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Bruxas modernas na rede virtual: a Internet como

espaço de sociabilidade e disputas entre


praticantes de wicca no Brasil
ANDRÉA OSÓRIO*

Resumo: Longe das acusações de malefício características da bruxaria tradicional, os


grandes centros urbanos comportam hoje um grupo que se autodenomina como praticantes
de bruxaria moderna, também conhecida como wicca. Por ser um grupo numericamente
pequeno, a Internet tornou-se veículo fundamental de contato e troca de informações,
possibilitando o surgimento de uma comunidade wiccana no país, cujas disputas e alteridade
são construídas, também, no espaço virtual.
Palavras-chave: bruxaria moderna; Internet.

Introdução rede um meio fundamental para a troca de


informações entre elas. Formaram-se, a partir
A intenção deste artigo é apresentar como do contato pela Internet, duas correntes em
a Internet tornou-se um veículo fundamental para disputa pela liderança do grupo nacional. Ao
o grupo estudado. Religião minoritária no país, mesmo tempo, a rede virtual tornou-se locus
a wicca é apresentada por seus adeptos como de reprodução do grupo, pois idéias e compor-
uma forma de bruxaria moderna, no qual o tamentos puderam ser compartilhados a longas
malefício característico da bruxaria tradicional distâncias. Não fosse a rede virtual, a formação
não está presente. Autodenominando-se bruxos, de um grupo nacional de praticantes possivel-
os praticantes encontram-se, muitas vezes, isola- mente não existiria. Esse grupo nacional pode
dos, sem conhecimento de outros adeptos. Nesse ser observado por meio da única instituição
sentido, a Internet tornou-se o veículo prefe- dedicada à wicca no país, a Abra-Wicca, que
rencial para conhecer e entrar em contato com promove reuniões regionais de seus membros
outras bruxas e bruxos no país. Espaço, portanto, afiliados em diversas cidades e encontros nacio-
de sociabilidade, que é levada da tela do compu- nais em Brasília e São Paulo.
tador ao mundo real por meio da promoção de A configuração “livre” da Internet, contudo,
reuniões, eventos e encontros, em âmbito regio- permitiu a emergência de uma disputa pela
nal ou nacional. liderança das bruxas modernas brasileiras,
Grupo numericamente pequeno, com mem- disputa que diz respeito, ainda, a diferentes
bros em todo o país, sobretudo em grandes concepções sobre o que a wicca deveria ser no
centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo Brasil, dadas as crenças mágicas nativas. Essa
e Brasília, essas bruxas modernas fizeram da disputa enseja, então, discussões teológicas
dentro do grupo, que dão origem a acusações.
* Doutoranda em Antropologia pela PPGSA/IFCS/UFRJ. Freqüentando listas de discussão voltadas
E-mail: andrea.osorio@ig.com.br para a bruxaria moderna, pude obter dados que

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permitiram construir um perfil das bruxas Era mesclou crença na magia com crença na
internautas. Esse perfil contribui para a compre- ciência e baniu o malefício. A crença mágica
ensão do grupo estudado. Sobretudo quando se wiccana e new ager enfatiza muito mais o
trata do caminho religioso percorrido até o indivíduo do que a coletividade, que é a raiz da
ingresso na wicca, o perfil das bruxas internautas acusação de malefício. Critica a sociedade
permite compreender melhor o teor das discus- moderna, mas é fruto dela. Pretende, muitas
sões teológicas e, conseqüentemente, a disputa vezes, o coletivismo, mas um coletivismo que
pela liderança. se baseia no indivíduo. Nesse contexto, não há
mais espaço para o malefício, embora a crença
Bruxaria moderna wicca brasileira no mal e na bruxa como portadora do
mal confronte os wiccanos com situações de
Tentando um resgate da tradição mágica hostilidade e preconceito mais ou menos abertas.
européia, a wicca reformula muito dessa A wicca chegou no Brasil em data impre-
tradição e abre-se à inclusão de elementos de cisa, através de literatura importada sobre o
qualquer origem espaço-temporal. Para seus assunto. Aos poucos, essa literatura foi sendo
seguidores, ela é uma religião pagã herdeira das traduzida para o português, e autores nativos
tradições e crenças das comunidades européias surgiram como Márcia Frazão e Claudiney
anteriores ao cristianismo (Grimassi, 2000). Prieto.1 Márcia Frazão foi a precursora de um
Alguns wiccanos traçam uma linhagem que viria mercado que em meados da década de 1990
diretamente da Pré-história para os dias atuais, parecia muito promissor, mas que nunca chegou
outros acreditam que a wicca foi formulada na a render best-sellers. Em meio aos anjos e
Inglaterra na década de 1950. De qualquer magos que alcançavam os primeiros lugares no
forma, é possível perceber que a bruxaria wicca mercado literário da Nova Era, seguindo o rastro
propõe-se a ser uma releitura de práticas pagãs do fenômeno Paulo Coelho, Márcia Frazão
européias anteriores ao cristianismo, especial- começou a escrever em 1990 sobre a sua
mente aquelas de origem celta. “condição de bruxa”. Em nove obras publicadas
Em sua cosmologia, a wicca professa a sobre bruxaria, de 1990 a 2005, ela faz extensas
crença em um par divino, chamados a Deusa e citações autobiográficas, sobretudo sobre sua
família de bruxas, dá receitas de feitiços e rituais,
o Deus. Encarnando princípios da natureza, esse
ensina a ser bruxa. Apenas na segunda obra
par torna-se doador de vida. A Deusa é asso-
utiliza a palavra wicca, banida posteriormente
ciada à terra, às águas e à lua. O Deus é
de seu vocabulário por conta das disputas
associado ao sol, ao céu, aos animais e à vege-
inerentes ao universo da própria wicca no país.
tação. Eles representam princípios opostos, mas
Essas disputas giram em torno da dominação
complementares. Ela teria dado origem a Ele e
oficial de um campo religioso recém-estabe-
ambos teriam criado o universo e todas as coisas
lecido, onde lideranças com visões díspares do
nele – ou seriam o próprio universo, a própria
que sua religião deve ser e de como implementá-
natureza. Sendo a primeira, Ela tem preemi- la travam batalhas verbais em um espaço até o
nência sobre o Deus, visto como seu filho e momento novo: a Internet.
consorte, e essa preeminência reflete-se nas Após Márcia Frazão, muitos outros autores
práticas da wicca. Por isto, nos rituais, o lugar brasileiros aventuraram-se a escrever sobre
de destaque e liderança deve ser, tradicio- wicca, alguns com maior expressividade entre
nalmente, de uma mulher. os wiccanos, outros desconhecidos. Prieto
Os wiccanos definem-se como bruxos, tornou-se um dos mais importantes, pois é
contudo, não há na wicca as acusações de
malefício tão características da idéia de bruxaria
1. As obras publicadas por Márcia Frazão, referidas no tex-
(Evans-Pritchard, 1976; Maluf, 1993; Maggie, to, são: Revelações de uma bruxa, Manual mágico do
1992). Este não é um traço apenas da wicca, amor, Cozinha da bruxa, O gozo das feiticeiras, O feitiço
da lua, O oráculo dos astros, A panela de Afrodite. A obra
mas de toda a Nova Era. Originada dentro de mencionada publicada por Claudiney Prieto é Wicca: ritos e
uma sociedade moderna e desencantada, a Nova mistérios da bruxaria moderna.

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também o presidente da única associação mação disponibilizada na rede virtual é muito


wiccana brasileira, conhecida como Abra- ampla e envolve todo o universo publicado sobre
Wicca. O cargo lhe dá uma legitimidade que o assunto. Muitas vezes, fragmentos de uma
outros autores só conquistaram após anos obra são encontrados em homepages autorais
freqüentando listas de discussão, uma ferra- sem a devida referência. Algumas das ferra-
menta da Internet que é crucial para a wicca mentas mais utilizadas na Internet, além da
brasileira. Márcia Frazão e Claudiney Prieto são manutenção de homepages, são o chat, espécie
opositores ferrenhos um do outro. Suas visões de conversação em tempo real, e a lista de
do que a bruxaria moderna deve ser e de como discussão ou mailing list. Ambos são impor-
mesclá-la à cultura brasileira são díspares. A tantes no atual processo de disseminação da
discussão teológica, no entanto, não esconde a wicca no país.
disputa pela liderança entre os wiccanos. Como a wicca é uma religião minoritária,
com poucos praticantes, sem templos e com uma
Do papel à tela única instituição em nível nacional – Abra-
Wicca –, que, apesar de apresentar um franco
Há muito tempo tem-se feito uma distinção crescimento, ainda não cobre toda a área do
entre religiões que têm por base um livro sagrado país, a possibilidade de encontro entre os
e religiões que não têm. Embora a wicca não membros é difícil. Para sanar esse problema,
seja uma religião do livro, nesse sentido, pois foram criados dois encontros anuais: um em São
não há uma fonte escrita ditada ou enviada pela
Paulo, o outro em Brasília. Nas capitais onde a
própria divindade ou um de seus emissários, o
Abra-Wicca está estabelecida, reuniões de
seu aprendizado foi eminentemente efetuado
membros são organizadas, embora não se possa
pelos livros. Esta não é uma característica apenas
afirmar com que freqüência. No caso do Rio de
da wicca. Criada – ou tornada pública, conforme
Janeiro, único que acompanhei de perto, a
a corrente de pensamento – na década de 1950,
primeira coordenação indicada oficialmente não
na Inglaterra, a bruxaria wicca seguiu o mesmo
manteve a freqüência das reuniões, que foram
percurso de outros movimentos iniciados no
tomadas pelos próprios membros em caráter
exterior e que aportaram no Brasil por intermédio
dos meios de comunicação. Dois exemplos extra-oficial, inclusive sem o pagamento das
podem ser citados: Maria Regina Costa (1993) taxas de mensalidade previstas, mas com
descreve como o grupo “carecas do subúrbio” conhecimento da direção da entidade. As duas
formou-se num misto entre o modelo skinhead coordenações posteriores mantiveram reuniões
inglês e a realidade brasileira específica dos “ca- freqüentes, a última recebendo mensalidades.
recas”. Para ter acesso a esse modelo estran- Se as dificuldades de encontros reais em
geiro, a literatura sobre os skinheads era uma mesma cidade são grandes, a Internet provê
fundamental e constituía fonte ímpar para os os wiccanos com um espaço onde podem se
“carecas”. Um grupo punk estudado por Janice “encontrar”, trocar informações e fazer amiza-
Caiafa (1988) também recorria ao elemento des. Em dez entrevistas realizadas com dife-
impresso, na forma de revistas e fanzines, para rentes bruxas e bruxos na área do Rio de Janeiro,
tomar conhecimento do universo punk estran- percebi que a Internet havia tido uma impor-
geiro, além, é claro, da importância da música tância crucial para quatro deles. Em todos esses
nesse grupo. Cartas faziam, naquela época sem casos, a Internet havia sido veículo para um
Internet, a ligação entre brasileiros e estran- primeiro contato com a bruxaria wicca ou com
geiros. outras bruxas praticantes de wicca. Em função
A entrada da Internet no Brasil e sua disto, até mesmo um coven (como é chamado
progressiva popularização têm dado um novo o grupo de prática religiosa) foi formado com
fôlego àqueles que buscam informações não- pessoas que se conheceram por meio da
publicadas no país. É mais fácil buscar infor- Internet. Diante desses fatos, é interessante
mações estrangeiras pela Internet do que uma formular um perfil do âmbito virtual da wicca
literatura impressa. No caso wiccano, a infor- no país. Ao ingressar nesse momento do estudo

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de campo,2 descobri que parte do que ocorre no de junho a dezembro de 1999. Diferentemente
meio da bruxaria wicca desenvolve-se pela das outras duas listas, não mantinha nenhum tipo
Internet, e de lá propaga-se para o universo de vínculo com nenhuma instituição, nem se
concreto. destinava exclusivamente a discussões sobre a
Pode-se subdividir a informação encontrada bruxaria wicca. Era possível trocar informações
sobre wicca na Internet em dois grupos dife- acerca de qualquer assunto considerado mágico
rentes: aquela que é veiculada por homepages ou religioso nessa lista. Foi possível perceber
e aquela que é veiculada pelos chats e listas de que alguns de seus membros eram também
discussão. No primeiro caso, há uma única membros das listas A e B. Não coletei dados
pessoa ou grupo que assina a página, respon- de membros dessa lista, mas apenas acompanhei
sabilizando-se pelo seu conteúdo. No caso dos suas dinâmicas e discussões, visto que era
chats, ou salas de bate-papo, conversas paralelas freqüentada pela escritora Márcia Frazão. Ela
são mantidas pelos presentes e cada um divulga tornou-se importante para compreender a
a informação que lhe convém. O chat diferen- disputa pela liderança no grupo wiccano no
cia-se da lista de discussões pela fugacidade de Brasil. Na medida em que Márcia Frazão e os
sua existência. Ele é como uma conversação diretores da Abra-Wicca passaram a exercer
real. Os chats acessados pelas listas das quais uma constante disputa por espaço como figuras
participei eram o Wicca e o Bruxaria, encon- mais importantes da bruxaria moderna no país,
trados em um grande portal e provedor. A lista as listas viraram seu campo de batalha, pois
de discussões funciona com procedimentos eram onde se “encontravam” e debatiam suas
outros: um gerenciador de e-mails faz com que opiniões. Nesse processo, Márcia Frazão deixou
o assinante da lista receba todos os e-mails a lista A e apenas pude acompanhar seus
postados a ela. movimento nessa disputa por suas mensagens
Durante a pesquisa, acompanhei três dife- na lista C.
rentes listas de discussão. Cada uma mantinha Uma vez membro dessas listas, pude
regras próprias de funcionamento e tinha perceber como o grupo da wicca no Brasil está
diferentes moderadores. Tratá-las-ei como listas em franca disputa por sua liderança. Nessa
A, B e C, cada uma com duzentos a trezentos disputa, alinha-se a Abra-Wicca, de um lado, e
membros inscritos. As listas A e B, destinadas Márcia Frazão, de outro. Como os coorde-
à discussão e à troca de informações sobre a nadores da Abra-Wicca moram em Brasília e
wicca apenas, mantinham a peculiaridade de São Paulo, enquanto Márcia Frazão reside em
serem coordenadas por duas diferentes pessoas, Nova Friburgo, interior do estado do Rio de
de estreita amizade, que eram respectivamente Janeiro, a Internet transformou-se em veículo-
o presidente e a diretora de assuntos jurídicos chave para o domínio do grupo. Não só porque
da Abra-Wicca. Funcionavam, desse modo, é na rede virtual que suas opiniões podem entrar
como listas irmãs ou correlatas. Era possível em debate, mas também porque esse debate dá-
perceber como, freqüentemente, assuntos de se em público. A Internet tornou-se, desse modo,
uma lista passavam, por meio de membros um elemento crucial nessa disputa, tanto mais
comuns, para a outra. Participei dessas listas quando observamos que é por meio dela que
no período de fevereiro a setembro de 1999. muitos têm o seu primeiro contato com a wicca.
Interessante notar que os membros de uma lista Eles chegam a esse contato, portanto, em um
são, freqüentemente, membros de mais listas território sitiado e são instados desde o primeiro
sobre o mesmo assunto. momento a tomarem um lado nessa disputa.
A lista C foi mantida por diferentes Antes de prosseguir nessas questões,
moderadores no período em que dela participei, apresentarei o perfil dos membros das listas A
e B. A lista C não apresentou oportunidades
2. O estudo de campo foi realizado com base em metodolo- para que o perfil de seus membros fosse ana-
gias diversas: visitas a reuniões e eventos do grupo pesquisado
na cidade do Rio de Janeiro, entrevistas com bruxas residen-
lisado.
tes na área do Rio de Janeiro e observação da sociabilidade
ocorrida pela Internet.

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Perfil das bruxas3 internautas sante observar que os estados de Minas Gerais,
Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo são os
Para traçar o perfil das bruxas internautas únicos a apresentarem bruxas residentes fora
fiz uso de mensagens postadas voluntariamente de suas respectivas capitais.
por elas às listas A e B. São informações veicu- A busca de uma religião é, muitas vezes,
ladas nas listas, não requisitadas por mim, que apresentada nas listas como o motivo pelo qual
utilizei para esse estudo. Os números abaixo a wicca foi descoberta. Ela é freqüentemente
referem-se a um total de 77 indivíduos. Nem apontada como a religião escolhida após uma
todos apresentam a mesma quantidade de longa busca ou a religião adotada “desde
informação. sempre”, ou desde o nascimento. A busca é um
A primeira observação a ser feita é a maior conceito usado na narrativa dos participantes
presença de mulheres (55) do que de homens da Nova Era (Heelas, 1996) e denota a expe-
(22) no grupo estudado. As faixas etárias riência com várias técnicas e filosofias desse
representadas demonstram que tanto a Internet movimento até o encontro com aquela consi-
quanto a bruxaria seduzem um público mais derada ideal. O encontro da bruxaria após uma
jovem: são 11 indivíduos entre 13 e 15 anos, 24 busca traz a noção de que aquilo que era uma
entre 16 e 20 anos, 28 entre 21 e 30 anos e 6 expressão religiosa interna do sujeito finalmente
entre 31 e 41 anos. A maior parte dos membros ganhou corpo doutrinário expresso numa reli-
das listas A e B está, portanto, na faixa dos 13 giosidade definida. A idéia de que se é bruxa
aos 30 anos. Quanto ao estado civil, com uma “desde sempre” também está associada a essa
faixa tão jovem de população, é compreensível noção de uma religiosidade interna, expressa
que o número de solteiros (35) supere o de agora por meio de um nome: bruxaria moderna
casados (9) e separados (2). ou wicca.
A grande parcela de jovens entre as bruxas A análise sobre o perfil religioso das bruxas
internautas reflete-se na ocupação profissional. internautas foi realizada em um universo de
Os estudantes (25) são quase metade do uni- quinze respostas. Nestas, está sendo conside-
verso de ocupados (53). Apenas quatro bruxas rado tanto o perfil pessoal quanto o familiar,
estudam e trabalham ao mesmo tempo. Entre incluindo o cônjuge. Algumas bruxas respon-
aqueles que declararam a natureza de sua deram afirmativamente a mais de uma opção,
ocupação, pôde-se verificar a predominância de apresentando, desse modo, uma mudança
profissões de nível superior ou técnico. pessoal ou familiar. Contabilizaram-se 7 indi-
Os membros das listas estão concentrados víduos que foram (ou famílias que são) espíritas,
na região Centro-Sul do país, com predominância 6 católicos, 2 candomblecistas, 1 umbandista, 2
clara de grandes metrópoles: 11 indivíduos evangélicos, 2 budistas,1 judeu, 1 hare-krishna,
residentes na cidade de São Paulo, 12 no Rio de 1 gnóstico, 1 teosofista e 1 participante da Ordem
Janeiro, 6 em Brasília, 6 em Belo Horizonte, 4 dos Cavaleiros do Templo.
no interior de Minas Gerais, 5 em Curitiba e 8 O espiritismo parece ser a religião que conta
no interior paulista. Outras regiões brasileiras com mais ex-adeptos e familiares adeptos, o que
apresentaram apenas um residente: Cuiabá, se reflete no próprio discurso das bruxas de uma
Goiânia, Recife, Belém, João Pessoa, Vitória, maneira muito própria. Temas como reencar-
Santa Maria, Londrina e o estado do Maranhão. nação, contato com espíritos, mediunidade e
Esses números demonstram que os prati- karma, tão presentes na doutrina espírita, são
cantes de bruxaria internautas são habitantes freqüentemente levantados nas listas, especial-
urbanos, especialmente do Sudeste, e pessoas mente por aqueles que se apresentam como
com alto grau de formação escolar. É interes- novatos na bruxaria. Para estes, o passado
ligado ao espiritismo – ou presente, na forma
3. O número de mulheres praticantes de wicca é sensivel- dos familiares – torna-se uma espécie de
mente superior ao de homens, por isto optei pelo trata- parâmetro que influencia as opiniões pessoais e
mento bruxa no feminino, embora haja bruxos também.
Wiccano refere-se ao conjunto dos praticantes, sem distin- os questionamentos. Pontos como a aceitação
ção quanto ao sexo. do aborto e da homossexualidade na wicca

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também são comumente levantados por aqueles de sociabilidade. Nesse grupo, contudo,
com alguma ligação com o espiritismo. mantinha-se uma disputa por liderança. Nessa
A segunda religião mais influente entre os disputa, duas correntes antagônicas debatiam o
participantes de listas é o catolicismo. A quebra que pensavam que a bruxaria moderna deveria
com os padrões doutrinários dessa religião ser no Brasil. De um lado, a escritora Márcia
apresenta-se como uma das maiores preocu- Frazão, pioneira nos livros sobre bruxaria
pações das bruxas internautas. No período em moderna no país e, de outro, membros da direção
que participei dessas duas listas, não raro recebia da Abra-Wicca, a Associação Brasileira da Arte
mensagens nos quais ser cristã era uma acusa- e Filosofia da Religião Wicca, única do gênero
ção de ser “falsa bruxa”. O uso de símbolos existente no país.
cristãos e o recurso aos santos também foram Frazão é contra instituições ou associações
objeto de discussões acerca da própria natureza de praticantes de bruxaria e contra os cursos
de uma verdadeira bruxa. que ensinam bruxaria. A Abra-Wicca promove
O candomblé aparece como uma religião tais cursos. Como a instituição cobra mensa-
pouco influente. Ataques ao candomblé, bem lidades e os cursos oferecidos envolvem paga-
como ao espiritismo, nunca foram formulados mento para os não-sócios, Frazão observa nessa
enquanto permaneci nas listas A e B. Esses prática um comprometimento financeiro, o que
ataques são dirigidos apenas ao cristianismo, não estaria de acordo com suas funções religio-
tanto aos católicos quanto aos evangélicos. sas. As críticas de Frazão, contudo, deram vez
Verificou-se a existência de dois ex-evangélicos à acusação de que buscava competir pela
entre os participantes das listas e dois ex- liderança do grupo.
budistas. Acusações de “banalizar a bruxaria” ou
As demais religiosidades apresentam “vulgarizar o paganismo” emergiram também
apenas uma resposta. No caso do judaísmo, não de ambas as partes. Freqüentemente referem-
fica claro se a bruxa era judia praticante antes se às aparições midiáticas dos oponentes. Essas
de ingressar na wicca ou se esta era a religião aparições levaram as duas correntes a discordar
de sua família ou cônjuge. O hare-krishna, a do uso que a imprensa faz do tema “bruxaria”.
gnose, a teosofia e a Ordem dos Cavaleiros do A imprensa é um elemento sempre presente no
Templo encontram-se ligados a uma religiosidade universo da bruxaria, tanto a escrita quanto a
que pode ser definida como típica da Nova Era. mídia televisiva. Cada programa levado ao ar,
Junto com o budismo, a religiosidade de Nova com a participação de uma das duas correntes,
Era engloba seis participantes, o que a faz a é ansiosamente aguardado e posteriormente
terceira religiosidade mais influente entre as comentado. Aparições de Frazão montada em
bruxas internautas. Havia, nessas listas, outros uma vassoura ou programas que mostram
participantes de ordens esotéricas, algumas vezes bruxas ao lado do personagem Zé do Caixão,
a mais de uma, mas não deixaram claro quais por exemplo, são malvistas, entendidas como um
eram. Desse modo, podemos concluir que as reforço no estigma ligado às bruxas. O ponto
listas de discussão abrangem um público que de discordância não é a aparição midiática em
vai além das bruxas wiccanas, mas que é si, mas o teor e a motivação para tal, sempre
composto também por integrantes da Nova Era. vinculados à noção de que aquele que se expõe
Estes, muitas vezes, acabam por abandonar suas está em busca de fama, dinheiro e poder. Rituais
opções anteriores e ingressam na bruxaria à luz de tochas, bruxas usando mantos e capuzes,
wicca. encontros público de bruxas são pontos que
Frazão critica. Ela os vê como “banalização”.
A disputa de liderança entre as bruxas O maior ponto de discordância, contudo,
brasileiras reside em uma disputa teológica. Frazão critica
o uso constante de tradições estrangeiras,
Durante a participação nas listas de chamando a atenção para o que chama de um
discussão A, B e C, observei como um grupo estado de “colonização” cultural. Para Frazão,
nacional de wiccanos formava-se nesse espaço a bruxaria moderna (denominada wicca ou não),

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deveria estar ligada às tradições nativas. No caso propagada pela própria instituição, ganhando
brasileiro, estariam expressas na religiosidade assim legitimidade. Como o que a wicca é ou
afro-brasileira e nas rezadeiras e benzederias, deveria ser é uma polêmica que atinge todo o
vistas pela autora como bruxas, muito embora o grupo, uma vez que define o pertencimento a
folclore nacional as veja como opositoras das ele (ser ou não wiccano depende do que se
bruxas (Maluf, 1993). Os diretores da Abra- considera ou não ser bruxaria wicca), todos são
Wicca argumentam que a wicca é uma religião instados a opinar e a cisão torna-se clara. A
estrangeira, vinda da Inglaterra. Enxergam na Abra-Wicca, divulgando na Internet o que pensa
autora um “nacionalismo exacerbado”, resquício que a wicca deve ser no Brasil, ou seja, uma
do movimento da contracultura (uma vez que prática importada sem misturas com as religiões
Frazão muitas vezes se apresenta em seus livros nativas e organizada nacionalmente em uma
como remanescente do movimento hippie) e instituição, e por meio da disputa com Frazão,
pensam que as rezadeiras são expressão de uma contribuiu para uma homogeneização do grupo,
cultura cristã, não tendo nenhuma relação, o que sem a rede virtual dificilmente ocorreria.
portanto, com o universo de práticas pagãs da
wicca. Algumas categorias de acusação
Como visto, as bruxas internautas mantêm
uma constante preocupação em romper com todo Se as acusações entre as lideranças envol-
legado cristão que possa vir a influenciá-las. Não vem dinheiro, fama e poder, além de distintas
se permitindo romper com esse legado, Frazão visões do sagrado, as acusações observadas
é vista como pessoa que se prende ao passado. entre as próprias bruxas dizem sempre respeito
Sua preocupação com o que chama de coloni- à condição ou não de bruxa e indicam que essa
zação cultural está na contramão da trajetória condição pode ser posta em dúvida. Entre bruxas
da maior parte das internautas, que, como visto, que foram entrevistadas na área do Rio de
empreendem uma busca que perpassa várias Janeiro e as internautas, observei muitas acusa-
formas de religiosidade típicas da Nova Era. ções quanto à conduta da bruxa, uma forma de
Essa busca traduz-se em uma trajetória em que desacreditar desafetos, indicando que não são
a bruxa se afasta da religião familiar, dirigindo- praticantes respeitáveis da bruxaria moderna.
se a um universo de práticas importadas, Entre essas acusações, destacam-se: “busca
sobretudo orientais. pelo poder”, interesse econômico, “não ter
A disputa sobre o que a bruxaria moderna comprometimento com a bruxaria”, ser cristão,
é ou deveria ser levou a Abra-Wicca, como não ser wiccano – todas encontradas também
saída para a crise, a indicar que, se Frazão é na disputa pela liderança –, determinados sensos
bruxa, não é wiccana. Essa estratégia não retira estéticos (maquiagem exagerada, roupas exóti-
da autora seu status de conhecedora de proce- cas), buscar a bruxaria para “estar na moda”
dimentos mágicos, mas a retira do grupo dos ou ser de vanguarda, buscar a bruxaria para
wiccanos, o qual a instituição pretende repre- “afrontar a família”.
sentar. O movimento é fazer com que Frazão O interesse econômico traduz-se no retorno
não pertença mais ao grupo da wicca especifi- financeiro que a atividade de bruxa traz. A bruxa
camente, mas ao grupo da bruxaria e da magia que dá cursos de bruxaria é malvista entre as
em geral. Desse modo, delimita-se o grupo e é entrevistadas, mas não entre todas as internau-
apenas por meio da Abra-Wicca que se define tas. Na Internet, a idéia de que a bruxaria pode
o que pode ser considerado wicca ou não. ser aprendida em um curso pago, workshops
A disputa pela liderança do grupo e as ou outras atividades remuneradas é relativa-
discussões teológicas entre os adversários mente bem aceita, pois é prática corrente na
fizeram entrar em movimento uma engrenagem Abra-Wicca. Mesmo assim, algumas bruxas
que permite à instituição determinar o que é e o ainda apresentam resistência a essas práticas.
que não é wicca, pois Frazão jamais se apresenta “Busca por poder” é uma categoria análoga
como wiccana. As posições dos diretores da à de interesse econômico, pois suscita a idéia
instituição tornam-se espécie de doutrina, que é de que a bruxa não exerce sua posição de pessoa

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religiosa, mas tenta tirar vantagens materiais ou desacreditada; no segundo, ela é levada a sério,
status/prestígio do fato de ser bruxa. O ethos mas como um agente incômodo. Essas acusa-
quebrado, em ambas as situações, é o da religião ções reafirmam sua posição de desvio. Todavia,
como espaço da caridade, da confiança, do amor são vistas pelas bruxas como o retrato de uma
ao próximo e do desinteresse. espécie de preconceito, pois marcam a margi-
“Ser cristão” e “não ser wiccano” são nalidade de sua posição. Observe-se, aqui, que
ambas acusações que se inserem na noção de a atitude das bruxas é ambígua: ao mesmo tempo
segmentação e exclusão. Uma bruxa “de ver- em que optam por uma religiosidade minoritária,
dade” rompe com os padrões do cristianismo. relacionada na cultura nacional à prática do
A grande maioria das bruxas estudadas provém malefício, esperam que sua opção seja vista com
de famílias cristãs. Há, dessa forma, uma “naturalidade”, como se não se tratasse de um
ruptura simbólica com a família de sangue para caso desviante.
um ingresso na família religiosa, composta pela Nos relatos colhidos, a hostilidade pode se
comunidade das bruxas. Por outro lado, ser evidenciar com algum grau de violência,
cristão é uma acusação que remete a determi- especialmente no que se refere a estranhos.
nadas qualidades atribuídas aos cristãos, nega- Uma das bruxas entrevistadas afirma que um
tivas na maior parte das vezes. desconhecido cuspiu-lhe, de dentro de um
As acusações referentes à moda, ao senso ônibus, chamando-a de “bruxa maldita”. Outra
estético ou à família tratam da falta de compro- relata as ameaças que sofreu por telefone de
metimento da bruxa com o aspecto religioso da sujeitos anônimos que afirmavam que ela não
bruxaria, de sua necessidade de ser bruxa para acreditava em Jesus Cristo e por isto “arderia
os outros e não para si. Em todos esses casos, no fogo do inferno”. Nesses dois casos, as
os praticantes expressam por meio das acusa- bruxas em questão estavam mais expostas que
ções situações em que a bruxa busca não a as demais, pois assumiam publicamente sua
religião, mas uma identidade que serve para um religião, inclusive freqüentando programas de
grupo externo ao das bruxas. Os signos estéticos televisão no qual falavam sobre bruxaria.
indicam, para quem não é bruxa, que quem os Entre as bruxas internautas, os evangélicos
porta é. As idéias de afrontar a família ou estar são vistos como os grandes vilões no que se
na vanguarda igualmente remetem a ser bruxa refere ao preconceito contra as bruxas. Boatos
para um grupo alheio e não por uma necessidade sobre violência física de evangélicos contra
do Eu subjetivo. bruxas circulam com alguma regularidade e as
As acusações citadas são dirigidas de bru- próprias bruxas afirmam que eles constituem um
xas para bruxas. Há uma outra série de acusa- perigo real ao seu bem-estar físico. Há uma série
ções que são dirigidas das bruxas para determi- de acusações elaboradas para os evangélicos,
nados grupos da sociedade, e da sociedade para em especial, e para os cristãos, de um modo
elas, especialmente da própria família. Entre as geral. Cristãos são vistos como machistas,
acusações que as bruxas recebem de suas famí- “presos à razão” na forma da palavra escrita –
lias, especificamente as bruxas entrevistadas, enquanto as bruxas procuram formas de não-
estão a de ser satanista, de “lidar com coisas razão, como a sensação e a emoção –, vivendo
pesadas”, de fazer “feitiçaria braba”, de ser sob a idéia de temor a Deus e orientados apenas
louca. Nesse sentido, algumas queixam-se que pelo divino, sem comprometimento com o
as acusações podem vir a ser diretas, causando indivíduo. Os evangélicos ainda são vistos como
uma espécie de “segregação”. A bruxa, asso- interessados em dinheiro – que, como indicado,
ciada ao malefício, é vista como pessoa poluída, é uma acusação que pesa entre as próprias
com quem não se deve manter contato. Ela bruxas –, proselitistas, manipuladores, arcaicos,
passa a inspirar medo. Quando as acusações chatos, preconceituosos e “incapazes de acessar
da família tomam o tom do deboche e da incre- o divino”. Formam-se, desse modo, categorias
dulidade, a categoria loucura entra em ação. que atacam religiões que as bruxas vêem como
Para a família, a bruxa é vista como louca oferecendo perigo à sua própria sobrevivência
ou como maléfica. No primeiro caso, ela é como indivíduos e como comunidade.

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Os atributos dos cristãos, sobretudo cató- grande maioria das bruxas se refere é sempre
licos e evangélicos, são aqueles rechaçados ao de origem européia, anterior à conversão cristã.
comportamento da bruxa e são inversos àqueles Desse modo, o paganismo da Igreja Católica
atributos definidos como específicos das bruxas não se reporta a outras culturas. É possível ter
wiccanas. O evangélico não é apenas um ator acesso a essas outras culturas na prática da
social a ser atacado, é um Outro. Essa categoria wicca. Isto depende apenas da bruxa, mas nota-
simboliza tudo o que uma bruxa não deve ser: se uma inclinação maior a mitologias, panteões
ela não deve orientar suas práticas religiosas e tradições européias do que africanas, asiáticas
em função do ganho material, ela não deve ser ou ameríndias, por exemplo.
proselitista, não deve ser machista e precon- Em segundo lugar, devo dizer que o
ceituosa, não deve ser manipuladora, deve movimento duplo de ruptura comporta uma
respeitar o livre-arbítrio e o indivíduo e deve conversão e uma afirmação dessa conversão.
dirigir-se ao divino não apenas pela mente, mas Quando a bruxa declara que é pagã, ela não é
também pela emoção e pelas experiências mais cristã, e isto constitui uma conversão. Ela
sensoriais. deve, portanto, romper com seus velhos hábitos,
Os católicos não sofrem tantas acusações abandonando práticas cristãs. Por outro lado, a
quanto os evangélicos porque são sujeitos vistos bruxa que abandona o catolicismo se converte
como mais próximos ao paganismo. Seriam a uma religiosidade que é vista como anterior
herdeiros da tradição pagã européia, superposta àquela. Ela passa a ver no catolicismo práticas
por uma roupagem religiosa cristã e pelo do paganismo. Assim, ela une novamente o que
pensamento judaico-cristão. Dessa forma, datas havia separado, preservando uma continuidade
e locais santos do catolicismo são freqüen- em seu percurso religioso. No caso das bruxas
temente associados a datas festivas e locais de espíritas, o rompimento é ainda menos brusco.
culto pagãos. Há entre as bruxas pesquisadas Muitas das concepções espíritas mantêm-se
um percurso religioso que freqüentemente especialmente entre as bruxas internautas. A
começa no catolicismo ou no espiritismo. Há idéia de dom vinculada à de mediunidade (ser
pouquíssimas bruxas provenientes do pentecos- médium é um dom que identifica a bruxa), a
talismo. Assim, pode-se sugerir que os evangé- noção de “pureza doutrinária” (não misturar
licos tornaram-se sujeitos preferenciais das concepções wiccanas com a religiosidade
acusações das bruxas não apenas pelo seu nativa, muito embora a noção de “pureza
comportamento em relação a elas – de acordo doutrinária” seja uma concepção nativa), a
com o discurso das próprias bruxas –, mas preocupação com a reencarnação e o karma
também por não constituírem um núcleo reli- são exemplos disto. É no conteúdo cristão que
gioso com o qual elas tenham mantido contato a bruxa espírita efetua o rompimento, não no
em algum momento de suas trajetórias religiosas conteúdo espírita.
pessoais. Quanto às demais categorias de acusação
De qualquer forma, o rompimento com o que as bruxas usam para aqueles que lhes
cristianismo é um ponto sempre apresentado atacam, estão: preconceituosa, ignorante,
pelas bruxas internautas. Como pagãs, elas analfabeta, fanática, louca ou sem cultura. A
mantêm uma preocupação constante com o bruxa que se sente acusada por uma pessoa que
legado judaico-cristão e sua influência sobre as não é bruxa reage a essa acusação com uma
práticas da bruxaria. A forma encontrada para contra-acusação. Nesse caso, ser preconcei-
romper foi dupla: não apenas elas tornam-se tuoso, não ter cultura, ser analfabeto ou ignorante
pagãs, isto é, deixam de ser cristãs e abandonam formam uma linha única de acusações que
as práticas cristãs, como aproximam o catoli- remetem à idéia de que aquele que acusa a bruxa
cismo do paganismo, como se a prévia expe- – de malefício ou loucura – não sabe o que a
riência como católica não invalidasse a identi- bruxaria é na verdade. Falando sobre o que não
dade de bruxa, pois o católico está mais próximo conhece, ele comete erros. Por outro lado, faná-
do paganismo do que o evangélico. Primeiro, é tico, “crente” e louco são acusações análogas.
necessário esclarecer que o paganismo a que a O crente é visto como um fanático, e o fanático

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é visto como louco, pessoa que não tem razão de que qualquer possibilidade de comunicação
no que diz, que age sem conhecimento e que é é sempre preferível ao isolamento. Isto significa
direcionado por uma pensamento único e obses- que as comunidades são formadas com a idéia
sivo que não aceita nenhuma outra forma de de que a comunicação entre pessoas afins é
expressão que não seja a própria. preferível ao não-contato. Nesse sentido, Lévy
(1999, p. 127) conceitua tais comunidades como
Comunidades virtuais “construídas sobre afinidades de interesses, de
conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um
O acesso à wicca no Brasil e a seus grupos processo de cooperação ou de troca, tudo isso
de prática passa freqüentemente pela Internet. independente das proximidades geográficas e
Como a liderança do grupo mais amplo pode das filiações institucionais”. De fato, as listas
ser disputada por meio da Internet? E por que servem para a troca contínua de informações e
essa disputa passa também por outros meios de opiniões, independentemente das filiações, pois
comunicação? Se a identidade de bruxa não é há alguns não-bruxos em listas sobre bruxaria.
uma que se defina pelos processos tecnológicos, A afinidade de interesse pelo tema, a vontade
é necessário verificar o porquê disto. de trocar conhecimento e de cooperar é o que
Segundo Lévy (1999, p. 92), a Internet e o faz com que as listas tomem a forma de comu-
ciberespaço, definido por ele como o “espaço nidades virtuais. Como comunidades formadas
aberto pela interconexão mundial dos compu- em um meio de comunicação que funciona em
tadores e das memórias dos computadores”, termos de interação mediada pode vir a tornar-
foram capazes de gerar comunidades virtuais. se fundamental na disputa pela liderança e na
Este é o conceito-chave para compreender como sensação de pertencimento a um grupo?
as bruxas disputam o domínio de seu grupo pela Ainda segundo Lévy (1999, p. 130), “uma
Internet. Com base na noção de que as listas de comunidade virtual não é irreal, [...] trata-se
discussão formam comunidades, é possível simplesmente de um coletivo mais ou menos
perceber que as idéias veiculadas por meio delas permanente que se organiza por meio do novo
têm um impacto real. As listas e as salas de correio eletrônico mundial”. A Internet e as listas
bate-papo transformaram-se não apenas em de discussão são meios de comunicação em que
instrumentos de disputa de um grupo, como parte os sujeitos interagem de maneira mediada. Para
da própria comunidade. Thompson (1998, p. 78), “as interações mediadas
A comunidade virtual, no caso das bruxas, implicam o uso de um meio técnico (papel, fios
é uma comunidade real, que promove encontros elétricos, ondas eletromagnéticas etc.) que
face a face e interações de diversos níveis. Ela possibilita a transmissão de informação e
é uma extensão do mundo concreto vivido por conteúdo simbólico para indivíduos situados
seus atores que, espalhados geograficamente remotamente no espaço, no tempo ou em
por uma enorme extensão territorial, não seriam, ambos”. Surge a idéia de que a Internet é um
de outro modo, capazes de manter contato. A veículo de interação dos sujeitos. Essa interação
questão territorial é importante no caso das não se limita ao ciberespaço. Para Lévy (1999,
bruxas: como analisado por meio dos questio- p. 128), “é raro que a comunicação por meio de
nários, mais da metade das bruxas reside na redes de computadores substitua pura e sim-
região Sudeste, espalhadas por seus quatro plesmente os encontros físicos. Na maior parte
estados. Os principais núcleos de bruxaria no do tempo, é um complemento ou um adicional”.
país (SP, RJ, MG, DF e PR) estão distantes para É possível compreender agora por que as listas
que se formasse uma comunidade regional. A de discussão freqüentemente engendram
Internet tornou-se o único instrumento capaz de reuniões e encontros, nos quais seus membros
aglomerar bruxas de todo o país em relacio- vêm efetivamente a se conhecer. A Internet
namento e comunicação contínuos. torna-se um instrumento de interação, mas não
As comunidades virtuais estão apoiadas no seu único palco. Ela funciona para aglomerar
sistema de rede em que a Internet opera, bem as bruxas e fazer com que conheçam outras
como na noção de interconexão, que é a idéia como elas. É um espaço de sociabilidade que

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permite a formação de um grupo – uma medida dos recursos disponíveis para disputar a
comunidade – baseado em noções de perten- liderança de um grupo em expansão.
cimento e alteridade. Isto está indicado nas
acusações de não-pertencimento ao grupo Entre o tradicional e o moderno
anteriormente mencionadas. A Abra-Wicca
vem, nesse sentido, servindo como um outro Bruxa é uma categoria que remete a um
locus de sociabilidade baseada nessas mesmas sujeito tradicional, um operador de magia, sujeito
noções, pois dela apenas fazem parte bruxas místico – até mesmo religioso. Como esse sujeito
wiccanas. tradicional vem aportar nas praias modernas dos
A idéia de disputa de liderança na Internet computadores e formula, na Internet, uma
pode ficar mais explícita se compreendermos comunidade de sujeitos iguais a ele? A bruxa
que as comunidades virtuais atuam, também, em de hoje é uma pessoa que está constituindo uma
uma base forte de moral social e freqüentemente identidade: ser bruxa. Essa identidade não
apresentam um conjunto de leis não-escritas que apenas se refere aos atributos tradicionais de
regem suas relações (Lévy, 1999). Uma espécie mágico, curandeiro, adivinho, mas também a um
de “etiqueta” é formulada, na qual a moral determinado perfil religioso que indica um
máxima é a da reciprocidade: o que é aprendido processo de afastamento da cultura popular, a
nas trocas e contatos no ciberespaço deve ser uma determinada identidade de gênero –
repassado. O que decorre desse procedimento feminino ou masculino –, em alguns casos a uma
é a construção de uma reputação de compe- sexualidade, e a uma determinada opção
tência. A participação em uma lista de discussão religiosa. A bruxa de hoje não é um sujeito fora
pode ser importante para a construção de tal do mundo, ela mantém contato com a realidade
reputação entre as bruxas, especialmente quan- vivida, a modernidade. Como sujeito de classe
do sua comunidade se encontra mais no plano média, com alto grau de escolaridade e amplo
virtual do que face a face. acesso à informação, ela lida com o cotidiano
Essa disputa está freqüentemente inserida da modernidade. Não está auto-exilada em um
em meios de comunicação que não se limitam à gueto. A pergunta, então, transforma-se: como
Internet, mas incluem também a televisão, o a modernidade e a tradição se encontram na
rádio, jornais, revistas e livros. Partindo da idéia bruxaria wicca?
de que “os meios de comunicação têm uma A wicca faz parte da Nova Era, um movi-
dimensão simbólica irredutível: eles se relacio- mento com faceta religiosa que faz recurso ao
nam com a produção, o armazenamento e a tradicional, mas estabelece-se de acordo com
circulação de materiais que são significativos padrões modernos. Nesse sentido, tradição e
para os indivíduos que os produzem e os modernidade encontram-se. Na modernidade,
recebem” (Thompson, 1998, p. 19), então eles os meios de comunicação têm um papel funda-
tornam-se recursos que podem aumentar o mental. A televisão e a imprensa, no caso das
poder de determinados indivíduos, uma vez bruxas, servem como veículos que alcançam o
acumulados. Isto quer dizer que o acesso e a público além de seu grupo, levando a bruxaria
freqüência desse acesso à imprensa de um modo para outras pessoas. Esperam, com isso, ajudar
geral é significativo de uma determinada posição àqueles que não encontram informações sobre
no escopo de liderança no grupo da bruxaria a wicca, tanto quanto desmistificar a figura da
moderna no Brasil. O maior ou menor acesso a bruxa, associada à prática do malefício. Além
grandes redes de televisão e a seus principais disto, a televisão e a imprensa tornam-se espaços
programas, bem como às principais revistas e do próprio grupo da wicca no país. Aquela que
jornais, é um recurso que a bruxa que disputa a tem acesso a esses meios vê sua identidade de
liderança desse grupo tem em mãos para definir bruxa legitimada e reforçada, especialmente
a sua posição. Quanto maior o acesso a esses perante a massa de não-bruxos. Pode, também,
recursos, maior o poder de competição. É por aumentar seu escopo de influência sobre o grupo:
isto que muitas das acusações dizem respeito ganha novos alunos para os cursos, novos leitores
às aparições públicas e midiáticas. Elas são a para os livros, novos interessados. Em uma

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palavra, ganha novos seguidores. Como a lide- pequeno e espalhado pelo país, a Internet é uma
rança da wicca tem sido disputada no Brasil, a ferramenta valiosa, pois se tornou locus de
mídia tornou-se mais uma ferramenta. A bruxa sociabilidade e palco onde se desenrolam
que não é pública é uma bruxa que não existe. disputas por liderança e visões do que seja a
A Internet tornou-se outro veículo de bruxaria wicca, bem como por onde se
disputa dessa liderança, quando se apresentou propagam crenças e idéias do grupo. Mais do
como um meio capaz de formar uma comu- que um meio de comunicação, a Internet forma
nidade. Ela permite uma interação com uma comunidades virtuais, que operam segundo uma
resposta clara e um resultado que pode ser etiqueta e buscam, no espaço virtual, o mesmo
quantificado. Também apresenta-se como um que buscam fora da rede.
meio contínuo de influência sobre o grupo, por Sem a Internet, o grupo de wiccanos
parte das lideranças. Na Internet, as bruxas brasileiros dificilmente poderia ser compreendido
formaram uma comunidade e é só por meio dela como um grupo nacional, mas talvez apenas
que uma comunidade em termos nacionais pode como grupos locais, em relativo isolamento. A
ser pensada. Sem a Internet, as bruxas não construção de um espaço nacional permite a
estariam se conhecendo e trocando informações comunicação em uma língua franca e dinâmica,
com a rapidez que isto ocorre, contribuindo para que reproduz e constrói crenças e diretrizes, bem
uma certa homogeneização das práticas e como se apropria do ethos virtual da troca de
opiniões. informações como um mecanismo para essa
A Internet deve ser vista como um espaço propagação de idéias. Se passar adiante pela
de desenvolvimento da wicca no país. Ela ajudou rede (net) o que foi aprendido por intermédio
a formar uma comunidade que vai além do dela faz parte da netiqueta, a própria rede torna-
coven e que atinge todas as bruxas que queiram se espaço privilegiado para grupos que não
nela se inserir. Ajuda, dessa forma, a definir o poderiam, de outra maneira, manter contatos
próprio grupo. Não apenas a rede virtual, mas freqüentes, de forma quase instantânea, como
toda a gama de meios de comunicação é é o caso nos chats. A etiqueta da Internet
fundamental na manutenção e reprodução desse funciona, assim, como um dos elementos que
grupo no país. Isto leva a uma reflexão sobre o permite, ou legitima, que ela tenha se tornado
impacto das novas tecnologias na formação de espaço da construção e manutenção desse grupo
novos grupos e na reprodução e manutenção e que seja utilizada como palco onde adversários
destes, bem como de grupos já estabelecidos. entram em conflito por questões de liderança,
Não seria inadequado sugerir que, sem esses sem esquecer que, por trás dessa liderança,
meios, os wiccanos seriam um grupo ainda existem concepções distintas do que a wicca é
menor numericamente, pois muitos dos novos ou deveria ser no Brasil.
praticantes tomam conhecimento da wicca por
meio da rede virtual. Para aqueles aos quais a
literatura impressa foi fundamental, a rede virtual
fornece um meio de sociabilidade com outros Abstract: Far from the original acusations of evil seen in
praticantes. De uma forma ou de outra, sem the traditional wicthcraft system, big cities witness today
the rise of a group of pratictioners of magic that call
essa nova tecnologia o grupo nacional não themselves witches. These modern witches, also known
existiria. as wiccans, form a numerically small group for whom the
Internet became a special tool to comunicate with each
other through the country and abroad, a virtual place
Considerações finais where they can exchange information and actually form a
community. In the web, there are also disputes for
Tentei demonstrar, no presente trabalho, leadership and about what they think wicca should be in
como os meios de comunicação, sobretudo a Brazil.
rede virtual, podem ser utilizados por deter- Key words: modern witchcraft; Internet.
minados grupos como uma ferramenta funda-
mental para sua manutenção e reprodução. Para
um grupo como o pesquisado, numericamente

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Você também pode gostar