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Sobre espaços que escapam1

Um movimento de ocupação é, no mínimo, uma linha de fuga que

desdobra-se, que nasce, que ​só é possível a partir de um dispositivo que pretende

um uso constante porém disperso de um espaço, um dispositivo que libera a

passagem de um fluxo apenas na medida em que é possível controlá-lo. Ora, que

tipo de espaço está em voga para que ocupar seja um ato de subversão, de

resistência? Ou melhor, de que maneira esse espaço é utilizado, que tipo de

agenciamento ele produz, através de que estratégias ele atua para que seja possível

que ​– mesmo que traindo a sua intenção primeira - uma dinâmica de ressignificação

dele próprio ocorra?

Nesse sentido, caberia considerar o movimento de ocupação ocorrido no

Centro de Filosofia e Ciências Humanas, na UFSC, como a irrupção de um espaço

de heterotopia (Foucault, 2003)? Ou melhor, poderia-se dizer que ​em algum

momento pôde-se experienciar um espaço-outro durante a ocupação do Centro? Foi

uma experiência que explorou outros caminhos, que pôde em algum nível

experimentar a desterritorialização antes de voltar a ser capturada?2

Num primeiro momento, parece fazer sentido apontar: Não ocupar um espaço

reverbera na possibilidade de sua ocupação.3 O vazio é estratégico porque ele

1
Renata Abel <​renata.abel@live.com​>, graduanda em Ciências Sociais pela UFSC.
2
​Em referência ao modo como uma máquina de guerra é exterior ao aparelho de Estado: enquanto este
tende à desaceleração, cristalização, dominação e captura (estrato, entidade, identidade), aquela tende
à desterritorialização, à imanência, ao nomadismo, à “[...] potência de metamorfose que não cessa de
assombrar as instâncias-entidades formadas.” (Oneto, 2010:150) Mais em “Tratado de Nomadologia: a
máquina de guerra”. Mil platôs, vol. 5, Deleuze-Guattari (1997).
3
Ocupação aqui tomada a partir da maneira com que tem se dado nos movimentos estudantis
brasileiros nestes últimos tempos (movimento dos secundaristas de São Paulo contra à “reestruturação”
de suas escolas; movimentos de secundaristas e universitários contra medidas do governo do
presidente interino Michel Temer, como a PEC 55 e a MP 746/2016)
invoca o poder ​– afinal, o poder não está em lugar nenhum, mas em todos os

lugares.4 Ao mesmo tempo, o poder ​produz o vazio, vazio que é preciso produzir

​ ​ para que seja possível ​governar5 . (Comitê Invisível, 2016:93). Partindo deste ponto,

ocupar parece ser, enfim, um ato que convoca à provocação o comum, o cotidiano,

o já esperado do espaço e o lança no incerto de explorar os seus possíveis e

potentes outros - trazer presença ao espaço vazio produtor e produzido pelo poder.

Com isso, não se pretende afirmar que a condição normal do Centro é vazia por não

estar habitada por pessoas, por não haver trânsito de pessoas ​– inclusive, ocorre

um maior trânsito de sujeitos com o Centro em situação normalizada do que na de

ocupação, pelo que se pôde notar. A questão parece-me ser mais ​a qualidade da

presença dos sujeitos que ocupam e transitam pelo espaço. ​Atualmente, opera-se

numa dinâmica que intensifica-se em ambiguidade, perceptível tanto numa análise

psíquica quanto metafísico-existencial, fazendo com que ocorra um “regime de

semipresença constante, cômoda”6 (Comitê Invisível, 2016:35). Os exemplos

4
“O poder contemporâneo é de natureza arquitetônica e impessoal, e não representativa e pessoal [...]
O poder está em outro lugar, bem fora das instituições, mas no entanto não está escondido. [...]
Ninguém o vê porque todos o têm, o tempo todo, à frente dos olhos - na forma de uma linha de alta
tensão, de uma rodovia, de um semáforo, de um supermercado ou de um programa de computador. E
se está escondido é como uma rede de esgotos, um cabo submarino, a fibra ótica que corre ao longo de
uma linha de trem ou um data center no meio da floresta. O poder é a própria organização deste mundo,
este mundo ​ preparado, configurado, ​designado. Aí está o segredo: não há segredo algum.” (Comitê
Invisível, 2016:99-100)
5
Governar aqui não se refere à prática institucional administrativa de um Estado-nação, mas como “uma
forma muito particular de exercer o poder. [...] Governar é conduzir os comportamentos de uma
população, de uma multiplicidade que é necessário vigiar [...] para maximizar o potencial e orientar a
liberdade. [...] É pôr em funcionamento um conjunto de táticas [discursivas, materiais, emocionais…],
[...] agir a partir de uma sensibilidade permanente à conjuntura afetiva e política de modo a prevenir
tumultos e rebeliões. Agir sobre o meio e modificar continuamente suas variáveis, agir sobre uns para
influenciar a conduta de outros [...] Em suma, é manter uma guerra - que nunca terá tal nome nem
aparência - em praticamente todos os planos pelos quais se movimenta a existência humana. Uma
guerra de influência, sutil, psicológica, indireta.” (Ibid.:80)
6
​Isso pode ser testemunhado, também, a partir de escritos de Reich, Lowen e Xavier, no que aborda as
questões das mudanças dos padrões caracterológicos (​estudo das estruturas de caráter, formadas pela
dinâmica da economia energético-libidinal do sujeito)​, por assim dizer, da modernidade à
contemporaneidade: o caráter neurótico do complexo de Édipo abre caminho para a estrutura psicótica
(Reich, 2014), esquizoide (Lowen, 1982) ou borderline (Xavier, 1997).
sintomáticos deste regime são muitos: Sujeitos que estão ali mas apenas na medida

em que é preciso registrar que por ali passou (lista de presença), ou quando devem

cumprir com alguma proposta avaliativa, apresentando textos de autores que não

eles mesmos em seminários mórbidos e entediantes, ou mesmo, presente numa

aula apenas na medida em que a internet está boa o suficiente para que eu consiga

me distrair dessa situação que eu não queria estar. Ou, mesmo, o trânsito de

pessoas que não se olham, não se cumprimentam, não relacionam-se profunda e

verdadeiramente com os vários outros que transitam nesse espaço ​– e isso não

deve soar como uma acusação cristã-moralista, mas como um convite ao

estranhamento do que nos cerca, do que já é comum.

Inegavelmente, eis alguns fatores que se diferenciam positivamente num

caráter de ocupação: a qualidade, a intensidade da presença parece se

potencializar. Se não é possível considerar o movimento vitorioso por não ter

conseguido seus “objetivos” (a PEC 55 foi aprovada na Câmara e no Senado, a MP

do ensino médio a passos nem tão lentos se concretiza), ao menos, ou

principalmente, pode-se atentar às pequenas experiências que ali se produziram, as

quais buscaram ​– ao menos em algum nível, mesmo que às vezes apenas no

discursivo ​– orbitar entre autonomia, autogestão, auto-organização, senso de

coletivo, preocupação com a manutenção do espaço, produção de relações

horizontais entre estudantes e técnicos, trabalhadores terceirizados e servidores…

“Aí reside o acontecimento: [...] nos encontros que efetivamente ali se produziram.

Eis o que é bem menos espetacular do que ‘o movimento’ ou ‘a revolução’, mas

muito mais decisivo. Ninguém pode antecipar a potência de um encontro.” (Comitê

Invisível, 2016:52)
Tendo isto já em evidência, faz-se oportuno a tentativa de traçar paralelos e

desencontros entre a ocupação do CFH e o conceito de ​heterotopia, levantado por

Foucault em um texto seu intitulado ​Outros espaços, de 1984. Este conceito é

trabalhado em conjunto ao de utopia, ao caracterizá-los como dois grandes tipos de

posicionamentos7 que estão em relação com todos os outros, mas que os

contradizem, “[...] de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o

conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou

pensadas.” (Foucault, 2003:414). Neste sentido, por utopia compreende-se

posicionamentos sem um lugar real, que tendem a ser ou um tipo de sociedade

aperfeiçoada ou o total inverso desta; “[...] espaços que fundamentalmente são

essencialmente irreais.” (Foucault, 2003:415). De modo distinto, as heterotopias

aparecem como

[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria
instituição da sociedade e que são espécies de contraposicionamentos,
espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais [...] todos os outros
posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao
mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares
que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
Iocalizáveís. (Foucault, 2003:415)

Pode-se usar igualmente, para a compreensão da relação entre utopia e

heterotopia, a reflexão que Foucault (2003:415) levanta tendo o ​espelho como uma

espécie de experiência mista desses dois posicionamentos:

O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu


me vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente
atrás da superfície, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de
sombra que me dá a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite
me olhar lá onde estou ausente [...]. Mas é igualmente uma heterotopIa, na
medida em que o espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo,
uma espécie de efeito retroativo; ​é a partir do espelho que me descubro
ausente no lugar em que estou porque eu me vejo lá longe.

7
“Estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de
posicionamentos [não mais de lugares ou extensões]. [...] O posicionamento é definido pelas relações
de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente, podem-se descrevê-Ias como séries,
organogramas, grades.” (Foucault, 2003:412-413)
​Por ser um conceito pouco desenvolvido pelo autor, parece pertinente para

esta análise levar em conta tanto a heterotopia como ​lugar efetivo, lugar que ​é (como

nos exemplos que Foucault traz, caracterizando manicômios, cemitérios e até jardins

como heterotopias); mas principalmente, e é o que mais interessa aqui, considerar

uma ​qualidade heterotópica dos diferentes lugares e posicionamentos; isto é, tentar

palpar, através do esforço analítico e perceptivo, certo potencial de heterotopia que

um posicionamento guarda dentro de si. Essa análise, evidentemente, faz um

paralelo com o próprio jogo analítico de olhar o conceito de dispositivo como um um

conjunto multilinear, um novelo que é perpassado por linhas que o retroalimentam e

por linhas que partem dele, mas que nele não permanecem (Deleuze, 1990).

Tendo isto em vista, experienciar um caráter de ocupação no Centro de

Filosofia e Ciências Humanas parece ser um movimento que reafirma a qualidade

heterotópica incutida nesse posicionamento, explorando uma das linhas de fuga que

se desdobram deste específico dispositivo institucional. Outro aspecto importante

reside em ressaltar que as heterotopias se apresentam de múltiplas formas e

configurações diversas, são “[...] ​diametralmente opostas às ‘formas totalizadoras’

que homogenizam, ou à unicidade e transcendência que remetem ao [...] ‘espaço

sacralizado’ [...]” (Ramos, 2010:6). Essas formas últimas, que buscam a unicidade e

a padronização, caracterizam o paradigma do aparelho do Estado, o qual é definido

pelo movimento de “[...] perpetuação ou conservação dos órgãos de poder. A

preocupação [...] é precisamente esta: conservar.” (Oneto, 2010:152). Levantado

esse ponto, é interessante apontar para uma situação ocorrida na Ocupa CFH que

aparenta ser uma caricatura do movimento de captura do aparelho Estatal frente à

manifestação da multiplicidade que escapa dele próprio: Nos primeiros dias da


ocupação, grande parte das paredes do Centro foram pixadas pelas (os) estudantes

(ocorreu, inclusive, um “pixaço” assumido e escancarado, combinado e decidido

pelas (os) ocupantes); não tardou para ocorrer uma denúncia ao Ministério Público

alegando a “depredação do patrimônio público”. A cena seguinte é constituída por

ocupantes lixando e pintando as paredes que ecoavam os pixos que eles próprios

fizeram – menos do que um julgamento ético-moral 8, mais um episódio sintomático

do movimento de liberação de fluxo e captura, bem como da constatação que o

espaço contemporâneo não é, de todo modo, dessacralizado:

Ora, apesar de todas as técnicas nele investidas, apesar de toda a rede de


saber que permite determiná-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo
talvez não esteja ainda inteiramente dessacralizado (...). Houve, certamente,
uma certa dessacralização teórica do espaço (aquele que a obra de Galileu
provocou), mas talvez não tenhamos ainda chegado à uma dessacralização
prática do espaço. E talvez nossa vida ainda seja comandada por um certo
número de oposições nas quais não se pode tocar, as quais a instituição e a
prática ainda não ousaram atacar: oposições que admitimos como
inteiramente dadas: por exemplo, entre o espaço privado e o espaço público,
entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o
espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço de trabalho; todos são ainda
movidos por uma secreta sacralização. (Foucault, 2003:413)

​Em suma, pode-se dizer que o Centro em caráter de ocupação pôde

experienciar em níveis diferentes um outro uso e configuração do espaço, bem

como o retorno às práticas comuns do mesmo. De qualquer maneira, um olhar

atento ao espaço na contemporaneidade se faz necessário e aparece como fator

relevante para a análise do campo de lutas e forças que continuamente se embatem

e intensificam-se. O espaço aparece, como já discutido, menos como um lugar fixo

que guarda em si o esperado e mais como produto e produtor das relações de poder

8
​Embora vale ressaltar que “A insurreição não respeita nenhum formalismo, nenhum procedimento
democrático. Ela impõe, como qualquer manifestação de envergadura, sua própria forma de utilização
do espaço público.” (Comitê Invisível, 2016:64)
(e de potência) que ali se entravam. Neste sentido, analisar as estratégias de

resistência a partir do viés da heterotopia parece ser promissor, pois denota

Espaços onde as relações de poder podem ser lidas através de práticas que
se equilibram entre a gestão institucional (o que formalmente se espera, o
que é “permitido”, o que se “aprova”, o poder formal) e aquilo que é
(re)apropriado, (re)significado, contrariado, subvertido a partir das práticas
cotidianas dos que verdadeiramente “usam”, produzem, se reproduzem no
espaço. (Ramos, 2010:5)

Por fim, visto que o poder encontra-se cada vez mais disperso, faz sentido

que a prática da resistência leve sua atenção à capilaridade de sua ação, de modo a

descobrir e – por que não? – inventar novas táticas que não só respondam à

estratégia do poder, mas que a subvertam e a ultrapassem. Afinal, como dito pelo

Comitê Invisível (2016:52),

É dessa forma que as insurreições se prolongam, molecularmente,


imperceptivelmente, na vida dos bairros, dos coletivos, das ocupações [...]
Não porque elas colocam um programa político em marcha, mas porque elas
põem devires revolucionários em ação.
Referências Bibliográficas

COMITÊ INVISÍVEL. ​Aos nossos amigos: Crise e insurreição. São Paulo: N-1

Edições, 2016.

DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona:

Gedisa, 1990, pp. 155-161.

FOUCAULT, Michael. Outros Espaços. In: ​Ditos e escritos III - Estética: Literatura

e pintura, música e cinema​. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

LOWEN, Alexander. ​Bioenergética.​ São Paulo: Ed. Summus, 1982.

ONETO, Paulo D. ​A Nomadologia de Deleuze-Guattari. [S. l.], Lugar Comum

Nº23-24, pp.147-161, 2010.

RAMOS, Tatiana T. ​Heterotopias urbanas: Espaços de poder e estratégias

sócio-espaciais dos Sem-Teto no Rio de Janeiro. ​[S. l.], Polis, Nº27, 2010.

REICH, Wilhelm. ​Análise do caráter. ​São Paulo: Ed. Martins, 2014.

XAVIER, Serrano. ​Contato, vínculo e separação.​ São Paulo: Ed. Summus, 1997.

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