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Por que se escreve: por que a literatura

31/10/2019 Estado da Arte


por Hugo Langone

Ao “Por que escreves?” que invariavelmente, em algum momento


de seu ofício, escutarão os autores, tantas respostas deverão ser
obtidas quanto forem os indagados. Ou, antes, tantos percursos
de resposta, tantas intuições, tantas experiências. Em certo
sentido, porém, à parte a substância do que dirão, dotada como
sempre estará de milhares de nuances particulares, há por trás da
pergunta isto: que ela só pode ter sentido à luz de um “Por que a
literatura?”. Sim: para que o porquê da escrita seja pergunta
razoável, deve ser em razão de que o ofício tem por resultado
qualquer coisa de relevante. Desejo saber por que escreves,
inquieta-me por que dedicarias a isso o tempo, porque aquilo que
escreves descortina algo, produz qualquer impacto — é algo que
me diz.

Ora, todavia não é como se a descoberta da segunda pergunta


facilitasse o encontro de uma resposta. Seria possível repetir,
como Northrop Frye e tantos outros, a indagação do porquê, num
ponto determinado, a linguagem alcança um peso tal, uma
medida, uma sonoridade, que já não se pode mais dizer que
repousa (e é como se repousasse, altiva, olhando-nos desde o
alto) no mesmo patamar da linguagem com que vamos nos
comunicando aqui e acolá ao longo da vida. A imensidão do
panorama que se desvela diante da mera pergunta dá já mostras
da dificuldade do caminho, e que tantos homens bons tenham
partido daí é a prova da sua fecundidade.

No entanto, para quem de fato escreve, para quem de fato


suscita tanto a primeira quanto a segunda pergunta, não estaria
mais próximo o primeiro caminho? Não seria mais fácil — e por
que se haveria de iniciar o percurso da maneira mais árida? —
olhar para onde se está, questionar-se a si mesmo, para que um
“Por que escrevo?” venha a desembocar num “Por que isso pode
dizer respeito a outrem?” e, por fim, chegue àquele plano mais
genérico, à literatura como algo que tem algo a dizer ao homem e
do homem?
Nesse caso, pois, pode-se partir do momento primeiro, o mais
íntimo: aquele em que algo vem; ou, antes, em que o artista, o
autor, o descobre, em que depara-se com ele. Sim: vem,
descobre-se. Há mesmo, e muito claramente, a sensação do
movimento. Vamos-lhe ao encontro enquanto jaz ali, à espera;
ou, então, aproxima-se destes estagnados que somos, destes
alheios: eis-me, respondemos, porque me chamaste.

Qualquer que seja o caso, ninguém dirá que é precisamente o


encontro, esse deparar-se, o que faz do contato uma conclusão
irresistível, inevitável. Não: cedemos a atenção, centramo-nos
nisto que nos chama, porque traz consigo um não sei quê de
resplendor, um não sei quê de brilho. É assim que se sobressai,
entre tantos, de qualquer outro encontro, de qualquer outro
chamado: não é ignorado, não pode ser — e o tom do chamado
vem sob medida. Sabe que ouvido é este que o escutará.

Pouco mais se poderia falar quanto a isto. Deste algo que vem ao
autor, que surge, que percebemos como fulgor, apenas duas
notas talvez se distingam como padrões. Primeiro, que, fora a
luminosidade, não se pode prever muito: é possível que este algo
chegue como som, como palavra, como ideia. Quem saberá?
Anuncia-se, ouvimos, e então nada mais faz senão esperar que
tateemos. “Há algo aí” – e vamos, às apalpadelas. Depois, que
não é paciente, que oferece poucas oportunidades: ou o
aceitamos e nos demoramos nele ali, ou muito provavelmente se
perderá. Exige muito esforço nosso conservar seu brilho,
recuperar o frescor e a imediatez do encontro, e ao fim é muito
maior o número de nossas perdas do que daquelas que
aproveitamos: o texto que nasce, ou que ao menos se estrutura,
muito tempo depois da manifestação desse quid passa, ao autor,
a sensação da sobrevivência.

Neste ponto já se vislumbrará que não pode proceder a acusação


de que tudo isso é por demais abstrato, de que talvez se aplicasse
a composições sublimes da história literária e artística, mas que
hoje, quando o olhar da poesia — da literatura e das artes como
um todo — se ocupou do homem real e da vida tal como a
vivemos, resumir o processo da escrita assim não pode ser nada
além de um pedantismo saudosista. Todavia, falou-se que “é
possível que chegue como som, como palavra, como ideia”. São
precisamente todos muito concretos. É preciso que ressoe no
autor uma palavra como “uvaia” ou “manacás” para que note
como essas sílabas deslizam gentilmente pela boca, no primeiro
caso, ou pareçam lépidas, no segundo, conferindo ao poema ou
peso, ou leveza. As plantações de limão, a parede com chapiscos
e os cacos de vidro sobre o muro vieram à cabeça de Montale
dotados de resplendor, mas ainda assim não há, fora essa luz,
qualquer altivez extraordinária naqueles arbustos a exalar seu
perfume cítrico. O raciocínio, naturalmente, poderia prosseguir e
se aplicar a ideias ou valores, a paixões, a uma virtude qualquer
— ao que for.

A tudo isso deve o autor estar atento. Reside precisamente aí sua


principal atividade: ter o olhar, a escuta, o espírito apurado, com
certa receptividade natural; depois, reside aí também – não o
reconhecerão todos? – o mistério: por que goza este ou aquele
desta sensibilidade, dessa inclinação natural, de tal modo que
trair esse estado de atenção, negar o raio que lhe atinge, consiste
mesmo em trair uma vocação? Sim, é preciso evitar o erro da
glamourização desta vocação particular em detrimento de
qualquer outra, e portanto a pergunta talvez deva mesmo ser – e
de fato o é – mais ampla: por que as sensibilidades e as
inclinações de cada qual, independentemente de quais sejam?

De todo modo, ela existe, há o mistério dessa receptividade. Mas


deve-se atentar ao que muito bem notou a senhorita Flannery
O’Connor: que olhar e juízo se confundem, que no escritor o ver é
julgar. Não se dão, por conseguinte, um olhar, uma escuta e uma
atenção absolutas e únicas, como se pairassem acima das
particularidades da natureza. De fato, porque falamos de juízo,
descobrimos a janela que leva à multiplicidade de respostas. Não
é formado o juízo, para além de todos os parâmetros morais
inegociáveis e imutáveis e comuns, daqueles elementos pessoais
que cada indivíduo vai acumulando ao longo da existência, de
suas experiências, do ambiente, da estrutura familiar? Ou mais:
de sua constituição física, do temperamento e das inclinações
naturais, de umas características genéticas, da facilidade com que
cede ou resiste às opiniões alheias? E, no âmbito da própria
criação, não se deveriam mencionar as vozes desses autores
passados e contemporâneos, dos artistas de outros campos e
ofícios, que compõem nosso leque de referências?

Tudo isso condicionará a forma da atenção, e por isso teremos o


denominador comum do chamado junto a tantas reações quantos
forem os autores. Ora, mas o que isso revela? Que há uma força
de atuação, um impacto, sobre um indivíduo que sabe conservar
a própria atenção e vê-se misteriosamente inclinado a perceber
tal luminosidade. É bem verdade que nesse movimento e nesse
encontro já se experimenta algo, certo júbilo contido. Se há
qualquer coisa de curiosa no mistério da criação, está em que a
imagem mental do que deve ser criado já é fonte de gozo, como
se a tarefa fora concluída ali mesmo. Todavia, ainda estamos aí
no âmbito do chamado e do encontro, do fulgor – dentro,
portanto, do próprio indivíduo. Poderia vir daí a explicação do
passo subsequente? Por que escrever, por que legar a experiência
íntima às palavras?

A dúvida se agrava porque o passo da técnica é para todo autor o


mais árduo, o passo do qual ele certamente prescindiria se fosse
possível. Os que incessantemente repetem que arte é técnica,
que trata-se de fazer algo, podem correr o risco do reducionismo,
de esquecer que sobre a técnica deve resvalar aquele mesmo
fulgor que no princípio se mostrara irresistível ao artista. Não se
transmite a luz que não se tem – e, ao menos para o autor, tudo
se dará apesar da técnica, da fabricação. Por que, então, dar-se o
trabalho? Já não se tinha antes a experiência em plenitude?

Em certo sentido, a parte imprescindível de fato estava lá; por


outro lado, fora tão imprescindível quanto breve: já se
mencionou o esforço necessário para que perdure. Desse modo,
talvez não seja sequer adequado falar em plenitude da
experiência. Poderíamos aplicar a palavra a realidade tão fugaz?
Porque nosso coração inquieto anseia pelo repouso na
experiência duradoura, deve-se portanto escrever, aproximá-la
da durabilidade da letra. No fundo, consiste tudo numa extensão
da experiência — ou melhor, na saudade mesma do encontro. A
este encontro a técnica jamais fará jus; ao mesmo tempo, para o
artista será uma necessidade, um senso de dever para consigo
mesmo. Trata-se mesmo de um grande paradoxo, uma vez que
consiste no dever para com uma frustração, tenha ela o grau que
for. Talvez isso ajude a explicar por que o autor sempre achará,
no fim das contas, que existe algo a ser retocado, polido, naquilo
que faz.

Este, como sabemos, é o ponto da interseção. Já não nos


encontramos mais no âmbito exclusivo do escritor. Uma vez
articulado, no que ele diz poderá tomar parte outra pessoa.
“Poderá”, uma vez que, se sincero consigo mesmo, se
verdadeiramente dotado daquela vocação a que já se fez
referência, não verá na comunicação uma realidade
indispensável. Poderá se afigurar indispensável por outras razões,
boas ou más (entre elas, a vaidade), mas não pela vocação.

O que há, portanto? Por que a experiência nascida de algo tão


íntimo ressoará em alguém de fora, de todo alheio ao processo
que culminara naquilo que ele agora tem diante dos olhos? É
perfeitamente plausível, a depender do grau dos esforços
empreendidos e da capilaridade dos meios, que certos escritos
circulem e encontrem leitores, mas não se trata disso. Pode-se
repetir: por que a experiência alheia ressoará?

Aqui, o que seria possível dizer sem que se transmita, em


comparação com os filósofos da beleza, com os teóricos da
literatura e da literatura comparada, com os historiadores da arte
e certos sociólogos e antropólogos, a impressão da
superficialidade? Por outro lado, não é nada superficial a vida
interior do homem, e é precisamente nela que sente ele a
experiência da leitura, da arte, querendo se imprimir. É isto o que
experimentamos todos diante das grandes obras do espírito
humano. É isto, ademais, o que permite que possamos chamá-las
grandes.

Ora, jaz aí, parece-nos, a resposta àquele “Por que isso pode dizer
respeito a outrem?”. A luminosa experiência do autor não é mais
que um lado da experiência artística; também por parte de quem
lê, de quem contempla, há a experiência luminosa que abre o
indivíduo a algo que lhe é claramente maior. Surge de fato a
ironia: a materialidade da letra, para o leitor, não figura mais
como obstáculo, mas torna-se precisamente a ponte que o
aproximará da experiência original de quem escreve. Apenas
aproximará, naturalmente, pois também aqui as bagagens, os
“elementos pessoais” acumulados pelo leitor ao longo de toda a
sua vida, fazem desta uma experiência pessoal e intransferível. A
experiência da escrita e a experiência da leitura se refletem e
correspondem tanto quanto o negativo e o positivo de um filme.
Ambas as partes contribuirão com seus traços e especificidades,
prejudicarão ou farão jus à experiência que é ponto de partida
para o autor e, para o leitor, local de chegada.

Os interesses, portanto, se interseccionam: a experiência diz


respeito aos dois. Para que se entenda o porquê, basta perscrutar
algo mais que podem compartilhar – e chegaremos, como
denominador comum, a esse coração de carne que pulsa em todo
e qualquer homem, em toda e qualquer mulher. Pois este
coração não foi feito para si, mas para abrir-se a algo maior, para
entregar-se. O autor escreve sob o impacto de uma experiência
luminosa que o chama e transcende; o leitor, ante os resultados
do bom autor, será levado a encontrá-la. Em comum está essa
vocação do coração humano a algo imenso – seu chamado à
magnanimidade. Mas não só. Também está a consciência de sua
pequenez ante tudo aquilo que não pode dominar, que só pode
contemplar assombrado. A experiência artística recorda ao
homem sua vocação à grandeza e sua pequenez, as quais
convivem e devem conviver em tensão. Eis, portanto, não apenas
o porquê de a experiência criadora de um indivíduo vir a
expressar algo a outrem, mas também o porquê de a literatura
ser algo incontornável. Não se trata, como ultimamente se vem
dizendo, de um consolo em meio a contingências que assumem,
muitas vezes, a aparência das urgências e necessidades. Atribuir
isso à arte seria apenas mais uma face do desespero. Não: a
literatura, ao lado de suas irmãs, da música, da arquitetura, das
artes plásticas, é precisamente o lembrete de que o coração do
homem busca por natureza, e pode encontrar, um sentido. Ele
não precisa assumir postura defensiva, não precisa criar consolos
e refúgios, contra um mundo que nada respeita do que é
humano; antes, vê, precisamente do meio deste emaranhado de
atividades e preocupações, algo que se encontra muito além e
que lhe é independente. Algo que o convoca, a que, se fiel, dá seu
sim.
***

Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos


livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7Letras,
2015), A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é
inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura
pagã (Filocalia, 2017).

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