Você está na página 1de 7

Direito autoral digital à luz da Lei nº 9.

610, de 1998 – A jurisprudência


existente
Ivan Barbosa Rigolin
Advogado.

Gina Copola
Advogada militante em Direito Administrativo. Pós-graduada em Direito Administrativo pela FMU. Ex-Professora de Direito Administrativo
na FMU.

Palavras-chave: Direito autoral digital. Lei nº 9.610/1998. Mas, por outro lado, existe a equivocada e falsa
Sumário: 1 Breve introdução ao tema – 2 O direito autoral ideia no sentido de que a Internet é um território de
decorrente de obra musical – 3 A Lei federal nº 9.610, de 19 de ninguém, à margem e ao largo de qualquer lei, e que
fevereiro de 1998 – 4 A jurisprudência já existente sobre o tema
todos os cidadãos podem compartilhar e se valer
de todos os artifícios, ferramentas, plataformas,
aplicativos e demais recursos disponibilizados na
1 Breve introdução ao tema rede, sem qualquer limite e sem despesa, talvez
A Internet, ou rede mundial, é hoje de como uma dádiva da natureza.
fundamental e crucial importância para todas as E, nesse exato sentido, também as obras
atividades e relações humanas, sendo que não se musicais têm sido compartilhadas de forma
consegue em tempos modernos realizar qualquer desmedida e desenfreada sem qualquer custo aos
tipo de trabalho ou ofício sem o suporte da rede usuários da Internet, que se valem de programas e
aplicativos para tanto.
mundial de computadores, diversamente do que
Tal conduta, contudo, não está de acordo com
ocorria há cerca de duas décadas, quando nem se
o direito e mesmo a lei em sentido positivo, porque
cogitava da existência de um meio tão eficaz de
o meio utilizado, por mais avançado e impensado
comunicação e de compartilhamento da informação.
que seja, jamais pode afastar o direito patrimonial
O avanço da Internet – sítios, aplicativos,
e substantivo dos autores das obras. Não será o
programas – tornou o trabalho humano
apenas extraordinário avanço da tecnologia que
significativamente mais rápido, e desde logo suprimirá direitos inerentes à autoria de obras
assegurou a oportunidade de que qualquer trabalho intelectuais e artísticas, como resta evidente a
realizado seja complementado, aperfeiçoado ou quem não se afaste do mundo real apenas pelo
evoluído com informações disponíveis a todos fascínio ou o deslumbramento ante as novidades
indistintamente, na rede sem qualquer complicação. da ciência.
Além disso, a Internet é um meio célere e Seja qual for o estágio a que se alce a
eficaz, e na maioria das vezes confiável, para tecnologia, por evidente, permanece intacta a
a realização de pesquisas e consultas de toda necessidade de se observarem e se respeitarem
forma e gênero e sobre qualquer assunto, o que os direitos autorais da pessoa que compõe ou é
possibilita também o acesso a uma gama imensa responsável pelo material utilizado ou compartilhado
de conhecimento, sendo que hoje tudo é postado, na Internet. Este, muita vez, vive apenas disso,
publicado, e compartilhado na Internet com a e não será artifício algum da Internet, por mais
velocidade da luz. esplendoroso, que terá condão de privá-lo de seu
E, na mesma esteira, as músicas e os vídeos meio de subsistência.
são baixados e compartilhados de forma prática e E em nosso país, a regra maior que disciplina
em geral sem grande custo aos internautas, que se esse tema é a Lei federal nº 9.610, de 19 de
valem de tais trabalhos artísticos e culturais sem fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto nº
arcar com quaisquer ônus ou contraprestação por 8.469, de 22 de junho de 2015.
isso. A democratização da mais ampla informação,
com todos os resultados e os consectários de 2 O direito autoral decorrente de obra
esperar por sobre todas as áreas do conhecimento musical
humano, é talvez o resultado mais notável de todo O direito autoral pode ser conceituado como
esse genial sistema. o direito da pessoa que compõe ou é responsável

42 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018
Direito autoral digital à luz da Lei nº 9.610, de 1998 – A jurisprudência existente

pela obra para que possa gozar dos benefícios obra intelectual seja utilizada sem prévia autoriza-
morais e patrimoniais decorrentes da exploração e ção, o responsável pelo uso desautorizado estará
utilização de sua criação. violando normas de direito autoral, e sua conduta
poderá gerar um processo judicial.
João Ademar de Andrade Lima1 separa os
direitos autorais em duas categorias: o direito
E a obra musical, artística e personalíssima
autoral moral e o direito autoral patrimonial.
como é, enquadra-se à perfeição no conceito de
Segundo o referido autor, o direito autoral
obra intelectual, que está protegida pela legislação
moral surge com a criação da obra, e é um
sobre direitos autorais, que como se disse no
direito intransferível, indisponível, irrenunciável,
Brasil, fulcra-se na Lei federal nº 9.610, de 19 de
impenhorável, e absoluto do autor, materializado,
fevereiro de 1998.
exemplificativamente, como o direito de o autor
ter seu nome indicado ou anunciado na utilização E nesse sentido, também, é a disponibilização
da obra; o direito de assegurar a integridade da de obra musical por meio eletrônico,
obra; o direito de modificar a obra, entre outros. independentemente da tecnologia utilizada, o
Nesse sentido, pode ser tido com um direito que inclui, portanto, a tecnologia streaming, que
personalíssimo. permite a transmissão de dados e informações pela
E o direito autoral patrimonial, segundo o Internet, mesmo sem a necessidade de download
mesmo autor, resulta da publicação, divulgação ou dos arquivos.
comunicação da obra ao público, e versa sobre os Streaming, que em si inglês significa,
interesses financeiros ou monetários da obra. É, de aproximadamente, tanto quanto o substantivo
tal sorte, um direito que pode ser negociado pelo stream, de que se origina, um fluido contínuo, uma
titular. corrente ou um fluxo livre e desimpedido. Streaming
O ECAD (Escritório Central de Arrecadação é em verdade, com mais precisão, o exercício
e Distribuição)2 aduz sobre direito autoral nos daquele fluxo ou daquela corrente, ou o ato de fluir
seguintes termos: ou de correr.
A palavra, que não poderia estar mais em
Direito autoral é um conjunto de prerrogativas con- moda nestes idos de 2017, representa mais
feridas por lei à pessoa física ou jurídica criadora uma extraordinária conquista da tecnologia de
da obra intelectual, para que ela possa gozar dos informação ou da ciência da informática, dessa
benefícios morais e patrimoniais resultantes da ex-
vez aplicada à transmissão de música, e que em
ploração de suas criações. O direito autoral está
regulamentado pela Lei de Direitos Autorais (Lei
pouco tempo quase fez por reduzir a não menos
9.610/98) e protege as relações entre o criador e revolucionária invenção do CD (compact disc), que
quem utiliza suas criações artísticas, literárias ou na década de 80 mudou definitivamente o mundo –
científicas, para efeitos legais, em direitos morais acredite-se – a artefato ou curiosidade do passado,
e patrimoniais. coisa de velhos ou relíquia tecnológica.
O fato é que o streaming já desperta
Lê-se, ainda, das formulações do ECAD sobre extraordinária atenção das pessoas, sejam autores
a distinção entre direitos morais e patrimoniais: de obras, sejam usuários, sejam empresas
provedoras, pela pujança, jamais imaginada até
Os direitos morais asseguram a autoria da criação
ao autor da obra intelectual, no caso de obras pro-
passado muito recente, que revela na propagação
tegidas por direito de autor. Já os direitos patrimo- das criações artísticas. E os profissionais do direito
niais são aqueles que se referem principalmente à não podem manter-se alheios ou distantes de tais
utilização econômica da obra intelectual. É direito cogitações, até para tentar delimitar os seus efeitos
exclusivo do autor utilizar sua obra criativa da ma- e equacionar a sua abrangência.
neira que quiser, bem como permitir que terceiros a
utilizem, total ou parcialmente.
3 A Lei federal nº 9.610, de 19 de
Ao contrário dos direitos morais, que são intransfe- fevereiro de 1998
ríveis e irrenunciáveis, os direitos patrimoniais po-
A norma que disciplina a questão dos direitos
dem ser transferidos ou cedidos a outras pessoas,
às quais o autor concede direito de representação
autorais em nosso país é a Lei nº 9.610, de 19 de
ou mesmo de utilização de suas criações. Caso a fevereiro de 1998, a qual já foi objeto de profunda
alteração pela Lei nº 12.853, de 14 de agosto de
2013.
LIMA, João Ademar de Andrade. Novos olhares sobre o direito
1
Trata-se de uma longa lei, com 115 artigos,
autoral na era da música digital. Simplíssimo livros. Disponível
em: <http://www.simplissimo.com.br>, posição 167 a 204. e, tendo revogado toda a matéria anterior sobre o
Disponível em: <http://www.ecad.org.br/pt/direito-autoral>.
2 assunto – inclusive dezenas de artigos do próprio

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018 ARTIGOS 43
Ivan Barbosa Rigolin, Gina Copola

Código Civil anterior ao atual –, hoje enfeixa definem obra sob o prisma da engenharia,
praticamente todos os institutos existentes sobre o ou ainda o da licitação), desde logo esta-
tema. Divide-se em oito Títulos, cada qual com seus belecendo, com máximo sintetismo, o que
Capítulos, o que lhe dá feição mesmo de um código, significa aquela realizada em coautoria, a
ainda que esta não tenha sido a preocupação anônima, a pseudônima, a inédita, a póstu-
explícita do legislador. ma, a originária; a derivada; a coletiva, e a
É inquestionavelmente uma boa lei, redigida audiovisual. Essas são definições que não
com técnica e atenção às peculiaridades desse poderiam faltar numa atenta lei de direitos
ramo do direito civil, e, sendo de 1998, felizmente autorais. Talvez outras venham a ser neces-
antecedeu a trágica era que se lhe seguiu em sárias ao longo de pouco tempo, porém es-
matéria de técnica legislativa, que perdura até hoje sas citadas são imprescindíveis;
por força das piores leis que é lícito imaginar que - ainda no art. 5º, o que é fonograma, editor,
existam, e as quais povoam nosso ordenamento produtor, radiodifusão, artistas intérpretes
atual em profusão. Ao estudioso e ao aplicador ou executantes, e titular originário. Essa é
sempre é um alívio lidar com leis que digam coisa também matéria indispensável ao discipli-
com coisa, e integrem um ordenamento hígido e namento de direitos autorais, sem a qual
coerente. os mais evitáveis impasses aconteceriam a
Nada obstante a sua boa técnica, entretanto todo tempo.
a matéria dos direitos autorais, naturalmente O art. 6º, que encerra o Título I, informa
como tudo que existe, sofre o influxo e o impacto que apenas por subvencionarem obras os entes
das inovações de toda ordem, dentre as quais, integrantes da federação (União, Estados, Distrito
e em destaque, as impostas pela tecnologia da Federal e Municípios) não adquirem o seu domínio.
informação, em tão precipitada evolução que se faz Parece óbvio, mas em direito, frequentemente, o
árduo sequer assimilar a invenção de ontem, ante a óbvio precisa ser declarado com todas as letras,
invenção de hoje. sobretudo para não alimentar, ou para desarmar, os
O streaming constitui apenas uma dessas inventores de falsos problemas.
prodigiosas inovações que virtualmente atropelam No Título II, arts. 7º a 21, a lei inicia por
os meios tradicionais, conhecidos e controláveis, enumerar as obras intelectuais que por sua natureza
de divulgação de obras artísticas, e o reflexo desse são protegidas, e elas são 13, entre as quais as
impasse no direito autoral não se faz esperar. composições musicais, com ou sem letra (art. 7º,
Em breve panorâmica, a lei dos direitos inc. V).
autorais, no Capítulo I, arts. 1º a 6º, prescreve: O art. 8º, por outro lado, exclui de proteção
- que regula os direitos autorais em nosso sete espécies de manifestações humanas, em geral
país; culturais, que pela sua generalidade ou vagueza
- que se estende essa proteção a estrangei- não permitem proteção objetiva pelo direito, como,
ros que residem no exterior ou no país, des- por exemplo, são simples ideias ou conceitos
de que reciprocamente o faça por acordo ou matemáticos, formulários em branco ou textos de
tratado o país respectivo; tratados ou convenções. Segue a lei particularizando
- que se classificam como bens móveis os outras hipóteses de proteção, como a cópias das
direitos autorais; obras. Do art. 8º ao 17, a lei define e disciplina o
- que se interpretam restritivamente os negó- que seja autoria.
cios sobre direitos autorais – excelente re- Segue o texto informando (art. 18) que a
ferência em prol do direito positivo e literal, proteção aos direitos autorais independe de registro
que evita voos interpretativos esotéricos ou da obra – o que, inobstante dificilmente poderia
delirantes, que sempre seriam em absoluto ser diferente, é desde logo bastante salutar por
descompasso com essa matéria de direitos desencorajar aventuras. E até o art. 21, a lei cuida
autorais que precisa ser a mais objetiva do registro das obras a serem protegidas.
possível; O art. 22 determina pertencerem ao autor
- contém, no art. 5º, uma muito adequada e das obras os correspondentes direitos autorais,
precisa lista de definições de institutos per- e quanto à coautoria também, porém dependente
tinentes ao tema, quais sejam, publicação; de acordo entre os interessados, que livremente
transmissão ou emissão; retransmissão; poderão pactuar o que bem quiserem sobre essa
distribuição; comunicação ao público; repro- copropriedade (art. 23).
dução; contrafação; obra (e aqui se eviden- Segue a lei disciplinando nos arts. 24 a 27, de
cia a relevância da definição específica para modo enxuto e com objetividade máxima, os direitos
os efeitos de cada lei, pois que outras leis morais do autor da obra, desde logo classificando-os

44 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018
Direito autoral digital à luz da Lei nº 9.610, de 1998 – A jurisprudência existente

como inalienáveis e irrenunciáveis, sabendo-se que sinteticamente e bem-redigido como de resto é a


são direitos imateriais e personalíssimos. marca de toda a lei, dispondo sobre exclusividade;
Quanto à irrenunciabilidade, temos uma coautoria; domínio público; versão definitiva;
clássica objeção, pois que se são direitos ipso aquisição dos originais; direito patrimonial mínimo;
facto, precisam ser renunciáveis, ou de outro modo direito sobre obras anônimas; prazo de 70 anos
se convertem em obrigações. Com efeito, um a contar do falecimento do autor da obra para o
direito que a pessoa seja obrigada a fruir contraria exercício do direito autoral; prazo em caso de obras
a natureza de direito, convertendo-se em obrigação em coautoria, porém indivisíveis, ou se forem
de fazer, ou de deixar de fazer, ou de suportar. anônimas, ou se se tratar de obras audiovisuais ou
Compreende-se a irrenunciabilidade de um direito fotográficas, e, por fim, as obras que pertencem ao
quando envolver interesses de terceiros, que dele domínio público.
pode mesmo depender, e que o pode exigir sempre, O art. 46 informa as práticas que não
enquanto for titular; mas não de outro modo, constituem violação do direito autoral, e o traço
ou então, repita-se, um direito se tornará uma comum de todas as exclusões é a utilização não
obrigação. comercial da obra artística, variando as hipóteses
Seja como for, a lei dos direitos autorais conforme circunstâncias que a lei reproduz,
classifica o direito moral do autor como irrenunciável, atenta ao que ocorre na prática. Os arts. 47 e
e também inalienável, ou seja: que não pode ser 48 encerram o Capítulo referindo-se a paródias,
negociado – plenamente compreensível, na medida livremente exercitáveis por quem seja, e a obras
em que não se negocia a honra, a imagem ou a situadas em locais públicos, que também podem
paternidade de uma obra. Os negócios poderão se ser reproduzidas livremente.
dar sobre direitos autorais patrimoniais, mas não O Capítulo seguinte desse Título, nos arts. 49
morais. a 52, dispõe sobre a transferência, total ou parcial,
E do art. 28 até 45 a lei se espraia sobre o dos direitos de autor, que são sempre patrimoniais
fértil terreno dos direitos autorais patrimoniais, e não morais, e podem se dar por licenciamento,
que porventura compreendem praticamente todas concessão, cessão ou outros eventuais meios
existentes ou admissíveis em direito. A cessão é
as disputas em torno de direito autoral. O homem,
presumivelmente onerosa – podendo ser gratuita,
como se sabe, é um ser econômico e não moral,
se o autor assim quiser –, e necessariamente
e, na sua grossa maioria, apenas cuidará desse
por escrito. Tudo isso é plenamente aplicável aos
último assunto se francamente não tiver nada mais
direitos relativos a obras transmitidas por streaming,
a fazer.
dentro do cabível nesse meio.
Uma vez que cabe ao autor o direito exclusivo
Do art. 53 ao 67, um Capítulo inteiro, a lei cuida
de utilizar ou de fruir sua obra (art. 28), para o tema
dos direitos relativos a edição, o que dificilmente
desse breve estudo não deixa de ser bastante
guarda alguma relação com transmissão por
interessante ler o inc. X do art. 29, regra já de olho
streaming – porém nos dias que correm, em que
no futuro:
a invenção de um dia obscurece a do dia anterior,
Art. 29 Depende de autorização prévia e expressa nada mais deve surpreender a ninguém.
do autor a utilização da obra, por quaisquer modali- O Capítulo seguinte da lei, que compreende
dades, tais como: (...) os arts. 68 a 76, também pouco tem a ver com
transmissão de obras por streaming, referindo-
X – quaisquer outras modalidades de utilização exis- se à questão da comunicação ao público da
tentes ou que venham a ser inventadas. apresentação da obra, da frequência das pessoas
e de temas correlatos, a envolver peças teatrais ou
Quando foi editada a lei, em 1998, ainda não musicais.
existia o streaming, mas o legislador já sabia quão Os artigos seguintes, 77 a 88, abarcando
velozes são as inovações tecnológicas sobre as diversos e curtos Capítulos, tratam da utilização de
formas de comunicação. A lei, então, já em 1998, obras de arte plástica; obra fotográfica; fonograma;
tratou de assegurar protegidos os direitos autorais obra audiovisual; utilização de base de dados, e
patrimoniais, do autor de obras intelectuais, que utilização de obra coletiva. De todos esses temas,
um dia viessem a ser divulgadas até por meios que possivelmente envolve o streaming apenas o
ainda em 1998 não existiam, mantendo-se portanto último, porque uma obra musical, transmissível por
de olho muito atento no futuro. E o futuro, quanto a streaming, pode perfeitamente ser coletiva, de mais
isso, chegou e se impôs. de um autor, a cada qual deles assistindo direitos.
E prossegue o Capítulo, do art. 30 ao art. O Título seguinte, iniciado pelo art. 89, atinge
45, relativo aos direitos patrimoniais, muito diretamente o interesse de autores de obras

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018 ARTIGOS 45
Ivan Barbosa Rigolin, Gina Copola

transmissíveis por streaming, eis que manda aplicar E ainda chama a atenção constatar que as
diretamente aos artistas intérpretes e executantes, associações são tão rigidamente parametradas e
e aos produtores fonográficos, e aos proprietários disciplinadas pela lei que quase adquirem feição
de empresas de radiodifusão, os direitos de autor de entidades públicas, como o art. 98 deixa a
contemplados na lei. impressão, ao fixar que as associações são
E mais: que os direitos relativos a obras mandatárias de seus associados para a defesa
literárias e científicas, porventura de algum modo administrativa e judicial dos seus direitos, e que a
relacionadas com obras transmitidas por streaming, correlata atividade de cobrança (art. 98-A) somente
não se prejudicam nem se afetam apenas pela poderá ser exercida se a associação habilitar-se em
existência dos primeiros. órgão competente da Administração Pública, com
O Capítulo II do Título V, arts. 90 a 92, adoção de princípios de administração bem próprios
afeta diretamente o tema dos direitos de artistas ao poder público.
intérpretes ou executantes, que (art. 90) podem O art. 98-A contém um rígido, burocrático,
autorizar ou proibir, graciosa ou remuneradamente, extenso, trabalhoso e difícil roteiro para o
qualquer modalidade de utilização ou reprodução de funcionamento das associações de autores e
suas obras; se é um conjunto de intérpretes, ao seu titulares de direitos conexos, e os arts. 98-B e 98-
diretor, que os músicos nomeiam se já não for ele o C, ao lado ainda dos arts. 99, 99-A, 99-B, 100-A e
representante nato, exercerá os direitos. 100-B, todos esses acrescidos pela Lei nº 12.853,
Um tema recorrente nesses artigos é a fixação de 2013, revelam a inequívoca e indisfarçável
da interpretação, que é utilização do trecho como obsessão do governo federal por intervir em todas
prefixo, tema, vinheta ou mote, que faça reconhecer as searas da atividade privada e particular.
o programa ou a específica emissão. E sobre a Esse monumental atraso de vida, fruto de um
fixação e sua repetida utilização, a lei estabelece governo socializante, esquerdizante e atrasado,
regras de atribuição dos direitos autorais, ao titular como o são todos dessa tendência, sem exceção,
ou aos seus sucessores quando é o caso. de um só na face da o planeta desde que alguém
inventou a esquerda, que reduziu o país ao
O art. 93 dispõe brevemente sobre os direitos
descalabro mais completo em todos os aspectos
dos produtores fonográficos, e o art. 95 sobre o das
imagináveis nos meados da década de 2010 e
empresas de radiodifusão, ambos com rematada
que exigirá talvez meio século para vê-lo recuperar-
brevidade, o que denota que a lei atentou bastante
se plenamente, está patente também na lei dos
mais aos direitos do autor que aos das empresas de
direitos autorais.
divulgação das obras, protegendo, portanto, a parte
Corrompeu, maculou e contaminou lei dos
tradicionalmente mais fraca da relação negocial.
direitos autorais, de origem bastante melhor, que
O art. 96 estabelece como sendo de 70 anos o
após a alteração de 2013. Lei nº 12.853/13:
prazo de proteção dos direitos conexos, e o art. 97,
eis algo que merece ser expungido com urgência
já situado em outro Título, disciplina extensamente
do texto originário da lei, e que guarda a marca,
a utilização e o desfrute dos direitos conexos.
tecnicamente pestilencial, do seu autor.
Observa-se que nem a fixação nem os direitos
O Título VII da lei, arts. 101 a 110, contempla
conexos estão conceituados ou descritos nesta lei,
as sanções, ou a punibilidade, às violações dos
que em vez disso se esmerou em definir, no art.
direitos autorais. As penas civis (art. 101) não
5º, institutos e realidades que, mesmo se não o
afastam nem prejudicam as sanções penais, como
tivessem sido, não ensejariam dúvida alguma ao é de regra em qualquer ramo do direito.
aplicador, omitindo-se, entretanto, sobre outras, O art. 105 interessa diretamente ao tema do
como essas duas acima, que mereciam delimitação streaming, e pune a transmissão desautorizada
legal precisa. ou fraudulenta com paralisação imediata, e ainda
Mas o art. 97 e também o art. 98 tratam a possibilidade de multa, tudo se agravando
fundamentalmente de outro importante assunto, em reincidência pelo infrator. O curioso é que o
que é o das associações de autores e de titulares dispositivo praticamente determina ao juiz que
de direitos conexos. O art. 98, nesse sentido, tem suspenda a transmissão, o que é, no mínimo, de uma
não menos que 16 parágrafos, algo único nessa lei falta de técnica gravíssima, já que suprime o arbítrio
e que denota a relevância que o legislador empresta e o livre convencimento da autoridade judiciária – e
a esse assunto, ciente do papel fundamental que dessa vez o texto é o originário de 1998, não se
aquelas associações podem e devem exercer o devendo aos governantes intervencionistas que
na guerra dos autores pelos direitos autorais, editaram a lei de 2.013.
conhecida e irresolvida há talvez um século em Os demais artigos deste Capítulo pouco dizem
nosso país. à transmissão de peças por streaming.

46 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018
Direito autoral digital à luz da Lei nº 9.610, de 1998 – A jurisprudência existente

O Título VIII, que encerra a lei, dá as suas OI FM nas modalidades webcasting e simulcasting
disposições finais e transitórias, curtíssimas e (tecnologia streaming); (ii) se tais transmissões
resumidas a três artigos, de nenhum interesse para configuram execução pública de obras musicais
apta a gerar pagamento ao ECAD e (iii) se a trans-
o tema deste estudo.
missão de músicas por meio da rede mundial de
Assim é, em rapidíssima vista d’olhos, a computadores mediante o emprego da tecnologia
estrutura da lei dos direitos autorais no Brasil. streaming constitui meio autônomo de uso de obra
Uma boa lei em sentido geral e amplo, ainda intelectual, caracterizando novo fato gerador de co-
que com intervencionismos por sobre a atividade brança de direitos autorais.
privada e associativa, e invasões de competência
de um Poder estatal sobre outro, porém, e até
2. Streaming é a tecnologia que permite a transmis-
pelo seu sintetismo, bastante melhor que as leis são de dados e informações, utilizando a rede de
ultimamente produzidas em Brasília, uma tragédia computadores, de modo contínuo. Esse mecanismo
institucional possivelmente sem paralelo em nossa é caracterizado pelo envio de dados por meio de pa-
história jurídica. cotes, sem a necessidade de que o usuário realize
Por outro lado, a lei do marco civil, dito também download dos arquivos a serem executados.
marco regulatório, da Internet, a Lei nº 12.965, de
23 de abril de 2014, como é de esperar pouco diz 3. O streaming é gênero que se subdivide em vá-
ao tema, atendo-se apenas a questões operacionais rias espécies, dentre as quais estão o simulcasting
da própria rede mundial, e não a direitos de autor. e o webcasting. Enquanto na primeira espécie há
O que se questiona, ontem, hoje e talvez para transmissão simultânea de determinado conteúdo
sempre, é a capacidade de controle dos valores por meio de canais de comunicação diferentes,
na segunda, o conteúdo oferecido pelo provedor é
pagos como direitos autorais no Brasil, seja pelo
transmitido pela Internet, existindo a possibilidade
artista, seja pelas associações que constitui ou não de intervenção do usuário na ordem de exe-
para isso, seja por quem for. O assunto é fluido, cução.
informe, impalpável, quase fantasmagórico na sua
operacionalidade, e por si só essa característica
impõe todas as dificuldades imagináveis de 4. À luz do art. 29, incisos VII, VIII, “i”, IX e X, da
Lei nº 9.610/1998, verifica-se que a tecnologia
controle, sendo conhecidíssima a batalha sem fim
streaming enquadra-se nos requisitos de incidência
dos autores de obras pra receberem corretamente normativa, configurando-se, portanto, modalidade
seus direitos – e os que têm suas obras divulgadas de exploração econômica das obras musicais a de-
em streaming não constituem exceção. mandar autorização prévia e expressa pelos titula-
res de direito.
4 A jurisprudência já existente sobre o
tema 5. De acordo com os arts. 5º, inciso II, e 68, §§2º
e 3º, da Lei Autoral, é possível afirmar que o strea-
O egrégio Superior Tribunal de Justiça já decidiu
ming é uma das modalidades previstas em lei, pela
que a distribuição de obras musicais pela Internet qual as obras musicais e fonogramas são transmiti-
gera a cobrança de direitos autorais, conforme se dos e que a Internet é local de frequência coletiva,
lê do Recurso Especial nº 1.559.264-RJ, relator caracterizando-se, desse modo, a execução como
Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, Segunda Seção, pública.
julgado em 8 de fevereiro de 2.017, com a seguinte
ementa:
6. Depreende-se da Lei nº 9.610/1998 que é irre-
levante a quantidade de pessoas que se encontram
RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. INTERNET.
no ambiente de execução musical para a configu-
DISPONIBILIZAÇÃO DE OBRAS MUSICAIS. ração de um local como de frequência coletiva.
TECNOLOGIA STREAMING. SIMULCASTING Relevante, assim, é a colocação das obras ao alcan-
E WEBCASTING. EXECUÇÃO PÚBLICA. ce de uma coletividade frequentadora do ambiente
CONFIGURAÇÃO. COBRANÇA DE DIREITOS digital, que poderá, a qualquer momento, acessar o
AUTORAIS. ECAD. POSSIBILIDADE. SIMULCASTING. acervo ali disponibilizado. Logo, o que caracteriza a
MEIO AUTÔNOMO DE UTILIZAÇÃO DE OBRAS execução pública de obra musical pela Internet é a
INTELECTUAIS. COBRANÇA DE DIREITOS AUTORAIS. sua disponibilização decorrente da transmissão em
NOVO FATO GERADOR. TABELA DE PREÇOS. si considerada, tendo em vista o potencial alcance
FIXAÇÃO PELO ECAD. VALIDADE. de número indeterminado de pessoas.

1. Cinge-se a controvérsia a saber: (i) se é devida


a cobrança de direitos autorais decorrentes de exe- 7. O ordenamento jurídico pátrio consagrou o reco-
cução musical via Internet de programação da rádio nhecimento de um amplo direito de comunicação ao

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018 ARTIGOS 47
Ivan Barbosa Rigolin, Gina Copola

público, no qual a simples disponibilização da obra 10. Recurso especial provido.


já qualifica o seu uso como uma execução pública,
abrangendo, portanto, a transmissão digital interati- Esse acórdão é o leading case brasileiro, ao
va (art. 29, VII, da Lei nº 9.610/1998) ou qualquer considerar o streaming de obra musical no ambiente
outra forma de transmissão imaterial a ensejar a digital como execução pública, e, por isso, enseja
cobrança de direitos autorais pelo ECAD.
a necessidade de pagamento de direitos autorais
ao autor da obra. Nesse sentido, representa um
8. O critério utilizado pelo legislador para determi- marco bastante importante no terreno dos direitos
nar a autorização de uso pelo titular do direito auto- autorais, que desde logo evitará desacertos e
ral previsto no art. 31 da Lei nº 9.610/1998 está demandas sem conta.
relacionado à modalidade de utilização e não ao E tal decisão – o que é tranquilizador nesse
conteúdo em si considerado. Assim, no caso do si- panorama – foi confirmada pelo Supremo Tribunal
mulcasting, a despeito do conteúdo transmitido ser Federal, no Recurso Extraordinário nº 1056363,
o mesmo, os canais de transmissão são distintos relator Ministro Alexandre de Moraes, com
e, portanto, independentes entre si, tornando exi-
recentíssima decisão datada de 9 de outubro de
gível novo consentimento para utilização e criando
novo fato gerador de cobrança de direitos autorais
2017, e publicada em 17 de outubro de 2017.
pelo ECAD.
Dezembro 2017

9. Está no âmbito de atuação do ECAD a fixação


de critérios para a cobrança dos direitos autorais, Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002
que serão definidos no regulamento de arrecada- da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
ção elaborado e aprovado em Assembleia Geral,
RIGOLIN, Ivan Barbosa; COPOLA, Gina. Direito autoral digital à
composta pelos representantes das associações luz da Lei nº 9.610, de 1998 – A jurisprudência existente. Fórum
que o integram, e que contém uma tabela especi- Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48,
ficada de preços. Inteligência do art. 98 da Lei nº jan. 2018.
9.610/1998.

48 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 18, n. 203, p. 42-48, jan. 2018

Você também pode gostar