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RESENHA DO LIVRO “HIBRIDISMO CULTURAL” DE PETER BURKE

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2006.

Anderson Lopes da Silva1

Peter Burke nasceu em 1937, em Stanmore, no deixa claro que o sentido dos processos híbridos
subúrbio de Londres (Reino Unido). O historiador, não pode ser considerado sinonímico em sua ocor-
que possui doutorado pela Universidade de Oxford, rência nas religiões sincréticas, nas línguas híbridas,
começou sua carreira acadêmica na Universidade nas culinárias mestiças, nos estilos literários que se
de Sussex, na Inglaterra, e atualmente leciona na misturam, nas filosofias de abordagem eclética, na
Universidade de Cambridge. É reconhecido inter- arquitetura, na música e em outras formas. Em cada
nacionalmente pelos temas ligados à História da espaço social e histórico essas ocorrências possuem
Cultura e, especialmente, por sua abordagem his- sentidos distintos.
toriográfica sociocultural acerca do Brasil e alguns Assim, ele trata dos artefatos híbridos apre-
pensadores como Gilberto Freyre. Burke também sentando exemplos da arquitetura, das imagens de
foi professor-visitante na Universidade de São Paulo culto e de gravuras, além dos textos e sua estilística
durante os anos de 1994-1995. que passam por processos de mistura em dois níveis.
O historiador cultural apresenta, em tom de en- O primeiro está relacionado aos “estereótipos ou es-
saio, uma literatura que pode ser considerada básica, quemas culturais” presentes na estrutura da percep-
didática e, por isso mesmo, hipertextual. Esta última ção e interpretação do mundo (que são acionados no
característica se deve principalmente pela reiteração momento da construção destes) e o segundo relacio-
de alguns autores dos Estudos Culturais trabalhados nado às “afinidades ou convergências” de distintas
em Burke (como Stuart Hall, Homi Bhabha e Nestór tradições, nas quais a origem do artefato híbrido pode
García Canclini) e o direcionamento que ele oferece possuir semelhanças comungadas pela sua represen-
ao leitor para potenciais aprofundamentos. Durante tação e sentido nos espaços sociais de sua produção
toda obra o enfoque do autor inglês detém-se sobre a (BURKE, 2006, p. 26). Um aspecto que merece des-
ideia de “variedade”, sob uma perspectiva histórica, taque, segundo o autor, é que nos artefatos híbridos é
que tenta analisar a “mistura”, a “mixórdia”, ao invés possível perceber características de inovação, efeitos
de replicá-la tão somente (2006, p. 21). equivalentes e assimilações e uma total recusa à imi-
Na obra “Hibridismo Cultural” (2006), o autor tação pura e simples (BURKE, 2006, p. 27-28).
apresenta a temática a partir de uma divisão que diz Por sua vez, as práticas culturais híbridas tam-
respeito às várias formas de leitura da hibridização: bém podem ser identificadas na música, na religião,
a) seja pela variedade de objetos considerados híbri- na linguagem, no esporte e nas festividades a partir
dos; b) pelas nomenclaturas utilizadas para a descri- das relações entre as instituições e as pessoas. Fica
ção do processo; c) pelas distintas situações nas quais nítida a correlação entre o conceito de hibridização
as ocorrências híbridas são potenciais; d) as reações para Burke e pelo pesquisador indiano Homi Bhabha,
possíveis à hibridização; e, por fim, e) os resultados baseando-se na inter-relação identidade, representa-
destes processos numa perspectiva de longo prazo. ção social e linguagem. Para Bhabha só é possível
Acerca da variedade de objetos híbridos, entender as representações criadas acerca da hibridi-
Burke é cauteloso em explicitar o lugar de onde fala. zação a partir da esfera do discurso, em outras pala-
Assim, ao apresentar as três subdivisões dos objetos, vras, é na linguagem que se encontram os caminhos
isto é, os artefatos, práticas e povos híbridos, o autor desenhados pela identidade híbrida e mestiça. Outros

1 Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (PPGCOM / UFPR). Especialista em Comunicação, Cultura e Arte (PUCPR) e Jornalista
(FACNOPAR). Bolsista da Capes. E-mail: anderlopps@gmail.com.

Publ. UEPG Ci. Soc. Apl., Ponta Grossa, 22 (2): 229 -231, jul./dez. 2014
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exemplos dados pelo autor inglês como práticas cul- entendida preconceituosamente por dar origem a su-
turais são o carnaval brasileiro, as igrejas e as forma- jeitos “bastardos” ou de “fecundação-cruzada”, mas
ções religiosas que se apropriam de diversas formas que, hoje, já possui uma conotação que se descolou
de culto, ícones e filosofias (BURKE, 2006, p. 28-35). da carga pejorativa (BURKE, 2006, p. 51).
Já a variedade de objetos que diz respeito aos As situações nas quais a hibridização cultural
povos híbridos está mais ligada à figura do híbrido pode ocorrer são apresentadas pelo autor a partir de
como um mediador cultural e as formas de repre- quatro pressupostos básicos, elencadas na seguinte
sentação social dos que “nascem híbridos”, isto é, ordem: a noção de iguais e desiguais (ligada princi-
aqueles que já nascem com uma consciência dúplice, palmente às relações de poder nas quais o mais “for-
os frutos de dois ou mais povos e que, por isso, pos- te” impõe sua forma de cultura, ainda que existam
suem uma relação extremamente peculiar com sua elementos que assegurem a resistência dos mais “fra-
origem e identidade. cos”); a ideia das tradições de apropriação, também
Como exemplo de correlação entre visões sobre chamadas de tradições de modificação de tradições
a hibridização é possível ver em Burke a variedade de (aqui há variados níveis de aceitação e adaptação por
povos híbridos quando este apresenta os anglo-irlan- parte do embate entre as culturas); há também a dis-
deses, os anglo-indianos, os afro-americanos, os sino- cussão acerca da situação entre a metrópole e as regi-
-americanos, os gregos de Constantinopla e os judeus ões ao redor (em especial sobre a questão das trocas
e mulçumanos que viveram em Andaluzia (Espanha). culturais entre centro e periferia) e fronteiras (o cho-
A esta visão, pode-se acrescentar a leitura que o jamai- que entre culturas diferentes promove elementos hí-
cano e teórico da cultura Stuart Hall faz dos sujeitos bridos que são lidos pelo olhar das interculturas); e a
que migram de seus países – como no exemplo daque- concepção de classe como culturas, isto é, a situação
le que sai de uma ex-colônia para o antigo país coloni- na qual mais uma vez o poder relacional e a luta de
zador – e que começam a viver experiências que já não classes, com destaque para processos de resistência e
os “classificam” como indivíduos estrangeiros e nem consensualidade, são estimuladores da hibridização
como nativos, mas sim como híbridos pós-coloniais. (BURKE, 2006, p. 65-75). Acerca desses fatores é
A variedade de terminologias usadas para a interessante observar que o que antropólogo argenti-
descrição dos processos de interação e consequên- no García Canclini entende por hibridização cultural
cias da hibridização cultural são, ao contrário dos – como o desmoronamento da separação entre cul-
artefatos, nomenclaturas que representam um mes- tura popular, erudita e massiva – relaciona-se per-
mo valor semântico. Segundo o historiador inglês, feitamente com a visão de Burke acerca das ideias
as metáforas que dominam as discussões acerca da compartilhadas por ambos sobre as redes transfron-
hibridização são advindas de outros campos (como teiriças de cultura e troca de símbolos.
economia, linguística e biologia): empréstimo, hibri- Ao falar das reações aos processos hibridiza-
dismo, caldeirão cultural, ensopadinho cultural, tra- dores, Peter Burke pergunta: “A troca é uma conse-
dução cultural e crioulização. quência dos encontros: mas quais são as consequên-
Entretanto, mesmo que tenham significados cias da troca?” (2006, p. 77). A resposta à indagação
correlatos, cada uma das terminologias pode referir- pode ser descrita em quatro principais reações: a
-se a processos específicos de hibridização cultural aceitação, a rejeição, a segregação e a adaptação.
como a imitação e a apropriação cultural; a acomoda- A reação de aceitação à hibridização é exemplificada
ção e a negociação; a mistura, o sincretismo e a hibri- pelo autor como a “londonização cultural” do Brasil
dização e, finalmente, a tradução cultural (BURKE, no início do século XIX (BURKE, 2006, p. 95), em
2006, p.39-54). No nível discursivo esta variedade de que costumes, vestimentas e valores da zona tempe-
termos pode referir-se ora a um viés mais descritivo rada eram transpostos para a zona tropical (sempre
e explicativo, ora a um viés no qual o agente indivi- por interações culturais que conseguem harmonizar
dual ou as ações coletivas são capazes de promover o conflito e, por fim, a aceitação). A rejeição é escla-
a hibridização. Além disso, novos sentidos começam recida através da resistência ao diferente, da estraté-
a ser dados a termos como “mestiçagem”, que era gia de defesa contra a invasão das fronteiras culturais

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Resenha do livro “Hibridismo Cultural” de Peter Burke
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e por uma “purificação cultural” (entretanto, de acor- Por fim, os resultados possíveis de longo pra-
do com o autor, também existe aqui a valoração po- zo esperados da hibridização cultural, de acordo com
sitiva da rejeição, aquela que – por meio da educação Peter Burke, são direcionados pela quase “erradica-
– tenta manter a cultura oral, as tradições e outros ção” das chamadas culturas insulares, isto é, nenhu-
elementos que a constituem frente à ideia de uma ma cultura pode sobreviver sem interações com o
cultura globalizada) (BURKE, 2006, p. 80-86). diferente (BURKE, 2006, p. 101).
A reação de segregação ocorre quando tudo o Tais resultados podem ser descritos em qua-
que é distinto da cultura local é visto como ameaça- tro cenários (BURKE, 2006, p. 103-115): como a
dor e evitam todas as formas – mesmo que em fran- contraglobalização (uma ênfase na identidade local
ca desvantagem – de hibridização com um potencial e forte tendência à rejeição às culturas externas, aos
“mosaico cultural” (BURKE, 2006, p. 88). A tendên- sujeitos e seus modos de vida); a diglossia cultural
cia, de acordo com Burke, é que a segregação radical (presença e quase exigência do bilinguismo cultural,
venha, com o tempo, a transformar-se em adaptação e em especial nas zonas fronteiriças); a homogeiniza-
negociação, ou seja, “um empréstimo no varejo para ção da cultura (aqui as ideias de imperialismo cul-
as partes em uma estrutura tradicional” que descon- tural são parecidas à homogeinização, entretanto, a
textualiza e recontextualiza (2006, p. 91) o objeto produção de hibridização já começa pela “glocaliza-
original para uma nova significação em sua cultura ção”) e o cenário da hibridização com a metáfora da
(como a “tropicalização” brasileira da culinária, ar- “crioulização” e sua abertura às novas culturas, à re-
quitetura e vestimentas de outros países e seus imi- configuração dos elementos já existentes e à criação
grantes). A metáfora da circularidade (“reexportação” fluida de ambientes híbridos peculiares.
do item hibridizado ao local de origem) e o papel dos
tradutores (e a necessidade da equivalência sócio-se-
mântica para o exercício da profissão) encaixam-se Recebido em fevereiro de 2014
na reação adaptativa (BURKE, 2006, p. 94-97). Aceito em abril de 2014

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