilizado com autorida-
A obra atribuída a Gregório de
vernáculo era ensinado nas escolas des civis e eclesiásticas pela malda-
Matos é o organismo mais inventivo e
e revestido de uma aura de prestígio; de, irreverência e justeza de suas
atual de toda a poesia do período
a “língua geral” era empregada na sátiras, foi, desde sempre, “poeta
considerado luso-brasileiro. Gregório
vida familiar, refletindo o forte contin- maldito”. Sua obra permaneceu
praticamente inédita até o século XX, possui três modelos: Camões,
gente indígena e africano em circu- Góngora e Quevedo. Sua poética
lação durante o primeiro e segundo apesar da popularidade de que des-
frutou na Bahia, onde seus poemas mantém, portanto, compromissos
séculos. Esse “abrasileiramento lin- com a Renascença maneirista e
guístico” tem expressão nos autos de circulavam em cópias manuscritas e
eram constantemente oralizados com o Barroco cultista e con-
José de Anchieta, na poesia satírica
pelo povo. As peripécias de sua vida ceptista. Assim, a lírica amorosa
de Gregório de Matos e em alguns
foram romanceadas recentemente anda de permeio com a lírica religio-
momentos do Arcadismo.
por Ana Miranda, no romance bio- sa. Sua sátira desbocada e agressiva
As academias “literárias” baianas
gráfico Boca do Inferno. Sua sátira à vem também da Espanha barroca,
e cariocas foram o último centro
Bahia dominada pela “máquina mer- mas possui raízes medievais portu-
irradiador do Barroco literário e “o
cante” foi reaproveitada em música guesas e qualidades absolutamente
primeiro sinal de uma cultura huma-
por Caetano Veloso: próprias. A poesia encomiástica ex-
nística viva, extraconventual”, se-
plica-se pela habilidade versificatória
gundo Alfredo Bosi. Aglutinavam Triste Bahia, oh quão dessemelhante
religiosos, militares, desembarga- e pelas circunstâncias de sua vida.
Estás e estou de nosso antigo estado!
dores, altos funcionários, reunidos Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
É uma constante em sua poesia
em grêmios eruditos, à imitação das Rica te vi eu já, tu a mi abundante. a noção de que os homens e as vai-
congêneres europeias. Tinham cará- dades humanas são insignificantes,
A ti tocou-te a máquina mercante, de que o tempo é fugaz e a sorte
ter fortemente encomiástico (de
Que em sua larga barra tem entrado; instável. Dentro dessa linha, pro-
elogio) e seus atos acadêmicos des- A mi vem me trocando e tem trocado
tinavam-se à celebração das festas Tanto negócio e tanto negociante.
duziu, entre outros, o magnífico
religiosas ou dos feitos das autori- soneto “Nasce o sol, e não dura
dades coloniais. Deram maior contri- ❑ Uma obra problemática mais que um dia”, que lembra,
buição à História e à erudição em Não há um texto definitivo (edi- pela temática, o famoso “O sol é
geral que à Literatura. ção crítica) da poesia de Gregório de grande...”, de Sá de Miranda.
56 –
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❑ A sátira de Com palavras dissolutas Vocabulário e Notas


Me concluís, na verdade, 1 – Cobrado: recuperado.
Gregório de Matos
Que as lidas todas de um frade
Ora é respeitador do escrúpulo São Freiras, Sermões e Putas.
vocabular, usando palavras admiti- O poeta manipula, a seu favor, a
das pela convenção, para pôr a nu O açúcar já se acabou? … Baixou. parábola da ovelha desgarrada, do
as mazelas e baixezas de toda a E o dinheiro se extinguiu? … Subiu. Novo Testamento. A submissão e hu-
Logo já convalesceu? … Morreu. mildade religiosa reveladas no pri-
Bahia; ora é livre usuário de vocabu-
lários que ainda fazem enrubescer, À Bahia aconteceu
meiro quarteto são contraditadas nos
para retratar isomorficamente festas O que a um doente acontece, tercetos; insinua-se neles o argumen-
de bailes, passeios ou cenas pica- Cai na cama, o mal lhe cresce; to de que a alegria do Senhor e a sua
Baixou, Subiu e Morreu. glória dependem da salvação do poe-
rescas e pornográficas das ruas, lares
e prostíbulos de sua terra. Satiriza ta. Parafraseando o sofisma engen-
Por trás da contundência da sáti- drado: Se Cristo não me perdoar, ou
povo, clero e fidalgos do tempo, sem- ra observe a habilidade na constru-
pre com a mesma maldade, muita perderá uma ovelha desgarrada e,
ção das estrofes pelo processo de
inteligência e alta consciência poé- portanto, a glória, ou não é verdadei-
disseminação-e-recolha: o últi-
tica. A situação de “intelectual bran- ro o que a Bíblia registra.
mo verso de cada estrofe repete e
co” não muito prestigiado pelos po- dispõe no plano horizontal as três pa-
derosos do Brasil pungia o amor-pró- ❑ A poesia lírico-
lavras que finalizam os três primeiros
prio do poeta e o levava a estiletar versos da estrofe. -amorosa – espírito x corpo
todas as classes da nossa socieda- Apresenta-se sob o signo da
de, especialmente os “caramurus”, ❑ A poesia sacra dualidade barroca, oscilando entre
descendentes dos primeiros povoa- de Gregório de Matos a atitude contemplativa, o amor
dores e que por isso se julgavam a Os temas comuns da época da elevado, à maneira dos sonetos de
“nobreza” da terra; os “unhates”, co- Contrarreforma — o horror do peca- Camões, e a obscenidade, o carna-
merciantes portugueses; os mestiços, do, a ameaça do inferno e a humilha- lismo. É curioso que a postura platô-
mulatos, o clero e as autoridades. ção do homem perante Deus — for- nica é dominante, quando o poeta
A sátira constitui a vertente mais necem vasto material para o talento se refere a mulheres brancas, de
“brasileira” e original de sua obra, ain- poético de Gregório de Matos. A condição social superior, e a libido
da que tenha várias vezes recorrido consciência do pecado, o arre- agressiva, o erotismo e o deslo-
aos moldes espanhóis (Quevedo). pendimento e a busca do per- camento são as tônicas, quando o
dão divino são, quase sempre, pre- poeta se inspira nas mulheres de
RETRATO ANATÔMICO textos para o exercício poético. condição social inferior, especial-
DOS ACHAQUES DE QUE A manipulação engenhosa dos mente as mulatas.
PADECIA ÀQUELE TEMPO argumentos, através de silogismos,
A CIDADE DA BAHIA sofismas e paradoxos, evidencia a Minha rica mulatinha
(fragmentos) predominância conceptista na desvelo e cuidado meu,
eu já fora todo teu,
Que falta nesta cidade? … Verdade.
obra do poeta baiano, que tomou e tu foras toda minha;
Que mais por sua desonra? … Honra. emprestado de Quevedo formas,
Falta mais que se lhe ponha? … Vergonha. temas e até versos inteiros. Juro-te, minha vidinha,
se acaso minha qués1 ser,
O Demo a viver se exponha, A JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR, que todo me hei de acender
Por mais que a fama a exalta, ESTANDO O POETA em ser teu amante fino
PARA MORRER pois por ti já perco o tino2,
Numa cidade onde falta
e ando para morrer.
Verdade, Honra, Vergonha.
Pequei, Senhor; mas não porque hei
[pecado Vocabulário e Notas
(...) 1 – Qués: quiseres.
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido, 2 – Tino: juízo.
E que justiça a resguarda? … Bastarda.
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
É grátis distribuída? … Vendida.
Que tem, que a todos assusta? … Injusta. Observe os versos curtos (medida
Se basta a voz irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido; velha) e a aproximação com uma
Valha-nos Deus, o que custa Que a mesma culpa, que vos há ofendido, linguagem mais espontânea e popular.
O que El-Rei nos dá de graça, Vos tem para o perdão lisonjeado. Observe também o tema clássico
Que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta. do carpe diem (“aproveita o dia”) que
Se uma ovelha perdida e já cobrada1
Glória tal e prazer tão repentino aparece no fragmento a seguir:
(...) Vos deu, como afirmais na sacra história,
Ó não aguardes, que a madura idade,
E nos Frades há manqueiras? … Freiras. Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, te converta essa flor, essa beleza,
Em que ocupam os serões? ... Sermões. Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, em terra, em cinza, em pó, em sombra,
Não se ocupam em disputas? … Putas. Perder na vossa ovelha a vossa glória. [em nada.

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MÓDULO 10 Cláudio Manuel da Costa


1. O CONTEXTO não mais apenas descritivo e pito- ❑ Volta aos modelos clássicos
HISTÓRICO-CULTURAL resco (como ocorrera no Quinhen- Retorno aos modelos greco-ro-
tismo e no Barroco). manos e renascentistas, revaloriza-
O Arcadismo ou Neoclassicismo A vida literária, já estimulada no ção dos arquétipos da poesia e da
corresponde ao período de supe- final do período Barroco pelo apareci- mitologia da Antiguidade. Daí a de-
ração dos conflitos religiosos da mento das Academias Literárias, nominação de Neoclassicismo.
época barroca. No século XVIII a fé e ganha novo alento com o surgimento Predomínio da Razão, a arte
a religião perdem importância, e a de um público leitor. Estabiliza-se, busca o Belo, o Bem, a Verdade e
Razão e a Ciência passam a expli- dessa forma, a relação autor–obra– a Perfeição. Há intenção didática e
car o homem e o mundo. leitor, vale dizer, surgem escritores moralizante: “O belo é verdadeiro
O Arcadismo coincide com o brasileiros, que escrevem sobre o e o verdadeiro é o natural”.
Século das Luzes, marcado pelo Brasil, para leitores brasileiros. Busca da harmonia social pela obe-
Iluminismo (Rousseau, Montes- diência às leis da natureza. Otimis-
mo, crença no progresso do homem,
quieu, Voltaire); pelo Empirismo
da ciência e da razão.
Científico (Newton, Lavoisier, Lineu,
Locke); pelo Enciclopedismo
❑ Arte como
(Diderot) e, no âmbito político, pelo
imitação da natureza
Despotismo Esclarecido.
Obediência às regras de Aristó-
Representa, historicamente, o úl-
teles quanto à verossimilhança
timo período de dominação da aristo-
(mimese). O poeta deveria buscar na
cracia e as primeiras investidas da
natureza os seus modelos, selecio-
burguesia, emergente na Revolução
nando apenas os que configurassem
Comercial, e que assumirá a con-
as noções de Belo, Bem e Perfeição.
dição de classe dominante a partir Os teóricos do Neoclassicismo
da Revolução Francesa. (Boileau, Metastásio) propunham não
Em Portugal, corresponde à épo- a imitação direta da natureza, mas a
ca do Marquês de Pombal (1750- imitação com base nos autores
1777), que operou profundas trans- antigos ou renascentistas (Horácio,
formações administrativas e educa- Ovídio, Virgílio; Petrarca, Camões). O
cionais, sob influxo dos ideais do Jacques-Louis David (1748-1825), Morte poeta arcádico não visa à origina-
Iluminismo e do Despotismo de Marat (Musées Royaux des Beaux- lidade, não é um “inventor”, como o
Esclarecido (expulsão dos jesuí- Arts de Belgique).
barroco, o romântico, o simbolista, o
tas, submissão da Santa Inquisição, moderno; busca a perfeição na
laicização do ensino, reforma univer- 2. CARACTERÍSTICAS imitação do modelo.
sitária, divulgação das ideias cien- Poesia descritiva e objetiva. O
tíficas etc.) Reação aos exageros verbais do poeta deve ser mais um pintor de
No Brasil, corresponde ao Barroco, propondo a clareza, a sim- situações que de emoções.
apogeu da mineração do ouro em plicidade e o equilíbrio clássico. Poucas figuras de linguagem
Minas Gerais e à transferência do (em comparação com o Barroco),
centro econômico e cultural da Colô- Alguém há de cuidar que é frase inchada, preferência pela metonímia, predo-
nia do norte (Pernambuco e Bahia) Daquela que lá se usa entre essa gente, mínio da ordem direta da frase,
para o centro-sudeste (Minas e Rio Que julga que diz muito e não diz nada. emprego do verso branco (sem ri-
de Janeiro). ma), que aproxima a poesia da ca-
O nosso humilde gênio não consente
Corresponde também à fase de dência da prosa.
Que outra coisa se diga, mais que aquilo
estabilização de uma sociedade Que só convém ao espírito inocente.
urbana mais complexa e às primeiras ❑ Bucolismo, pastoralismo
rebeliões contra o Estatuto colonial A frase pastoril, o fraco estilo. Inspirados nos clássicos antigos,
(Inconfidência Mineira, Revolução dos Da flauta e da sanfona, antes que tudo, os árcades tematizam a natureza,
Alfaiates etc.). Daí o nativismo, Será digno que Albano chegue a ouvi-lo. vista sempre como cenário ameno e
que passa a ser reivindicatório e (Cláudio Manuel da Costa) aprazível (pastores, ovelhas, riachos

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cristalinos, campinas verdejantes, • Poesia Satírica: Tomás An- Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece que se cansa de que a um triste
alamedas floridas etc.). A natureza tônio Gonzaga (Cartas Chilenas ) e
Haja de aparecer: quanto resiste
é convencional, e serve de Silva Alvarenga (O Desertor das Letras). A seu raio este sítio tenebroso!
moldura suave, de cenário para a
vida serena dos pastores e suas ❑ Cláudio Manuel da Costa Não pode ser que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
musas, ou de testemunha impassível (Glauceste Satúrnio)
Acaso o meu delírio! se me assiste
dos lamentos e desenganos do (Mariana, 1729 – Vila Rica, Ainda aquele humor tão venenoso!
poeta. 1789)
Autor de Obras Poéticas (1768), Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai o Pastor: outro assobia,
❑ Fingimento, afetação reunindo sonetos, éclogas, cantatas,
E o gado para o monte vai chamando.
e convencionalismo epicédios, epístolas e outras modalida-
Na mitologia clássica, a Arcá- des, além do poema épico de inspira- Ora não há mais louca fantasia!
dia era concebida como morada ção camoniana, denominado Vila Rica. Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe quando é noite ou quando é dia.
dos pastores que, governados por Nasceu em Minas, filho de mine-
Pã, viviam em contato com a na- radores, estudou na Corte. Voltando
• Tentou conciliar as conven-
tureza, tangendo suas ovelhas, en- ao Brasil, foi envolvido na devassa
ções do Arcadismo com a paisagem
tretidos em amáveis pugnas poéticas da Inconfidência Mineira, suicidan-
mineira, mas reconheceu as limita-
e musicais, e na exaltação da beleza do-se na prisão. ções que as adversidades da condi-
das musas e da excelência da vida ção colonial impunham à criação
campestre. Características poética. Observe esses fragmentos
Quando, por volta de 1690, alguns • Sobrevivem traços cultistas do “Prólogo” das Obras Poéticas:
poetas italianos começaram a se opor em sua obra, que se realiza como
ao Barroco, fundaram sociedades lite- uma transição entre o Barroco “que só entre as delícias do Pin-
rárias às quais deram o nome de ar- e o Arcadismo. do se podem nutrir aqueles espíritos
cádias, aludindo à inspiração clás- que desde o berço se destinaram a
sica que norteava essas associações • Buscou os modelos clássicos tratar com as Musas.”
e às propostas de uma poesia sim- (Teócrito, Virgílio, Sannazaro, Ca- “Não são estas as venturosas
ples, bucólica e pastoril. Os mem- mões) com equilibrada consciência praias da Arcádia, onde o som das
bros das arcádias adotavam pseudô- crítica. Concluindo o Prólogo ao águas inspirava a harmonia dos ver-
nimos pastoris e chamavam-se uns Leitor, das Obras Poéticas, diz, sos. Turva e feia, a corrente desses
aos outros de pastores. com visível falsa modéstia: ribeirões, primeiro que arrebate as
São frequentes os temas clássi- ideias de Poeta, deixa ponderar
cos: o carpe diem (= aproveita o dia), “A lição dos gregos, franceses e ambiciosa fadiga de minerar a terra
a aurea mediocritas (= mediania de italianos, sim, me fizeram conhecer a que Ihes tem pervertido as cores.”
ouro), a exaltação da vida simples, o “A desconsolação de não poder
diferença sensível dos nossos estu-
substabelecer aqui as delícias do Tejo,
fugere urbem (= fugir da civilização), dos, e dos primeiros Mestres da Poe-
do Lima e do Mondego, me fez empe-
buscar na natureza a felicidade, o sia. É infelicidade que haja de con-
cer o engenho dentro do meu berço.”
locus amoenus (= natureza amena, fessar que vejo e aprovo o melhor,
aprazível). Os poetas árcades ado- mas sigo o contrário na execução.” • Essa visão realista e objetiva
tavam como lema o inutilia truncat (=
da impossibilidade de transpor para
corta o inútil), aludindo à oposição de • Apesar dos traços cultistas a natureza brasileira as convenções
exageros ornamentais do Barroco. que sua obra revela, fez severas da poesia arcádica contribuiu para
restrições a esse estilo, defendendo que se criticasse, em Cláudio
3. ARCADISMO NO BRASIL a simplicidade arcádica. Manuel da Costa, a ausência do
elemento brasileiro. Contudo, a
De 1768, com as Obras Poéticas, • Foi grande sonetista, sóbrio paisagem mineira está presente na
de Cláudio Manuel da Costa, a 1836, e elegante, revelando acen- sua obra, através de alusões à
início do Romantismo, com Suspiros tuadas influências de Camões natureza áspera (pedras, penhas,
Poéticos e Saudades, de Gonçalves e de Petrarca. Poeta de forma rochedos, penhascos), que o
de Magalhães e Caldas Barbosa. trabalhada, virtuosística, adotou uma poeta faz contrastar com a brandura
concepção neoclássica de poesia, de seus sentimentos.
• Poesia Épica: Cláudio Ma- sem sacrificar por inteiro a expressão
...oh! quem cuidara
nuel da Costa, Basílio da Gama e das emoções e sentimentos, presen- Que entre penhas tão duras se cria
Santa Rita Durão. tes em suas melhores criações. Uma alma terna, um peito sem dureza.

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• Oscilou entre o apego à Colô- na tristeza da mudança das coisas Levantar-me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
nia e o amor à Metrópole, atitude em relação à permanência dos sen-
A tempo, que o voraz lobo maldito
comum a muitos dos nossos árca- timentos; A minha ovelha mais mimosa ofende;
des. Por isso, é frequente a expres- – o contraste rústico x civilizado;
são do dilaceramento interior, – Nise, sua musa e pastora, Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
provocado pelo contraste entre o causa de seus lamentos e dissabo-
Sempre desperto está, sempre ansioso;
rústico mineiro e a experiência res:
intelectual e social na Europa. Ah! queira Deus que minta a sorte irada:
Aquela cinta azul, que o Céu estende Mas de tão triste agouro cuidadoso1
• Os temas que versou com À nossa mão esquerda, aquele grito Só me lembro de Nise, e de mais nada.
mais frequência foram Com que está toda a noite o corvo aflito
– o platonismo amoroso, Dizendo um não sei quê, que não se Vocabulário e Notas
configurado no amante infeliz e [entende; 1 – Cuidadoso (de): preocupado com.

MÓDULO 11 Autores Árcades


1. TOMÁS ANTÔNIO rado na estilização de sua alegria ou As preferências temáticas estão
GONZAGA (Porto, de seu drama. Essa nota de subje- centradas no ideal de vida simples,
1744 – Moçambique, 1810) tivismo é mais evidente na segun- no pastoralismo e bucolismo (fugere
da parte das Liras. urbem); no heroísmo que se atinge
Nascido em Portugal, veio para o Sob esse aspecto, é possível re- pela honradez e pelo trabalho (aurea
Brasil com 7 anos. Voltou a Portugal, constituir, a partir das Liras, a evolução mediocritas); no sentimento da
onde se formou em Direito e exerceu dos sentimentos e intenções de Dirceu transitoriedade da vida, que
a magistratura. Retornando ao Brasil, em relação a Marília: a descoberta e a arrasta o poeta ao carpe diem
já com 38 anos, na condição de horaciano; nos retratos que lisonjeiam e
revelação da mulher escolhida, a fase
Ouvidor de Vila Rica, ficou noivo de divinizam a mulher amada.
dos ciúmes, a consolidação dos senti-
Maria Joaquina Doroteia de Seixas (a Tudo isso se mistura à expressão
mentos e intenções, a frustração dos
Marília das Liras). de um ideal burguês de vida, às
planos de casamento e a expressão
Envolvido na Inconfidência Minei- tentativas de autovalorização,
da desesperança e da solidão. de afirmação narcisística das
ra, foi desterrado para Moçambique,
2.o) A imitação direta da na-
onde reconstruiu sua vida e conquis- qualidades do poeta, às cenas
tureza de Minas, e não da nature-
tou excelente situação econômica. da natureza que oscilam entre a
za reproduzida dos poetas bucólicos
frivolidade próxima ao estilo
greco-romanos ou renascentistas. A
❑ Obras ficção bucólica de Gonzaga é inje-
rococó e o realismo descritivo.
• Poesia lírica: Liras de Marília A primeira parte das Liras,
tada de autenticidade pela transcri-
de Dirceu – Partes I e ll; que corresponde à época do noiva-
ção dos aspectos rústicos e reais da
• Poesia satírica: Cartas Chi- do, expressa a vertente mais conven-
paisagem e da vida da Colônia.
lenas ; cional e neoclássica: os encantos de
Apesar das alusões mitológicas
• Tese jurídica: Tratado de Marília, os amores de Dirceu, os pro-
e de outras reminiscências clássicas,
Direito Natural. percebe-se que o poeta teve a preo- jetos de vida futura, os quadros des-
cupação de fazer-se claramente en- critivos amenos, a expressão otimista
❑ Características das Liras tendido por Marília. Para tanto, obser- e o narcisismo:
• Foi o poeta mais equili- va-se o tom familiar, quase prosaico,
bradamente neoclássico de Num sítio ameno,
de boa parte das composições.
nossa literatura, e sua obra lírica é, Cheio de rosas,
Mesmo admitindo a sinceridade De brancos lírios,
ainda hoje, das manifestações árca- das intenções do poeta, não há nas Murtas viçosas,
des no Brasil, a que mais se Liras um transbordamento de um apai- Dos seus amores
comunica com o leitor. xonado autêntico. Há muito de “fingi- Na companhia,
• Apesar de ceder, vez por outra, mento”, de frieza calculada e disfarça- Dirceu passava
às convenções da poesia arcádica, da de um conquistador cortês, dotado Alegre o dia.
infunde em sua obra dois elementos de apreciável intuição psicológica. Isso
não convencionais: explica as contradições na caracteri- A segunda parte das Liras,
1.o) O lirismo como expres- zação de Dirceu, ora honrado pastor, escrita no cárcere, expressa a amargu-
são pessoal, construído em torno ora ilustre magistrado, e na de Marília, ra, o desconsolo e a solidão. Há mo-
de seu modo de ser e pensar, inspi- ora loira, ora morena. mentos de revolta contra a injustiça e

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incompreensão dos homens. Os senti- Glaura, as ninfas te chamaram


E buscaram doce abrigo;
TEXTOS
mentos de melancolia, saudade e
Vem comigo, e nesta gruta
depressão aproximam-se do pathos
Branda escuta o meu amor. Minha bela Marília, tudo passa;
romântico. Mas não há o desvario a sorte deste mundo é mal segura;
sentimental dos românticos nem a in- se vem depois dos males a ventura1,
Alguns veem, na presença da pai- vem depois dos prazeres a desgraça.
continência verbal. Mesmo expressan-
sagem nativa e na exaltação de sua Estão os mesmos2 deuses
do seu desespero, o estilo de Gonzaga
graça e beleza, uma antecipação ro- sujeitos ao poder do ímpio fado3:
é sóbrio, equilibrado, ainda preso ao Apolo já fugiu do céu brilhante,
mântica.
espírito dos clássicos: já foi pastor de gado.
Defensor da política pombalina,
Se me visses com teus olhos escreveu um poema herói-cômico, O A devorante mão da negra morte
Nesta masmorra metido, Desertor das Letras, voltado para a acaba de roubar o bem que temos;
De mil ideias funestas até na triste campa4 não podemos
exaltação da reforma universitária e zombar do braço da inconstante sorte:
E cuidados combatido,
educacional promovida pelo Mar- qual5 fica no sepulcro6,
Qual seria, ó minha bela,
quês de Pombal. que seus avós ergueram, descansado;
Qual seria o teu pesar?
qual7 no campo, e lhe arranca os frios ossos
ferro do torto arado.
❑ As Cartas Chilenas 3. ALVARENGA PEIXOTO
Poema satírico, vazado em 13 (Rio, 1744 – Angola, 1792) Ah! enquanto os destinos impiedosos
cartas (a 7.a e a 13.a incompletas), não voltam contra nós a face irada,
façamos, sim, façamos, doce amada,
que ataca os desmandos do gover- Exaltou a política pombalina e os nossos breves dias mais ditosos8.
nador de Minas, D. Luís da Cunha assumiu, por vezes, atitude de crítica Um coração que, frouxo,
Menezes. Os nomes das pessoas em relação à política colonizadora de a grata posse de seu bem difere9,
envolvidas são ocultos por criptô- Portugal, tendo sido apontado como a si, Marília, a si próprio rouba
e a si próprio fere.
nimos. Gonzaga é Critilo; Cláudio responsável pelo lema da bandeira
Manuel da Costa, o suposto destina- da Inconfidência, extraído de um Ornemos nossas testas com as flores
tário, é Doroteu; o governador Cunha verso de Virgílio: Libertas quae sera e façamos de feno um brando leito;
Menezes é Minésio, o Fanfarrão. Os tamen, que significa “Liberdade, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
topônimos também são trocados, gozemos do prazer de sãos amores.
ainda que tardia”. Sobre as nossas cabeças,
mas os fatos narrados por Critilo e Sua obra era considerada irregu- sem que o possam deter, o tempo corre;
imputados ao governador são reais. lar, escassa e convencional, atrelada e para nós o tempo que se passa
A crítica é de natureza pessoal, aos clichês árcades. Entretanto, também, Marília, morre.
dirigida ao governador. Não há opo- depois que Manuel Rodrigues Lapa Com os anos, Marília, o gosto falta,
sição à Metrópole nem ao sistema publicou cinco sonetos inéditos do e se entorpece o corpo já cansado:
colonial. autor (Vida e Obra de Alvarenga triste, o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho, sempre alegre, salta.
Peixoto, Rio: INL, 1960), a crítica tem
A mesma formosura
2. SILVA ALVARENGA reavaliado a verve lírica desse poeta. é dote que só goza a mocidade:
(Vila Rica, 1749 – Rio, 1814) Transcrevemos a seguir um desses rugam-se as faces, o cabelo alveja,
sonetos: mal chega a longa idade.
Sua produção lírica está reunida
no livro Glaura, coletânea de poemas Que havemos de esperar, Marília bela?
Ao mundo esconde o Sol seus resplandores, Que vão passando os florescentes dias?
de forma fixa, especialmente de ron- e a mão da Noite embrulha os horizontes; As glórias que vêm tarde já vêm frias,
dós (composição poética graciosa e não cantam aves, não murmuram fontes, e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
musical, com estribilho constante e não fala Pã na boca dos pastores. Ah! não, minha Marília,
número variável de versos) e de ma- aproveite-se o tempo, antes que faça
Atam as Ninfas, em lugar de flores, o estrago de roubar ao corpo as forças
drigais (forma poética delicada,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes; e ao semblante a graça!
cantante), para exaltação da beleza erram chorando nos desertos montes, (Tomás Antônio Gonzaga)
e das graças femininas. sem arcos, sem aljavas, os Amores.
É o representante mais típico do Vocabulário e Notas
Vênus, Palas e as filhas da Memória, 1 – Ventura: felicidade.
estilo rococó, presente na ameni-
2 – Mesmo: próprio.
dade e frivolidade das pinturas da deixando os grandes templos esquecidos,
3 – Ímpio fado: impiedoso destino.
não se lembram de altares nem de glória.
natureza (beija-flores, borboletas 4 – Campa: túmulo.
etc.). Sua ambiência lírica é hetero- 5 – Qual: um.
Andam os elementos confundidos:
6 – Sepulcro: sepultura.
gênea: ninfas e dríades, extraídas da ah, Jônia, Jônia, dia de vitória 7 – Qual: outro.
poesia clássica, aparecem ornadas sempre o mais triste foi para os vencidos! 8 – Ditoso: feliz.
de flores de manacá e de maracujá. (Alvarenga Peixoto) 9 – Diferir: adiar.

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MÓDULO 12 Autores Épicos do Arcadismo e Pré-Romantismo


1. AUTORES bo, o amado da bela índia, foi levado niano (dez cantos, versos decassíla-
ÉPICOS DO ARCADISMO à morte por uma trama traiçoeira do bos em oitava-rima).
horrendo jesuíta Balda. Este agora vai Nesse poema, narram-se os
❑ Basílio da Gama conseguir seu intento de casar seu acontecimentos lendário-históricos do
(São José do Rio das Mor- repulsivo filho Baldeta com a índia, naufrágio, do salvamento e das
tes, MG, 1741 – Lisboa, 1795) que é filha do cacique. No final do epi- aventuras de Diogo Álvares Correia, o
Sua obra de maior representativi- sódio, Lindoia, refugiada numa gruta Caramuru.
dade foi O Uraguai, epopeia em para evitar o casamento indesejado, Caramuru destaca-se por apre-
cinco cantos, com versos brancos escreve por toda a parte o nome do sentar costumes e instituições dos
(sem rimas) e estrofação livre, que amado morto e depois deixa que uma índios brasileiros, a flora nativa e o
narra o conflito entre os índios de cobra venenosa Ihe morda o seio. sentimento nativista de amor à pátria.
Sete Povos das Missões e o exército Assim o poeta a descreve morta: Assim Santa Rita Durão prenun-
luso-espanhol. cia a figuração romântica do índio:
No poema, Basílio da Gama ten- Inda conserva o pálido semblante1
ta conciliar a louvação de Pombal e Um não sei quê de magoado e triste, Nós que zombamos deste povo insano,
Que os corações mais duros enternece,
do heroísmo do indígena. Torna herói Se bem cavarmos no solar nativo,
Tanto era bela no seu rosto a morte! Dos antigos heróis dentro às imagens
o comissário real português Gomes
Não acharemos mais que outros selvagens.
Freire de Andrade, fazendo recair Vocabulário e Notas
sobre os jesuítas a pecha de vilões. 1 – Semblante: rosto. Veja-se a abertura do poema:
Sobre O Uraguai, pode-se afirmar:
• nada há no poema que lembre Comentário De um varão em mil casos agitado,
• O antológico verso final, com suas Que as praias discorrendo do Ocidente,
as rígidas divisões do poema épico
aliterações em t e seu tom exclamativo, é Descobriu o recôncavo afamado
tradicional, ou seja, do modelo camo- imitação de um verso do poeta italiano Da capital brasílica potente,
niano; Petrarca (séc. XV): Morte bela parea nel suo bel Do filho do trovão denominado,
• a natureza é colhida por ima- viso, “a morte parecia bela em seu rosto belo”. Que o peito domar soube à fera gente,
gens densas e rápidas; já não são as Mas o verso de Basílio supera o italiano. O valor cantarei na adversa sorte,
imagens do Arcadismo, mas sim o Pois só conheço herói quem nela é forte.
caminho para o paisagismo român- Na lírica, suas produções são às
tico; vezes de alta qualidade, como atesta 2. PRÉ-ROMANTISMO
• há o realismo da ação heroica, o soneto seguinte, em que o lugar-
e não o fabuloso; comum do carpe diem é desen- Alguns periodizadores de nossa
• usa-se o sobrenatural (bruxa- volvido com o emprego de imagens literatura estabelecem a existência de
ria indígena); de discreto gosto barroco. um período de transição, situado
• o indígena é tomado como he- entre a Era Colonial e a Era
rói, equiparado ao português, pre- Já, Marfiza cruel, me não maltrata Nacional, entre o Arcadismo e o
Saber que usas comigo de cautelas,
nunciando o índio romântico de Qu’inda te espero ver, por causa delas,
Romantismo, denominado Pré-
Gonçalves Dias e Alencar. Arrependida de ter sido ingrata. Romantismo e compreendido entre
Veja-se a abertura do poema: 1808 (vinda da Família Real e
Com o tempo, que tudo desbarata1, Abertura dos Portos) e 1836 (início do
Fumam ainda nas desertas praias Teus olhos deixarão de ser estrelas; Romantismo, com o aparecimento de
Lagos de sangue tépidos1 e impuros2, Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’ouro converter-se em prata. Suspiros Poéticos e Saudades, de
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales Gonçalves de Magalhães).
O rouco som da irada artilheria. Pois se sabes que a tua formosura Esse período de 1808 a 1836
MUSA, honremos o Herói3 que o povo rude Por força há de sofrer da idade os danos, marcou a transição da condição colo-
Subjugou do Uraguai e no seu sangue Por que me negas hoje esta ventura?
nial para a de país independente e,
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai, tanto custas, ambição de império4!... Guarda para seu tempo os desenganos, literariamente, apontou para os pre-
Gozemo-nos agora, enquanto dura, núncios do Romantismo, já esboça-
Vocabulário e Notas Já que dura tão pouco, a flor dos anos. dos, como vimos, em vários autores
1 – Tépido: quente. árcades. Houve intensa atividade jor-
2 – Impuro: porque o sangue é de indígenas, Vocabulário e Notas
nalística (vinculada à independência,
não cristãos. 1 – Desbaratar: arruinar.
3 – Herói: o general português que lutou
à abolição, às crises do período re-
contra os indígenas. ❑ Frei Santa Rita gencial), além da oratória sacra (Frei
4 – Império: domínio. Durão (Cata Preta, Francisco do Monte Alverne) e
MG, 1722 – Lisboa, 1784) da poesia (José Bonifácio de
O episódio mais famoso do poe- É o autor do poema épico Cara- Andrada e Silva, Frei Francisco
ma é o da morte de Lindoia. Cacam- muru, no qual segue o modelo camo- de São Carlos e Sousa Caldas).
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MÓDULO 13 Bocage

1. CONTEXTO PORTUGUÊS geometria, álgebra, óptica etc.), dan- rebeldia contra o Barroco (inutilia
ça, esporte. A Universidade de Évora, truncat), a tentativa de restabelecer a
O absolutismo tradicional pro- cujos proprietários eram jesuítas, foi simplicidade das artes renascentista
clamava a subordinação do monarca extinta. e antiga pertencem a um contexto
às leis de Deus (leis interpretadas A educação libertou-se do con- em que as discussões literárias estão
pela Igreja, evidentemente), aos cos- trole da Igreja, com base no princípio em comum acordo com discussões e
tumes do país e às leis que o rei iluminista de que a Razão é a fonte reformas de ordem legal.
promulgava para a nação. Em opo- de todo o conhecimento. Em 1790 foi fundada a Academia
sição, o despotismo esclareci- Surgiu, como reflexo das “luzes” das Belas Artes, logo depois denomi-
do entendia que as leis (as de Deus, e do racionalismo, uma nova Lisboa: nada Nova Arcádia. Três anos de-
as naturais e as da nação) deveriam metade da cidade havia sido destruí- pois, a Academia já publicava algu-
ser interpretadas pelo soberano. da por um terremoto (1755). Caíram mas obras poéticas de seus sócios,
Esse período começou, em Por- em ruínas o palácio real, igrejas, hos- sob o título Almanaque das Musas.
tugal, a partir de 1755, com o reinado pital, ópera, ruas e bairros opulentos. Seus integrantes mais importantes
de D. José (1750-1777). Seu grande O futuro Marquês de Pombal, em vez foram Domingos Caldas Barbosa
mentor foi o Marquês de Pombal, de reedificar a cidade a partir do (1740-1800), brasileiro que ficou
que, em parte, adotou teorias de al- traçado anterior, mandou destruir as famoso nos ambientes aristocráticos
guns pedagogos portugueses que ruínas e decidiu que fosse levantada pela interpretação e composição de
tinham vivido no exterior (pejorativa- uma cidade “esclarecida”: racional- modinhas e lundus, e Padre José
mente chamados de “estrangeiros”): mente planejada e edificada, com Agostinho de Macedo, poeta satírico.
Luís Antônio Verney, Ribeiro Sanches, ruas, praças e casas traçadas a ré- Com ele se desentendeu o poeta
colaborador da Enciclopédia, de gua e compasso. Bocage e, por causa das diver-
D’Alembert, entre outros. Enquanto a nova Lisboa revelava a gências internas, a Nova Arcádia, em
No Direito, o fundamento político ideologia racional dos iluministas, houve 1794, acabou desaparecendo.
dos Estados ilustrados era a Razão. em Portugal a convivência com o estilo
A lei de 1790, unificando a jurisdição tenso do Barroco: o ouro que ia do Brasil 3. MANUEL MARIA BARBOSA
em todo o país, constituiu um novo para Portugal e o vinho exportado para DU BOCAGE (1765-1805)
passo no sentido de romper os privi- a Inglaterra levaram prosperidade ao
légios feudais e impor a todos a auto- reino, acarretando a construção de ❑ Vida
ridade única da Coroa. mansões aristocráticas que seguiram Bocage é o pastor Elmano Sa-
Além do Direito, o lluminismo de- as formas tradicionais do Barroco. dino da Nova Arcádia (Elmano é
sempenhou um papel decisivo na A renovação cultural que se pro- anagrama de Manoel e Sadino é
cultura, sobretudo na educação re- cessou levou também à substituição homenagem ao Rio Sado, que passa
gular. O atraso do sistema de ensino da influência espanhola pelas influên- por Setúbal, terra natal do poeta).
português era grande. O Estado des- cias francesa, italiana, inglesa e alemã. Desde cedo, Bocage sente-se
pótico adotou a política da interven- identificado com Camões:
ção direta no sistema cultural, me- 2. O ARCADISMO Camões, grande Camões, quão semelhante
diante a censura do Estado (a cen- EM PORTUGAL Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
sura religiosa foi substituída pela
Real Mesa Censória, de 1768). O • 1756 – Fundação da Arcádia Jovem ainda, apaixonou-se por
ensino jesuítico foi proibido e subs- Lusitana. Gertrudes (Gertrúria da poesia árca-
tituído por uma educação renovada e • 1825 – Início do Período Ro- de), mas ao voltar a Lisboa — depois
mais progressista. Verney, com seu mântico, com a publicação do de ter ido servir em Goa, colônia
Verdadeiro Método de Estudar (1746), poema Camões, de Almeida Garrett. portuguesa, e de ir a Macau, tendo já
cobriu todos os campos da Educa- Com a fundação da Arcádia desertado — o poeta a reencontra
ção. As reformas educacionais impli- Lusitana, em 1756, teve início uma casada com seu irmão:
cavam o conhecimento da escrita, nova fase no setor doutrinário: as teo-
Por bárbaros sertões gemi, vagante:
línguas, humanidades (retórica, poe- rias sobre Arte Poética, de Cândido Falta-me ainda o pior, falta-me agora
sia e história), ciências (aritmética, Lusitano, inspiradas em Boileau, a Ver Gertrúria nos braços de outro amante.

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Boêmio, conheceu a vida devas- personalidade, que o faz retratar-se, Mas, quando ferrugenta enxada idosa
sa. Em 1797 foi preso e processado gritar o seu remorso e o horror do Sepulcro me cavar em ermo outeiro 6,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
pelas ideias anticatólicas e antimo- aniquilamento na morte. Esta última
narquistas. Depois de meses de pri- é uma ideia que constantemente o “Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
são, conseguiu sua transferência persegue. Revolta-se ainda contra a Passou vida folgada e milagrosa;
para o Mosteiro de São Bento. humilhação da dependência e Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”
Dizem os biógrafos que de lá ele contra o despotismo em nome da Vocabulário e Notas
saiu arrependido e transformado. Razão. Cultiva o fúnebre e o noturno, 1 – Verbi-gratia: por exemplo.
O certo é que Bocage, ao ser exprime clamores de ciúme, de 2 – Engrolar: enrolar, recitar de qualquer jeito.
libertado, passou a viver de tradu- 3 – Sub-venites: salmos.
blasfêmia ou contrição. É o
ções, sustentando a si e a sua irmã. 4 – Gatarrão: gato.
pessimismo e o fata lis mo que 5 – Gente de malta: gente de má fama, ralé.
Em vida, o poeta publicou Idílios invadem a poesia bocagiana. 6 – Outeiro: colina, monte.
Marítimos, recitados na Academia Percebe-se que o Bocage dessa
das Belas-Artes (1791) e as Rimas fase é pré-romântico: procura expres- Textos como esse foram utilizados
(três volumes: 1791, 1799 e 1804). sões novas para transmitir suas con- para fundamentar a prisão do poeta.
fissões, o arrependimento, a tensão
❑ A lírica de Bocage
dramática, o sofrimento moral. Para
Como lírico, é da maior impor- TEXTOS
ser inteiramente romântico, falta li-
tância. Cultivou a lírica elegíaca, a
bertar-se por completo de sua
bucólica e a amorosa, exprimindo-se
formação neoclássica. Isso talvez Meu ser evaporei na lida insana
em odes, elegias, canções, epístolas,
sonetos etc. É especialmente no tenha diminuído a temperatura dra- Do tropel de paixões que me arrastava;
mática de sua poesia. De qualquer Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
soneto que ele evidencia seu alto Em mim quase imortal a essência humana.
talento lírico, sendo invariavelmente forma, é um dos maiores poetas da
considerado um dos três maiores língua por tuguesa, tornando-se a De que inúmeros sóis a mente ufana
sonetistas da língua, ao lado de sua obra o grande elo entre o melhor Existência falaz me não dourava!
Camões e Antero de Quental. da poesia clássica, a de Camões, e a Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.
que vingaria no Romantismo, carac-
❑ Evolução da lírica terizada pelo signo da revolta e da Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
bocagiana: o conflito mais profunda insatisfação. Esta alma, que sedenta em si não coube,
razão versus sentimento Sintetizando as antecipações ro- No abismo vos sumiu dos desenganos.
Pode-se dividir em duas fases a mânticas de Bocage, vale enfatizar
poesia lírica de Bocage: • a imposição do eu: o subjeti- Deus, ó Deus!… Quando a morte à luz me
[roube,
vismo; Ganhe um momento o que perderam anos,
Primeira fase: • a presença da morte, da poe- Saiba morrer o que viver não soube.
a lírica arcádica sia noturna e fúnebre: o locus
É marcada pela maior presença horrendus substitui o locus amoenus ***
de regras e convenções trazidas pelo da primeira fase;
Arcadismo. O poeta adota uma atitu- • o pessimismo, o fatalismo e a Incultas produções da mocidade
de de artificialismo poético, cercan- Exponho a vossos olhos, ó leitores:
poesia confessional.
do-se de imagens mitológicas e clás- Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:
sicas, para as quais transpõe os
❑ A poesia satírica de Bocage
seus infortúnios (fingimento poético). Ponderai da Fortuna a variedade
Ainda que considerada inferior à
Bocage procura sujeitar-se ao racio- Nos meus suspiros, lágrimas e amores:
lírica, a sátira de Bocage, vítima de
nalismo clássico, mas o seu tempe- Notai dos males seus a imensidade,
ramento e sensibilidade impelem-no severa repressão, foi o aspecto que A curta duração dos seus favores:
a uma expressão mais emotiva e pes- mais se popularizou, gerando um ane-
dotário fescenino que a imaginação E, se entre versos mil de sentimento
soal. Começa a impor-se o eu tumul- Encontrardes alguns cuja aparência
tuoso do artista contra a impes- do povo veio ampliando com o tempo.
Indique festival contentamento,
soalidade e o fingimento da poesia
Lá quando em mim perder a humanidade
árcade. Mais um daqueles que não fazem falta,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Verbi-gratia1 — o teólogo, o peralta,
Cantados pela voz da Dependência.
Segunda fase: Algum duque, ou marquês, ou conde, ou
a lírica pré-romântica [frade; ***
O que melhor o distingue nessa
Não quero funeral comunidade, Marília, se em teus olhos atentara1,
nova fase é a matéria psicológica Que engrole2 sub-venites3 em voz alta; Do estelífero2 sólio3 reluzente,
que traz pela primeira vez à poesia Pingados gatarrões 4, gente de malta 5, Ao vil mundo outra vez o onipotente,
portuguesa: o sentimento agudo da Eu também vos dispenso a caridade; O fulminante Júpiter baixara 4.

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Se o deus que assanha as Fúrias te avistara, E se a força igualasse o pensamento, 2 – Estelífero: estrelado.
As mãos de neve, o colo transparente, Ó alma de minh’alma, eu te of’recera 3 – Sólio: trono; sólio estelífero: céu.
Suspirando por ti, do caos ardente Com ela a Terra, o Mar e o Firmamento. 4 – Baixara: baixaria; ver também as formas
Surgira à luz do dia e te roubara. verbais nos versos 8, 11 e 13.
Vocabulário e Notas 5 – Dafne: ninfa da mitologia grega que, para
Se a ver-te de mais perto o Sol descera, 1 – Atentara: atentasse; ver também as formas esquivar-se do assédio de Apolo, acaba
No áureo carro veloz dando-te assento, verbais nos versos 5 e 9. sendo transformada em loureiro.
Até da esquiva Dafne5 se esquecera.

Romantismo: breve histórico –


MÓDULO 14
Romantismo em Portugal

1. ROMANTISMO larismo do indivíduo (subjetivismo) e • O predomínio


do país (nacionalismo); em vez da da imaginação e da
❑ Contexto repetição do que a tradição consa- emoção – O subjetivismo
O Romantismo é o movimento gra, os românticos valorizam a A manifestação do subjetivismo
cultural que reflete as ideias e ideais originalidade, o novo. corresponde ao predomínio da fun-
da burguesia recém-chegada ao po- ção emotiva ou expressiva da lin-
der. É, no plano intelectual, uma revo- ❑ Características guagem.
lução que corresponde ao que, no formais e temáticas A metáfora é, mais uma vez, o
plano político, foi a Revolução Fran- • A ruptura com a instrumento pelo qual a imaginação
cesa (1789) e as outras revoluções disciplina clássica descobre semelhanças onde há dis-
burguesas (de 1770 e 1848), e, no Na poesia desaparecem as for- paridade. Daí a riqueza das imagens
plano tecnológico, ao que foi a Revo- mas fixas, predominando a liberdade e a ousadia das aproximações, fer-
lução Industrial (por volta de 1750). quanto à extensão do poema e quan- mentando um discurso pomposo,
Os movimentos culturais ocor- to aos temas e à natureza dos versos colo ri do, carregado de adje -
ridos após a Idade Média — Renas- e estrofes. A poesia aproxima-se tivos. A realidade confunde-se com
cimento, Barroco e Arcadismo —, do tom coloquial da prosa, e a a fantasia, e a percepção das coisas
apesar de suas diferenças, são todos prosa ganha inflexões poéti- torna-se mais importante do que elas
pertencentes à Era Clássica, que tem cas. O conto, a novela e o ro- próprias. A intensidade da emoção,
como fundamento socioeconômico o mance tornam-se gêneros muito o impulso, por vezes o tumulto,
fato de a nobreza estar no poder. O difundidos e ganham respeitabili- fazem frequentes as interjeições, os
Romantismo inaugura a Era Român- dade. pontos de exclamação e as reticên-
tica, que, a despeito também de suas O teatro rompe com a lei das cias, a dupla pontuação e as após-
diferenças, inclui ainda o Realismo- três unidades e manifesta-se em trofes violentas.
Naturalismo, o Parnasianismo, o Sim- prosa. O gênero épico ganha inú- • O nacionalismo vai buscar
bolismo e o Modernismo. meras modalidades e perde o rigor suas fontes no passado histórico e
A burguesia, instalada então no clássico; desaparecem as sugestões lendário (na Idade Média, para os eu-
poder após aquelas revoluções, mas fundadas na mitologia greco-romana. ropeus; na figura do índio e na
sem a tradição e o prestígio da no- A liberdade, a flexibilidade e a natureza, nos países da América).
breza, já decaída, instaura nova mistura de gêneros tornam relativos Desenvolve-se o gosto pelo exótico,
perspectiva estética: em vez dos pro- todos os valores. pela cor local e pelas manifes-
cedimentos artificiosos da cultura Retomando alguns aspectos do tações nacionais e populares.
clássica — imitação da natureza, Barroco (o impulso pessoal, a intensi- • O idealismo –
razão, ordem, equilíbrio, harmonia, dade, a irregularidade), o Romantis- A insatisfação –
impessoalidade etc. —, a arte agora mo constitui o primeiro grande estilo O escapismo
expressa os aspectos tumultuosos e moderno do Ocidente. Renova-se a (fuga da realidade)
pessoais da existência, como a pai- língua, com a incorporação da O mundo real sempre frustra o
xão, o amor, o sonho, o devaneio, a linguagem oral e do neologismo. A idealismo romântico. Daí a rebeldia
loucura, a morbidez, o tédio, o espí- superação do repertório linguístico dos poetas do mal-do-século. Esse
rito de rebeldia, o ímpeto revolucio- dos clássicos possibilita uma dicção desejo de fugir à realidade manifesta-
nário, a infância e a religiosidade. No mais solta e mais compatível com o se em atitudes como: a morbidez; o
lugar do universalismo da arte clás- gosto e com o entendimento da desejo de morrer; a boêmia desbra-
sica, o Romantismo propõe o particu- burguesia e das camadas populares. gada; o culto da solidão; a evasão no

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tempo (a busca do passado, a ante- insustentável — simultaneamente Herculano e Antônio Feliciano de


visão do futuro e a abominação do protetorado inglês e colônia do Brasil. Castilho, cujas obras têm ainda for-
presente); a evasão no espaço (a A regência do general Beresford, tes ressonâncias neoclássicas.
busca de lugares longínquos, exóti- a revolta do exército (1820), a Junta Esses autores marcam-se pela presen-
cos, o gosto pelas ruínas, a poesia Provisória, as eleições para as cortes, ça do medievalismo, que fascinou
noturna e fúnebre) etc. o regresso de D. João Vl a Portugal, a o grupo coimbrão do Romantismo.
• Ilogismo nova Constituição e a Independência Camões (1825), de Garrett (o
A negação da lógica e da razão do Brasil abrem um período de autor mais ativo do grupo), foi marco
e a instabilidade emocional manifes- revoluções e contrarrevoluções, con- inicial do movimento, que só se con-
tam-se por meio de atitudes anti- trapondo absolutistas e liberais de solidou na década de 1830. São
téticas — alegria/tristeza, euforia/ de- diversos matizes, que se estenderá dessa época as primeiras traduções
pressão, desejo/autopunição, religio- até 1851, quando o governo da para o português das obras de
sidade/satanismo. Regeneração, por meio de Saldanha, Walter Scott e a publicação de A Voz
• Idealização da mulher assume o poder, apoiado pela bur- do Profeta, de Alexandre Herculano;
Anjo ou demônio, inacessível, guesia unificada. • o segundo momento
poderosa, a mulher, para os român- É nesse contexto que se desen- (1840-1850) representa a transição
ticos, é capaz de alterar a vida do volve o Romantismo português,
entre o medievalismo e a observação
homem, levá-lo à loucura e à morte. cujos marcos cronológicos são:
da realidade. É a fase do ultrarro-
Início: 1825 – Publicação do
mantismo, das novelas passionais
2. O ROMANTISMO poema Camões, de Almeida Garrett;
de Camilo Castelo Branco e da
EM PORTUGAL Término: 1865 – Eclosão da
poesia mórbida de Soares Passos;
❑ O contexto “Questão Coimbrã”, que marca o
início do período realista. • o terceiro momento
histórico português
(1850- 1865) representa a aliança
Com a transferência da família
real e do governo português para o ❑ A evolução do do Romantismo com as antecipa-
Brasil, por 14 anos, a metrópole Romantismo em Portugal ções do Realismo. Júlio Dinis, com
transforma-se em colônia da colônia Há três momentos (ou gerações) o romance de costumes, foi funda-
(1808-1822). Com a corte de D. João que podem resumir a evolução do mental na caracterização da classe
Vl no Brasil, os portugueses enfren- Romantismo português: média urbana e rural. João de Deus,
tam quatro anos de guerra contra os • o primeiro momento (1825- na poesia, atacou duramente a vena-
exércitos francês e espanhol, e o 1840), a fase de implantação do Ro- lidade do regime da Regeneração,
país fica em situação lastimável: sa- mantismo, é representado por três antecipando a atitude crítica dos
ques, perseguições e uma política autores: Almeida Garrett, Alexandre realistas.

MÓDULO 15 Almeida Garrett e Alexandre Herculano

1. JOÃO BAPTISTA mânticos: o individualismo me- jornalista), tornando-se um dos inte-


D’ALMEIDA lancólico de Byron, Chateaubriand, lectuais do regime, ao lado de Ale-
LEITÃO DA SILVA Lamartine e Vigny; o “homem natu- xandre Herculano.
GARRETT (1799-1854) ral” de Rousseau; o medievalismo
de Walter Scott. Afastou-se, contudo, ❑ Obras
❑ Vida da “espontaneidade criativa”, • Poesia
Iniciou-se, Iiterariamente, no âm- um dos traços básicos da escrita Odes Anacreônticas
bito do neoclassicismo. São dessa romântica. Retrato de Vênus
fase de iniciação as tragédias clás- Na Inglaterra, escreveu os poe- Lírica de João Mínimo
sicas Mérope e Catão, bem como os mas longos Camões e D. Branca, pu- Camões
poemas de Lírica de João Mínimo, blicados, respectivamente, em 1825 e D. Branca
além do Retrato de Vênus, que 1826, constituindo os marcos iniciais Romanceiro (poemas narrativos
provocou forte ataque dos setores do Romantismo português, não de cunho folclórico, inspirados
reacionários, ligados à Igreja, que o obstante a sobrevivência dos traços em composições populares)
acusaram de materialista e obsceno. neoclássicos. Flores sem Fruto
Militante da Revolução Liberal, Com a vitória liberal, dedicou-se Folhas Caídas
conheceu por diversas vezes o exílio, à vida pública (além de encarregado • Prosa
na França e na Inglaterra. Nesses da reorganização do teatro nacional, Viagens na Minha Terra (misto de
países assimilou os ingredientes ro- também foi diplomata, deputado e romance, livro de viagem e diário)
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• Teatro romance de amor, na paixão irresis- Pescador da barca bela,


tível de Dona Branca e do chefe Inda é tempo, foge dela,
Um Auto de Gil Vicente
Foge dela,
D. Filipa de Vilhena mouro Aben-Afã, personagens a Ó pescador!
Alfageme de Santarém quem o autor comunica o idealismo
Frei Luís de Sousa (obra-prima característico da escola. Envolve Vocabulário e Notas
1 – Vás: vai.
do teatro romântico português) também as figuras de Oriana e 2 – Velar: esconder.
Mem do Vale — o glorioso e apai- 3 – Lanço: lance (de rede).
❑ Camões xonado cavaleiro de Santiago.
É um poema narrativo cuja ação Comentário
é o processo de composição e a ❑ Folhas Caídas • O poema tem o ritmo das barcarolas
publicação de Os Lusíadas. Funde Contém poemas já libertos do medievais: as estrofes são monórrimas (rima
comedimento arcádico. Inspirados única — ELA), formadas por um dístico em
procedimentos românticos e resíduos redondilha maior e outro, que contém o refrão,
neoclássicos. na tempestuosa e tardia paixão de sob a forma de um vocativo (“Ó pescador”),
• São românticos Garrett pela Viscondessa da Luz, cujos dois versos curtos, juntos, formam um
– a personagem nacional e pa- esses poemas marcam-se pela terceiro verso de sete sílabas.
triótica, o cunho nacionalista; intensidade emocional, pelo amor
NÃO TE AMO
– a invocação à saudade (alego- sensual, irresistível, real e vivido.
ria mitológica sem mitologia); Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
ESTE INFERNO DE AMAR E eu n’alma — tenho a calma,
– o acentuado tom de elegia fú-
Este inferno de amar — como eu amo! — A calma — do jazigo.
nebre, a paisagem noturna, a am- Ai! não te amo, não.
Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?
biência fúnebre, que penetram o eu Esta chama que alenta e consome,
pensante; Que é a vida — e que a vida destrói — Não te amo, quero-te: o amor é vida.
– a concepção do amor como Como é que se veio a atear, E a vida — nem sentida
Quando — ai quando se há de ela apagar? A trago eu já comigo.
uma realidade fatalista e irresistível, a Ai! não te amo, não!
dominar as conveniências sociais;
Eu não sei, não me lembra: o passado,
– o gosto pelas ruínas, tradições A outra vida que dantes vivi
Ai! não te amo, não; e só te quero
e lendas medievais; De um querer bruto e fero1
Era um sonho talvez... — foi um sonho —
Que o sangue me devora,
– o herói romântico: o Camões Em que paz tão serena a dormi!
Não chega ao coração.
de Garrett é um incompreendido, Oh! que doce era aquele sonhar...
individualista, vagabundo e libertário, Quem me veio, ai de mim! despertar?
Não te amo. És bela; e eu não te amo,
à maneira de Byron, um “bardo mis- [ó bela.
Só me lembra que um dia formoso
terioso”, “moribundo cisne”, “harpa Quem ama a aziaga2 estrela
Eu passei... dava o Sol tanta Luz!
sublime”; Que lhe luz na má hora
E os meus olhos, que vagos giravam,
De sua perdição?
– o saudosismo, o patriotismo e Em seus olhos ardentes os pus.
o amor à Natureza, numa paisagem Que fez ela? eu que fiz? — não o sei;
E quero-te, e não te amo, que é forçado,
Mas nessa hora a viver comecei...
luarenta, misteriosa, esfumada; De mau feitiço azado3
– a ânsia de liberdade: “oceano Comentário Este indigno furor.
indomado por tiranos”. • O poema enfoca os efeitos contraditó- Mas oh! não te amo, não.
rios do amor. O sistema ternário, as frases
• Os resíduos neoclássicos es-
curtas, reticentes e interrogativas sugerem E infame sou, porque te quero; e tanto
tão presentes bem um estado de alma em que se confun- Que de mim tenho espanto,
– na estrutura, obedecendo à di- dem o prazer e a dor de amar. De ti, medo e terror...
visão tradicional da epopeia clássica: Mas amar!... não te amo, não.
BARCA BELA
invocação, dedicatória, narra-
ção que se inicia no meio da ação; Pescador da barca bela, Vocabulário e Notas
Onde vás1 pescar com ela, 1 – Fero: feroz.
– na divisão em dez cantos e na Que é tão bela, 2 – Aziago: que traz má sorte.
adoção dos versos decassílabos Ó pescador?
3 – Azado: oportuno, propício.
brancos, sem estrofação regular;
– no uso de algumas alegorias Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?2 Comentário
da mitologia clássica, que Garrett, Colhe a vela, • Garrett retoma aqui um conflito cons-
contudo, restringe a poucas pas- Ó pescador! tante na poesia portuguesa, passando pelos
sagens. poetas do Cancioneiro Geral e por Camões: a
Deita o lanço3 com cautela, diferença entre o amar e o querer. Garrett é o
Que a sereia canta bela... pagão do amor que segue a corrente aristo-
❑ D. Branca Mas cautela, télica, como Byron, e opõe-se ao amor
É um poema narrativo, de feição Ó pescador!
idealista de Platão: “Ai! não te amo, não; e só
novelesca, em que as personagens e te quero / De um querer bruto e fero”, confessa
Não se enrede a rede nela,
o assunto são nacionais. O assunto his- o poeta, sentindo a inferioridade do seu
Que perdido é remo e vela
tórico — a conquista do Algarve Só de vê-la, compor tamento, considerando-se “infame”,
— está romanticamente integrado no Ó pescador! possuído de um “furor indigno”.

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• Síntese das público. (Massaud Moisés, A Litera- ❑ Obras


características tura Portuguesa através dos Textos) • Poesia
de Folhas Caídas Poesias , incluindo “A Harpa do
I. ausência da poesia descritiva ❑ Frei Luís de Sousa Crente” e “A Cruz Mutilada”
das fases anteriores; Composta em três atos em prosa, • Prosa de Ficção
II. lirismo profundo, subjetivo; o representada pela primeira vez em 1843 O Bobo
amor humano construído em e publicada no ano seguinte, a tragédia Eurico, o Presbítero e O Monge de
torno dos sentimentos; Frei Luís de Sousa gravita em torno da Cister, reunidos sob o título Monasticon
III.a realidade e o fatalismo, o do- vida do prosador cujo nome dá título à Lendas e Narrativas
ce amargor, o gozo-dor, o ciú- obra. Como se sabe, Madalena de • Historiografia
me e o desespero; Vilhena e Manuel de Sousa Cou- História de Portugal
IV. o amor arrebatado, sem con- tinho haviam contraído núpcias, cer- História da Origem e Estabeleci-
venções; tos de que D. João de Portugal, mari- mento da Inquisição em Portugal
V. a linguagem coloquial, com do da primeira, desaparecera em • Coleção Documental
adjetivação sugestiva e equili- Alcácer Quibir, em companhia de D. – edição
brada; as redondilhas da poe- Sebastião. Entretanto, ele está vivo e Portugaliae Monumenta Historica
sia popular e tradicional. regressa a sua casa, oculto em andra- • Polêmica (Ensaios)
jos de romeiro. Aterrados pela surpre- Opúsculos
❑ Romanceiro A Questão Eu e o Clero
sa, colhidos em pecado, os cônjuges
Coletânea de xácaras ou can-
buscam ilibar-se do involuntário delito
ções de tom novelesco inspiradas ❑ Herculano — o poeta
tomando o hábito: durante a cerimô-
nas fontes nacionais do folclore e nas Só realizou poesia na mocidade,
nia, Maria de Noronha, única filha
composições populares em verso, até os 25 anos, sob influência de
do casal, morre a seus pés. Manuel de
como “A Nau Catarineta” e o “Bernal Chateaubriand e Victor Hugo.
Sousa Coutinho, no convento, adotou
Francês”, ou resultantes do aprovei- Sua poesia é reflexiva, solene, séria,
o nome Frei Luís de Sousa.
tamento de textos literários de contrapondo-se ao lirismo sentimen-
Bernardim Ribeiro (“Avalor”) e Gil tal e intimista de Garrett. O lirismo
Vicente (“D. Duardos”). 2. ALEXANDRE
amoroso não existe em Herculano.
HERCULANO
❑ Viagens na Minha Terra Os temas de que tratou são român-
DE CARVALHO E
É incerta a classificação dessa ticos: a Religião, a Pátria e a Natureza.
ARAÚJO (1810-1877)
obra, misto de jornalismo, literatu- Formalmente, Herculano distan-
cia-se do à vontade de Garrett, reali-
ra de viagens, diário íntimo e ❑ Vida
prosa de ficção. Publicada em zando uma poesia rica em símbolos e
De origem humilde, foi quase
1846, seu fio narrativo compõe-se de expressando-se num tom solene, gra-
autodidata. Estimulado pela Marque-
uma viagem levada a efeito por ve, reflexivo, e com uso frequente de
sa de Alorna, sua protetora, inicia-se
hipérbatos (inversões sintáticas).
Garrett em 1843 entre Lisboa e na literatura e na historiografia. Como
Santarém, a convite do político Passos Garrett, empenha-se nas lutas A CRUZ MUTILADA
Manuel. Repartida em 49 capítulos, liberais e conhece o exílio.
como que escritos ao sabor da via- Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De volta a Portugal, passa pelos
De esplêndidas igrejas;
gem, a obra relata as peripécias ocor- Açores, pelo Porto e pela Biblioteca Amo-te quando à noite, sobre a campa,
ridas entre aquelas duas cidades e as da Ajuda. Publica nessa época A Voz Junto ao cipreste alvejas;
reflexões desencadeadas na mente do Profeta, inspirado em Paroles d’un Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
do viajante, acerca dos mais variados Croyant, de Lamennais. Amo-te quando em préstito1 festivo
assuntos, desde o amor até a política. Na direção da revista O Panorama, As multidões te hasteiam;
Ao chegar a Santarém, o narrador publica Lendas e Narrativas e O Bobo. Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
toma conhecimento da história amo- Como membro da Academia de No adro2 do presbitério 3,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
rosa da Joaninha dos olhos verdes, Ciências, organizou a publicação de Guias ao cemitério;
a “menina dos rouxinóis”, e de Portugaliae Monumenta Historica. Amo-te, ó cruz, até quando no vale
seu primo Carlos: ambos se apaixo- Desgostoso com os rumos políti- Negrejas triste e só,
Núncia4 do crime, a que deveu a terra
nam, mas ele se julga preso ao senti- cos do país, afastou-se da vida públi-
Do assassinado o pó:
mento de Georgina, que ficara na ca, retirando-se para a sua quinta em
Inglaterra; por fim, desfeito o impas- Vale de Lobos. Nessa época aban- Porém quando mais te amo,
se, Georgina entra para o convento e dona a literatura e passa a dedicar- Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Joaninha morre, enquanto Carlos, se, até a morte, à vida do campo. Antes de o Sol se pôr.
recomposto do transe, retoma sua Foi poeta, romancista, historiador
(...)
trajetória de dândi Don Juan e homem e polemista.
68 –
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(...) Mendes da Maia, à maneira das contro com suas consciências.


No pedestal musgoso, em que te ergueram novelas de cavalaria medievais; A religião é o complicador do
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava – “Arras por Foro de Espanha” – conflito sentimental de Eurico e
O sino os simples sons pelas quebradas novela histórica em torno de D. serve aos intuitos vingativos de Vasco.
Da cordilheira, anunciando o instante Leonor Teles; A época histórica de Eurico é a do
Da Ave-Maria; da oração singela, – “O Pároco da Aldeia” – novela
Mas solene, mas santa, em que a voz do
domínio árabe. Por carência de
[homem campesina que terá desdobramento bases documentais, Herculano recor-
Se mistura nos cânticos saudosos, na obra de Júlio Dinis. Apologia do re à intuição para nos dar o choque
Que a natureza envia ao céu no extremo cristianismo, sem qualquer ranço de duas civilizações: a dos ára-
Raio de Sol, passando fugitivo
anticlerical. bes, bárbara, violenta, e a dos go-
Na tangente deste orbe 5, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga • O Bobo dos, já caldeada pelo cristianismo. O
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja Romance histórico, aclimatado romance é mais poético do que
Até, na solidão, o esquecimento! no castelo de Guimarães, na época
(...)
histórico, e talvez por isso, menos do
das figuras legendárias de Afonso agrado de Herculano (por ferir seus
Vocabulário e Notas Henriques e Egas Moniz. Dom Bibas escrúpulos de historiador rigoroso).
1 – Préstito: procissão. é um enjeitado que diverte a corte O narrador é onisciente. O autor
2 – Adro: pátio externo, localizado em frente ou com seus defeitos físicos e seus gra-
em torno a uma igreja. ocupa sempre o primeiro pla-
3 – Presbitério: igreja paroquial.
cejos. Desprezado como o “bobo-da- no, mesmo no diálogo, por meio do
4 – Núncia: anunciadora. corte”, acabou por auxiliar os portu- qual exprime as suas ideias, ou em
5 – Orbe: mundo. gueses na independência.
suas divagações e comentários, nos
Comentário • Eurico,
• A poesia é uma vibrante afirmação de fé
quais o tom saudosista (poético)
o Presbítero – Monasticon
e uma condenação ao desprezo e ingratidão se mistura com uma ironia quase
No tempo em que godos e árabes
dos homens. Foi escrita em versos brancos agressiva muito característica de
(sem rima) em algumas passagens, e o poeta lutavam na Península Ibérica (século
Herculano em Eurico.
utiliza-se de várias estruturas estróficas. Vlll), havia um godo, Eurico, que
Há três partes distintas na obra: a
escolhera o sacerdócio como meio
primeira apresenta a pancronia da
❑ O romance para curar-se do amor impossível por
época; a segunda introduz e carac-
histórico de Herculano Hermengarda e que vazava seu tor-
teriza as personagens na ação, que,
• Lendas e Narrativas mento passional em poemas e can-
na terceira parte, surge clara e em
Reaproveitam a prosa medie- ções que logo se fizeram conhecidos
seu pleno desenvolvimento, até a
val (os nobiliários, os cronicões e as por toda parte. Com o acirramento da
conclusão. Isso contraria a estrutura
obras de Fernão Lopes e Rui de Pina), guerra entre godos e árabes, Eurico
da epopeia clássica e do romance
recriando essas fontes documentais, abandona o hábito e, tornando-se o
realista, que iniciam a narrativa em
que emprestam cor local às tramas Cavaleiro Negro, consagra-se como
pleno desenrolar da ação.
romanescas, aclimatadas em diversos herói de lendárias façanhas. Nem por
A linguagem majestosa, ritma-
períodos da Idade Média. isso o êxito sorri aos cristãos.
da, rica de lirismo e de comparações
Não há unidade de ação, e o autor Hermengarda é raptada pelos árabes.
sugestivas permite a classificação
interrompe a narrativa com frequentes Eurico enfrenta todos os perigos para
reflexões morais, religiosas, po- como poema (ao que se acresce a
salvá-la. Em delírio, a moça confessa a
líticas e com evocações históri- forma literalizante, vernácula, arcai-
Eurico que o ama. O desespero da
cas (tumultos, procissões, ambientes zante e o tom levemente irônico).
revelação (ele era, agora, um padre)
interiores e exteriores) que recons- O colorido na recriação da
leva-a à loucura, e Eurico morre em
troem a cor local com rigor histórico. época e da paisagem tem o caráter
escaramuça contra os inimigos.
Entre as Lendas e Narrativas, des- de uma crônica histórica.
tacam-se: Observações Pelo trabalho inventivo, fic-
– “Alcaide de Santarém” – aclima- Eurico, o Presbítero constitui com cional, é um romance.
tada na época de dominação árabe; O Monge de Cister uma dupla novela, A grandiosidade, a nobreza
– “Dama Pé-de-Cabra” – narrada aglutinada sob o título Monasticon, das personagens, os lances
à maneira das velhas avós que relata- que pretende examinar a questão do violentos, a unidade de ação e
vam suas lendas e crendices, em tom celibato clerical à luz do sen- o desenrolar fatídico dos acon-
poético e levemente zombeteiro; timento. tecimentos fazem de Eurico um
– “O Bispo Negro” – em que avul- A tese não se prova porque a hi- aparentado da tragédia.
ta o nacionalismo na reconstituição pótese é apresentada recorrendo-se Assim, lido como poesia, como
da personalidade afirmativa e domi- a duas figuras — Eurico e Vasco —, crônica, como romance e
nadora de D. Afonso Henriques; que se fizeram sacerdotes, não por como tragédia, Eurico é a obra-
– “A Morte do Lidador” – centra- vocação, mas por fuga a amores fra- prima de Herculano, e uma das joias
da na bravura e destemor de Gonçalo cassados ou por buscarem um en- literárias de Portugal.
– 69
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Aqui transcrevemos o momento 3. ANTÔNIO FELICIANO havia de conservador, em termos


em que Eurico se entrega, voluntaria- DE CASTILHO (1800-1875) artísticos, no país.
mente, à morte:
“E quase a um tempo dois pesados golpes Associa-se tanto à introdução do ❑ Obras
de franquisque assinalaram profundamente os Romantismo como à sua suplantação – Cartas de Eco e Narciso – 21
elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento pelo Realismo. cartas, escritas em decassílabos,
mais três ferros reluziram. Castilho, porém, apesar de divul- tendo como inspiração o poeta
Um contra três! — Era um combate calado
gador da nova corrente literária, foi clássico Ovídio.
e temeroso. O cavaleiro da Cruz parecia
desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só
um conservador. Procurou tornar
acadêmico, de acordo com uma – A Primavera – 4 poemas bucó-
nas armaduras dos dois Godos. Primeiro o
velho Opas, depois Juliano caíram. forma de pensamento neoclás- licos, dentro da convenção arcádica,
Então, recuando, o cavaleiro cristão sico, o que o Romantismo possuía com a mesma natureza estratificada
exclamou: de transformador. Persegue-o o ideal e as inevitáveis ninfas, os deuses
‘Meu Deus! Meu Deus! — Possa o sangue mitológicos, as evocações a Baco e a
de moderação, com que atenuava a
do mártir remir o crime do Presbítero!’ apologia da vida campestre (fugere
E, largando o franquisque, levou as mãos
inovação artística dos escritores que
ao capacete de bronze e arrojou-o para longe gravitavam em torno de sua pessoa. urbem, aurea mediocritas, locus
de si. Castilho, cego aos 6 anos amoenus), tudo no mais superficial
Mugueiz, cego de cólera, vibrava a espa- de idade, recebeu formação figurino de Horácio e Virgílio.
da: o crânio do seu adversário rangeu, e um jorro clássica e clerical e um senso
de sangue salpicou as faces do Sarraceno.” – Amor e Melancolia ou A Novís-
de disciplina que não Ihe per- sima Heloisa – 25 poemas inspirados
E, na sequência do desfecho, mitiram penetrar naquilo que o na paixão por uma reclusa de um
quando Pelágio constata que Her- Romantismo possuía de revo- mosteiro.
mengarda, sua irmã, enlouquecera: lucionário: a liberdade de cria-
ção. Não percebeu o sentido real da – A Noite do Castelo – poema
“Nessa noite, quando Pelágio voltou à
caverna, Hermengarda, deitada sobre o seu história e da relatividade das formas em 4 cantos em torno do ciúme,
leito, parecia dormir. Cansado do combate e artísticas. Foi um intransigente. E numa visão ultrarromântica.
vendo-a tranquila, o mancebo adormeceu, essa intransigência levou-o a criticar
também, perto dela, sobre o duro pavimento da – Os Ciúmes do Bardo – poema
gruta. Ao romper da manhã, acordou ao som os jovens escritores realistas, fazendo dramático, à maneira de Byron, eiva-
de canto suavíssimo. Era sua irmã que cantava eclodir a Questão Coimbrã. do de sensualismo e morbidez.
um dos hinos sagrados que muitas vezes ele As observações críticas de Cas-
ouvira entoar na catedral de Tárraco. (...) tilho apareceram na carta-posfácio – Foi também autor de obras pe-
Quando Hermengarda acabou de cantar, dagógicas, históricas; envolveu-se
ficou um momento pensando. Depois, repen- ao Poema da Mocidade, do futuro
tinamente, soltou uma destas risadas que romancista anticlerical Pinheiro Cha- em muitas polêmicas; traduziu (às
fazem eriçar os cabelos, tão tristes, soturnas e gas. As respostas a elas e a polêmica vezes muito bem) Ovídio, Virgílio,
dolorosas são elas: tão completamente expri- Anacreonte, Molière, Goethe, Cer-
gerada marcaram o início da afirma-
mem irremediável alienação do espírito.
ção do Realismo e comprometeram vantes e Shakespeare e deixou um
A desgraçada tinha, de feito, enlouque-
negativamente Castilho com o que abalizado Tratado de Metrificação.
cido.”

MÓDULO 16 Camilo Castelo Branco


1. CAMILO CASTELO A moça, casada por imposição gueira ameaçadora. Em 1.o de junho
BRANCO (1825-1890) familiar, foge do marido e junta-se de 1890, já cego, Camilo se suicidou.
com Camilo. Ambos são presos por
❑ Vida dois anos. Na prisão, Camilo es- ❑ Obras
Teve vida atribulada. Filho natu- creve, em quinze dias, sua obra- • Novelas: dentre as 58 que
ral, perdeu a mãe aos dois anos e o prima — Amor de Perdição —, que escreveu, destacamos:
esteve na iminência de ser rasgada Primeira Fase – Iniciação:
pai aos dez. Viveu sucessivamente
pelo autor. Com a morte do marido narrativas de mistério e novelas de
com uma tia, até os quartoze anos, e
assunto histórico: Anátema, Carlota
com uma irmã. Casou-se aos dezes- de Ana Plácido, ela e Camilo são
Ângela, Onde Está a Felicidade?, Um
seis anos. Aos vinte e um, já separa- libertados e vão viver em São Miguel
Homem de Brios e Memórias de
do da mulher, rapta uma senhora em de Seide.
Guilherme do Amaral.
Vila Real. São aprisionados. Cursa, Entregue à redação de suas
Os romances dessa fase mar-
sem concluir, Medicina e Engenharia obras, nas quais tinha seu ganha-
cam-se pelo tom macabro, terrífi-
e frequenta o seminário. Envolve-se pão, Camilo levou existência difícil,
co, com tendências para o melo-
com uma freira. Em 1857, conhe- pela falta de dinheiro, pela loucura
drama (ódios, vinganças, fata-
ce Ana Plácido, sua grande paixão. de um filho — Jorge — e pela ce-
lismo).
70 –
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Há instabilidade literária e falta • Vária rico e renovou o vernáculo castiço,


de concisão no enredo; é percep- Compreendendo crônicas, crítica comunicando-se com o grande pú-
tível a influência de Ann Radcliffe, literária, escritos sobre história, me- blico, sem deixar de fazer obra de arte.
Eugênio Sue, Alexandre Dumas, mórias etc.
Victor Hugo.
As personagens são representa- ❑ Amor de Perdição TEXTOS
tivas da miséria, dor, crime, corrup- Dois jovens, Simão Botelho (ri-
ção, perversão. É notória a influência I
co fidalgo) e Teresa Albuquerque,
de seus estudos médicos. estão enamorados. As respectivas fa- — Agora é tempo de dar sepultura ao
Já se percebem nessas obras os nosso venturoso amigo... É ventura morrer
mílias, separadas por velhas ques-
quando se vem a este mundo com tal estrela.
elementos passionais que marcarão tões, não veem com bons olhos tal Passe a senhora Mariana ali para a câmara,
a segunda fase e a intenção crítica afeição, e tentam de vários modos que vai ser levado daqui o defunto.
que amadurecerá na terceira. afastá-los, chegando até a enviar (...)
Segunda Fase – A Novela Simão para Coimbra e a obrigar Foi o cadáver envolto num lençol e
Passional: Amor de Perdição, Amor Teresa a ingressar num convento por transportado ao convés.
de Salvação e A Queda dum Anjo não se casar com seu primo Mariana seguiu-o. Do porão da nau foi
(novela satírica). Essa fase representa trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às
Baltasar Coutinho. Diante disso, pernas com um pedaço de cabo. O comandan-
a maturidade. os jovens planejam uma fuga e, te contemplava a cena triste com os olhos úmi-
Amor de Perdição, obra que quando Simão se dirige ao convento, dos, e os soldados que guarneciam a nau, tão
confere notoriedade ao autor, apre- encontra, às portas desse, o pai e o funeral respeito os impressionara, que insensi-
senta enredo conciso, equilibrado, primo de Teresa. Trava-se, então, uma velmente se descobriram.
sem personagens dispensáveis e luta entre o último e Simão. Baltasar Mariana estava, no entanto, encostada ao
quase sem digressões. A linguagem é acaba morto. Simão é preso e con-
flanco da nau, e parecia estupidamente encarar
adequada: é romântica na corres- aqueles empuxões que o marujo dava ao cadá-
denado ao exílio. Faz-lhe companhia ver, para segurar a pedra na cintura.
pondência Simão – Teresa; é popu- a pobre Mariana, moça simples, que Dois homens ergueram o morto ao alto
lar, direta, coloquial em João da
o ama sem ser correspondida e que sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o
Cruz; irônica e caricatural, quando arremessarem longe. E, antes que o baque do
lhe tem sido um anjo da guarda.
envolve as freiras do convento. cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram,
Enquanto Teresa definha no convento,
Há elementos de poesia, de e ninguém já pôde segurar Mariana, que se
atacada por um mal incurável, o moço atirara ao mar.
novela e de tragédia, perpas-
aguarda a hora de partir. O barco À voz do comandante desamarraram rapi-
sados de forte humanismo, que con-
larga. Ainda Simão avista, ao longe, o damente o bote, e saltaram homens para salvar
ferem à obra vigor e grandiosidade.
convento de Monchique e o lenço Mariana.
Terceira Fase – A Anteci- Salvá-la!...
branco de Teresa acenar debilmente.
pação Realista: Eusébio Macário, Viram-na, um momento, bracejar, não para
Sobrevém-lhe repentina febre, que o
A Corja, A Brasileira de Prazins e resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadáver
Vulcões de Lama. prostra à morte. É sepultado no mar. de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços.
O poder de observação desce ao Mariana lança-se ao mar e morre (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição)
pormenor descritivo, com uma lingua- abraçada ao cadáver de Simão.
gem mais próxima da classe popular. II
As personagens, extraídas das ca- ❑ Características da
Havia na botica um relógio de parede, na-
madas populares, não destoam da ga- novela passional camiliana cional, datado em 1781, feito de grandes toros
leria camiliana: são enjeitadas, mulhe- • Esquema folhetinesco tra- de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando
res moralmente fracas, tísicas, loucos, dicional: amor impossível, adúltero, subiam, rangiam o estridor de um picar de
adúlteros, beberrões, mal-amados etc. incestuoso, que se engrandece em amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda
Pretendendo criticar e ironizar o face das dificuldades, tornando-se como quem tira um balde da cisterna. Por
eterno; debaixo da triplicada cornija1 do mostrador
romance naturalista, parece que
• amor fatal, obsessivo, tão havia uma medalha com uma dama cor de
Camilo acabou por aderir à nova ten- laranja, vestida de vermelhão, decotada, com
dência, realizando o romance de crí- grandioso que não pode ficar restrito
uma romeira2 e uma pescoceira, crassa3 e
tica social decalcado no tema realista ao campo terreno; grossa de vaca barrosã 4, penteada à Pom-
do adultério e na observação perso- • desenlaces trágicos, com padour, com uma réstia de pedras brancas a
nalizada da realidade. a expiação transcendental das culpas enastrar-lhe5 as tranças. Cada olho era maior
dos amantes: morte, suicídio, loucura, que a boca, dum vermelho de ginja 6. Ela tinha
• Poesia a mão esquerda escorrida no regaço, com os
convento;
Pundonores Desagravados, O dedos engelhados7 e aduncos8 como um pé
• como Balzac e Sue, procurava
Juízo Final e o Sonho do Inferno, A de perua morta; o braço direito estava no ar,
enredar emocionalmente o leitor, jo-
Murraça, Nas Trevas. hirto 9, com um ramalho de flores que parecia
gando com suas expectativas. Mes- uma vassoura de hidrângeas10. Este relógio
• Teatro mo trabalhando esquemas narrativos badalara três horas que soaram ríspidas como
Agostinho de Ceuta, O Marquês já incorporados ao gosto do leitor, as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras
das Torres Novas, A Morgadinha de Camilo inovou a escrita literária por- da Hecate de Shakespeare11.
Val d’Amores. tuguesa. Afastou o empolamento retó- (Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário)

– 71
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Vocabulário e Notas de boi, o qual é então denominado bar- 8 – Adunco: curvo.


1 – Cornija: moldura. rosão; diz-se também do boi que tem pelo 9 – Hirto: retesado, esticado.
2 – Romeira: agasalho feminino. da cor do barro. 10 – Hidrângea: hortênsia.
3 – Crasso: pesado (sentido figurado). 5 – Enastrar-lhe: entretecer-lhe, ornar-lhe. 11 – Hecate: personagem da peça Macbeth,
4 – Barrosã: feminino de barrosão, de Barroso, 6 – Ginja: fruto muito semelhante à cereja. de William Shakespeare.
região portuguesa onde se cria uma raça 7 – Engelhado: enrugado.

As Gerações Românticas – Primeira Geração:


MÓDULO 17
Gonçalves Dias
A POESIA ROMÂNTICA NO BRASIL (1836-1881)

Reconhecem-se três gerações, marcadas por certa unidade temática e formal nem sempre rígida. A atitude de
uma geração projeta-se nas demais. A seguir, há um quadro-resumo da poesia romântica no Brasil.

GERAÇÕES TEMAS E FORMAS POETAS


Primeira: Índio (idealizado como cavaleiro medieval e como o “bom selvagem” Gonçalves de Magalhães, conde
Indianista ou de Rousseau), natureza (nativismo ou ufanismo), passado his- Manuel de Araújo Porto-Alegre (fase de
tórico, religiosidade, antilusitanismo, xenofobia (aversão ao formação) e Gonçalves Dias (consolidação
Nacionalista.
estrangeiro), projeto de uma “língua brasileira”. da poesia romântica).

Segunda: Morte, tédio, dúvida, escapismo, boêmia, satanismo, Álvares de Azevedo,


Byroniana ou Individualista, ou do saudosismo (infância, família), solidão, depressão, sensualis- Fagundes Varela,
Mal-do-Século, ou Egótica, mo reprimido (“amor-e-medo”). Incorporação de novos temas Junqueira Freire e
ou Ultrarromântica. bucólicos e roceiros; poesia maldita. Casimiro de Abreu.

Liberdade, temas sociais (Guerra do Paraguai, Abolição, Castro Alves e Tobias Barreto.
Terceira: República). Poesia enfática e declamatória (poesia de comí- Sousândrade (que radicalizou as inova-
Condoreira ou cio). Uso de metáforas ousadas, baseadas em aspectos gran- ções linguísticas e desvios criativos) constitui
da poesia social, diosos da natureza (oceano, amplidão, infinito, céu, universo). caso à parte, pela originalidade e
Hugoana, ou da Águias, condores e albatrozes são utilizados como imagens da modernidade; contemporâneo da Segunda
Escola de Recife. liberdade. Emprego de antíteses, hipérboles e apóstrofes Geração, sua poesia refoge aos parâmetros
violentas, além de interjeições, exclamações, reticências etc. brasileiros.

1. A PRIMEIRA GERAÇÃO do Romantismo. O livro vale mais pe- • equilíbrio, senso de medi-
(Indianista ou Nacionalista) lo Prólogo (primeiro manifesto da da, virtuosismo e erudição, con-
poesia romântica), que pelos poemas, sequências da sólida formação
Compreende dois grupos: o escritos em Paris. Foi apelidado de neo- clássica, que não abandonou
fluminense, em torno das revistas “romântico arrependido”.
de todo;
Niterói, Minerva Brasiliense e Guana- Tentou a poesia épica indianista,
• presença de modelos portu-
bara (Gonçalves de Magalhães, com A Confederação dos Tamoios,
obra duramente criticada pelo então gueses (Garrett, Alexandre Hercu-
conde Araújo Porto-Alegre, Joaquim
iniciante José de Alencar, provocando lano), que se harmonizam com a es-
Norberto) e o maranhense (Sotero
polêmica que teve larga repercussão. pontaneidade e sabor nacional;
dos Reis, Odorico Mendes). O caçula
Colaborou com Martins Pena e • expressividade do ritmo,
da Primeira Geração, Gonçalves
João Caetano na criação do ponto forte de Gonçalves Dias, que se
Dias, pertenceu aos dois grupos e
teatro nacional, tendo escrito os utiliza de todos os metros poéticos
foi, destacadamente, o melhor poeta
dramas Olgiato e Antônio José ou O com insuperável propriedade.
de sua geração.
Não obstante defenderem a esté- Poeta e a Inquisição.
Obras
tica romântica, esses poetas apre- ❑ Gonçalves Dias
• Primeiros Cantos (1846).
sentaram fortes resíduos do Neo- - (Maranhão, 1823-1864)
classicismo. Primam pelo comedi- Consolida a poesia romântica Consta de três partes:
mento, pela sobriedade e, amparados com Primeiros Cantos (a “Canção do Poesias Americanas (a mais im-
pelo imperador, esforçaram-se por Exílio” é o poema que abre o livro). portante, pelo tratamento dado ao
não aborrecer Sua Majestade, nem a Sua poesia marca-se pelas se- índio e à natureza); Poesias Diversas
pacata sociedade de então. guintes características: e Hinos (impregnados de panteísmo
• riqueza temática, abran- — sentimento entre filosófico e religio-
gendo a poesia indianista, o li- so de ver em tudo (natureza, mares,
❑ Gonçalves de Magalhães
rismo amoroso, poesia da na- montanhas, vales, florestas, auroras)
(Rio, 1811 – Roma, 1882) tureza, saudosismo, poesia
Introdutor do Romantismo, com uma projeção de Deus).
religiosa, poesia erudita (escrita
seus Suspiros Poéticos e Saudades • Segundos Cantos e Sextilhas
em português arcaico, medieval) e
(1836), foi poeta medíocre, ainda que poesia egótica, antecipando o de Frei Antão. Obra erudita, escrita
teorizasse com lucidez as propostas mal-do-século; em português arcaico, à maneira dos

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trovadores medievais, e que Gonçalves medieval (a ação se passa em 1512), Não permita Deus que eu morra,
Dias denominava ensaio filológico. escrito em prosa. D. Jaime, Duque Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
• Os Timbiras. Poema épico in- de Bragança, suspeita da relação de
Que não encontro por cá;
dianista, do qual temos apenas os sua esposa, Leonor, com o jovem Al- Sem qu’inda aviste as palmeiras,
quatro cantos iniciais. Os doze coforado. Ambos são punidos injus- Onde canta o Sabiá.
restantes perderam-se no naufrágio tamente.
em que morreu o poeta. O plano do Gonçalves Dias deixou outros
dramas, além de traduções, estudos TEXTO II
poema era ambicioso:
etnográficos, geográficos, literários,
cartas e um dicionário de tupi. I-JUCA-PIRAMA
“(…) imaginei um poema… como nunca
(fragmento: canto X)
ouviste falar de outro: magotes de tigres, de
coatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e
jabuticabais copados, jequitibás e ipês arro-
Antologia de Gonçalves Dias Um velho Timbira, coberto de glória,
gantes, sapucaieiras e jambeiros, de palmeiras Guardou a memória
nem falemos; guerreiros diabólicos, mulheres Do moço guerreiro, do velho Tupi!
feiticeiras, sapos e jacarés sem conta; enfim,
TEXTO I E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
um gênese americano, uma Ilíada Brasileira. Do que ele contava,
Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no CANÇÃO DO EXÍLIO Dizia prudente: — “Meninos, eu vi!”
Amazonas com a dispersão dos Timbiras;
guerras entre eles e depois com os portu- Minha terra tem palmeiras, “Eu vi o brioso no largo terreiro
gueses.” Onde canta o Sabiá; Cantar prisioneiro
As aves que aqui gorjeiam Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Não gorjeiam como lá. Valente, como era, chorou sem ter pejo;
• Últimos Cantos, em que se Parece que o vejo,
inclui a obra-prima do indianismo Nosso céu tem mais estrelas, Que o tenho nest’hora diante de mi.”
romântico, “I-Juca-Pirama”. Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida, “Eu disse comigo: ‘Que infâmia d’escravo!’
• Cantos, que reúne os livros an- Nossa vida mais amores. Pois não, era um bravo;
teriores, mais os Novos Cantos. Aí se
Valente e brioso, como ele, não vi!
inclui “Ainda uma Vez, Adeus”, poema Em cismar, sozinho, à noite, E à fé que vos digo: parece-me encanto
lírico-amoroso, de fundo autobio- Mais prazer encontro eu lá; Que quem chorou tanto,
Minha terra tem palmeiras,
gráfico, tematizando o insucesso amo- Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”
Onde canta o Sabiá.
roso. Nessa vertente, mais intimista, há
ainda, em outros livros, poemas famo- Minha terra tem primores, Assim o Timbira, coberto de glória,
Que tais não encontro eu cá; Guardava a memória
sos, como “Se se Morre de Amor”,
Em cismar — sozinho, à noite — Do moço guerreiro, do velho Tupi.
“Olhos Verdes”, “Não me Deixes” etc. E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Mais prazer encontro eu lá;
• Leonor de Mendonça é um Minha terra tem palmeiras, Do que ele contava,
drama em três atos, de assunto Onde canta o Sabiá. Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

As Gerações Românticas – Segunda Geração:


MÓDULO 18
Álvares de Azevedo e Outros

1. POESIA DA SEGUNDA SE EU MORRESSE AMANHÃ IDEIAS ÍNTIMAS


GERAÇÃO ROMÂNTICA I
Se eu morresse amanhã, viria ao menos (...)
(Byroniana – Individualista
Fechar meus olhos minha triste irmã; Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
– do Mal-do-Século – Fantástico alemão1, poeta ardente
Minha mãe de saudades morreria
Ultrarromântica) Se eu morresse amanhã! Que ilumina o clarão das gotas pálidas
(...) Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
❑ Álvares de Meu coração deleita-se… Contudo,
Azevedo Parece-me que vou perdendo o gosto,
(1831-1852) Vou ficando blasé2, passeio os dias
• poesia cerebral, que reflete Pelo meu corredor, sem companheiro,
Ligado aos grupos boêmios da
mais leituras que vivências. A preco- Sem ler nem poetar. Vivo fumando.
Faculdade de Direito de São Paulo (...)
(Sociedade Epicureia), morreu aos cidade de sua poesia oscila entre
momentos geniais e descaídas. Es- Vocabulário e Notas
vinte anos. É o melhor representante
1 – Fantástico alemão: Goethe.
do mal-do-século. crevia tumultuariamente, entregue,
2 – Blasé: entediado.
Suas principais características às vezes, à incontinência verbal e ao
são: descabelamento. Nem sempre exer- • erotismo irrealizado, as-
• morbidez, tédio, dúvida, cia o senso crítico, que possuía mais sociado à culpa e ao medo. O desejo
satanismo, na esteira de Lord agudo que qualquer romântico na- e a punição fundem-se. O amor só se
Byron, modelo que seguiu de perto: cional, à exceção de Gonçalves Dias: realiza no plano do sonho:
– 73
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IDEIAS ÍNTIMAS Vocabulário e Notas Falando ao coração… que nota aérea


IX 1 – Águas-furtadas: sótãos. Deste céu, destas águas se desata?
2 – Venturoso: feliz. Canta assim algum gênio adormecido
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
3 – Morfeu: deus grego dos sonhos. Das ondas mortas no lençol de prata?
A ventura de uma alma de donzela!
4 – Mavioso: afetuoso.
E sem na vida ter sentido nunca
5 – Otelo: personagem de peça homônima de Minh’ alma tenebrosa4 se entristece,
Na suave atração de um róseo corpo
Shakespeare; personifica o ciúme. É muda como sala mortuária…
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
6 – Devaneio: fantasia, imaginação. Deito-me só e triste sem ter fome,
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
7 – Cioso: cuidadoso. Vendo na mesa a ceia solitária.
Passam tantas visões sobre meu peito!
8 – Rol: lista.
(...)
9 – Werther e Carlota: personagens de Werther, Ó lua, ó lua bela dos amores,
• poesia humorística (realismo de Goethe. Se tu és moça e tens um peito amigo,
10 – Laura e Beatriz: musas de Petrarca e Não me deixes assim dormir solteiro,
humorístico e humor negro) e litera-
Dante, respectivamente. À meia-noite vem cear5 comigo!
tura fantástica são duas contribui- (Álvares de Azevedo)
ções originais ao nosso Romantismo: Vocabulário e Notas
• Os presságios da morte, as
1 – Embuçar: cobrir.
É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! alusões à família e à infância, a fúria 2 – Carapuça: gorro.
É ela! é ela! — murmurei tremendo, da solidão, as dualidades sonho 3 – Vagabundo: errante.
E o eco ao longe murmurou “é ela!...” versus realidade, espírito versus 4 – Tenebroso: sombrio.
Eu a vi… minha fada aérea e pura, carne e alguns arroubos liberais 5 – Cear: jantar.
A minha lavadeira na janela! (“Pedro Ivo”) são temas constantes.
• A Noite na Taverna, escrito à
Dessas águas-furtadas1 onde eu moro Obras maneira dos contos fantásticos de
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
• Lira dos Vinte Anos reúne seus Hoffmann, traz à tona o mundo insólito
Eu a vejo e suspiro enamorado! melhores poemas: “Ideias Íntimas”, da inconsciência e da embriaguez
“Spleen e Charutos”, “É Ela! É Ela! É (incesto, envenenamento, traição, ne-
Esta noite eu ousei mais atrevido Ela! É Ela!”, além de “Lembrança de crofilia, duelo etc.), através das recor-
Nas telhas que estalavam nos meus passos dações de alguns jovens embria- ga-
Morrer” e “Se Eu Morresse Amanhã”.
Ir espiar seu venturoso2 sono,
Vê-la mais bela de Morfeu3 nos braços! O livro é dividido em três partes, e a dos, numa taverna, em noites de tem-
segunda parte vem precedida de pestade, entre mundanas bêbadas,
Como dormia! que profundo sono!… prefácio em que o poeta demonstra adormecidas, garrafas vazias etc.
Tinha na mão o ferro do engomado…
grande consciência dos componen- Solfieri, Johann, Gennaro, Bertran,
Como roncava maviosa4 e pura!
Quase caí na rua desmaiado! tes estéticos de seu trabalho. Arnold e Herman resolvem, por des-
fastio, contar casos escabrosos e ver-
Afastei a janela, entrei medroso: LEMBRANÇA DE MORRER dadeiros que tivessem vivido.
Palpitava-lhe o seio adormecido… • Macário, de classificação pro-
Fui beijá-la… roubei do seio dela Eu deixo a vida como deixa o tédio
Um bilhete que estava ali metido…
blemática, oscila entre o teatro, o
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo diário íntimo e a narrativa. Satã e
Oh! decerto… (pensei) é doce página Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Penseroso dialogam no cemitério
Onde a alma derramou gentis amores! sobre os vícios e destinos da cidade
São versos dela… que amanhã decerto (...)
de São Paulo, veiculando as ideias do
Ela me enviará cheios de flores…
próprio poeta.
Descansem o meu leito solitário
Tremi de febre! Venturosa folha! Na floresta dos homens esquecida, • Conde Lopo e Poema do
Quem pousasse contigo neste seio! À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Frade são poemas narrativos, motiva-
Como Otelo5 beijando a sua esposa, — Foi poeta — sonhou — e amou na vida. dos diretamente pela emulação do
Eu beijei-a a tremer de devaneio…6
modelo byroniano.
É ela! é ela! — repeti tremendo, SPLEEN E CHARUTOS
Mas cantou nesse instante uma coruja… I ❑ Fagundes
Abri cioso7 a página secreta… SOLIDÃO Varela (1841-1875)
Oh! meu Deus! era um rol8 de roupa suja! Autor, dentre outras obras, de
Nas nuvens cor de cinza do horizonte
Vozes d’América, Cantos e Fan-
Mas se Werther morreu por ver Carlota9 A lua amarelada a face embuça 1;
Dando pão com manteiga às criancinhas, Parece que tem frio e, no seu leito, tasias, Cantos do Ermo e da Cidade
Se achou-a assim mais bela… eu mais te Deitou, para dormir, a carapuça 2. e Anchieta ou o Evangelho nas
[adoro Selvas, realizou uma síntese da
Sonhando-te a lavar as camisinhas! Ergueu-se… vem da noite a vagabunda3 poesia romântica, versando temas
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
que vão do indianismo de Gonçalves
Vem nua e bela procurar amantes…
A Laura, a Beatriz10 que o céu revela… É doida por amor da noite a filha. Dias ao condoreirismo de Castro
É ela! é ela! — murmurei tremendo, Alves, passando pela poesia gótica,
E o eco ao longe suspirou “é ela!”. (...) pelo satanismo, pelo patriotismo,
74 –
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pelo naturalismo e pela poesia CÂNTICO DO CALVÁRIO “Meus Oito Anos”, “Amor e Medo”,
religiosa. Foi um poeta de transição “Minha Terra”, “Minha Mãe”, além da
Eras na vida a pomba predileta
no Romantismo. Que sobre um mar de angústias conduzia “Canção do Exílio”, derivação imita-
Os temas roceiros e bucó- O ramo da esperança. — Eras a estrela tiva do poema homônimo de Gonçal-
licos (“Juvenília”, “A Roça”, “A Flor Que entre as névoas do inverno cintilava ves Dias.
do Maracujá”), ao lado da dualidade Apontando o caminho ao pegureiro1.
Eras a messe2 de um dourado estio. MEU LAR OU CANÇÃO DO EXÍLIO
cidade versus campo, natureza versus
Eras o idílio de um amor sublime.
civilização, constituem a parte mais Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
significativa de sua obra, sem esque- O porvir de teu pai! Ah! no entanto, Meu Deus! não seja já!
cer o “Cântico do Calvário”, elegia Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Pomba, — varou-te a flecha do destino!
Cantar o sabiá!
dedicada ao filho morto, obrigatória Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
em qualquer antologia romântica. Teto, — caíste! — Crença, já não vives!
Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu
[morro
A ROÇA (...)
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
O balanço da rede, o bom fogo
Vocabulário e Notas Os gozos do meu lar!
Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola, 1 – Pegureiro: guardador de gado; pastor.
2 – Messe: colheita. (...)
O cigarro, a modinha, o café;
AMOR E MEDO
Um robusto alazão, mais ligeiro ❑ Casimiro de
Do que o vento que vem do sertão,
Negras crinas, olhar de tormenta,
Abreu (1839-1860) Quando eu te fujo e me desvio cauto
Pés que apenas rastejam no chão. Poeta da saudade, do amor ado- Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
lescente, simples, espontâneo, comu- Contigo dizes, suspirando amores:
(...) “— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”
nicativo; sua poesia, muito popular,
ainda agrada aos que pedem pouco Como te enganas! meu amor é chama
A FLOR DO MARACUJÁ
à poesia. Essencialmente musical, Que se alimenta no voraz segredo,
(...)
Casimiro não tem maior complexida- E se te fujo é que te adoro louco…
Por tudo o que o céu revela! de filosófica e psicológica, e sua obra, És bela — eu moço; tens amor — eu
Por tudo o que a terra dá, acessível a qualquer leitor alfabetiza- [medo!…
Eu te juro que minh’alma do, versa sempre as pulsões eróticas (...)
De tua alma escrava está!…
da adolescência, oscilando entre o
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá! amor e o medo; as saudades da infân- MEUS OITO ANOS
Não se enojem teus ouvidos cia, da família e da pátria. Opera uma
De tantas rimas em – a – Oh! que saudades que tenho
“descida de tom” em relação a Gon-
Mas ouve meus juramentos, Da aurora da minha vida,
çalves Dias e a Álvares de Azevedo. Da minha infância querida
Meus cantos ouve, Sinhá!
Te peço pelos mistérios As Primaveras, reunião de suas Que os anos não trazem mais!
Da flor do maracujá! poesias, incluem os conhecidos (...)

As Gerações Românticas – Terceira Geração:


MÓDULO 19
Castro Alves

1. A TERCEIRA GERAÇÃO Representa o segmento liberal- E traz, volvendo após das praias cérulas1,
(Condoreira – Poesia Social – progressista da burguesia, que acre- — Um brilhante — o perdão!
A alma fica melhor no descampado…
Hugoana – Escola de Recife) dita no progresso, opondo-se à ten-
O pensamento indômito, arrojado
dência saudosista e regressiva, do- Galopa no sertão,
❑ Castro Alves (1847-1871) minante em nosso Romantismo. Qual nos estepes o corcel fogoso
Os temas que versou com maior Relincha e parte turbulento, estoso2,
Imbuído da concepção de poe- Solta a crina ao tufão.
frequência foram:
ta mediúnico (que escreve em tran- (Espumas Flutuantes, 1870)
• a poesia da natureza, explo-
se, que se acredita instrumento me-
rando o efeito plástico e sugestivo dos Vocabulário e Notas
diador entre as forças superiores, grandes planos (mar, infinito, ocea- 1 – Cérulo: da cor do céu.
Deus, o cosmos e os homens), colo- 2 – Estoso: ardente, febril.
no, vastidão, águias e albatrozes).
cou sua poesia a serviço da reforma … • a poesia erótica, de sen-
da sociedade e das grandes causas Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas sualidade forte e madura, viril, às
Leva a concha dourada… e traz das plagas
de seu tempo (Guerra do Paraguai, vezes galhofeira, conciliando o exer-
Corais em turbilhão,
Abolição, República). A mente leva a prece a Deus — por pérolas cício poético com a prática do amor.
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ADORMECIDA Só tem a rua de seu… A CRUZ DA ESTRADA


Ninguém vos rouba os castelos,
Uma noite, eu me lembro… Ela dormia Tendes palácios tão belos… Caminheiro que passas pela estrada,
Numa rede encostada molemente… Deixai a terra ao Anteu1. Seguindo pelo rumo do sertão,
Quase aberto o roupão… solto o cabelo Quando vires a cruz abandonada,
E o pé descalço do tapete rente. Vocabulário e Nota
Deixa-a em paz dormir na solidão.
1 – Anteu: gigante, filho de Posídon e de Geia
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste (Terra). Habitava na Líbia e obrigava todos
Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Exalavam as silvas1 da campina… os viajantes a lutar contra ele. Enquanto
estivesse em contato com sua mãe, era Que lhe atiras nos braços ao passar?
E ao longe, num pedaço do horizonte,
invencível. Vais espantar o bando buliçoso
Via-se a noite plácida e divina.
Das borboletas, que lá vão pousar.
De um jasmineiro os galhos encurvados, • o amor ao progresso e à
É de um escravo humilde sepultura,
Indiscretos entravam pela sala, liberdade:“O Livro e a América”, “O
E de leve oscilando ao tom das auras, Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Trem de Ferro”.
Iam na face trêmulos — beijá-la. Deixa-o dormir no leito de verdura,
• poesia de inspiração judai- Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.
Era um quadro celeste!… A cada afago
ca: “Hebreia”, “Ahasverus e o Gênio”.
Mesmo em sonhos a moça estremecia… • poesia abolicionista e hu- Não precisa de ti. O gaturamo1
Quando ela serenava… a flor beijava-a… manitária, momento mais expressivo Geme, por ele, à tarde, no sertão.
Quando ela ia beijar-lhe… a flor fugia… do condoreirismo nacional. Valendo-se E a juriti 2, do taquaral no ramo,
de metáforas ousadas, antíteses, hipér- Povoa, soluçando, a solidão.
Dir-se-ia que naquele doce instante boles e apóstrofes violentas, Castro
Brincavam duas cândidas crianças… Dentre os braços da cruz, a parasita,
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Alves confere dignidade estética ao
Num abraço de flores, se prendeu.
Fazia-lhe ondear as negras tranças!… tema social, em sua movimentada Chora orvalhos a grama, que palpita:
alocução. “O Navio Negreiro”, “Vozes Lhe acende o vaga-lume o facho seu.
E o ramo ora chegava, ora afastava-se… d’África”, “A Cruz da Estrada”, “A
Mas quando a via despertada a meio, Canção do Africano” são os poemas Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
P’ra não zangá-la… sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio…
mais expressivos nesse aspecto. A sepultura fala a sós com Deus.
Prende-se a voz na boca das cascatas,
O NAVIO NEGREIRO
Eu, fitando esta cena, repetia, E as asas de ouro aos astros lá nos céus.
(Tragédia no Mar)
Naquela noite lânguida e sentida:
(...) Caminheiro! do escravo desgraçado
“Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
Virgem! — tu és a flor de minha vida!…” Negras mulheres suspendendo às tetas O sono agora mesmo começou!
(Espumas Flutuantes, 1870) Magras crianças, cujas bocas pretas Não lhe toques no leito de noivado,
Rega o sangue das mães. Há pouco a liberdade o desposou.
Vocabulário e Notas Outras, moças… mas nuas, espantadas, (Castro Alves)
1 – Silva: designação comum a diversas No turbilhão de espectros arrastadas,
plantas da família das rosáceas; silveira, Vocabulário e Notas
Em ânsia e mágoa vãs.
sarça. 1 e 2 – Gaturamo e juriti: espécies de aves.
(…)
Senhor Deus dos desgraçados! ❑ Obra
• a poesia patriótica e de-
clamatória, “Ode ao Dous de
Dizei-me vós, Senhor Deus! Espumas Flutuantes, único livro
Se é loucura… se é verdade publicado em vida (1870), reúne poe-
Julho”, “Pedro Ivo”. Tanto horror perante os céus…
Ó mar! por que não apagas
sia lírica, patriótica, naturista, faltan-
O POVO AO PODER Co’a esponja de tuas vagas do apenas o tema do escravo negro,
A praça! A praça é do povo
De teu manto este borrão?… que surgirá nos livros póstumos (Os
Como o céu é do condor, Astros! noite! tempestades! Escravos, A Cachoeira de Paulo
É o antro onde a liberdade Rolai das imensidades!
Afonso). Deixou, ainda, o drama his-
Cria águias em seu calor. Varrei os mares, tufão!...
Senhor!… pois quereis a praça?
tórico sobre a Inconfidência: Gonza-
Desgraçada a populaça (…) ga, ou a Revolução de Minas.

MÓDULO 20 Prosa Romântica I – José de Alencar I


1. ROMANCE ROMÂNTICO dievais até o romance moderno. O romance projeta, nesse sen-
Assim, a epopeia clássica, as no- tido, o gosto do público burguês,
Narrar, contar uma história, é ativi- velas de cavalaria medievais, as fábu- emergente à condição de classe
dade que remonta aos primórdios da las, as histórias de terror, as aventuras dominante com a Revolução Fran-
literatura. Os gêneros literários de picarescas, o conto e o romance são cesa. Seu triunfo deveu-se ao
natureza basicamente narrativa sem- formas de narrar que se desdobram alargamento do público ledor
pre foram os mais difundidos, desde pelos diversos períodos históricos, re- (que, em grande parte, não tinha a
as histórias orais dos rapsodos gre- fletindo o gosto predominante em cada cultura necessária à compreensão da
gos e as das canções de gesta me- época. epopeia clássica e renascentista) e,

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especialmente, à abertura que o plexas e significativas, como o romance de Minas e Goiás (O Garimpeiro e
caracteriza, já que é um gênero histórico, o de costumes, o indianista, O Seminarista, de Bernardo Guima-
literário que possibilita inúmeras varia- os de perfis de mulher e o regionalista. rães) e o sertão e o Pantanal de
ções, abrigando a imaginação fértil Em linhas gerais, a ficção român- Mato Grosso (Inocência, do Viscon-
dos românticos e acolhendo os mais tica, apoiada no propósito naciona- de de Taunay).
variados temas e formas. lista de reconhecer e exaltar nossas O regionalismo romântico enfo-
Os primeiros romances editados paisagens e costumes, desdobrou-se cava aspectos exóticos e pitorescos,
no Brasil, ainda na década de 1830, em três direções: oscilando entre a idealização
marcam-se pelo predomínio do as- • O Passado (Alencar e Bernardo Guimarães) e o
pecto folhetinesco. O folhetim, publi- Por meio do romance histórico, realismo fotográfico (Taunay e
cado com periodicidade regular pela buscava-se na História e nas lendas Franklin Távora).
imprensa, equivale às atuais novelas heroicas a afirmação da nacionalida- José de Alencar, nosso primeiro
de televisão e confina com a subli- de. Na Europa, a Idade Média e as ficcionista de largo voo, exemplifica,
teratura. Essa modalidade apoia-se novelas de cavalaria ofereceram a um pelo conjunto de sua obra, quase todos
na complicação sentimental, na peri- Walter Scott (Ivanhoé) e a um Alexan- os tipos do romance romântico.
pécia, na aventura e no mistério; as dre Herculano (Eurico, o Presbítero) Manuel Antônio de Almeida, em Me-
personagens são lineares (herói/ as possibilidades para a reconsti- mórias de um Sargento de Milícias,
heroína x vilão); a narrativa centra-se tuição do clima, dos costumes e das afasta-se das convenções românti-
na tensão bem x mal e desdobra-se instituições da época medieval, per- cas, criando uma obra que destoa do
no sentido da punição do mal (inten- mitindo também largos voos da tom idealizador e heroico dos demais
ção moralizante); a história principal é imaginação e da fantasia. romancistas de sua época, para
enxertada com histórias secundárias O romancista não tem compro- aproximar-se da imparcialidade dos
e personagens ocasionais. Não há missos com a verdade histórica. narradores realistas, ao retratarem as
análise psicológica, embora se bus- Derivado do romance de “capa-e- classes sociais do Rio colonial.
que retratar a crise moral, fazendo espada” e do romance de mistério, o A narrativa era feita na 1.a pessoa
com que a personagem sinta seus romance histórico foi tomado como (subjetividade, emoção, confidência)
crimes e meça seu desespero, sus- substituto da epopeia clássica, mo- ou na 3.a pessoa (objetividade),
pendendo por um instante o fluxo dos delando heróis nacionais, calcados conforme a natureza do assunto. Em
acontecimentos. nos valores coletivos. qualquer caso, projetava sempre os
O folhetim (romance publicado No Brasil, os índios de Alen- sentimentos e a ideologia do autor,
em capítulos, diariamente, nos jornais, car (O Guarani, Iracema e Ubirajara) que impunha ao leitor os seus comen-
semelhante às telenovelas atuais) são transformados em cava- tários e reflexões.
gozou de grande popularidade, leiros medievais, vistos como A linguagem era bastante retó-
distraindo as donzelas casadoiras e símbolos e elementos formadores da rica, apoiando-se em imagens e com-
as vovozinhas. Captava os costumes nacionalidade, substituindo a Idade parações, em adjetivos sonoros e co-
da época, exteriorizando uma visão Média que não tivemos. loridos. As descrições tendiam
superficial da vida: saraus, passeios a • A Cidade ao grandioso e eram enriquecidas
cavalo, namoricos, fofocas, histórias Com o romance urbano e de pela notação da cor, da forma e da
de amor à base do “não-ata-nem- costumes, retrata-se a vida da corte, musicalidade, em correlação com os
desata”, sem mostrar a essência no Rio de Janeiro do século XIX, estados d’alma ou com as situações
alienada desse mundo e sem pene- fotografando-se, com alguma fidelida- dramáticas.
trar nas intenções escusas e nos de, costumes, cenas, ambientes e
desejos inconfessáveis, escondidos tipos humanos da burguesia carioca. 2. TEIXEIRA E SOUSA
sob a máscara risonha das amenida- As personagens caracterizam-se
des e da hipocrisia. por meio de atos, gestos, diálogos, De origem humilde, mulato, car-
Teixeira e Sousa e Joaquim Ma- roupas. Em Macedo (A Moreninha) pinteiro, foi, cronologicamente,
nuel de Macedo foram os iniciadores não há nenhum aprofundamento nosso primeiro romancista, com
do romance folhetinesco, cujo suces- psicológico, mas em Alencar (Diva, O Filho do Pescador, publicado em
so se prolongou até os nossos dias, Lucíola, Senhora) se encontram suti- 1843.
nas radionovelas, fotonovelas e na lezas devidas a um fino entendedor Representa cabalmente o gênero
subliteratura das Sabrinas, Júlias e da sensibilidade feminina. folhetinesco. Deixou obra volumosa e
Bárbaras Cartlands. Mesmo autores • O Regionalismo de qualidade inferior, incursionando
respeitáveis, como Alencar (Cinco Volta-se para o campo, para a pro- também pelo romance histórico e pelo
Minutos, A Viuvinha e A Pata da Ga- víncia e para o sertão, num esforço de mistério.
zela), empenharam seu talento em nacionalista de reconhecer e exaltar a
produzir folhetins, atraídos pelo suces- terra e o homem brasileiro, acentuando 3. JOAQUIM MANUEL
so perante o público e pelo ganha-pão as particularidades de seus costumes DE MACEDO (1820-1882)
seguro do emprego na imprensa. e ambientes. Buscou-se retratar o
Mas nem só de folhetins se ali- Nordeste (O Sertanejo, de Alencar, e Qualitativamente, foi o nosso
mentou a ficção romântica. Houve vá- O Cabeleira, de Franklin Távora), o primeiro romancista, inaugurando
rias outras modalidades mais com- - Sul (O Gaúcho, de Alencar), o sertão o romance urbano com A Moreninha
– 77
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(1844). Foi médico, político, professor, e • o período pré-cabralino (Ubi- do de defesa de um uso brasileiro da
seus romances sentimentais e mo- rajara); língua portuguesa, escreveu Alencar:
ralistas gozaram de grande popula- • os primeiros contatos entre o “Como pode um povo que chupa a
ridade. Escrevia para o gosto do leitor índio e o colonizador nos séculos XVI manga, o abacaxi e o cambucá falar
da época, apoiando-se nas tramas e XVII (Iracema e O Guarani ); como um povo que sorve a uva, a
complicadas, intrigas, mistérios, mal- • a colonização (A Guerra dos pera e a nêspera?”.
entendidos, que acabavam sempre Mascates, As Minas de Prata); Enriqueceu a nossa língua literária
com a vitória do verdadeiro amor • o presente, a vida urbana no de inúmeros brasileirismos, aprovei-
(happy end ) e com a punição do vilão. século XIX, em todos os romances tando vocábulos, expressões e um
Escreveu romances, novelas, tea- urbanos. fraseado tipicamente nacionais, dan-
tro, poesia, crônica, reunidos em mais No plano étnico, o índio e o do à frase um meneio, uma cadência
de 40 volumes. Na ficção, além de A branco alternam-se como heróis, tropical. Suas imagens e metáforas
Moreninha, deixou O Moço Loiro, modelados na honradez e galanteria utilizam com beleza e entusiasmo a
Mulheres de Mantilha (seus livros mais dos cavaleiros medievais: Peri, Poti, fauna e a flora do país.
conhecidos) e outras obras, que repro- Jaguarê, D. Antônio Mariz e seus Além do vigor descritivo e da jus-
duzem sempre os mesmos esquemas cavaleiros, Arnaldo Louredo, Manuel teza com que “pinta” a paisagem
folhetinescos das obras iniciais, sem Caño. Alencar omite a violência de humana e a natureza, apoiado em
qualquer evolução. que o índio foi vítima, indiscrimina- metáforas que ressaltam o colorido,
Sua obra vale como documento dos damente; assim, os brancos honra- fundindo a realidade humana e a
costumes da corte no século XIX, dos, na visão alencariana, irmana- paisagem, Alencar desenvolveu
retratando a vida doméstica e social da ram-se com os índios na construção da um contínuo esforço no sen-
burguesia da época. Há, pois, algum nacionalidade, que o romancista idea- tido analítico e crítico, aprofun-
realismo no registro que acompanha as lizava morena, mestiça, resultado da dando a dimensão psicológica
tramas sentimentais e idealistas. integração da natureza (índio) com a de suas personagens, especial-
A linguagem oscila entre o uso civilização (branco). mente em Lucíola e Senhora. Ten-
coloquial, nos diálogos que são muito O negro aparece como persona- tando compreender as desarmonias e
vivos, e o português academizante gem no teatro, em O Demônio Familiar estranhezas da conduta e desmas-
(por vezes rebuscado), nas digres- e no dramalhão Mãe, cabendo lembrar carar e denunciar certos aspectos
sões e nas descrições. que, fiel à sua posição política profundos da realidade humana e
A trama de A Moreninha centra-se conservadora e à sua origem rural e social, Alencar foi, sem embargo
na fidelidade ao amor infantil, envol- aristocrática, Alencar foi contra a da idealização romântica, um
vendo o par amoroso Augusto e Caro- abolição do regime escravagista. modesto precursor de Machado
lina, a moreninha. Entre patuscadas É sempre com desprezo e irritação de Assis.
dos estudantes de Medicina (Augusto, que Alencar observa os costumes urba-
Leopoldo, Felipe, Fabrício), saraus, nos de seu tempo, bem como a vida ❑ Evolução
partidas de gamão, intrigas, fofocas, da burguesia. A atitude do autor da obra alencariana
situações cômicas ou dramáticas, o diante da vida urbana é sempre • Primeira fase (1856-1864)
casal acaba por concretizar o jura- saudosista, regressiva e res- Alencar iniciou-se publicando crô-
mento de amor que fizera na infância. sentida. Ao condenar a cidade, a saí- nicas na imprensa carioca, mais tar-
da que Alencar entrevê é puramente de reunidas em Ao Correr da Pena
4. JOSÉ DE sentimental: o retorno à natureza, ao (1856). Ganha notoriedade nesse mes-
ALENCAR (1829-1877) índio, ao sertão, aos campos. mo ano, travando áspera polêmica
A intuição nacionalista de Alencar acerca do poema épico pseudo-
❑ Características levou-o a inventar uma imensa saga indianista A Confederação dos Ta-
Consolida o romance nacional, brasileira, fundando, bem ou mal, uma moios, de Gonçalves de Magalhães.
compondo um verdadeiro painel do mitologia mestiça, colossal e telúrica, Já havia publicado A Viuvinha, sem
Brasil que abrange todas as latitudes, uma verdadeira sinfonia americana. nenhuma repercussão, quando, em
todos os períodos históricos e todos Os índios e super-heróis inscre- 1857, publica O Guarani, que lhe traz
os grupos étnicos e regionais. vem-se nesse propósito de criar uma rápida notoriedade. São dessa fase,
No plano do espaço, abrange: literatura nacional com arquétipos, e o entre outros, Lucíola, Diva, As Minas
• o sertão do Nordeste (O Serta- entusiasmo com que Alencar mergu- de Prata e Iracema (1865), além das
nejo); lhou nesse trabalho verdadeiramente peças de teatro.
• o litoral cearense (Iracema); enciclopédico explica os erros de • Segunda fase (1866-1869)
• o pampa gaúcho (O Gaúcho); História e Geografia e os exageros Envolvido na política (deputado,
• a zona rural (Til ); imaginativos, que lhe valeram inúme- ministro da justiça, candidato rejeita-
• a zona da mata fluminense (O ras críticas e zombarias. do a senador), deixou, nessa fase, os
Tronco do Ipê); Ainda o nacionalismo inspirou a escritos políticos intitulados Cartas de
• a cidade, a corte no Rio (Diva, luta que Alencar empreendeu em Erasmo.
Lucíola, Senhora) e demais romances defesa do português falado no • Terceira fase (1870-1875)
urbanos. Brasil, liberto do rigor das gramá- Abandonando a política e o tea-
No plano do tempo, abarca: ticas e dicionários lusitanos. No senti- tro, desgostoso e retraído, entrou em
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nova fase criadora, publicando cerca Na realidade, se episódios da colonização frases solenes, e vinha embeber-se no seu
de dez livros (entre outros, O Gaúcho, do Brasil nos albores do século XVII constituem coração, que se abria para recebê-la.
o entrecho da obra, o protagonista é um índio, A água subindo molhou as pontas das
Ubirajara, Senhora e O Sertanejo),
Peri, elevado à categoria de autêntico herói largas folhas da palmeira, e uma gota, resva-
além do romance póstumo Encar- romântico. Logo depois que Filipe ll da Espanha lando pelo leque, foi embeber-se na alva cam-
nação e da autobiografia Como e por ocupa o trono de Portugal, D. Antônio de Mariz, braia das roupas de Cecília.
que Sou Romancista. fidalgo da velha estirpe portuguesa, fiel à sua A menina, por um movimento instintivo de
pátria, prefere instalar-se no interior do Brasil a terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse
❑ Divisão da obra de Alencar servir à Coroa estrangeira. Com sua família e momento supremo, em que a inundação abria a
alguns homens de armas, inicia a formação de fauce enorme para tragá-los, murmurou
a) Romances indianistas (for- uma fazenda à margem do Rio Paquequer, docemente:
mação da nacionalidade; anteceden- afluente do Paraíba. De um acidente resulta a — Meu Deus!... Peri!...
tes aborígines): morte de uma índia de uma tribo aimoré, que Então passou-se sobre esse vasto deserto
– O Guarani passa por isso a hostilizar os brancos de água e céu uma cena estupenda, heroica,
colonizadores. D. Antônio de Mariz conta com a sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma
– Iracema amizade de Peri, jovem guerreiro goitacá, de sublime loucura.
– Ubirajara nobres instintos e extrema bravura. O selvagem Peri alucinado suspendeu-se aos cipós
b) Romances históricos (bos- devotava a Cecília, a filha do fidalgo, uma que se entrelaçavam pelos ramos das árvores
quejos históricos e crônicas roman- adoração quase religiosa e por isso estendia já cobertas de água e, com esforço deses-
sua proteção providencial a toda a família. perado, cingindo o tronco da palmeira nos seus
ceadas dos tempos coloniais): Depois de inúmeros acidentes e peripécias, em braços hirtos, abalou-o até as raízes.
– As Minas de Prata que se destaca a ação de Peri, conjurando Três vezes os seus músculos de aço,
– Alfarrábios perigos advindos não só dos indígenas inimi- estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e
– A Guerra dos Mascates gos, mas também do vilão Loredano e seus três vezes o seu corpo vergou, cedendo à
asseclas, dissimulados entre os “aventureiros” retração violenta da árvore, que voltava ao lugar
c) Romances regionalistas
que serviam a D. Antônio, este, esgotadas as que a natureza lhe havia marcado.
(a pátria brasileira; a sociedade rural): possibilidades de resistência, pede a Peri que Luta terrível, espantosa, louca, esvairada;
– O Gaúcho salve Cecília, levando-a para a Corte, enquanto luta da vida contra a matéria; luta do homem
– O Sertanejo faz explodir sua casa, a fim de evitar o trucida- contra a terra; luta da força contra a imobilidade.
mento de todos pelos selvagens. O final do ro- Houve um momento de repouso em que o
– Til
mance, com a palmeira arrastada pelas águas homem, concentrado todo o seu poder,
– O Tronco do Ipê da enchente e abrigando na sua copa os dois estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto
d) Romances urbanos (roman- seres de raças diferentes, é um símbolo feliz da foi terrível; e pareceu que o corpo ia despe-
ces de complicação sentimental, perfis futura população do Brasil. (R. M. Pinto, in Pe- daçar-se nessa distensão horrível.
de mulher e quadros da sociedade): queno Dicionário de Literatura Brasileira, Cultrix.) Ambos, árvore e homem, embalançaram-
se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes
– Cinco Minutos desprenderam-se da terra já minada profunda-
– A Viuvinha TEXTO I
mente pela torrente.
– A Pata da Gazela Peri compreendera o gesto da índia; não A cúpula da palmeira, embalançando-se
– Sonhos d’Ouro fez, porém, o menor movimento para segui-la. graciosamente, resvalou pela flor da água
Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu. como um ninho de garças ou alguma ilha flu-
– Encarnação tuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Por sua vez a menina também compreen-
– Diva Peri estava de novo sentado junto de sua
deu a expressão daquele sorriso e a resolução
– Lucíola firme e inabalável que se lia na fronte serena do senhora quase inanimada: e, tomando-a nos
– Senhora prisioneiro. braços, disse-lhe com um acento de ventura
Insistiu por algum tempo, mas debalde. suprema:
Peri tinha atirado para longe o arco e as — Tu viverás!...
Antologia de Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo
flechas e, recostando-se ao tronco da árvore,
José de Alencar conservava-se calmo e impassível. junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o
De repente o índio estremeceu. enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
O GUARANI Cecília aparecera no alto da esplanada e — Sim?... murmurou ela; viveremos!... lá
lhe acenara; sua mãozinha alva e delicada no céu, no seio de Deus, junto daqueles que
agitando-se no ar parecia dizer-lhe que espe- amamos!...
Publicado primeiramente em fo-
rasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de O anjo espanejava-se para remontar ao
lhetins no Diário do Rio de Janeiro, em berço.
sua senhora, apesar da distância, brilhar um raio
1857, O Guarani foi o desdobramento de felicidade. — Sobre aquele azul que tu vês, continuou
da polêmica de Alencar com Gon- (O Guarani, cap. II) ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que
çalves de Magalhães sobre a criação o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com
de uma verdadeira epopeia nacional. TEXTO II tua irmã, sempre...!
O livro procura ser a resposta de Alen- Ela embebeu os olhos nos olhos do seu
Epílogo amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
car ao problema que tanto preocupou O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
os escritores que estabeleceram o (...) Fez-se no semblante da virgem um ninho
Romantismo entre nós. Alencar afasta- Peri tinha falado com o tom inspirado que de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios
se da épica tradicional: não escreve dão as crenças profundas; com o entusiasmo abriram como as asas purpúreas de um beijo
em verso, como Magalhães, mas em das almas ricas de poesia e sentimento. soltando o voo.
Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a A palmeira arrastada pela torrente impe-
prosa, e sua narrativa filia-se ao uma as suas palavras, como se fossem as tuosa fugia...
gênero mais em voga naquela época: partículas do ar que respirava; parecia-lhe que E sumiu-se no horizonte.
o romance — no subgênero romance a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, (O Guarani )
histórico de aventuras. se desprendia do seu corpo em cada uma das

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FRENTE 4 Redação e Morfologia


MÓDULO 1 Funções da Linguagem
A classificação das funções da linguagem depende
das relações estabelecidas entre elas e os elementos II) Função emotiva ou expressiva – centrada no
que participam do circuito da comunicação: emissor, o eu da comunicação – é aquela que exteriori-
za o estado psíquico do emissor, traduzindo suas opi-
niões e emoções. Aparece, portanto, na primeira
pessoa:

A tua ausência, para que a minha dor não acha


nome bastante triste, há de privar-me para sempre de
me mirar nos teus olhos, onde eu vi tanto amor, que me
enchiam de alegria, que eram tudo para mim?
Ai de mim! Os meus perderam a luz que os
alumiava e não fazem senão chorar.
(Sóror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas)

O linguista russo Roman Jakobson, baseando-se III) Função fática – centrada no canal da comuni-
nos seis elementos da comunicação, elaborou este cação – é aquela que tem por objetivo estabelecer
quadro das funções da linguagem. Segundo ele, cada o contato com o receptor (“Olá, como vai?”), testar
função é centrada em um dos seis elementos que o funcionamento do canal (“Alô, está me ouvindo?”)
compõem o circuito da comunicação. O reconheci- ou prolongar o contato, na falta de outro conteúdo a
mento e a adequada utilização das funções são comunicar (“Pois é”, “É fogo”, “É” etc.):
fundamentais tanto na produção quanto no entendi-
mento de qualquer tipo de texto.
SINAL FECHADO
I) Função referencial – centrada no contexto (a — Olá, como vai?
referência ou o referente da mensagem) – é aquela — Eu vou indo, e você? Tudo bem?
que remete à realidade exterior; sua finalidade é (Paulinho da Viola e Chico Buarque)
informar o receptor. É usada principalmente em
textos de caráter objetivo e teor informativo:
IV)Função conativa ou apelativa – centrada no
Nas 14 edições dos Jogos Pan-Americanos, 34 receptor (tu ou você), a segunda pessoa da comu-
marcas mundiais foram quebradas. Só no Pan de 1967, nicação – é aquela que tem por objetivo influir no
em Winnipeg, foram 14 recordes batidos, dos quais 3
comportamento do receptor, por meio de um apelo
pelo nadador americano Mark Spitz, o maior recordista
ou ordem. Emprega verbos no imperativo e vocati-
mundial em Pan.
vos. É utilizada principalmente em textos propagan-
O atletismo foi a modalidade que rendeu os dois dísticos e outros que visam a convencer o receptor
únicos recordes conquistados por esportistas
a adotar alguma opinião ou comportamento:
brasileiros em Pan-Americanos. Adhemar Ferreira da
Silva foi bicampeão no salto triplo e quebrou o recorde
mundial no Pan de 1955, no México. Vinte anos depois, Não acredites no que teus olhos te dizem, tudo o
também no México e na mesma prova, João Carlos de que eles mostram é limitação.
Oliveira, o João do Pulo, deu à torcida brasileira um
Olha com entendimento, descobre o que já
momento inesquecível. Saltou incríveis 17,89 metros de
sabes e verás como voar...
distância, 45 centímetros a mais que o soviético Victor
Saneyev, até então recordista nessa prova. (Richard Bach)
(Superinteressante, julho/2007) Beba coca-cola.
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V) Função poética – centrada na mensagem – é VI) Função metalinguística – centrada no código


aquela em que o essencial é a organização do texto – é aquela voltada para a própria linguagem e seus
(a mensagem), por meio da seleção e arrumação de elementos (palavras, regras gramaticais, estruturas
palavras, dos efeitos sonoros e rítmicos, do jogo com da mensagem etc.). Também corresponde à função
figuras de linguagem e do aproveitamento de todo metalinguística o comentário ou explicação de outros
tipo de simetrias ou antissimetrias entre palavras e códigos e suas mensagens (visuais, como a pintura
frases. É utilizada principalmente em textos literários: ou o cinema; sonoros, como a música etc.):

Podeis aprender que o homem — O que significa “olhar vulpino”?


é sempre a melhor medida; — Significa olhar de raposa.
Mais, que a medida do homem
não é a morte, mas a vida. POEMAS
(João Cabral de Melo Neto)
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
A função poética ocorre também em textos em que
no livro que lês.
o discurso convencional recebe uma configuração
Quando fechas o livro, eles alçam voo
nova, produzindo um efeito estético inesperado (humor,
como de um alçapão.
impacto, estranheza):
Eles não têm pouso
Filho de rico é boy, filho de pobre é motoboy. nem porto,
Lojas Marabraz alimentam-se um instante
Preço melhor em cada par de mãos
Ninguém faz e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
(Nos casos desses exemplos, a função poética não no maravilhado espanto de saberes
predomina, como ocorre na poesia e na literatura; ela é que o alimento deles já estava em ti...
uma função secundária.) (Mário Quintana)

MÓDULO 2 Estrutura da Dissertação e Critérios de Correção


1. INTRODUÇÃO ser elaborada com uma afirmação, uma definição,
uma citação ou uma interrogação, combinadas ou
Dissertar é expor ideias a respeito de um determi- não entre si.
nado assunto. É discutir essas ideias, analisá-las e apre- • Desenvolvimento (argumentação) – É a ela-
sentar provas que justifiquem e convençam o leitor da boração argumentativa da tese, uma análise crítica. De-
validade do ponto de vista de quem as defende. ve apresentar exemplificações, justificativas, explica-
A dissertação, por isso, pressupõe: ções, juízos. Pode-se proceder a um confronto entre os
• exame crítico do assunto sobre o qual se vai pontos positivos e negativos do assunto (se houver), às
escrever; relações de causa e consequência, às comparações de
• raciocínio lógico; natureza histórica ou geográfica, à passagem do geral
• clareza, coerência e objetividade na exposição. para o particular (e vice-versa) etc.
Não pense que dissertar é uma prática destinada • Conclusão (ponto de chegada da discussão) –
apenas a suprir as exigências dos vestibulares, ou ain- É o parágrafo final em que se podem levantar pers-
pectivas sobre o problema discutido (possíveis solu-
da, um recurso exclusivo de grandes escritores e
ções). A conclusão pode, ainda, ser uma síntese da
políticos ao discutir e defender seus pontos de vista.
argumentação ou uma retomada da tese, reafirmando-
Você também, no seu dia-a-dia, dispõe dos recursos
se o posicionamento nela proposto.
que a língua oferece. Dissertar é um exercício cotidiano
e você o utiliza toda vez que discute com alguém, ❑ Orientação para
tentando fazer valer sua opinião sobre qualquer assunto, se elaborar uma dissertação
por exemplo, futebol. Isso porque o pensar é uma prá- • Seu texto deve apresentar tese, desenvolvimento
tica permanente da nossa condição de seres sociais, (exposição/argumentação) e conclusão.
cujas ideias são debatidas e veiculadas através da • Não se inclua na redação, não cite fatos de sua
comunicação linguística. vida particular, nem utilize o texto com fins doutri-
Portanto, dissertar é analisar de maneira crítica nários. Redija na terceira pessoa do singular ou
situações diversas, questionando a realidade e nossas do plural, ou ainda na primeira pessoa do plural.
posições diante dela. • Seu texto pode ser expositivo ou argumentativo
(ou ainda expositivo e argumentativo). As
2. ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO ideias-núcleo ou tópicos frasais devem ser bem
desenvolvidos, bem fundamentados. Evite que
A dissertação, comumente, apresenta três partes: seu texto expositivo ou argumentativo seja uma
• Tese (parágrafo introdutório) – É a apresentação sequência de afirmações vagas, sem justifi-
do assunto a ser discutido no desenvolvimento. Pode cativa, evidências ou exemplificação.
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❑ Etapas para se elaborar uma dissertação ❑ Aspectos negativos:


1.a) Ler atentamente o tema e refletir sobre o assunto de • uso de expressões cujo sentido é inadequado ao
que trata. texto;
2.a) Fazer um esboço mental do encadeamento que se • emprego de vocabulário rebuscado e pomposo;
pretende dar às ideias. • falta ou emprego incorreto de nexos gramaticais
3.a) Elaborar o rascunho, evitando desviar-se do ponto (conjunções, preposições, advérbios etc.);
de vista assumido. • construção de parágrafos isolados, sem relação
entre si;
4.a) Direcionar o texto para a conclusão desejada.
• utilização de ideias contraditórias ao longo do
5.a) Ler o texto, submetendo-o a uma avaliação crítica. texto;
6.a) Passá-lo a limpo, observando as regras gramaticais. • falha na articulação dos argumentos: exemplos,
7.a) Dar um título à redação, adequando-o ao texto. citações, análises críticas, sem relação de con-
tinuidade;
❑ Receita para um texto dissertativo • retomada imprópria de ideias já discutidas,
• Como começar? tornando redundante o texto;
Após depreender o tema, transforme-o numa inter- • falta de posicionamento crítico em relação ao
rogação. A resposta a essa pergunta desencadeará as tema, ideias vagas;
ideias. Reflita sobre o enfoque a ser dado: pense na • uso de frases feitas, expressões esvaziadas de
possibilidade de concordar com o tema (total ou parcial- sentido, que denotam ausência de espírito crítico
mente), refutá-lo ou fazer uma oposição de ideias. e banalizam o texto;
Depois dessa reflexão, rascunhe livremente seu texto ou • conclusão incoerente com o encaminhamento
planeje o conteúdo (sequência de ideias). dado ao texto.
• Como elaborar?
TEXTO NOTA DEZ – (FUVEST)
Para construir o parágrafo introdutório, considere as EXPERIÊNCIA
abordagens mais coerentes com o seu conhecimento
sobre o tema – uma citação, uma definição, uma inter- A geração que constitui os pais e educadores dos jovens
de hoje é, sem dúvida, a que mais vivenciou as trans-
rogação, uma trajetória histórica, uma enumeração,
formações sociais, econômicas, políticas e tecnológicas
uma oposição etc., podendo combiná-las ou não. sofridas pelo País e pelo mundo. Ela assistiu a guerras,
• Como discutir? embates ideológicos e crises, sentiu o peso de censuras e
Qualquer que seja o enfoque, selecione os argu- repressões, alegrou-se com a descoberta de vacinas e
mentos (para endossar, refutar ou fazer oposições). tratamentos, lutou pela liberdade e pela justiça. É,
Anote evidências do cotidiano, fatos históricos, relacio- certamente, a que mais encontra dificuldades para formular
conceitos e valores a serem transmitidos.
ne causa e consequência, pense, enfim, nos exemplos
Por terem presenciado os horrores das guerras, ensinam
que melhor fundamentam sua discussão. que não há nada melhor para conciliar divergências que o
• Como argumentar? diálogo (e, de fato, mesmo as guerras mais recentes cessam
Observe se cada parágrafo argumentativo desen- quando tal atitude é tomada). A sociedade, entretanto, prega
volve adequadamente uma ideia-núcleo (por meio de a competição e a violência, o que inutiliza, muitas vezes, esse
evidências, exemplos, relações de causa e conse- ensinamento.
quência etc.). Por terem lutado pela liberdade, garantem-na como
direito universal – mas, por experiência própria, sabem que
• Como concluir?
seu excesso pode ser nocivo. A ideologia corrente, por sua
Para concluir, proceda de forma coerente com a vez, defende o prazer, o pleno divertimento, mesmo à custa
discussão: sintetize o assunto, retome o ponto de vista de danos futuros, o que prejudica o convívio pacífico entre
da tese ou lance uma perspectiva sobre o problema. jovens (que recebem tais influências) e adultos.
Na correção das redações, em modalidade dis- Por terem se rebelado contra a injustiça e a corrupção,
sertativa para vestibular, serão valorizados os se- defendem a integridade moral como verdadeiro meio de
realização pessoal. Por terem visto a violência como resul-
guintes aspectos:
tado da falta de princípios, pregam e incentivam a religião.
1. correspondência entre o tema proposto e o texto São, muitas vezes, chamados de “caretas”, reacionários e
criado pelo aluno; ultrapassados por essa mesma sociedade, que valoriza o
2. obediência ao discurso (modalidade) pedido. No lucro, o “jeitinho”, o trapace*.
caso da Fuvest o discurso é dissertativo (tese, É verdade que muitos desses formadores de opinião não
argumentação e conclusão); seguem tais padrões, tranformando-se em maus exemplos, a
3. presença de coesão (uso adequado de conjunções, maioria, contudo, tem se esforçado por transmitir esses
valores, mesmo oprimidos pelos interesses capitalistas de
preposições etc.) entre termos, orações e períodos;
hoje. É preciso, portanto, compreender sua dificuldade em
4. concatenação de ideias, ou seja, ideias orga- lidar com uma sociedade em constante transição – mas,
nizadas numa sequência lógica; certamente, os jovens que lhes seguem os ensinamentos,
5. presença de linguagem original e criativa, isto é, frutos da experiência, serão pessoas íntegras e felizes.
seleção adequada de vocabulário; (Eveline Oliveira de Castro, aluna do 3.o colegial da Unidade de
6. obediência às normas gramaticais (pontuação, Mogi das Cruzes, aprovada no vestibular 2002, Medicina-USP)
ortografia, colocação pronominal, crase, acentua- Nota: a expressão “o trapace” não está dicionarizada, o correto é
ção, concordância, regência). a trapaça.

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MÓDULOS Classificação das Palavras –


3, 4 e 5 Palavras Variáveis e Invariáveis

❑ Adjetivos pátrios ou gentílicos


Variáveis Invariáveis É a procedência, a origem mostrada no adjetivo.
1. Substantivo 7. Advérbio
Exemplos
2. Adjetivo 8. Preposição
Quem nasce em Salvador da Bahia é sote-
3. Artigo 9. Conjunção ropolitano, no Rio Grande do Norte é poti-
guar, em Santa Catarina é catarinense,
4. Pronome 10. Interjeição em Fortaleza é fortalezense, em Florianó-
5. Numeral – Palavras denotativas polis é florianopolitano, na Guatemala é
guatemalteco, em Tânger é tangerino,
(de inclusão, de
6. Verbo na Nova Zelândia é neozelandês.
exclusão etc.)

❑ Locução adjetiva
1. SUBSTANTIVO É a expressão que equivale a um adjetivo. É
formada de preposição mais substantivo.
É o nome com que designamos seres em geral –
pessoas, animais, coisas, vegetais, lugares etc. Exemplos
Divide-se em:
Concreto: mar, sol, Deus, alma, fada. amor de pai (paterno)
Abstrato: beleza, amor, frio, viagem, saída. presente de rei (real)
Próprio: Roma, Guimarães Rosa, Deus. azul do céu (celeste)
Comum: gato, homem, casa.
Simples: cachorro, chuva, menino.
Composto: guarda-roupa, passatempo, pão-de-ló.
Primitivo: pedra, ferro, dente. 3. ARTIGO
Derivado: pedreira, ferreiro, dentista.
Coletivo: constelação, cáfila, alcateia. É a palavra que se antepõe aos substantivos,
designando seres determinados (o, a, os, as) ou inde-
❑ Locução substantiva terminados (um, uma, uns, umas).
É a expressão que equivale a um substantivo. Divide-se em:
a) Definido: o, a, os, as.
Exemplos b) Indefinido: um, uma, uns, umas.
Fomos ver o pôr-do-sol (= crepúsculo). Exemplos

Deram-me um vidro de água-de-cheiro a) “As mãos tecem o rude trabalho.”


(= perfume). (CDA)
b) “Estou vendendo um realejo.”
(CBH)
2. ADJETIVO

É a palavra que modifica o substantivo, exprimindo Tanto os artigos definidos como os indefinidos
aparência, modo de ser, qualidade. podem combinar-se com as preposições, subdividindo-
se, então, em dois grupos:
Exemplos
• Sem alteração ⎯→ combinação.
menino gordo. Ex.: ao, aos.
gramática histórica.
• Com alteração ⎯→ contração.
aluno inteligente.
Ex.: do, pelo, coa.

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Exemplos • Possessivo
Dá ideia de posse (meu, teu, seu, nosso,
“Ao fim e ao cabo, só há verdades velhas vosso, e as variações para o plural e feminino).
caiadas de novo.” (Machado de Assis)
Exemplo
Existe luz no fim do túnel...
“Muita coisa aprendi com meu pai.”
(Vivaldo Coaracy)

4. PRONOME
• Demonstrativo
É a expressão que designa os seres sem lhes dar Dá ideia de posição em relação ao tempo, ao espa-
nomes nem qualidades, indicando-os apenas como ço e ao contexto. Os principais demonstrativos são:
pessoas do discurso. este, esta, isto, esse, essa, isso, aquele,
Classifica-se em: aquela, aquilo, o, a, mesmo, próprio, seme-
lhante, tal e variações.
• Pessoal
Quando representa as pessoas do discurso, que Exemplos
são três: primeira pessoa (que fala), segunda pessoa
Esta caneta com que eu te escrevo ...
(com quem se fala), terceira pessoa (de quem se fala).
Quando funciona como sujeito, é o pronome pessoal

reto: eu, tu, ele ou ela, nós, vós, eles ou elas. Essa caneta com que tu me escreves ...
Exemplo

“Eu faço versos porque o instante resiste...” • Relativo
(LUP) Estabelece uma relação com um termo que se
coloca sempre antes dele (antecedente), introduz uma
Quando o pronome tem qualquer outra função, que oração subordinada adjetiva e é facilmente identificado
não a de sujeito, é pessoal oblíquo (me, mim, comigo, pelas substituições que permite (o qual, a qual, os
te, ti, contigo, se, si, consigo, o, a, lhe, nos, conos- quais, as quais). O pronome relativo mais encontrado é
co, vos, convosco, se, si, consigo, os, as, lhes). o que; no entanto, podem-se relacionar o qual e varia-
ções, onde, quem, cujo e variações.
Exemplo
Exemplos
“Carrego comigo há dezenas de anos ...”
(CDA)
“As pessoas que não questionam não

Há, ainda, os pronomes pessoais de tratamento


merecem viver.” ↓
(com quem se fala ou de quem se fala), que levam a (= as quais)
(Adélia Prado)
concordância para a terceira pessoa, encerrando um
tratamento mais formal, mais cerimonioso (Vossa “Visitei a casa onde nasci.”
Excelência, Vossa Santidade, Vossa Senhoria, ↓ (LUP)
Vossa Majestade, Sua Alteza, Sua Magnifi- (= na qual)
cência, senhor, a senhorita, você etc.).

Exemplos
• Indefinido
Refere-se ao nome de uma maneira vaga, impreci-
Venho, por meio desta, comunicar a Vossa sa, indeterminada (quem, tudo, nada, alguém, nin-
Senhoria que ... guém etc.).

“E agora, José? Exemplos


E agora, você?”
(CDA) “Tudo passa sobre a terra ...”
(José de Alencar)
“Sua Santidade, o Papa João Paulo II, é
“Não sou nada.”
muito carismático.”
(Álvaro de Campos)

84 –
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• Interrogativo
É o próprio pronome indefinido numa situação de 4) Relativos
interrogação.
que (= o qual, a qual, os quais, as quais)
Exemplos quem (= o qual, a qual, os quais, as quais)
onde (= no qual, nos quais, na qual, nas quais)
Quem chegou? cujo(s), cuja(s) etc
Quantos vieram?

❑ Locução pronominal 5) Indefinidos


É a expressão que tem a função de pronome.
algum(s), alguma(s), algo, alguém
Exemplos nenhum(s), nenhuma(s), nada, ninguém
todo(s), toda(s), tudo
“Cada um tem o ar que Deus lhe deu?”
outro(s), outra(s), outrem
(= todos)
(M. de Assis) muito(s), muita(s), bastante(s)
pouco(s), pouca(s), cada
Não receberei seja quem for. vários, várias etc.
(= ninguém)

Quadros-Resumo dos pronomes 6) Interrogativos*

1) Pessoais qual, quais


quantos, quantas
a) retos b) oblíquos quem etc.
eu me, mim, comigo
tu te, ti, contigo (*) = empregados em frases interrogativas
ele ou ela se, si, consigo, o, a, lhe diretas ou indiretas
nós nos, conosco
vós vos, convosco
eles ou elas se, si, consigo, os, as, lhes
5. NUMERAL
c) de tratamento
você(s)
vossa(s) senhoria(s) É a palavra que denota quantidade de pessoas ou
vossa(s) alteza(s) coisas, ou lugar que elas ocupam numa série.
vossa(s) majestade(s) Tipos de numeral:
• Cardinais: um, dois, três, quatro etc.
• Ordinais: primeiro, segundo, terceiro, quarto etc.
2) Possessivos • Multiplicativos: duplo ou dobro, triplo, quá-
meu(s), minha(s) druplo etc.
teu(s), tua(s) • Fracionários: meio, terço, onze avos etc.
seu(s), sua(s)
nosso(s), nossa(s) Exemplos
vosso(s), vossa(s)
seu(s), sua(s) “São três palavras e o mundo inteiro as
conhece...”
“A primeira vez a gente nunca esquece.”
3) Demonstrativos Paguei o dobro pelo mesmo brinquedo.
Tomei meio copo de vinho.
este(s), esta(s), isto
esse(s), essa(s), isso
aquele(s), aquela(s), aquilo
o(s), a(s), o 6. VERBO

↑ ↑ ↑
= aquele (s) = aquela(s) = aquilo É a palavra que, exprimindo ação ou apresentando
tal, tais etc. estado ou mudança de um estado a outro, pode fazer
indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz.

– 85
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❑ Flexão do verbo
7. ADVÉRBIO
• Pessoa e Número
1.a pessoa singular → canto É uma palavra que modifica o verbo, o adjetivo e
2.a pessoa singular → cantas até outro advérbio, acrescentando-lhes uma circunstân-
3.a pessoa singular → canta cia (de tempo, de modo, de intensidade etc.).

1.a pessoa plural → cantamos Exemplos


2.a pessoa plural → cantais
3.a pessoa plural → cantam
Levanto - me cedo.
• Tempo
presente → canto (advérbio de tempo)
verbo
perfeito → cantei
pretérito
{ imperfeito → cantava
mais-que-perfeito → cantara Andávamos devagar.
(advérbio de modo)
presente → cantarei verbo
futuro
{ dodo pretérito → cantaria
A noiva estava muito linda .
• Modo
Indicativo: canto, cantei, cantarei. adjetivo
Subjuntivo: cante, cantasse, cantar. advérbio de intensidade
afirmativo → canta tu
Imperativo
{ negativo → não cantes tu Levanto-me bastante cedo .
• Voz advérbio
Ativa: Venderam a casa. de tempo
Passiva Analítica: A casa foi vendida. advérbio de intensidade
Passiva Sintética: Vendeu-se a casa.
Reflexiva: Caio machucou-se.
❑ Locução adverbial
❑ Locução verbal
É a expressão que tem a função de advérbio. Inicia-
São dois ou mais verbos com o mesmo valor de um
se ordinariamente por uma preposição.
deles.

Exemplos Exemplos

Vou partir de madrugada. (= partirei)


Voltei do passeio a pé.
Estava começando a ventar. (= ventava)

Meu pai fazia tudo às claras.


❑ Aspecto verbal
“Entenda-se aspecto verbal como o momento em
que a ação é ‘fotografada’.”
(Edison Luiz Lombardo)
Exemplos 8. PREPOSIÇÃO

a) aspecto incoativo (= a ação está no seu É a palavra que, posta entre duas outras, estabele-
início). ce uma subordinação da segunda à primeira.
Começou a chover.
Exemplos
b) aspecto durativo ou cursivo (= a ação
está transcorrendo ou durando).
Casa de Paulo.
Continua chovendo.
Necessito de você.
c) aspecto conclusivo (= a ação está
Creio em você.
concluída ou terminada).
Parou de chover. Útil a todos.

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❑ Locução prepositiva ❑ Locução conjuntiva


É a expressão que tem o mesmo valor de uma É a expressão que tem a função de uma conjunção.
preposição.
Exemplos
Exemplos
Nós saímos assim que ela havia chegado.

“Ando à procura de espaço ...” Por mais que ele explicasse, eu não
(CM) entendia nada.

Fiquei ao lado de Pedro.


10. INTERJEIÇÃO

É a palavra com que traduzimos os nossos estados


Quadro-Resumo das preposições emotivos.
– a, ante, após, até Exemplos
– com, contra
– de, desde Viva!, oh!, ah!, olá!, psiu!, bem!, eh!, bravo!,
– em, entre oxalá! etc.
– para, per, perante, por
– sem, sob, sobre
– trás ❑ Locução interjectiva
É a expressão que tem o mesmo valor de uma
interjeição.
“Essas preposições se denominam também
essenciais, para se distinguirem de certas palavras Exemplos
que, pertencendo normalmente a outras classes,
funcionam às vezes como preposições e, por isso, se “Virge Maria! Que foi isto, maquinista?”
dizem preposições acidentais. (Manuel Bandeira)
Assim: conforme, consoante, durante, exceto, me- Ora bolas! Não me perturbes!
diante, salvo, segundo, tirante, visto etc.”

(Celso Cunha e Lindley Cintra)


OBSERVAÇÃO COMPLEMENTAR
9. CONJUNÇÃO A NGB classifica à parte certas palavras e
locuções, pois elas não se referem a substantivo,
É a palavra que liga orações, coordenando ou subor- verbo, adjetivo, advérbio e também não fazem
dinando-as; ou, dentro da mesma oração, coordena ligação entre palavras ou orações.
São as chamadas palavras denotativas de
palavras que tenham o mesmo valor ou função.
1. Inclusão: até, inclusive, também.
❑ Tipos de conjunção Até eu iria à festa ...
a) Coordenativas: Vem agora ou perdes a vez. 2. Exclusão: apenas, só, exceto, salvo.
Exemplo Apenas o filho caçula ficou com os avós.
3. Designação: eis, por alcunha, vulgo.
“A voz e as saias pertenciam a uma
Eis o prêmio tão cobiçado.
mocinha morena...”
(M. de Assis ) 4. Realce: cá, é que, lá, só, que.
Eu sei lá o que você quer!
5. Retificação: aliás, ou melhor, ou antes.
b) Subordinativas: Espero que você saia logo.
O cobrador viera sábado, ou melhor, sexta-
Exemplo feira.
6. Explicação: isto é, por exemplo, a saber.
Veja se ele já chegou.
Só queríamos uma coisa, ou seja, liberdade.

– 87
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MÓDULO 6 Dissertação – Coeão


Uma dissertação bem redigida apresenta, necessariamente, perfeita articulação de ideias. Para obtê-la, é
necessário promover o encadeamento semântico (significado, ideias) e o encadeamento sintático (mecanismos que
ligam uma oração à outra). A coesão (elemento da frase A retomado na frase B) é obtida, principalmente, por meio
dos elementos de ligação que proporcionam as relações necessárias à integração harmoniosa de orações e
parágrafos em torno de um mesmo assunto (eixo temático).
Com base em um levantamento elaborado por Othon Moacyr Garcia (Comunicação em Prosa Moderna), rela-
cionamos os elementos de coesão mais usuais, agrupados pelo sentido.

Prioridade, relevância
{ em primeiro lugar, antes de mais nada, primeiramente, acima de tudo, preci-
puamente, principalmente, primordialmente, sobretudo.

{
então, enfim, logo, logo depois, imediatamente, logo após, a princípio, pouco
Tempo (frequência, antes, pouco depois, anteriormente, posteriormente, em seguida, afinal, por fim,
duração, ordem, finalmente, agora, atualmente, hoje, frequentemente, constantemente, às vezes,
sucessão, eventualmente, por vezes, ocasionalmente, sempre, raramente, não raro, ao
anterioridade, mesmo tempo, simultaneamente, nesse ínterim, nesse meio tempo, enquanto,
posterioridade) quando, antes que, depois que, logo que, sempre que, assim que, desde que,
todas as vezes que, cada vez que, apenas, já, mal.

igualmente, da mesma forma, assim também, do mesmo modo, similarmente,


Semelhança,
comparação,
conformidade { semelhantemente, analogamente, por analogia, de maneira idêntica, de
conformidade com, de acordo com, segundo, conforme, consoante sob o mesmo
ponto de vista, tal qual, tanto quanto, como, assim como, bem como, como se.

Condição, hipótese { se, caso, salvo se, contanto que, desde que, a menos que etc.
Adição, continuação
{ além disso, (a)demais, outrossim, ainda mais, ainda por cima, por outro lado,
também e as conjunções aditivas (e, nem, não só ... mas também etc.).

Dúvida
{ talvez, provavelmente, possivelmente, quiçá, quem sabe, é provável, não é certo,
se é que.

Certeza, ênfase
{ decerto, por certo, certamente, indubitavelmente, inquestionavelmente, sem dúvi-
da, inegavelmente, com toda a certeza.

Surpresa, imprevisto
{ inesperadamente, inopinadamente, de súbito, imprevistamente, surpreendente-
mente, subitamente, de repente.

Ilustração,
esclarecimento { por exemplo, isto é, quer dizer, em outras palavras, ou por outra, a saber.

Propósito, intenção,
finalidade { com o fim de, a fim de, com o propósito de, para que, a fim de que.

Lugar, proximidade,
distância { perto de, próximo a ou de, junto a ou de, dentro, fora, mais adiante, aqui, além,
acolá, lá, ali, algumas preposições e os pronomes demonstrativos.

Resumo, recapitulação,
conclusão { em suma, em síntese, em conclusão, enfim, em resumo, portanto, assim, dessa
forma, dessa maneira, logo, pois.

{
por consequência, por conseguinte, como resultado, por isso, por causa de, em
Causa e consequência, virtude de, assim, de fato, com efeito, tão… que, tanto… que, tal… que,
explicação tamanho… que, porque, porquanto, pois, que, já que, uma vez que, visto que,
como (= porque), portanto, logo, pois (posposto ao verbo), que (= porque).

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Contraste, oposição,
restrição, ressalva { pelo contrário, em contraste com, salvo, exceto, menos, mas, contudo, todavia,
entretanto, embora, apesar de, ainda que, mesmo que, posto que, conquanto, se
bem que, por mais que, por menos que, no entanto, não obstante.

Alternativas { ou ... ou, ora ... ora, quer ... quer, seja ... seja, já ... já, nem ... nem.
Proporcionalidade { à proporção que, à medida que, ao passo que, quanto mais, quanto menos.
Segundo Celso Cunha, certas palavras têm classificação à parte, por isso convém “dizer apenas palavra ou
locução denotativa” de
a) inclusão: até, inclusive, mesmo, também etc.
b) exclusão: apenas, exceto, salvo, senão, só, somente etc.
c) designação: eis
d) realce: cá, lá, é que, só etc.
e) retificação: aliás, ou antes, isto é, ou melhor etc.
f) situação: afinal, agora, então, mas etc.

Exemplo de texto dissertativo com elementos de coesão destacados:

Viver é perigoso, mas navegar é preciso

O mundo moderno fez da segurança sua maior obsessão.


Nos países desenvolvidos tudo é calculado para reduzir a margem de risco ao
mínimo, seja nas aplicações financeiras, nos negócios, nos contratos, nas cirurgias,
nos automóveis, nos aviões, nos bancos, nas casas, nas lojas, nas ruas, no trânsito,
na conduta dos pedestres, tudo coberto e supervisionado pela informática da mais
alta precisão. E, no entanto, as bolsas despencam, arrastando consigo países
inteiros, os negócios fracassam, os aviões caem misteriosamente, os bancos, as
casas, as pessoas são assaltadas, os circuitos de segurança falham. (...)

A preocupação exagerada com a segurança não evitou duas guerras mundiais


devastadoras, nem eliminou bolsões vergonhosos de miséria num mundo cada vez
mais rico, e muito menos impediu o surgimento dos Estados totalitários e autoritários.
(...)

A vida humana não é possível sem certa margem de segurança (o conceito, as


crenças sociais, a ciência, a lei, os paradigmas, a religião, a tecnologia etc.), mas os
instrumentos de segurança não podem abafar nem paralisar a vida em sua esponta-
neidade e em seu impulso criador. Não são feitos para substituir a vida, e sim para
assegurá-la. Em outras palavras: a segurança só tem sentido e valor como atri-
buto da vida em movimento, da vida em expansão, em busca de novos horizontes; e
perde o valor e o sentido quando degenera na malha de aço que cai sobre nossos
ombros e trava por completo nossa liberdade de ação. (...)

Viver é perigoso porque – como ensina o filósofo Nietzsche – a vida nos é dada,
mas não nos é dada feita. Temos nós mesmos de fazer nossa vida, a cada passo, a
cada instante, escolhendo sempre a atitude, a ideia, a ação, a palavra adequada a
cada situação, sob risco de perdição. O perigo mora dentro da vida, é intrínseco a
ela, não sobrevém de fora, como parece.
Viver é perigoso, mas navegar é preciso.

(Gilberto de Mello Kujawski, O Estado de S. Paulo, texto adaptado.)

– 89
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MÓDULO 7 Figuras de Palavra


DENOTAÇÃO – CONOTAÇÃO A fusão de sensações físicas e
q Metáfora psicológicas também é sinestesia:
Há dois níveis de significado: um, É uma comparação abreviada, “ódio amargo”, “alegria ruidosa”, “pai-
imediato, direto, chamado denotação; que dispensa o uso dos conectivos xão luminosa”, “indiferença gelada”.
outro, figurado, associativo, chamado (= conjunções) comparativos; é uma
Exemplo
conotação. comparação subjetiva. Normalmente
Tocava uma valsa que era boa,
Na denotação, o significado da vem com o verbo de ligação claro ou
deixando aquele gosto de tristeza
palavra ou expressão é encontrado subentendido na frase.
no dicionário. no ar.
Exemplos (Mário de Andrade)
Exemplo ...a vida é cigana
O barco foi levado pela corrente. q Antonomásia
É caravana
É pedra de gelo ao sol. Consiste em substituir um nome
A conotação é o sentido figu- próprio por uma qualidade, atributo
(Geraldo Azevedo/Alceu Valença)
rado, associativo, dando margem a ou circunstância que individualiza o
variadas interpretações. É a explora- Encarnado e azul são as cores do ser e notabiliza-o.
ção do aspecto semântico (= signi- meu desejo.
ficado) da palavra, que ganha um Exemplos
(Carlos Drummond de Andrade)
novo sentido em um determinado O herói manchego (= Dom Qui-
contexto. q Comparação xote).
Consiste em aproximar dois ele- O filósofo de Genebra (= Calvino).
Exemplo mentos que se identificam, ligados O águia de Haia (= Rui Barbosa).
A gente vai contra a corrente / até por conectivos comparativos explíci-
não poder resistir, / na volta do barco tos: como, tal qual, tal como, Em pedra-sabão, o Aleijadinho
é que sente / o quanto deixou de que, que nem. Também alguns ver- esculpiu a história de uma época.
cumprir. bos estabelecem a comparação: (Aleijadinho = Antônio Francisco
(Chico Buarque) parecer, assemelhar-se e outros. Lisboa)
FIGURAS DE LINGUAGEM Exemplo
q Metonímia
As figuras de linguagem ou de Estava mais angustiado que um
goleiro na hora do gol, quando você Consiste na troca de uma palavra
estilo são empregadas para valorizar por outra, de tal forma que a palavra
o texto, tornando a linguagem mais entrou em mim como um sol no quintal.
(Belchior) empregada lembra, sugere e retoma
expressiva. É um recurso linguís- a que foi omitida.
tico para expressar de formas q Catacrese
diferentes experiências co- É o emprego de um termo em lu- Exemplos
muns, conferindo originalidade, gar de outro para o qual não existe O fazendeiro se esquece dos
emotividade ao discurso, ou tor- uma designação apropriada. suores (fadigas, cansaços), quando
nando-o poético. vê as tulhas a transbordar e a fazen-
As figuras revelam muito da sen- Exemplos da prosperar.
sibilidade de quem as produz, tra- – folha de papel
duzindo particularidades estilísticas Leio Graciliano Ramos. (livros,
– braço de poltrona
do autor. A palavra empregada em obras)
– céu da boca
sentido figurado, conotativo, passa a – pé da montanha Bebi um martíni. (vermute)
pertencer a outro campo de signifi- – boca da noite
cação, mais amplo e criativo. – O barco descia tranquilamente Comprei um panamá. (chapéu de
As figuras de linguagem classifi- o leito do rio ao pé da monta- Panamá)
cam-se em nha.
a) figuras de palavra; Tomei um Danone. (iogurte)
q Sinestesia
b) figuras de pensamento;
c) figuras de construção ou sinta- Consiste na fusão harmônica de, Qualquer Freud de porta de ven-
xe. no mínimo, dois dos cinco sentidos da pode explicar o meu sonho, mas
físicos. nunca poderá roubá-lo. (o autor pela
FIGURAS DE PALAVRA
Exemplo obra)
Consistem no emprego de um Vem da sala de linotipos a doce (Paulo Mendes Campos)
termo com sentido diferente daquele (gustativa) Uma só árvore lhes dá o vestido,
convencionalmente empregado, a fim música mecânica. e as armas, e a casa e a embarca-
de se conseguir um efeito mais (auditiva) ção. (a matéria pelo produto)
expressivo na comunicação. (Carlos Drummond de Andrade) (Padre Vieira)
90 –
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Alguns autores, em vez de me- Exemplos Corra, não pare, não pense
tonímia, classificam como sinédo- A cidade inteira viu assom- demais, repare essas velas no cais...
que quando se têm a parte pelo brada, de queixo caído, o pistoleiro (a parte pelo todo)
todo e o singular pelo plural. sumir de ladrão, fugindo nos cascos (Geraldo Azevedo/Alceu Valença)
de seu cavalo. (singular pelo plural)
(José Cândido de Carvalho)

MÓDULO 8 Figuras de Pensamento


As figuras de pensamento são re- dável. Consiste em atribuir movimentos,
cursos de linguagem que se referem ao Exemplo ação, fala, sentimento, enfim, caracteres
significado das palavras, ao seu aspecto Si alguma cunhatã se aproximava próprios de seres animados a seres
semântico. dele para fazer festinha, Macunaíma imaginários ou inanimados.
FIGURAS DE PENSAMENTO punha a mão nas graças dela, cunhatã Exemplo
se afastava.
q Antítese O vento beija meus cabelos
(Mário de Andrade) As ondas lambem minhas pernas
Consiste na aproximação de palavras
de sentido oposto, isto é, no emprego de q Gradação O sol abraça o meu corpo.
termos com significados antagônicos. Consiste na enumeração de ideias (Lulu Santos/Nelson Motta)
em ordem gradativa, visando a um efeito
Exemplo de intensificação. q Apóstrofe
Quando um muro separa É uma interpelação, um chamado direto
uma ponte une Exemplo
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal a pessoas (presentes ou ausentes, vivas ou
Se a vingança encana, mortas) e até mesmo a seres inanimados,
o remorso pune [arte que ela,
Rota, baça, nojenta, vil... imaginários.
você vem me agarra, alguém
vem me solta Sucumbiu... Exemplos
você vai na marra, ela (Raimundo Correa) Ó mar, por que não apagas
um dia volta. q Hipérbole Co'a espuma de tuas vagas
(Paulo César Pinheiro) Consiste no exagero de uma ideia a De teu manto este borrão?
q fim de proporcionar uma imagem (Castro Alves)
Paradoxo
Consiste na aproximação, não emocionante ou chocante. Tu não verás, Marília, cem cativos...
apenas de palavras de sentido oposto, Exemplo (Tomás Antônio Gonzaga)
mas de ideias que se contradizem. É o Se eu pudesse contar as lágrimas
dizer e o desdizer. O paradoxo leva-nos q Perífrase
que chorei na véspera e na manhã
a enunciar uma verdade com aparência de Também chamada circunlóquio, a
somaria mais que todas as vertidas desde
mentira. perífrase consiste na substituição de uma
Adão e Eva.
palavra por uma série de outras, de modo
Exemplos (Machado de Assis)
que estas se refiram àquela indiretamente.
Amor é fogo que arde sem se ver q Ironia
É ferida que dói e não se sente É o processo pelo qual o autor diz o Exemplos
É um contentamento descon- contrário do que pensa, com intenção Última flor do Lácio, inculta e bela,
[tente depreciativa e sarcástica. és a um tempo esplendor e sepultura.
É dor que desatina sem doer. (Olavo Bilac)
(Camões) Exemplo
Moça linda, bem tratada, três séculos flor do Lácio = Língua Portuguesa
O mito é o nada que é tudo. de família, burra como uma porta: um
(Fernando Pessoa) rei da selva = leão
amor.
q Eufemismo (Mário de Andrade)
astro-rei = sol
Consiste em um recurso de ex- abóbada celeste = céu
pressão pelo qual se atenua, suaviza uma q Prosopopeia ou Cidade-Luz = Paris
verdade tida como penosa ou desagra- personificação Livro Sagrado = Bíblia

MÓDULO 9 Figuras de Sintaxe


As figuras de sintaxe ou de sínquise e hipálage; 6) polissíndeto 12) silepse
construção dizem respeito a desvios • ruptura: anacoluto;
em relação à concordância entre • concordância ideológica: 1. ANÁFORA
os termos da oração, sua ordem, silepse. Consiste na repetição da mesma
possíveis repetições ou omissões. Portanto, são figuras de construção palavra no início de um período, frase ou
Elas podem ser construídas por ou sintaxe: verso.
• omissão: assíndeto, elipse e 1) assíndeto 7) anástrofe Exemplo
zeugma; 2) elipse 8) hipérbato Dentro do tempo o universo na imensidão.
• repetição: anáfora, pleonasmo e 3) zeugma 9) sínquise Dentro do sol o calor peculiar do verão.
polissíndeto; 4) anáfora 10) hipálage Dentro da vida uma vida me conta uma
• inversão: anástrofe, hipérbato, 5) pleonasmo 11) anacoluto [estória que fala de mim.
– 91
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Dentro de nós os mistérios do espaço Hemorragia de sangue. Aquela mina de ouro, ela não ia deixar
[sem fim! Repetir de novo. que outras espertas botassem as mãos.
(Toquinho/Mutinho) (José Lins do Rego)
5. ELIPSE
2. ASSÍNDETO Consiste na supressão de uma ou 9. HIPÁLAGE
Ocorre quando orações ou palavras mais palavras facilmente subentendidas Ocorre hipálage quando há inversão
que deveriam vir ligadas por conjunções na frase. Geralmente essas palavras são da posição do adjetivo (uma qualidade
coordenativas aparecem separadas por pronomes, conjunções, preposições e que pertence a um objeto é atribuída a
vírgulas. verbos. outro, na mesma frase).
Exemplo Exemplos Exemplos
Não nos movemos, as mãos é que se es- Compareci ao Congresso. (eu) ...em cada olho um grito castanho de
tenderam pouco a pouco, todas quatro, Espero venhas logo. (eu, que, tu) ódio. (Dalton Trevisan)
pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Ele dormiu duas horas. (durante) (...em cada olho castanho um grito de
(Machado de Assis) ódio)
No mar, tanta tormenta e tanto dano.
3. POLISSÍNDETO (verbo Haver) ...as lojas loquazes dos barbeiros. (Eça
Consiste na repetição intencional de (Camões) de Queirós)
uma conjunção coordenativa mais vezes 6. ZEUGMA (...as lojas dos barbeiros loquazes)
do que exige a norma gramatical. Consiste na omissão de palavras já
Exemplo expressas anteriormente. 10. SILEPSE
Há dois dias meu telefone não fala, nem Exemplos q Silepse de gênero
ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Foi saqueada a vila, e assassinados os Não há concordância de gênero do
(Rubem Braga) partidários dos Filipes. (Camilo Castelo adjetivo ou pronome com a pessoa a que
Branco) se refere.
4. PLEONASMO Exemplos
Rubião fez um gesto, Palha outro: mas Pois aquela criancinha, longe de ser
Consiste na repetição de uma ideia já
quão diferentes. (Machado de Assis) um estranho... (Rachel de Queiroz)
sugerida ou de um termo já expresso.
7. HIPÉRBATO OU INVERSÃO V. Ex.a parece magoado... (Carlos
q Pleonasmo literário Consiste na alteração da ordem direta Drummond de Andrade)
É um recurso estilístico que enriquece dos elementos na frase. q Silepse de pessoa
a expressão, dando ênfase à mensagem. Exemplos
Exemplos Não há concordância da pessoa
Passeiam, à tarde, as belas na avenida. verbal com o sujeito da oração.
Não os venci. Venceram-me eles a mim. (Carlos Drummond de Andrade)
(Rui Barbosa) Exemplos
Paciência tenho eu tido... (Antônio Nobre) Os dois ora estais reunidos... (Carlos
Morrerás morte vil na mão de um forte. Drummond de Andrade)
(Gonçalves Dias) 8. ANACOLUTO Na noite do dia seguinte, estávamos
Interrupção do plano sintático com que reunidos algumas pessoas. (Machado
q Pleonasmo vicioso se inicia a frase, alterando-lhe a sequência de Assis)
Frequente na linguagem informal, do processo lógico. A construção do
cotidiana, considerado vício de linguagem. período deixa um ou mais termos q Silepse de número
Deve ser evitado. desprendidos dos demais e sem função Não há concordância do número
Exemplos sintática definida. verbal com o sujeito da oração.
Ouvir com os ouvidos. Exemplos Exemplo
Rolar escadas abaixo. E o desgraçado, tremiam-lhe as pernas. Corria gente de todos os lados, e grita-
Colaborar juntos. (Manuel Bandeira) vam. (Mário Barreto)

MÓDULO 10 Figuras Sonoras


q Aliteração q Paronomásia na trama do rumor suas nervuras
Consiste na repetição do mesmo Emprego de vocábulos semelhantes inseto múltiplo reunido
fonema consonantal, geralmente em na forma ou na prosódia, mas diferentes para compor o zanzineio surdo
posição inicial da palavra. no sentido. circular opressivo
Exemplo zunzin de mil zonzons zoando
Exemplo em meio à pasta de calor
Vozes veladas veludosas vozes Berro pelo aterro pelo desterro
volúpias dos violões, vozes veladas. da noite em branco
berro por seu berro pelo seu erro
(Cruz e Sousa) quero que você ganhe que você (Carlos Drummond de Andrade)
[me apanhe
q Assonância sou o seu bezerro gritando mamãe. Os ratos é que roíam a paciência.
Consiste na repetição do mesmo (Caetano Veloso) Corrote, corrote era como se roessem
fonema vocal ao longo de um verso ou qualquer coisa dentro de mim.
poesia. q Onomatopeia (Graciliano Ramos)
Consiste na imitação aproximada de
Exemplo
um ruído ou som produzido por seres
Sou Ana, da cama, Observação
animados e inanimados.
da cana, fulana, bacana Os verbos que exprimem os sons
Sou Ana de Amsterdam. Exemplos são considerados onomatopaicos, como
(Chico Buarque) Vai o ouvido apurado cacarejar, tiquetaquear, miar etc.
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