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MASSACRE DE MOEDA

A guerra não declarada que iniciou em 2013, no centro de Moçambique, tendo-se


alastrado, momentaneamente, para o norte, evoluiu para o sul. As populações das
comunidades do distrito de Homoíne, na província de Inhambane, estão em pânico,
desde a semana passada, e abandonaram as suas casas à procura de sossego na vila sede,
devido à presença de homens armados da Renamo, os quais já trocaram tiros com as
Forças de Defesa e Segurança. Apesar de o Governo e a Renano não assumirem esse
confronto, esta terça-feira, 07 de Janeiro corrente, as duas forças testaram os seus
armamentos bélicos em Phembe, das 07h:00 até perto das 11h:00. Há relatos de feridos
e mortes em ambas as partes em conflito.

Na manhã do dia seguinte, um carro carregado de militares governamentais,


provavelmente para reforço, marcou o princípio de um cenário de guerra em Homoíne,
uma vez que horas depois rumou para o teatro das operações do dia anterior. Na mesma
quarta-feira, 08, uma ambulância foi vista a ser escoltada na Maxixe, seguindo em
direcção ao sul, presumindo-se que os feridos sejam os que estavam internados no
Hospital de Homoíne, na sequência dos tiroteios de terça-feira.

Entretanto, antes desta situação, cheguei à vila de Homoíne ao meio da tarde de


segunda-feira, dia 06 de Janeiro em curso, entre um calor intenso – húmido – e uma
chuva intermitente. Estava com sede e, por conseguinte, precisava de beber água.
Dirigi-me ao bar do antigo hotel que fica na “boca” do vilarejo, e o que observei lá
dentro é que os utentes de ocasião se estavam marimbando para o sofrimento daqueles
que chegavam de localidades como Phembe e Fanha-Fanha. Bebiam e tagarelavam,
com mulheres a ornamentarem o cenário.

O meu interesse não era ficar no bar. Aviei-me com uma garrafa de um litro e meio do
precioso líquido para espantar a canícula e retirei-me para perscrutar os sinais daquilo
que pode ser o alerta de uma nova guerra. Nunca se sabe! E esse aviso está estampado
nos carros que chegam, uns atrás dos outros, carregando gente, trouxas e animais, tudo
na mesma carroçaria. É um avivar de imagens que pareciam ter sido esquecidas, quando
na verdade a dor nunca se esquece.

É que informações postas a circular, desde a semana passada, dão conta de que nas
localidades de Phembe, Fanha- -Fanha, dentre outros, no distrito de Homoíne, há
presença de homens armados supostamente da Renamo, devido aos quais a população
tem estado a abandonar, apavoradamente, as suas residências, alguns bens e animais. Já
no princípio da tarde de terça-feira, 07, relatos populares davam conta de que houve
confrontos, na região Phembe, entre os referidos guerrilheiros do partido de Afonso
Dhlakama e as Forças de Defesa e Segurança. Entretanto, o Ministério da Defesa
Nacional (MDN) não confirma nem desmente que tal situação tenha acontecido, mas
confirma a presença de militares.

Pessoalmente não presenciei nenhum conflito de


que se falava, porém, era e é visível o sofrimento de gente nas zonas em alusão.
Aproximei-me de um dos veículos que chegavam, trazendo no seu interior mobílias e
chapas de zinco que poderão ter sido retiradas apressadamente das casas que acolhiam
pessoas que já estavam estabelecidas, pensando que a paz veio para ficar. No carro era
transportada uma família, uma mulher de meia-idade, um homem idoso, uma criança do
sexo feminino de cerca de quatro anos de idade e um jovem fresco, com a alma e o
corpo prontos para tudo.

Dirigi-me à senhora para colher as primeiras palavras, mas não consegui nada porque
ela não quis falar. Vergastou-me com os olhos, como se ela estivesse a dizer-me – do
fundo dela – que era uma grande estupidez fazer perguntas numa situação tão óbvia, em
que as pessoas fugiam dos homens armados, supostamente da Renamo, que se
movimentam em Phembe e Fanha-Fanha, e agora na famigerada antiga base dos
guerrilheiros, que leva o nome de Nhavarre.

Não me resignei perante a recusa da mulher. Abordei o jovem, Francisco, que me disse
que estava a fugir. “Toda a gente está a fugir. Se você for para lá, agora, não vai
encontrar ninguém, e, se encontrar vivalma, será dos que também estarão a fugir para
aqui”. São estas as respostas que todos dão. Com pequenas variantes. Não consegui
encontrar ninguém que dissesse categoricamente que viu os citados homens armados, ou
que afirme ter sido abordado na sua casa por alguém a pedir comida ou para outros fins.
Todos dizem que “dizem que”. Mas se existe uma verdade é a de que todos estão a
abandonar as suas casas.

No percurso Maxixe-Homoíne, o “chapa” que me transportava cruzou-se com duas


viaturas carregadas de pessoas e bens que preferiam não ficar na sede do distrito, onde
as pessoas, mesmo sem o mostrarem claramente, não se afastam do receio de que pode
acontecer, a qualquer momento, o pior. Se dermos fé ao facto de que há homens
armados da Renamo por ali. As autoridades locais evitam pronunciar-se sobre este
acontecimento que é motivo de conversa em todo o lado, a não ser um comunicado
divulgado pelo Comando Provincial da Polícia da República de Moçambique (PRM), na
tarde de segunda-feira, dia 06, afastando qualquer possibilidade de estarem a
movimentar-se homens da Renamo em Homoíne.

“É boato”, disse o porta-voz da Polícia, o subinspector Delcídio. Entretanto há


informações que foram postas a circular indicando que uma unidade da Força de
Intervenção Rápida (FIR), se terá deslocado, na noite de domingo, 05 de Janeiro, a
Nhavarre, onde se diz estarem lá baseados os supostos guerrilheiros da Renamo. Não há
dados concretos, mas na terça-feira, 07 de Janeiro, circularam informações dando conta
de que houve tiroteio entre os homens armados da Renamo e a FIR, o que seria o
resultado de um confronto entre as partes.

Localidades assombradas

Phembe e Fanha-Fanha são agora zonas


abandonadas. Aqueles que ali viviam, criavam gado e faziam machambas, abandonaram
tudo ou levaram quase tudo consigo, deixando apenas aquilo que não podiam carregar,
como as casas de alvenaria, construídas com muito sacrifício. Outros, na falta de
dinheiro imediato, venderam o seu gado ao desbarato, para poderem pagar o fretamento
de viaturas. Aí, também, não faltaram os oportunistas para roubarem esse mesmo gado.
O mais triste é ouvir algumas dessas pessoas afirmarem que para ali jamais voltarão,
mesmo que se venha a dizer que não há guerra. Os postos de saúde foram fechados
porque já não há doentes por ali. Fugiram. Os polícias, também, segundo informações
que, entretanto, já foram desmentidas pelo Comando Provincial da PRM, “puseram- se
ao fresco” e deixaram as duas localidades como autênticos locais fantasmas.

E o vilarejo de Homoíne vai-se debater, a partir de agora, com o drama de acolher


pessoas que passarão a viver como refugiadas. Aliás, dados não confirmados avançam a
possibilidade de se criar um centro para albergar os necessitados, o que pode vir a criar
uma situação imprevisível. E tudo isto veio reavivar a triste memória do massacre de
Homoíne, em 1987.

Naquele ano, Homoíne viveu o maior massacre da província de Inhambane


protagonizado pelos guerrilheiros da Renamo, durante a guerra dos 16 anos, segundo
reza a história. Na madrugada de 18 de Julho de 1987, bandos deste movimento que
mais tarde se transformou num partido de oposição, o maior em Moçambique,
chacinaram pelo menos 424 pessoas, entre crianças, mulheres grávidas e idosos. Tratou-
se de uma carnificina equiparada à de Wiriamu, em Tete, onde um exército colonial
português assassinou 500 pessoas, para além de outras 600 mortas em Vanduzi, na
região de Manica, por tropas rodesianas de lan Smith.

WIRIYAMU

Massacre de Wiriamu "apagado"


da memória colonial portuguesa
Assinalam-se este sábado 45 anos após o massacre de Wiriamu, em
Moçambique. Historiadores dizem que as atrocidades cometidas pelo
exército português foram escondidas pela censura.
    

Monumento erguido para assinalar os acontecimentos ocorridos em 1972 em Wiriamu


Este sábado, 16 de dezembro, assinalam-se os 45 anos do massacre de Wiriamu,
em Moçambique - acontecimento que despertou a atenção do mundo face às
atrocidades cometidas por Portugal durante as guerras coloniais em África.
De acordo com a investigação realizada pelo académico moçambicano Mustafah
Dhada, professor de História Mundial e Estudos Africanos radicado nos Estados
Unidos, as tropas portuguesas dizimaram um terço dos 1.350 habitantes de
cinco povoações da província de Tete, no centro do país.
Fernando Rosas, historiador português que esteve recentemente naquela
povoação – onde foi erguido um monumento a assinalar os acontecimentos
ocorridos em 1972 –, diz que as operações contra os movimentos de guerrilha de
libertação nacional eram consideradas "contraproducentes".
"Mesmo pelos sul-africanos e pelos rodesianos que colaboravam nessas
operações", ressalta o historiador, acrescentando que "no fundo, a guerrilha não
estava lá. Estava lá a população: homens, mulheres e crianças que eram vítimas
daquela violência brutal e inconsequente".

Documentário: historiador Fernando Rosas quer desconstruir na televisão portuguesa os


mitos da colonização
"Apagão da memória do colonialismo"
Os crimes perpetrados pelas tropas portuguesas nas aldeias da província de Tete
despoletaram fortes críticas internacionais e fomentaram a contestação contra a
guerra colonial. Mas, passadas mais de quatro décadas, como é visto em
Portugal este período sombrio da história colonial portuguesa?
Para Fernando Rosas, "estes acontecimentos fazem parte de uma espécie de
apagão da memória do colonialismo que se verificou em Portugal".
"Em Portugal continua muito vivaz uma certa nostalgia do império e uma
narrativa sobre o colonialismo, que é uma narrativa 'desculpabilizadora'", critica
o especialista.
Este género de mensagem, acrescenta Fernando Rosas, continua até no discurso
oficioso do Estado português. Na série em transmissão na televisão pública
portuguesa (RTP2), intitulada "História a História: África", o historiador tenta
desconstruir "mitos ainda vivazes da pseudo bondade do colonialismo
português", de modo a "não permitir que [acontecimento como Wiriamu] passe
em branco".

José Antunes: "houve uma imposição brutal das forças portuguesas sobre os grupos de
libertação"
"Repressão sem genocídio"
Ao analisar a dimensão política do massacre, o historiador José Antunes afirma,
por sua vez, que este foi um dos símbolos mais fortes da repressão durante a
guerra colonial. No entanto, discorda que tenha sido um genocídio, como
referem alguns investigadores.
Segundo Antunes, "ao considerarmos um genocídio, estamos a pô-lo em pé de
igualdade com o Holocausto, com os massacres dos hutus ou dos tutsis". "Para
falar de genocídio naquela circunstância – estamos a falar numa situação de
contexto militar, de guerra; há um massacre justificado pelas autoridades
portuguesas pela necessidade de controlar as aldeias em que os guerrilheiros
tinham algum tipo de apoio e fez-se aquele e alguns outros massacres", justifica.
Irene Pimentel: é preciso ouvir os familiares das vítimas
Entretanto, José Antunes ressalta que "são situações que claramente fogem
aquilo que é a guerra dita 'limpa', como se isso alguma vez existisse, e mostram
o que foi, de facto, a imposição de uma forma brutal das forças armadas
portuguesas sobre os grupos de libertação".
Factos a investigar
O historiador português José Antunes, formado em História de África com foco
no período colonial, diz que hoje há já mais informação sobre o que aconteceu
em Wiriamu. E questiona se o número de mortos chegou aos milhares.
 
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Massacre de Wiriamu "apagado" da memória colonial
portuguesa
"Isso só por si já é uma questão importante. Portanto, temos ali detalhes
também da própria forma de operar das Forças Armadas portuguesas e da
política. Quer dizer, isto foi ou não deliberado, isto foi ou não mandado pelas
chefias? Tudo isso é importante saber-se".
Irene Pimentel, outra historiadora portuguesa e uma das críticas em relação ao
silenciamento, também reconhece que ainda há factos a investigar sobre
Wiriamu. Ela afirma que hoje se pode recorrer aos sobreviventes em
Moçambique para resgatar as memórias daquela época, "para que, finalmente,
os sobreviventes e familiares das vítimas possam fazer o seu luto".
Fernando Rosas também considera necessário e indispensável que assim seja
em respeito à memória. "Porque", sublinha, "sem memória não há democracia".
O historiador considera que "há um trabalho de memória muito importante a
fazer também cá", aconselha.

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