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LIVROS

ARMADILHA DA IDENTIDADE:
RAÇA E CLASSE NOS DIAS ATUAIS
por Giovane Dutra Zuanazzi e Laurem Janine Pereira de Aguiar

O livro perfaz um caminho que, ao recuperar a


história de conceitos muito em voga hoje, tais
como política identitária e interseccionalidade,
ao mesmo tempo em que estabelece uma
perspectiva materialista histórica, trava um
duro combate tanto contra o que no Brasil
comumente se denomina como identitarismo,
quanto contra aqueles que defendem uma
predominância abstrata da categoria de classe

S e pudéssemos definir
Armadilha da Identida-
de: raça e classe nos dias
de hoje em apenas duas
palavras, diríamos que
se trata de um livro rigorosamente crí-
tico. Asad Haider, doutor em História e
editor da ViewPoint Magazine, produziu
do capitalismo, ao lado de uma análise
da conjuntura atual.
O livro, intitulado originalmente
Mistaken Identity: Race and Class in the
Age of Trump, foi publicado no Brasil, em
2019, pela editora Veneta, um ano após
o original. Além da adaptação do título,
a versão brasileira conta uma ótima tra-
materialista histórica, trava um duro
combate tanto contra o que no Brasil
comumente se denomina como iden-
titarismo, quanto contra aqueles que
defendem uma predominância abstrata
da categoria de classe.
Haider demonstra como as duas
perspectivas se retroalimentam ao con-
uma instigante síntese entre a história dução, indispensáveis notas de rodapé traporem artificial e superficialmente
da luta anticapitalista e antirracista nos e com um excelente prefácio assinado raça e classe, abordando-as como cate-
Estados Unidos, recuperando trajetórias por Silvio Luiz de Almeida. Dividido gorias sem história. Ambas as visões,
e debates esquecidos ou deturpados. em introdução e mais seis capítulos, o intencionalmente ou não, acabam
Com base neste legado, constrói uma livro perfaz um caminho que, ao recu- comprometidas com a manutenção da
narrativa que interlaça sua experiência perar a história de conceitos muito em ordem capitalista: os identitários por re-
pessoal enquanto estadunidense des- voga hoje, tais como política identitária duzirem a política à afirmação de deter-
cendente de imigrantes paquistaneses, a e interseccionalidade, ao mesmo tem- minadas identidades, buscando uma in-
história do racismo, do colonialismo e po em que estabelece uma perspectiva clusão dentro da ordem, minimizando

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ou ignorando o fato de que é esta pró- característica exclusiva de determinado ta, que resultou em uma aliança entre
pria ordem a geradora do racismo e das grupo, o identitarismo também mani- trabalhadores afro-americanos e euro-
desigualdades; os defensores de uma festa-se de distintas maneiras e em defe- -americanos, constituiu “um momento
classe trabalhadora abstrata por descon- sa de identidades diferentes – inclusive, decisivo no longo e complexo processo
siderarem a centralidade da raça como e destacadamente, em defesa de uma de invenção da raça branca como for-
mecanismo de manutenção do sistema “raça branca”. ma de controle social” (HAIDER, 2019,
e como determinante da experiência da O próprio conceito moderno de p. 86).
própria classe que dizem defender. raça, como demonstra Haider, está vin- É com base nas possíveis conse-
culado à expansão do capitalismo e do quências desta revolta que se fortalece
Armadilha, armadilhas colonialismo. Ignorar esta história é a opção pelo uso da mão de obra de
cair em outra das armadilhas possíveis. africanos escravizados, visto que ela
‘Identidade’ é um fenômeno real: Por isso, baseado nos trabalhos de his- possibilitava uma negociação entre os
ela corresponde ao modo como o toriadoras como Barbara Fields e Nell fazendeiros e as classes trabalhadoras
Estado nos divide em indivíduos, Painter, o autor sustenta a hipótese de euro-americanas, concentrando a su-
e ao modo como formamos nossa que o grande negócio da escravidão e da perexploração no trabalho forçado de
individualidade em resposta a uma associação da mesma à raça negra não africanos. Como afirma Haider: “essa
ampla gama de relações sociais. Ela foi a produção da supremacia branca, aliança racial euro-americana foi a me-
é, no entanto, uma abstração. Uma mas a produção de algodão, açúcar, ar- lhor defesa da classe dominante contra
abstração que não nos diz nada roz e tabaco. Dito de outra maneira, a a possibilidade de uma aliança entre a
sobre as relações sociais específicas supremacia branca foi uma das formas classe trabalhadora euro-americana e
que a constituíram” (HAIDER, 2019, de dominação encontradas pelas elites afro-americana” (HAIDER, 2019, p. 86).
p. 38). coloniais para tentar bloquear questio- Para sustentar este movimento, a clas-
namentos à ordem. se dominante euro-americana passou a
Os argumentos de Haider, ancora- É este o movimento feito pelo au- desenvolver uma ideologia que pregava
dos em situações vivenciadas pelo mes- tor ao retomar estudos sobre a história a inferioridade dos africanos, racionali-
mo e/ou em debates travados no passa- da raça branca, demonstrando que a zando e justificando o trabalho forçado
do, trazem à luz diferentes armadilhas própria ideia de uma raça branca, nos dos mesmos – o que acaba, por outro
construídas ao abordar a identidade Estados Unidos, forma-se apenas no fi- lado, incluindo o conjunto dos euro-
sem considerar suas relações sociais nal do século XVII. Isso não significa, peus à noção geral de “raça branca” (até
constituintes. Uma das armadilhas é de acordo com Haider, a inexistência então, a Europa era vista como consti-
ignorar o fato de que todas as pessoas anterior do racismo. Significa, sim, que tuída por raças diferentes e, inclusive,
possuem identidade. Mesmo a bran- o racismo gerou a “raça branca” e a “raça como no caso dos irlandeses, por raças
quidade, tida como padrão em nossa negra” – e não o contrário. E, no caso “inferiores”).
sociedade, é também é uma forma de estadunidense, esta divisão conformou Haider demonstra que, ao longo
identidade particular, que só existe de poderosas ferramentas para evitar a dos séculos, essa distinção racista gerou
maneira relacional, interagindo com união entre trabalhadores euro-ameri- diversos efeitos para a classe trabalha-
outras identidades. Ou seja, a identida- canos e afro-americanos – ambos, até dora. Dentre eles, pode-se destacar que,
de é um fenômeno social: tanto a bran- este momento, submetidos, em maior ao passo em que piorava as condições
quidade quanto a negritude nasceram medida, à servidão por dívida do que de vida dos trabalhadores negros e res-
e se reproduzem com base no racismo, à escravidão. A Revolta de Bacon, de tringia sua liberdade, constituía uma
não sendo simples nomes para diferen- 1676, é tida como um ponto de virada espécie de compensação para os traba-
ças “biológicas”. De certa forma, jus- na estratégia de dominação e explora- lhadores brancos – o salário público ou
tamente pela identidade não ser uma ção da classe dos fazendeiros. A revol- psicológico, como aponta W. E. B. Du

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Foto: The Intercept/Divulgação

Os argumentos de Haider, ancorados


em situações vivenciadas pelo mesmo
e/ou em debates travados no passado,
trazem à luz diferentes armadilhas
construídas ao abordar a identidade
sem considerar suas relações sociais
constituintes. Ou seja, a identidade
é um fenômeno social: tanto a
Autor norte- branquidade quanto a negritude
americano com
descendência nasceram e se reproduzem com base
paquistanesa, Asad
Haider é doutor em no racismo, não sendo simples nomes
História e editor da
ViewPoint Magazine para diferenças “biológicas”.

Bois e retoma Asad Haider. Os brancos, Política identitária: antítese da O resgate da história das lutas po-
munidos deste salário, não estariam luta antirracista pulares nos Estados Unidos, confron-
em situação tão ruim quanto a dos ne- tando fortalezas e debilidades das tra-
gros. Isso, contudo, resultou também A perspectiva materialista histórica jetórias do movimento comunista esta-
em uma piora geral das condições de de Haider coloca o debate sobre iden- dunidense, de Malcolm X, do Coletivo
vida do conjunto da classe trabalhado- tidade em outros termos. Isso ocorre Combahee River, do Partido dos Pante-
ra, visto a tendência do capitalismo de não só por conta da vivacidade de seu ras Negras e de tantos outros, é um pas-
“nivelar por baixo”. Limita-se, assim, marxismo ou pela reconstituição das so inicial indispensável para compreen-
as possibilidades de reivindicação dos origens da concepção moderna de raça, der que há uma ruptura entre posições
trabalhadores brancos, ameaçados pela mas porque recupera o legado da luta expressas no passado, pelos revolucio-
substituição de trabalhadores negros já antirracista e anticapitalista nos EUA. nários, e as defendidas hoje pelos iden-
submetidos mais intensamente à supe- Retomando o fio da história, reconstrói titaristas. Afinal, foi justamente no seio
rexploração e ao desemprego. o caminho de luta que inevitavelmen- da luta anticapitalista que diversos dos
E este é um dos motivos funda- te separa os atuais identitaristas dos re- conceitos e categorias, hoje utilizados
mentais, muito mais do um suposto volucionários de ontem e hoje. Separa incessantemente pelos identitaristas, fo-
“humanismo abstrato”, que torna a nacionalistas revolucionários, sempre ram forjados.
luta contra a supremacia branca e o internacionalistas, e nacionalistas rea- O que ocorreu, contudo, foi um
racismo uma luta pela emancipação cionários. Separa o joio do trigo. Separa processo de “desidratação”, retirando
universal. Neste sentido, é com base aqueles que enxergam na formação de todo o seu conteúdo revolucionário.
nesse raciocínio que Haider defende a uma burguesia negra ou na eleição de O objetivo foi o de tornar estes con-
indissociabilidade da luta antirracista Barack Obama uma vitória da luta an- ceitos, e as próprias lutas que os en-
e anticapitalista, recuperando o que há tirracista e aqueles que percebem, neste gendraram, palatáveis e úteis ao capi-
de melhor na tradição revolucionária tipo de política, a própria neutralização talismo. Esse é o caso do próprio ter-
estadunidense. da luta antirracista. mo “política identitária”: o Combahee

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River, primeira organização a utilizar coletiva. Onde antes buscava-se a união na atual conjuntura brasileira, torna-se
o termo em seu formato contemporâ- para construir uma sociedade socialis- uma leitura fundamental para aqueles
neo, buscou afirmar identidades “par- ta, agora busca-se o reconhecimento que querem compreender as origens
ticulares” para demonstrar a indisso- individual e a inclusão no capitalismo. deste debate e pensar alternativas con-
ciabilidade de diferentes lutas e a ne- No âmbito da direita, fez (re)surgir ou cretas.
cessária aliança entre a diversidade da intensificar movimentos nacionalistas O maior exemplo, todavia, encon-
classe trabalhadora. A intenção seguia e defensores da supremacia branca. Em tra-se no esforço feito pelo autor em
sendo construir o socialismo, mas ambos os espectros, estimula-se dife- redefinir os termos do debate, resgatar
destacando que a revolução socialis- rentes tipos de moralismo e a fixação a luta revolucionária estadunidense e
ta deveria ser feminista e antirracista com as identidades individuais, como sustentar uma crítica rigorosa ao iden-
ao mesmo tempo – o que implicava, se as mesmas não fossem socialmente titarismo – sem cair no lugar-comum
diretamente, na crítica às concepções produzidas – não coincidentemente, da centralidade abstrata da categoria de
que pressupunham uma classe traba- uma perspectiva em total sintonia com classe, demonstrando a possibilidade e
lhadora homogênea. o neoliberalismo. a necessidade de a esquerda brasileira
Assim, é preciso ter nitidez acerca O livro de Haider, desta forma, empreender um esforço neste sentido,
do contexto de surgimento e de de- converte-se em uma importante ferra- com relação à própria história de nosso
clínio da política identitária enquan- menta de luta pela chamada “universa- país e de nossas lutas. Apesar de seme-
to parte da luta revolucionária. Em lidade insurgente”, construída em con- lhanças em nossa história e em nossa
síntese, podemos afirmar que o livro traposição àqueles que buscam arvorar- conjuntura atual, nem o Brasil e nem a
identifica nas próprias debilidades do -se enquanto proprietários exclusivos questão racial brasileira pode ser com-
movimento socialista (em especial dos de determinadas pautas e lutas. Com preendida a partir da realidade dos Es-
militantes brancos) a origem da neces- base no livro, é possível compreender tados Unidos.
sidade da crítica à ideia de uma classe a diferença entre a luta antirracista e Cabe aos revolucionários e revolu-
trabalhadora fantasmagórica e abstrata a política identitária atual, apresenta- cionárias brasileiras recuperar a história
(via de regra generalizada como mascu- das por Haider como antíteses uma da e o legado da luta antirracista e antica-
lina e branca). Críticas estas que foram outra. Essa diferenciação, possibilitará, pitalista brasileira e latino-americana,
fortemente positivas e estavam vincu- entre outras coisas, entender o porquê a fim de perceber nossas particularida-
ladas ao avanço da luta popular nos da fixação dos identitaristas com deter- des e produzir uma análise concreta de
Estados Unidos. A progressiva coop- minados “debates”. nossa situação concreta. Afinal, o Brasil,
tação e distorção dos significados des- como o mundo todo, “está com extrema
ta política, contudo, intensificaram-se Armadilha da identidade necessidade de uma nova universalida-
após as derrotas do conjunto da classe no Brasil de insurgente. Somos capazes de produ-
trabalhadora e de suas organizações zi-la, todos somos, por definição. O que
com o avanço do neoliberalismo e o O debate identitário tem ganho nos falta é um programa, estratégia e
fim da União Soviética, fenômenos que espaço no Brasil. Na grande mídia, nas táticas. Se deixarmos de lado o refúgio
estimularam e fortaleceram tendências empresas e em diversos think tanks. No da identidade, essa discussão poderá co-
liberais que tomavam o capitalismo mundo sindical, no movimento estu- meçar” (HAIDER, 2019, p. 150).
como fim da história. dantil, nos partidos. Direta ou indire-
Neste cenário, os atuais identitaris- tamente, nos mais diversos setores da GIOVANE DUTRA ZUANAZZI,
tas encontraram uma terra fértil para o sociedade, reproduz-se uma tendência mestrando em História (UFRGS)
caminho da divisão e da fragmentação. global com relação à forma e ao conte-
No campo da esquerda, ocorreu um údo do debate público e do “tipo ide- LAUREM JANINE PEREIRA DE AGUIAR,
deslocamento da centralidade da luta al” de organização. O livro de Haider, doutoranda em Serviço Social (PUCRS)

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