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ARTE COM E PARA O POVO: A ATUAÇÃO DO COLETIVO

CAMARADAS COMO ARMA PARA O EMPODERAMENTO


SOCIAL.
Ricardo Alves da Silva 1

Marta Regina da Silva Amorim 2

RESUMO

Observa-se que historicamente a arte esteve ligada a elite, ainda hoje o grande público é
excluído do processo do pensar e fazer-artístico do circuito oficial das artes. Criaram-se
mundos distintos, já que a arte feita nas periferias é em muitos casos excluída e alvo de
preconceito por parte dessa elite artística. Através deste trabalho pretendemos apresentar
aspectos da história da Comunidade do Gesso e de como o Coletivo Camaradas têm
atuado nesta comunidade.
PALAVRAS-CHAVE: Coletivo Camaradas; arte; empoderamento.

Introdução

Desde os primórdios da humanidade a arte faz parte da vida das pessoas,


apresentando através de objetos e formas a sua percepção do mundo. Em cada sociedade
a arte teve uma função diferente. Com o desenvolvimento da propriedade privada,
relações de trabalho e sociedade de classe, a arte foi utilizada pela elite como forma de
exclusão social. Fischer (1983) propõe uma arte que possa além de encantar, leve a uma
reflexão e transformação social. A arte deve esclarecer e estimular a ação dos sujeitos,
sem eliminar o resíduo de magia inerente a esta atividade. Para o autor “A arte é necessária

1
Graduado em Geografia pela Universidade Regional do Cariri-URCA Especialista em Educação Pobreza
e Desigualdade Social pela Universidade Federal do Ceará-UFC
2
Graduado em História pela Universidade Regional do Cariri-URCA, Mestre em História pela
Universidade Federal de Alagoas - UFAL
a fim de que o homem possa conhecer e transformar o mundo. Mas é igualmente
necessária em virtude da magia que lhe é inerente” (FISCHER, 1983:18).

Diante disto, pretendemos refletir sobre o processo artístico desenvolvido pelo


Coletivo Camaradas na Comunidade do Gesso, tentando compreender como a atuação
deste coletivo está relacionada a posição ideológica/política de seus membros. E como
atuação deste coletivo têm contribuído no processo de conscientização social e
empoderamento dos moradores da Comunidade do Gesso, que foi historicamente
estigmatizada e esquecida pelas políticas públicas desta cidade.

Utilizaremos como metodologia para a elaboração deste trabalho a pesquisa


bibliográfica feita através de livros, artigos científicos e sites que falam sobre arte urbana,
território e empoderamento social. Buscaremos compreender mais sobre a história do
Gesso através de trabalhos científicos que falam sobre a formação deste lugar e de
memórias dos próprios moradores da comunidade. Além da pesquisa bibliográfica,
utilizaremos como fontes de pesquisa, imagens, pois estas podem nos ajudar a conhecer
qual o espaço ocupado e os sujeitos envolvidos nas ações dentro da comunidade. Ainda
utilizaremos como fontes de pesquisa folders, livros, materiais impressos e virtuais
elaborados pelo Coletivo Camaradas, que tem caráter informativo e formativo sobre as
diretrizes que sustentam o trabalho deste coletivo.

A Comunidade do Gesso

Comunidade do Gesso é o nome utilizado para se referir ao local existente entre


os bairros Centro, Pinto Madeira, Santa Luzia e São Miguel na cidade do Crato. No início
do século XX, nesta localidade chegavam trens para carregar pedras de gesso que eram
levadas para Fortaleza. Ali começou a surgir um aglomerado de casas, que posteriormente
tornou-se um espaço de prostituição na cidade. A comunidade acima referida constituiu-
se como uma área estigmatizada e de vulnerabilidade social por conta da prostituição e
do tráfico de drogas, onde abrigou por cerca de quatro décadas a maior zona de
prostituição da Região Sul do Estado do Ceará.

Segundo Andrade (2000), as casas de meretrícios eram vistas como caso de


polícia na cidade do Crato na primeira metade do século XX. A intervenção policial
nesses estabelecimentos tinha o apoio da Igreja Católica e de parte da população da
cidade, que tinha medo de que as práticas sexuais presentes nestes locais prejudicassem a
“moral e bons costumes” pertencentes às famílias cratenses.

De acordo com Cortez (2000), desde o século XIX a cidade do Crato passou por
um processo de higienização dos espaços e corpos, pautados em um projeto civilizador
cratense. Observa-se que na primeira década do século XX, com a forte presença da Igreja
Católica na cidade, a ordem pública era vigiada por esta instituição que denunciava os
sambas, jogatinas, namoros considerados indecentes e casas de meretrícios. Tudo o que
atentava contra a moralidade cristã era cobrado para que fosse punido pela polícia.

Entre as décadas de 1950 e 1960 houve um esforço da elite cratense em criar


instituições e espaços que fortalecessem a ideia de que o Crato era uma cidade civilizada
e moderna. Por meio de ordem judicial, na década de 1960, foram retiradas as casas de
prostituição do centro da cidade. Como já existiam casas de prostituição em torno da linha
férrea, este núcleo cresceu ainda mais, tornando-se uma extensa área de prostituição.

Ao fim da procura intensa por casas de prostituição, a comunidade foi


estigmatizada por apresentar uma economia ligada ao tráfico de drogas, recebendo o título
de “Crakcolandia”, em referência a uma região da cidade de São Paulo onde
historicamente desenvolveu-se o tráfico de drogas e o uso de crack. Diante disto, podemos
perceber que além de estigmatizada, esta comunidade vem sendo pouco atendida pelo
poder público, tornando-se espaço de vários problemas sociais.

Alexandre Lucas, que passou sua infância na Comunidade do Gesso, e é um dos


fundadores do Coletivo Camaradas, descreve como este espaço conhecido como “Cabaré
do Gesso” era dividido pela linha do trem:

A zona de prostituição abrigou aproximadamente 4 quadras, com bares,


boates e quartos para locação e moradia das prostitutas, esse espaço por
décadas se tornou um local fechado, e desintegrado da vida social do
seu entorno e excluído das políticas públicas. A zona de prostituição
provocou dentro da comunidade um processo de desintegração no que
diz respeito a circulação, organização e identidade comunitária. A linha
do trem, por exemplo, é um dos elementos simbólicos de divisão da
comunidade, de interrupção de ações conjuntas e de comunicação entre
pessoas que vivem realidades semelhantes (LUCAS, 2018).
Atualmente, a Comunidade do Gesso é composta em sua maioria por uma população
negra, com baixa escolaridade e renda. A maior parte da renda de seus moradores vem
dos pequenos comércios, prestação de serviços e benefícios sociais. Fisicamente, a
comunidade apresenta problemas com relação a falta de infra-estrutura urbanística.

Recentemente o poder público construiu uma quadra de futebol na comunidade.


Neste espaço os jovens da comunidade se organizam em torno do futebol. Entre as
atividade culturais existentes estão a malhação do judas e quadrilhas juninas. Dentre as
instituições e ongs que atuam na comunidade estão o Projeto Nova Vida fundado em
1992, a SCAN (Sociedade de Auxílio aos Necessitados) fundada em 1940 e o Coletivo
Camaradas fundado em 2007.

O Coletivo Camaradas

O Coletivo Camaradas foi criado por um grupo de artistas em 2007, após um


processo que teve início em 2005, quando um grupo de artistas da região do Cariri se
reuniram para cobrar da Secretaria de Cultura, políticas culturais que favorecessem a
Região do Cariri. Esses artistas participaram de intercâmbios em São Paulo, onde tiverem
contato com ateliês, artistas, e galerias. Ao chegarem no Cariri, estes artistas tentaram
elaborar um movimento na região, mas por divergências de interesses, este grupo não
continuou. Posteriormente, Alexandre Lucas, um dos artistas presentes nesse processo,
criou um grupo de poesia coletiva com estudantes da Universidade Regional do Cariri
(URCA), Michael Marques, na época estudante do Curso de Ciências Sociais e a
estudante de Letras, Luciana (a qual participou de poucas atividades) o resultado desse
processo foi um sarau intitulado “Os Camaradas” que se apresentou na Mostra Sesc Cariri
de Cultura.

Alexandre Lucas, artista, estudante de pedagogia, militante de movimentos


sociais, e admirador do marxismo, resolveu prosseguir com este grupo e encontrou na
Comunidade do Gesso - comunidade em que viveu enquanto criança - o espaço para a
atuação do Coletivo Camaradas. Atualmente, este grupo reúne artistas, não artistas,
estudantes, professores, pesquisadores, ativistas e moradores da Comunidade do Gesso.

Com a experiência dentro da comunidade e as vivências dos componentes, as


diretrizes políticas e pedagógicas desse coletivo foram sendo definidas ao longo desses
anos. É através da prática diária que ocorre o processo de reflexão e ação do Coletivo
Camaradas:
Somos um coletivo que declaradamente se reconhece como uma
organização política de esquerda e que busca compreender a realidade
a partir de uma perspectiva marxista. Atuamos no campo das artes, na
defesa por políticas públicas para a cultura, em processos organizativos
de empoderamento popular e na luta pela democratização da produção
e da acessibilidade do conhecimento cientifico, cultural e tecnológico
como forma de ampliar a visão social de mundo das camadas populares
e contribuir para o processo de transformação social (LUCAS, 2018).

A perspectiva de atuação do Coletivo Camaradas vê a arte como uma atitude


política que sempre está a serviço ou da classe dominante ou da classe oprimida, mesmo
quando o fazer e pensar artístico não tem este intento. Diante disso, critica-se uma arte
que se faz dentro dos ateliês, pois acredita-se que esta deve fazer parte da vida das pessoas,
sendo fundamental pensar um fazer artístico que inclua as camadas populares. É nesta
perspectiva que os membros do Coletivo Camaradas trabalham, pois buscam dentro do
fazer estético e artístico contribuir para que as camadas populares possam ter acesso à
arte, que muitas vezes está restrita às elites econômicas e intelectuais, buscando um fazer
artístico em que o povo não precise estar apenas como público, mas tenha a possibilidade
de também participar do processo artístico e ou interventivo.

Como dito anteriormente é através da prática e experiência diária dentro da


comunidade, que vão surgindo demandas para novas ações. Dentre as atividades
desenvolvidas pelo Coletivo Camaradas, estão: Trocaria no Gesso, Cine-Gesso, pontos de
leituras nas bodegas (Higinotecas), oficinas, intervenções urbanas e roda de poesia. Para
este trabalho fizemos o recorte de três ações desenvolvidas pelo Coletivo Camaradas que
buscam contribuir para a prática da leitura dos moradores da comunidade.
O entra e sai das mercearias agora tem um motivo a mais para acontecer. Os
livros tomam espaço entre as prateleiras e são oferecidos de forma gratuita para a leitura,
as minibibliotecas foram batizadas de “higinotecas” em homenagem a Antonio Higino,
conhecido por seu trabalho de divulgação da literatura de cordel na cidade. Os
comerciantes têm um papel fundamental, pois a ideia é a de que eles se tornem uma
espécie de ativistas culturais e bibliotecários da comunidade.
O projeto não tem a finalidade de lançar uma proposta assistencialista nas
comunidades, mas dar ênfase ao processo educativo e a inserção política das
comunidades. De acordo com o coletivo, as bodegas estão entre os principais
equipamentos culturais dos bairros, como pontos de informação e encontro da
comunidade. "É um grande fomentador", frisa. O projeto tem exatamente procurado
promover esse fomento na comunidade e pode auxiliar outros grupos a realizarem
iniciativas do gênero, no processo de organização social.

Imagem 1 – Dona Glaucia, da budega do Bonfim, é uma apoiadora do projeto


“higinoteca”. Fonte: Acervo do Coletivo Camaradas

As intervenções urbanas mesmo com toda efemeridade é uma das ações mais
constantes do coletivo camaradas, dentre elas podemos destacar o Poste Poesia.

O Poste Poesia é uma ação colaborativa que consiste em uma intervenção urbana
realizada através da colagem de poesias em postes com a técnica do Lambe - Lambe. Este
trabalho tem o intuito de possibilitar a circulação da leitura poética em espaços não
formais como é o caso dos postes, tornando os espaços um suporte de criatividade. A ação
visa fazer com que as pessoas se deparem com a arte no seu cotidiano, contribuindo para
gerar uma cultura leitora nas comunidades onde acontece a ação.

O nome da ação propõe uma dubiedade da palavra “poste”, pois a mesma é usada
para sinalizar que as poesias são coladas no poste, mas também faz referência a segunda
parte da intervenção, que é a de registrar e “postar” nas redes sociais imagens da ação,
ampliando assim o território de leitura e repercussão da ideia.

Imagem 2 - Crianças da Comunidade do Gesso participando da intervenção Poste Poesia.


Fonte: Ricardo Alves

As poesias fazem parte de um banco de dados de poetas e escritores que é


enviado através de link no google doc, possibilitando assim a descoberta e
empoderamento desses escritores que geralmente não se colocam como poetas, além
disso, esta ação contribui para potencializar a divulgação e circulação das poesias. No ano
de 2017 foi lançado um livro com algumas das poesias enviadas.

Outra ação que tem se destacado e fomentado a criatividade e participação


comunitária dentro do processo são as rodas de poesias, que tem engajado especialmente
as crianças. Geralmente esta atividade acontece uma vez ao mês, e além da leitura de
poesias, também conta com apresentações artísticas. As crianças atuam de forma efetiva
na organização do espaço, apresentação e leitura de poesias.
Imagem 3 - Criança da Comunidade do Gesso apresentando a Roda de Poesia. Fonte:
Acervo do Coletivo Camaradas

Considerações Finais

Através deste trabalho, podemos levantar reflexões sobre como as experiências


do passado ainda estão impressas na memória das pessoas que vivem na Comunidade do
Gesso. Acreditamos que o Coletivo Camaradas vêm contribuindo para que as pessoas
desta comunidade, em especial as crianças, ampliem a sua visão social de mundo, se
enxergando como sujeitos capazes de transformar a realidade social em que vivem.

Atualmente o Coletivo Camaradas atua além da Comunidade do Gesso,


mantendo um constante diálogo com outros coletivos do Brasil. Através de uma atuação
colaborativa e de um trabalho em rede com outros grupos, há o fortalecimento da
consciência política e de empoderamento de outros sujeitos e consequentemente a
transformação de outros espaços.

Defendemos ainda que em cada canto da cidade haja um coletivo, por isso
instigamos a formação de novas organizações por entender que quanto mais grupos
existirem na cidade, maior será a reflexão, produção, circulação e articulação em torno do
pensar e fazer criativo e simbólico da cidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Iarê Lucas de. Da linha do trem pra lá: O discurso sobre a prostituição na
cidade de Crato (1940/1960). Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.

CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato


(1889-1960). 2000. 210f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

LUCAS, Alexandre. Entranhamentos: entre arte, estética, política, cultura e educação.


Disponível em: <camaradas.org/>. Data de acesso: 18 mar. 2016.

LUCAS, Alexandre. O que é mesmo esse Coletivo Camaradas? Disponível em:


<camaradas.org/>. Data de acesso: 20 jan. 2018.

PORO. Manifesto - Por uma cidade lúdica e coletiva, por uma arte pública, crítica e
poética. Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.9, jan./jun. 2013.

RUI, Taniele. Usos da “Luz” e da “cracolândia”: etnografia de práticas espaciais. Rev.


Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n .1, jan./mar. 2014.

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