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DOCUMENTÁRIO GUATAHA: KURURU É A CHAVE?

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Henrique Finco*
Florianópolis, novembro de 2015.

RESUMO:
Este artigo é sobre o filme documentário brasileiro Guataha, um média-metragem de
Clarissa Knoll de 2014, com ideia e argumento de Alai Garcia Diniz. Nele o Xamã guarani
Nhevangaju ,da aldeia Ocoy, constituída por guaranis deslocados da aldeia Jacutinga,
que foi coberta pelas águas do lago que alimenta a Hidrelétrica de Itaipu, conta a saga
mítica dos Ava Guarani. O relato épico do Xamã é interpretado como metáfora por sua
neta Delia. Para construir o relato fílmico, a diretora utilizou dois tipos distintos de
registros, para dar conta de duas realidades distintas, embora complementares.

Palavras-chave: Cinema documentário, estética fílmica, índios guaranis, Itaipu.

1. Introdução
Em 2012, ao conhecer o já centenário Xamã guarani Guilherme Tupã Nhevangaju, a
Doutora Alai Garcia Diniz percebeu a necessidade de criar uma narrativa sobre a história
dele e a de Ocoy, sua aldeia, decidindo realizar um filme. Para isto, procurou a cineasta
Clarissa Knoll, já com o argumento e com uma ideia de roteiro. Clarissa abraçou o projeto.
A documentarista acabou por encontrar uma realidade complexa, onde dois tipos de
relatos se entrelaçavam e se complementavam: um relato histórico e um relato mitológico.
Este artigo discute como ela conseguiu resolver o problema narrativo colocado por esta
realidade complexa. A resolução do problema é o filme documentário GUATAHA, com
edição finalizada em 2014.

2. GUATAHA: A CHAVE DE UM RELATO CINEMATOGRÁFICO


No site da produtora Saracura Filmes, responsável pela produção deste média metragem,
encontramos a seguinte sinopse do filme: Guataha mistura narrativas míticas Ava-Guarani da
Destruição e da Criação do mundo contadas pelo principal xamã da aldeia Ocoy, Tupã Nevangaju,
com os resquícios do alagamento da aldeia Jacutinga pela usina hidroelétrica de Itaipu em 1982, e
com a jornada de Délia, neta do xamã, pela fronteira entre o Brasil e o Paraguai interpretando
Ñandecy, a primeira mulher que carrega os heróis gêmeos no ventre.1
Antes de falar especificamente das escolhas narrativas feitas pela diretora, é importante

1 Artigo apresentado no VIII Congresso Internacional Roa Bastos: Po(éticas) e Políticas do Caribe Andino ao Grande
Chaco, que aconteceu em novembro de 2015 na UFSC. Este artigo foi reapresentado em outros eventos, em que o
filme Guataha foi exibido. Entre estes eventos está uma exibição/mesa redonda na sede do BADESC Cultural, em
Florianópolis, no dia 08 de junho de 2017.
levar em conta que uma questão sempre presente no fazer do documentarista é a de
como ser fiel à realidade, à história das pessoas a que ele teve acesso. Não se trata de
ser “fiel à verdade”, conceito fugidio, mas sim de ser fiel às pessoas e acontecimentos que
se vai narrar, sabendo que é impossível fugir de um ponto de vista, que é o próprio ponto
de vista de quem está narrando, narrador este obrigado a fazer escolhas que, deixando
de lado alguns aspectos, abrangerão apenas parte do que será narrado. Isto pode ser
formulado da seguinte maneira: como contar uma história a que se teve acesso sendo
honesto com a fração de realidade narrada e com os receptores da narração – os
ouvintes, ou espectadores ou leitores. Está-se referindo aqui a uma ética que, para o
cinema documentário é definidora e fundamental pois, como lembra NICHOLS (2005,
p.47) o cinema documentário obedece a um pacto implícito, existente entre realizador,
personagens e espectador: de que o que se está vendo no filme existe, ou de fato é
assim, ou de fato aconteceu - pelo menos do ponto de vista do realizador. Quem assiste a
um filme documentário suspende sua incredulidade ao aceitar que estará tendo acesso à
narrativa de uma parte do mundo real – real aqui entendido como o fazem KRACAUER
(1962) e PASOLINI (1982), com toda a sua complexidade, que inclui também a realidade
cultural; ou seja, os aspectos míticos da realidade também estão contemplados.
Aqui, discutiremos como a diretora Clarissa Knoll fez as escolhas narrativas de Guataha,
obedecendo esta questão definidora do cinema documentário, que é a dimensão ética do
relato. Para criar a narrativa fílmica, a diretora escolheu dois tipos diferentes de registro,
de forma a dar conta das duas realidades entrelaçadas que o filme mostra: a realidade
mítica e a realidade mundana ou histórica. Estes dois “tipos diferentes de registros”
são corporificados – ou melhor: cinematizados – através de duas estéticas distintas, como
veremos. Para isto, vamos analisar algumas das sequências do filme.
A primeira sequência do filme inicia com a imagem de um sapo de costas, em close. Vê-
se um vapor ou uma fumaça, que sai de um plano à frente do sapo, aparentemente de
sua boca, que não aparece. Começa a ser ouvida, em extra-campo, a voz do Xamã
Nhevangaju, falando em guarani. Temos acesso ao que Xamã fala através de legendas 2.
Neste momento, o sapo vira sua cabeça na direção do extra-campo, como se começasse
a prestar atenção ao que voz do Xamã fala:
“Passo esta mensagem de Nhanderu e Nhandecy e também Nhanderu Kuarahy e
Nhanderu Jacy. Que nos dêem a flor da sabedoria”. O próximo plano é o do céu de um
azul super saturado, onde aparece à esquerda uma lua, muito definida, em quarto
minguante. São um céu e uma lua só conseguidos com a aplicação de manipulação
fotográfica no momento em que o filme foi editado.
Em off, o Xamã continua a falar, contando agora a história da criação do mundo, na
versão guarani.
No plano seguinte, com o Xamã ainda falando, aparece uma anciã guarani arrumando
alguma coisa dentro de uma habitação. A fala do Xamã está na parte da história que
começa a falar de um dilúvio que submergiu o mundo. A mulher pendura uma maraca em
um esteio e a voz do Xamã diz “Aqui temos a nossa salvação, a casa de reza”. Aos dois
minutos e três segundos de projeção, aparece a figura do Xamã Nhenvangaju,
inicialmente desfocado, o que é realçado pela fumaça do cachimbo que ele fuma. “E toda
a terra tremeu, e a casa de reza tremeu”, diz a voz dele, no momento em que entra
completamente no quadro. À presença imagética não corresponde à voz, que continua
em off. Aparece outro guarani, mais jovem, também fumando um cachimbo. O Xamã pega
o chocalho que a mulher havia colocado no esteio. O plano seguinte enquadra a anciã à
direita, com mais duas mulheres alinhadas a ela, todas de frente para o Xamã, que
começa a usar a maraca, enquanto aquela primeira mulher marca o ritmo com uma
espécie de pilão, que ela bate no chão da casa de reza. O Xamã começa um cântico. No
próximo plano aparece a copa de duas araucárias, que emolduram um céu sombrio, de
cores saturadas, onde se entrevê estrelas por entre rápidas e pesadas nuvens. São
estrelas muito grandes e luminosas, também só conseguidas através de manipulação
fotográfica. São estrelas míticas. Arma-se uma tempestade. Ouve-se estalidos de raios e
as araucárias são iluminadas por clarões. O céu fica limpo. Nele é possível ver a Cruzeiro
do Sul, a Kuruxu dos guaranis3, em um céu de cores saturadas e estrelas enormes, que
parece iluminado por uma luz fantástica. Este plano encerra esta primeira sequência do
filme.
Esta primeira sequência, acredito, pode ser esteticamente denominada de “realismo
fantástico”, uma vez que utiliza um tipo de registro fotográfico altamente manipulado e
estilizado, solução que Clarissa Knoll utilizou para representar esta dimensão do real que
usualmente é denominada de “universo mitológico” ou “universo sagrado”. As exceções
são a casa de reza que, embora iluminada por luz artificial, “copia” a luz “natural” e o
plano em que aparece o sapo, pois ambos utilizam uma fotografia naturalista. Contudo,
todos estes planos formam uma sequência narrativa harmoniosa e coerente, pois a casa
de reza é também espaço da realidade mítica uma vez que se define como espaço
sagrado. Já o sapo, o kururu guarani, também é figura muito importante da mitologia
guarani, pois foi através dele que os guaranis conseguiram o domínio do fogo (LITAIFF,
1999). Não podemos esquecer que os Xamãs guaranis têm acesso às línguas dos bichos,
e com eles falam e são entendidos por aqueles. Como vemos, há coerência na montagem
destes planos, que marcam o espaço de uma realidade sagrada.
Os próximos planos do filme utilizam uma fotografia naturalista, pois pretendem compor
uma metáfora cinematográfica contemporânea da história da criação do universo do ponto
de vista guarani. Nesta metáfora, Délia, que é neta do Xamã percorre (metaforicamente) o
caminho de Nhandecy, a primeira mulher a existir e que carrega no ventre – Délia está de
fato grávida – os heróis fundadores. Délia, portanto, interpreta Nhandecy em uma
caminhada por um mundo contemporâneo.
Se na epopéia sagrada, Nhandecy toma por acaso o “caminho da onça”, que leva à casa
da onça – jaguaretê, em guarani - o que determinará seu fim trágico, em Guataha Délia,
também por acaso, toma um caminho que a levará às cidades de Foz do Iguaçu e Ciudad
del Este, a casa atual da fera.
Os planos da jornada de Délia/Nhandecy são alternados com planos de Cassemiro, um
índio guarani também da reserva de Ocoy. Estes dois tipos de planos são interligados
com o desenrolar da história da criação do mundo, que continua a ser contada pelo Xamã
Nhenvangaju. No filme, Cassemiro tem a função de relatar os fatos históricos e mundanos
que afetaram/afetam dramaticamente a vida de sua aldeia a partir da construção do lago
que alimenta a hidrelétrica de Itaipu.
Dois destes planos merecem destaque: em um deles, Cassemiro fala pela primeira vez
com seus vizinhos, pertencentes a um assentamento do INCRA da década de 1970 e
originários do Rio Grande do Sul. Um momento revelador para ambos os protagonistas e
muito bem-vindo em um filme desta natureza, já que é o registro vivo de uma
transformação, que também é uma descoberta.
Outro destes momentos é quando Cassemiro desenha um círculo no chão, onde ele
representa a confluência dos rios Iguaçu e Paraná e a tríplice fronteira (Argentina, Brasil,
Paraguai), explicando o que ele entende ser uma fronteira para os “homens brancos”, que
é o local onde homens que se dizem de uma certa nacionalidade brigam com outros que
se dizem de outra nacionalidade, caso ultrapassem aquelas linhas. Para os guaranis,
explica Cassemiro, não existem estas fronteiras. Estes planos, a partir da sequência
inicial, representam a mundanidade, o mundo histórico, e para isto são tratados com uma
fotografia também mundana; ou seja: uma fotografia realista. Para fechar o filme, volta-se
ao universo sagrado e a fotografia destes planos também recebe o mesmo tratamento
fotográfico da sequência inicial, descrita anteriormente, sendo que agora vê-se o sapo de
lado e é descoberta a origem da fumaça: vem de uma pequena brasa, que está
à frente do sapo. Em dado momento, o sapo, de um golpe, engole a brasa – e isto fecha o
ciclo representado no filme e confirma o mito guarani de que kururu é o guardião do fogo.
3. DIFERENTES ESTÉTICAS E O PERTENCIMENTO A UMA TRADIÇÃO
Quando se fala em estética de um filme, está se falando também da maneira como este
filme conta uma história: o que aparece na tela – e o que se ouve a partir dela - é que
comporá a narrativa que os espectadores terão acesso. Na tradição do Cinema
Documentário, a estética dominante, quase uma “marca registrada”, é o som direto (som
ambiente) e a fotografia naturalista, normalmente ambos sincronizados, que junto com
outros sinais, como câmara na mão, fotografia nem sempre com exposição correta,
montagem não linear, etc, podem chegar a compor uma espécie de convenção:
considerando filmes que tenham estas características estéticas, é provável que sejam
documentários. Mas, de qualquer forma, é bastante comum que os filmes documentários
tenham o que RAMOS (2005) chama de “cicatriz da tomada”, que pode ser entendido em
um sentido amplo como uma forte ligação que a imagem tem com seu referente histórico.
Isto transcorre com uma certa tranquilidade quando os referentes se encontram no mundo
físico e histórico; ou seja: quando os referentes são o mundo físico e histórico. Mas, como
fica esta representação quando nos referirmos a uma realidade que não é a realidade
física, como é o caso da realidade religiosa ou mitológica – aceitando que estas
realidades companham uma realidade cultural, mais complexa do que apenas a realidade
física? Como representar o que tem referentes apenas imaginários ou, em certos casos,
referentes que estão apenas na memória, ou que são indizíveis?
O cineasta israelense Ari Folman, veterano da “Guerra do Líbano” de 1982, defrontou-se
com um problema semelhante ao fazer o documentário Valsa com Bashir, de 2008, em
que ele filma as tentativas de recuperar suas memórias sobre os massacres nos campos
de refugiados palestinos de Sabra e Shatila, que aconteceram no Líbano em 1982, tendo
exército israelense como um dos protagonistas. A solução que ele encontrou foi a de fazer
um documentário baseado em desenho animado. Apenas a última sequência deste filme
tem como referente a realidade histórica e física, já que é composta por imagens de
televisão feitas na época (1982) em que parecem mulheres e crianças palestinas – únicas
sobreviventes dos massacres - em desespero total ao reconhecer entre as pilhas de
cadáveres seus familiares. O resultado final é altamente impactante, muito mais do que
seria se todo o filme fosse composto por imagens naturalistas. Por um lado, o desenho
animado – imagem opaca por excelência 4 - deixa claro que Ari Folmam está tentando
relembrar, com a ajuda de outros veteranos do exército israelense, está tentando
recuperar uma memória – e memória é algo fugidio, sempre em construção. A sequência
final, por outro lado, não tem ambiguidade, é transparente 5, o que amplifica seu impacto.
Uma outra solução encontrou a documentarista Cláudia Nunes, no filme Rapsódia do
absurdo, de 2006, em que utiliza cenas de arquivo da cobertura jornalística de dois
eventos: um é a expulsão à força de ocupantes do MST na Fazenda Santa Luzia (Aruanã-
Goiás) e outro é a expulsão, também à força, de ocupantes de uma área urbana no
Parque Oeste Industrial (Goiânia- Goiás). Neste caso, a diretora não utilizou o som
sincronizado e distorceu a imagem, através de um efeito de onda. O resultado parece um
pesadelo, forma que a diretora encontrou para representar o desespero dos que sofreram
a repressão.
Com estes dois exemplos – existem muitos mais – vê-se que é possível e lícito utilizar
recursos estilísticos para representar o que não tem referente no mundo físico histórico ou
que é muito difícil narrar, como é o caso do desespero de quem sofre repressão
discricionária, ou do que é indizível, como memórias traumáticas ou a brutalidade de se
ver envolvido em um massacre genocida.
No caso de Guataha, o que a documentarista precisou resolver foi como narrar uma
realidade mítica, que é entrelaçada com a realidade histórica dos índios guarani, o que
conseguiu fazer de forma brilhante.
Uma última observação sobre este filme, o que o torna ainda mais valoroso, é a de que
pouco depois do documentário ser finalizado, o Xamã Nhenvangaju morreu, lembrando
que ele falava um guarani tão antigo que até os intérpretes do filme tiveram dificuldade
em compreender6.

REFERÊNCIAS
LITAIFF, Aldo. Les files du soleil: mythes et pratiques des indiens Mbya-Guarany du
littoral du Brèsil. Tese (Doutorado) . Université de Montréal., Montréal, Canadá: 1999.
KRACAUER, Siegfried. Film: ritorno alla realtà fisica. Milano: Saggiatore, 1962.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução de Mônica Saddy Martins.
Campinas, SP: Papirus, 2005.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo hereje. Tradução de Miguel Serras Pereira - Lisboa:
Assírio Alvim, 1982.
RAMOS, Fernão. A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem intensa. In:
RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Documentário e Narratividade Ficcional (Vol.II). São
Paulo: Editora SENAC, 2005.
XAVIER, Ismail. O discurso Cinematográfico, a opacidade e a transparência. 2. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
Adendo: FICHA TÉCNICA de GUATAHA
Direção e Produção: Clarissa Knoll.
Argumento: Alai Diniz.
Roteiro: Alai Diniz e Clarissa Knoll.
Direção de Fotografia: Matheus Rocha.
Montagem: Yuri Amaral.
Som Direto: Hernán Ruiz Navarrete.
Edição de Som: Daniel Turini e Fernando Henna.
Mixagem: Confraria de Sons e Charutos.
Tradução: Delmira de Almeida Peres e Luiz Mbaraka Mirî Martines.
Direção de Produção e Still: Julio Noguera.
FESTIVAIS E PRÊMIOS
O filme foi exibido em 20 televisões públicas de 16 países da América Latina
10º Festival de cinema Latino Americano de São Paulo.

Notas:
1 Fonte: http://www.saracura.art.br/movies/guataha-2, acessado em 17 de novembro de 2015.
2 As legendas podem ser em português ou em espanhol.
3 AFONSO, Germano Bruno. Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani, in
http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/mitos_e_estacees_no_ceu_tupi-guarani.html (sítio de internet da
Scientific American do Brasil), acessado em 17 de novembro de 2015.
4 Nos termos em que expõe XAVIER (1984).
5 Idem.
6 Informação passada por Alai Garcia Diniz.
Henrique Finco: Professor do Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em
Literatura (UFSC, 2012), Mestre em Antropologia Social (UFSC, 1996), Bacharel em Comunicação Social
(UFRGS, 1984)
henfin@hotmail.com

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