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A BÍBLIA FALA HOJE

A Mensagem de
1 Coríntios
A vida na igreja local

David Prior

ABU Editora S/C


Livros Para G e n te Q u e Pensa
Outros livros desta série:

A Mensagem de Rute - David Atkinson


A Mensagem de Eclesiastes - Derek Kidneí
A Mensagem de Daniel - Ronald S. Wallace
A Mensagem de Oséias - Derek Kidner
A Mensagem de Amós (O Dia do Leão) - J. A. Motyer
A Mensagem do Sermão do Monte - Johr ^ W. Stott
A Mensagem de Atos (em prepa^-ção) . ^ ^ .Stott
A Mensagem de Romanos 5-P john R ] - ■
A Mensagem de Gálatas - Jo, si R. W. Stoti
A Mensagem de Efésios - John R. W. Stott
A Mensagem de 2 Timóteo (Tu, Porém) - Job W. Stott
A Mensagem de Apocalipse - Michae’ 1
A Bíblia Fala Hoje

Editores da série: J. A. Motyer (AT)


John R. W. Stott (NT)

A MENSAGEM DE 1 CORÍNTIOS
A vida na igreja local
A Mensagem de 1 CORÍNTIOS
Traduzido do original em Inglês
TH E M ESSA G E O F 1 CO RIN TH IA N S
Inter-V arsity Press, Leicester, Inglaterra
C opyright © D avid Prior, 1985

D ireitos reservados pela


A BU Editora S /C
Caixa Postal 7750
01064-970 - São Paulo - SP

Tradução de Yolanda M irdsa K rievin


Revisão de Solange D om ingues da Silva, Lucy Yam akam i, N orio Yam akam i
e M ilton A zevedo A ndrade

O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e A tualizada no Brasil,


da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.
Com entários do autor quanto às diferentes versões inglesas foram , sem pre que
possível, adaptados às principais versões da Bíblia em português.

I a Edição - 1993
A Bíblia Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Antigo
como do Novo Testamento, que se caracterizam por um triplo
objetivo: expor acuradamente o texto bíblico, relacioná-lo com a
vida contemporânea e proporcionar uma leitura agradável.
Esses livros não são, pois, "comentários", já que um comentário
busca mais elucidar o texto do que aplicá-lo, tende a ser uma obra
mais de referência do que literária. Por outro lado, esta série
também não apresenta aquele tipo de "sermões" que, pretendendo
ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de abordar a
Escritura com suficiente seriedade.
As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção
de que Deus ainda fala através do que já falou, e que nada é mais
necessário para a vida, o crescimento e a saúde das igrejas e dos
cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através da
sua Palavra, tão antiga e, mesmo assim, sempre atual.

J. A. Motyer
J. R. W. Stott
Editores da Série
Para Rosemary,
que compartilha a minha vida na igreja local,
que sabe a fundo o quanto isso custa,
e sem a qual eu não poderia suportar adequadamente
as suas tristezas nem apreciar as suas alegrias.
índice

Prefácio Geral 5
Prefácio do Autor 8
Principais Abreviaturas 10
Introdução 11
1. A Igreja Perfeita (1:1-9) 20
2. Partidos em Corinto (1:10-17) 29
3. A Verdadeira Sabedoria e a Falsa (1:18 - 2:16) 41
4. Loucos por Amor a Cristo (3:1-4:21) 58
5. Fugi da Fornicação (5:1-13; 6:9-20) 74
6. Soluções Fora dos Tribunais (6:1-8) 112
7. Casamento e Celibato: Dons de Deus (7:1-40) 121
8. Liberdade e Sensibilidade Diante dos Outros (8:1-13) 149
9. Liberdade para Limitar a Própria Liberdade (9:1-27) 160
10. A Liberdade e Seus Perigos (10:1 —11:1) 177
11. A Comunidade Cristã no Culto (11:2-34) 191
12. Os Dons Espirituais (12:1-31) 205
13. Se Eu Não Tiver Amor... (13:1-13) 241
14. Profecia e Línguas (14:1-40) 252
15. Ressurreição: Passado, Presente e Futuro (15:1-58) 274
16. Uma Igreja Internacional (16:1-24) 298
A carta de Paulo à igreja de Corinto tornou-se real para mim pela
primeira vez na Cidade do Cabo —uma cidade, tal como Corinto,
dominada por uma montanha; um porto cosmopolita e heterogêneo;
e um ponto de encontro de muitas e diferentes culturas, credos e
cultos. Tal como Corinto nos anos cinqüenta do primeiro século, a
Cidade do Cabo presenciava um notável derramamento do Espírito
de Deus em sua igreja, nos anos setenta deste século.
Nos primeiros meses do ano de 1974, o povo de Deus na igreja de
Wynberg, um subúrbio da Cidade do Cabo, estudou o texto de 1
Coríntios em uma escola bíblica semanal. A medida que o poder
renovador do Espírito de Deus se infiltrava na igreja, todos nós
lutávamos com as tensões e as alegrias inerentes a qualquer situação
desse tipo. E surgiram muitas oportunidades para partilharmos os
estudos e a vida em outros contextos: com colegas em um retiro da
diocese; com um grupo de cristãos, heterogêneo em todos os sentidos,
na cidade universitária de Grahamstown; com uma outra congregação
em Durban. Então, em 1976, veio-me a oportunidade de conhecer uma
igreja renovada num ambiente totalmente diferente da Inglaterra ou
da África do Sul: passei um mês experimentando uma vida diferente
na igreja do Chile e entre o povo de Deus em Buenos Aires.
Houve também outros contextos (Inglaterra, Estados Unidos,
Canadá, Brasil, Jamaica, Zimbábue, Uganda e África do Sul), onde os
temas de 1 Coríntios têm sido discutidos, geralmente durante
conferências ou campanhas evangelísticas —com destaque especial
para o período entre outubro de 1979 e março de 1980, quando estive
na igreja de St. Aldate, em Oxford.
Em outras palavras, este livro é o resultado de uma vida e um
ministério dentro do que foi (de forma conveniente, mas enganosa)
chamado de Renovação com "R" maiúsculo, numa grande diversidade
de ambientes culturais.
Dessa experiência tão rica, desenvolvida nos últimos 17 ou 18 anos,
surgiu a convicção sempre crescente de que não somente a "Bíblia fala
hoje", mas que 1 Coríntios é, de maneira singular, um tratado para
todos os tempos. Talvez devêssemos dizer 1 e 2 Coríntios, pois a
correspondência coríntia, como um todo, sustenta, de modo muito
bem equilibrado, a dupla vocação do povo de Deus: a glória e o
sofrimento.
C. K. Barret, cujos dois esplêndidos comentários na série de A. &
C. Black iluminaram com muita propriedade o texto de Coríntios, o
expôs de maneira notável:

Creio que a igreja da nossa geração tem a necessidade de


redescobrir o evangelho apostólico; e para isso precisa da Epístola
aos Romanos. Ela também tem a necessidade de redescobrir a
relação entre esse evangelho e a sua ordem, a sua disciplina, o seu
culto e a sua ética; e para isso precisa da Primeira Epístola aos
Coríntios. Se a igreja fizer essas descobertas, poderá perceber que
está quebrada; e isso viria a ser o significado da Segunda Epístola
aos Coríntios. (1967)

...Mas um vaso de barro que contém tal tesouro não precisa


temer ser quebrado. A vocação apostólica consiste em proclamar
a morte de Jesus, e aqueles que a aceitam costumam descobrir que
o funeral transformou-se em triunfo, quando aprendem a confiar
não mais em si mesmos, mas naquele que ressuscita os mortos.
(1972)

Tenho uma dívida imensa para com Anne Johnson e Betty Ho Sang,
que foram incansáveis na datilografia deste manuscrito. Sou muito
grato a John Stott, pelo seu incentivo e pelos seus comentários
incisivos, e também a Frank Entwistle e aos membros do Conselho
Editorial da IVP, pelo julgamento inteligente do estilo e do conteúdo.
É inevitável que qualquer exposição de 1 Coríntios não satisfaça ou
até desagrade alguns leitores. Minha oração é que este livro capacite
muitas igrejas, direta e indiretamente, a reconhecer e a enfrentar os
problemas inerentes ao povo de Deus no mundo de hoje.. E bom
lembrar que "Deus é fiel", especialmente em todas as nossas provações
e tribulações. "A graça do Senhor Jesus esteja com todos vocês."

David Prior
Principais Abreviaturas

Dentre os muitos comentários sobre a correspondência coríntia, os


seguintes foram consultados com maior freqüência:
Alio Le P. E. - B. Allo, Saint Paul, Première Épître aux
Corinthiens (J. Gabalda, Paris, 1956).
Barclay W. Barclay, The Letters to the Corinthians (The Daily
Study Bible, The Saint Andrew Press, 1954).
Barrett C. K. Barrett, A Commentary on the First Epistle to the
Corinthians (Black's New Commentaries, A & C. Black,
1968).
Bruce F. F. Bruce, 1 and 2 Corinthians (The New Century Bible
Commentaries, Eerdmans and Marshall, Morgan &
Scott, 1971).
Conzelmann Hans Conzelmann, 1 Corinthians (Hermeneia, Fortress
Press, 1975).
Dods Marcus Dods, The First Epistle to the Corinthians (The
Expositor's Bible, Hodder & Stoughton, 1889).
Godet F. Godet, Commentary on St Paul's First Epistle to the
Corinthians (T. & T. Clark, 1889), 2 volumes.
Goudge H. L. Goudge, The First Epistle to the Corinthians
(Westminster Commentaries, Methuen, 1903).
Hodge Charles Hodge, A Commentary on the First Epistle to the
Corinthians (Geneva Series, Banner of Truth, 1958).
Morgan G. Campbell Morgan, The Corinthian Letters o f Paul
(Oliphants, 1947).
Morris L. Morris, 1 Coríntios (Série Cultura Bíblica, Vida Nova
e Mundo Cristão, 19893).
Ruef John S. Ruef, Paul's First Letter to Corinth (Pelican New
Testament Commentaries, Penguin, 1971).
Além desses, usamos de maneira considerável Gifts and Graces (Dons
e Graças) de Arnold Bittlenger (Trad, inglesa, Hodder & Stoughton,
1967), um comentário exegético sobre os capítulos 12 a 14.
Introdução

Corinto localizava-se em um istmo estreito de apenas seis quilômetros


de largura, que liga o sul da Grécia com o restante do país e com os
países ao norte. Nessa importante posição, Corinto tomou-se,
inevitavelmente, um próspero centro comercial: por terra, todos
passavam por ela; pelo mar, os marinheiros geralmente preferiam usar
os portos de Lequeu e Cencréia, que flanqueavam a cidade nos dois
extremos do istmo, para não circunavegar as perigosas águas do Cabo
Malea no extremo sul da Grécia (um percurso de mais de 320
quilômetros). Para os grandes navios, era uma questão de descarregar
em um porto para que a carga fosse transportada por carregadores até
um outro navio. Os navios pequenos podiam ser colocados sobre
cilindros e arrastados através do istmo, sendo relançados ao mar, no
outro lado. Nero, imperador romano de 40 a 66 d.C., fez uma tentativa
fracassada de construir um canal nesse istmo. O canal de Corinto só
veio a ser completado em 1893.
~ Como a maioria dos portos marítimos, Corinto tornou-se tão
próspera quanto licenciosa. A evidência disso era que os gregos
tinham esta palavra para designar uma vida de libertinagem:
korinthiazein, isto é, viver como um coríntio. Homero1 fala da "rica
Corinto" e Tucídides2 se refere à sua importância militar devido ao
controle que exercia sobre os portos de Lequeu e Cencréia. Os Jogos
ístmicos, que só perdiam em importância para os Jogos Olímpicos,
eram realizados em Corinto.
— Dominando a cidade estava o "Acrocorinto", uma montanha de
mais de 560 metros de altura, sobre a qual se encontrava o grande
templo de Afrodite, a deusa grega do amor. As mil sacerdotisas do
templo, que eram prostitutas sagradas, desciam à cidade ao cair da
tarde para oferecer os seus serviços pelas ruas.
O culto era dedicado à glorificação do sexo.3 A adoração prestada
a Afrodite era paralela à de Astarote (uma imitação do culto sírio a
Astarte) na época de Salomão, Jeroboão e Josias.4
Ao pé do Acrocorinto realizava-se o culto a Melicertes, deus
patrono da navegação —o mesmo que Melcarte, o deus principal ou
"baal" da cidade de Tiro (cujo culto também foi introduzido em Israel
no século nono a.C., quando Acabe casou-se com Jezabel, filha do rei
de Tiro e Sidom).5 Assim, Astarte e Melcarte, a deusa e o deus de
Corinto, eram o resultado direto da influência oriental.
Além disso, havia dentro da própria cidade o Templo de Apoio.
Apoio era o deus da música, do canto e da poesia; também
simbolizava o ideal da beleza masculina. Estátuas e frisos de A d o I o
nu, em diversas posturas que exibiam sua virilidade, inflamavam seus
adoradores m asculinos a prestarem devoção através de
demonstrações físicas com os belos rapazes a serviço da divindade.
Corinto era, portanto, um centro de práticas homossexuais.6
Diversos fatores históricos também desempenharam um papel
significativo na formação da civilização de Corinto, onde Paulo esteve
em 50 d.C. pela primeira vez. Em 146 a.C., a Liga das Cidades-estados
Gregas da Acaia, que desafiou a expansão romana durante algum
tempo, entrou em colapso, e Corinto (que liderava a oposição a Roma)
foi arrasada; seus cidadãos foram mortos ou vendidos como escravos.
O lugar estratégico continuou assim por um século, até que Júlio César
(que tinha visão para um bom negócio) voltou a edificar a cidade
coríntia como uma colônia romana. V ^

Uma colônia romana era uma pequena Roma plantada em terras


habitadas por outros povos, para ser um centro de vida romana
e manter a paz. Ao longo das grandes estradas romanas -
rodovias militares que partiam de Roma, chegando às diversas
fronteiras do Império - essas colônias de cidadãos romanos eram
implantadas como pontos estratégicos e desempenhavam um
importante papel na organização do império.7

A partir de 46 a.C., Corinto emergiu para uma nova prosperidade,


adquirindo um caráter cada vez mais cosmopolita. Na qualidade de
colôhia romana, Corinto recebeu a sua cota de veteranos do exército
romano, que ganharam terras para ali se fixarem como colonizadores.
Essa poderosa minoria garantiu um sabor romano à nova cidade, mas
logo surgiu uma miscelânea de raças, línguas e culturas. Aqueles que
tinham interesses comerciais, investidores e vários outros, entre eles
muitos judeus, começaram a se fixar ali. Farrar descreve Corinto da
seguinte maneira:

Essa população híbrida e heterogênea de gregos aventureiros e


romanos burgueses, com uma mistura marcante de fenícios; essa
m assa de judeus, ex-soldados, filósofos, m ercadores,
marinheiros, escravos, libertos, comerciantes, vendedores
ambulantes e promotores de todas as formas de vícios.8

Barclay caracterizou-a como uma colônia "sem aristocracia, sem


tradição e sem cidadãos bem-estabelecidos".9
Corinto era um lugar turbulento e cheio de violência na metade do
primeiro século. Não é difícil imaginar sua reputação e realidade. Não
estaríamos exagerando se disséssemos que as cidades modernas como
S. Francisco, Rio de Janeiro ou a Cidade do Cabo são réplicas daquele
mesmo desafio urbano ao evangelho apostólico.
Pollock expõe assim a situação que Paulo enfrentou:

Corinto era a maior cidade que Paulo já visitara, uma metrópole


comercial nova e impetuosa ... Comprimia quase um quarto de
milhão de pessoas numa área relativamente pequena, sendo uma
grande parte delas constituída de escravos ocupados com o
movimento incessante de mercadorias. Escravos ou livres, os
coríntios eram gente sem raízes, arrancadas de seus países e
culturas, oriundas de todas as raças e províncias do império ... um
paralelo curiosamente próximo com a população dos centros
urbanos do século X X ...
Paulo já vira a igreja cristã crescer e florescer em cidades de
médio porte na Macedônia. Se o amor de Cristo Jesus pudesse
enraizar-se em Corinto, a cidade mais populosa, rica/
comercialmente próspera e obcecada pelo sexo na Europa
Oriental, poderia mostrar-se poderoso em qualquer outro lugar.10

Paulo em Corinto

Em vista desses fatores, não nos surpreende descobrir que Paulo


descreve sua chegada a Corinto como cheia de "temor e tremor"11—ele
estava realmente muito assustado. Por mais confiante que estivesse
no poder do evangelho, qualquer que fosse a devida interpretação da
natureza e do impacto de sua pregação aos atenienses, que ocorrera
imediatamente antes de sua vinda a Corinto; por mais abalado que se
encontrasse por causa do tratamento selvagem que recebera algumas
semanas antes, na Macedônia - Paulo não seria normal se deixasse de
ficar consideravelmente perturbado com a reputação de Corinto no
mundo mediterrâneo. O fato de ele destacar o seu "temor e tremor"
deveria indicar que ele considerava Corinto uma cidade
notavelmente, se não excepcionalmente, assustadora.
Em Atos 18:1-18, encontramos uma narrativa dos 18 meses em que
Paulo ficou em Corinto (mais-tempo do que ficou em qualquer outro
lugar, com exceção de Éfeso). A partir disso podemos destacar alguns
fatos sobre o seu ministério. Como em Éfeso, ele exerceu a sua
profissão de fabricante de tendas, pelo menos nas primeiras semanas
de sua estada, até se adaptar à situação, e ser conhecido como
pregador e mestre. Uma oferta de amor das igrejas da Macedônia e
Filipos, trazida mais tarde por Silas e Timóteo, também lhe deu
liberdade para concentrar-se no ministério de pregação e ensino. Se
a sua agenda em Éfeso pode ser usada como referência, Paulo deve
ter dedicado cerca de oito horas diárias ao trabalho manual, deixando
talvez o período das 11 às 16 horas para o ministério da palavra.12Nos
meses quentes de um clima mediterrâneo, isto representa uma rotina
rigorosa para um homem que, ao que tudo indica, não era dotado de
uma saúde muito boa.
Um estudo mais detalhado da narrativa de Lucas sobre o p e r ío d o
que Paulo passou em Corinto trará à luz o relacionamento do apóstolo
com os cristãos daquela cidade.
Comparado ao rude tratamento que recebeu nas mãos dos
macedônios, especialmente em Filipos, o período que Paulo passou
em Atenas foi relativamente tranqüilo - a costumeira combinação de
zombaria e interesse, mas não muitos convertidos. Contudo, uma
igreja foi fundada em Atenas. Paulo seguiu para Corinto sentindo-se
fraco em todos os aspectos: fisicamente abatido, espiritualmente
frustrado com a experiência ateniense, emocionalmente carente, sem
a companhia de Silas e Timóteo e, naturalmente, um pouco receoso
de enfrentar, face a face, a cidade do amor livre.
Podemos deduzir que Paulo chegou a-Corinto por volta de março
do ano 50 e ficou lá até setembro de 51 (as datas podem sofrer uma
diferença de cerca de um ano). A data mais provável para a Epístola
de 1 Coríntios é o começo de 54 ou talvez o final de 53 (isto é, mais ou
menos no meio de sua estada de dois anos e meio em Éfeso).
Andando pelas ruas, Paulo foi inevitavelmente atraído pelos
comerciantes da sua própria ocupação, a confecção de tendas (ou, de
maneira mais ampla, trabalhos em couro). Aparentemente, como rabi,
Paulo sentia a necessidade de ter uma outra fonte de renda, porque
os rabis deviam realizar suas funções religiosas e legais sem cobrar
honorários. Uma das manufaturas locais da província, na Cilicia, era
a fabricação de tendas, com um tecido feito de pêlo de cabras
(conhecido como cilicium). Naturalmente ele dçvia ter se sentido
atraído por essa habilidade nativa, encontrando nela a satisfação e o
prazer do trabalho criativo, da mesma forma que, sem dúvida, Jesus
encontrou na carpintaria. Entre os cidadãos, ele reconheceu um
compatriota judeu, Aqüila, e não é preciso ter muita imaginação para
deduzir como foi a conversa inicial entre eles. Aqüila e Priscila já
estavam acostumados a freqüentes mudanças de um lugar para outro
e, prontamente, devem ter oferecido a hospitalidade de sua casa a esse
pregador solitário, que também encontrara a vida plena e o shalom em
Jesus.
Não é difícil imaginar o grande conforto que esse encontro deve ter
proporcionado a Paulo em sua "fraqueza". Parece que Deus realmente
lhe deu um encorajamento muito significativo durante todos os 18
meses em que permaneceu em Corinto. Primeiro, através de Aqüila
e Priscila; depois chegaram Silas e Timóteo, não apenas trazendo boas
notícias das igrejas macedônicas, mas também formando uma
poderosa equipe de cinco pessoas para infiltrar o evangelho nesta
importante capital da província. Um ministério assim compartilhado
é fundamental: precisa ser baseado em sólida amizade e parceria, não
apenas na realização das atividades "cristãs" em conjunto, mas no
compartilhamento de toda a vida. Áqüila e Priscila tornaram-se
companheiros achegados de Paulo e estavam prontos para mudar de
casa e de trabalho sob a convocação do Espírito, para a propagação do
evangelho.
Como de costume, Paulo concentrou-se inicialmente na sinagoga
e, apesar da oposição direta e, mais tarde, planejada da comunidade
judaica, recebeu grande estímulo com a conversão de Crispo,
responsável pela direção da sinagoga.13 Na verdade, parece muito
provável que também Sóstenes, o substituto de Crispo, tenha se
convertido a Jesus. Esse nome incomum aparece, junto com Paulo,
como o co-autor de 1 Coríntios.15 Não foi por menos que os judeus
ficaram tão enfurecidos com o impacto da pregação de Paulo.
Quando foi proibido de entrar na sinagoga, Paulo decidiu realizar
suas reuniões na casa ao lado. O proprietário da casa era Tício Justo
(com certeza um gentio), que provavelmente tinha um terceiro nome,
Gaio, mencionado em 1 Coríntios 1:14 e Romanos 16:23.
Assim Paulo conseguiu um local ideal, onde podia fazer contatos
com os coríntios, tanto judeus como gentios. De fato, muitos "criam
e eram batizados".16
A igreja crescia a passos acelerados. Havia muitos motivos para
Paulo estar confiante e animado, mas parece que ele continuava
sentindo-se abatido, cheio de incertezas e propenso à depressão.
Como John Pollock sugere:

Ele nunca mais ganharia outro coríntio para Cristo, não veria o
brilho da vida nova nos olhos de um homem. E ele temia a agonia
física de outro apedrejamento ou espancamento com varas; o
desconsolo de ser expulso novamente, com o inverno avançando
sobre eles, o mar turbulento, e nenhum lugar por onde levar as
suas juntas duras e envelhecidas, a não ser as trilhas montanhosas
do Peloponeso. Ele queria desistir, deixar de pregar, retirar-se
para viver com sossego e paz, voltando para o Taurus, para a
Arábia, para qualquer lugar.17

Então o Senhor, que entendia as pressões, a depressão, o desejo de


fugir, falou diretamente a Paulo em uma visão, reanimando o seu
espírito, garantindo-lhe muito mais frutos em Corinto e acabando com
o medo de mais castigos físicos, quando ele sabia que Paulo já recebera
o bastante. Paulo teria lembranças muito preciosas daqueles cristãos
em Corinto; eles se tornaram a prova viva da fidelidade de um Deus
que cuida dos seus servos fatigados e os encoraja.
O restante do tempo que passou em Corinto parece ter sido
relativamente sem incidentes; nesse período, Paulo ia "lhes ensinando
a palavra de Deus”,18 edificando firmemente a igreja, unificando-a e
expandindo suas fronteiras. Houve, porém, um pequeno suspense
quando um novo procônsul romano assumiu a direção da província:
Gálio, cunhado de Sêneca, tutor de Nero e filósofo. Os judeus
vislumbraram uma chance de ver Paulo preso, e acabar assim com a
ameaça cristã. Mas Gálio sabia como manter os perturbadores judeus
à distância, e Paulo nem sequer precisou responder processo. Se
Sóstenes já era cristão nessa ocasião, ele foi espancado por causa do
nome de Jesus. Para Paulo, devia ser difícil ficar observando, mas
certamente isso os uniu ainda mais na comunhão dos sofrimentos de
Cristo.
Paulo deixou Corinto, junto com Aqüila e Priscila, depois de 18
meses de um ministério eficaz. Ele sempre se lembrou desse período
em Corinto com grande satisfação. Chegara ali nada sentindo além de
fraqueza; mas ao sair tinha experimentado o segredo de todo o
ministério cristão: que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza.19
É sempre difícil deixar uma comunidade do povo de Deus onde
aprendemos lições profundas como essas. A partida se assemelha
muito a um funeral, é como perder uma parte de si. Foi isso que Paulo
sentiu em relação à igreja de Corinto. Os cristãos de lá eram parte dele
mesmo e, quando escreveu a eles, escreveu a irmãos e irmãs em Cristo
que tinham sido um refrigério e um estímulo para si, num período de
verdadeira depressão. Deus dissera: "Tenho muito povo nesta
cidade"20, e todas aquelas pessoas tomaram-se para Paulo "o selo do
seu apostolado no Senhor".21
Foi em Corinto que Paulo aprendeu a fundo a lição que usa para
concluir o ensinamento principal desta carta: "Portanto, meus amados
irmãos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do
Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão".22

A correspondência coríntia

Por causa desse profundo apego aos cristãos de Corinto, Paulo sentiu-
se na obrigação de fazer uso da pena e do papel, quando doutrinas
estranhas começaram a dividir a igreja. Como C. K. Barrett o expressa:

Muitos ventos de doutrina sopraram nos portos e ao longo das


ruas de Corinto, e deve ter sido muito difícil para os cristãos
recém-convertidos manterem-se num caminho reto ... Sem
dúvida, Corinto deve ter recebido outros visitantes cristãos além
de Paulo, e alguns deles pregavam o mesmo evangelho, mas
outros não ... Alguns daqueles que Paulo tinha em mente
entregavam-se à teologia especulativa baseada nos temas do
conhecimento (gnosis) e da sabedoria (sophia)... Poderíamos até
dizer que em Corinto já se via uma forma precoce dessa
confluência das correntes helenista, oriental, judaica e cristã, que
formaram o gnosticismo maduro...
Paulo estava lidando com homens que desejavam ficar no
centro de sua própria religião, controlando-a, e não haviam
aprendido o que seria andar pela fé, não pelos sentidos...23

C. K. Barrett faz uma discussão completa dos detalhes complexos


que permeiam a correspondência mantida entre Paulo e a igreja de
Corinto. O guia mais seguro no meio de tantas dificuldades é William
Barclay.24 O fato básico a ser lembrado é que as duas cartas aos
Coríntios, como nós as temos atualmente, não compõem (segundo
elas mesmas testificam) toda a correspondência. Faz-se menção25 de
uma carta anterior a 1 Coríntios. No final de 2 Coríntios,26Paulo fala
em fazer uma terceira visita aos coríntios. A primeira é aquela descrita
por Lucas em Atos 18, mas a segunda é desconhecida. Em 2 Coríntios
7:8, Paulo fala de outra carta tão severa que quase desejaria nunca tê-
la enviado. Essa não poderia ser 1 Coríntios, e os primeiros nove
capítulos de 2 Coríntios certamente não são severos: na verdade,
talvez sejam os capítulos mais carinhosos, cordiais e pacíficos de toda
a sua correspondência. Resta 2 Coríntios 10-13 que, segundo o próprio
Paulo admite, contém material muito traumático, podendo muito bem
ser a carta que ele desejaria nunca ter despachado. Eis a possível
seqüência de acontecimentos, conforme exposta por Barclay:

a) A "Carta Prévia", que pode estar contida em 2 Coríntios 6:14-7:1


(N.B. a transição de 6:13 para 7:2 é muito natural).
b) Os "da casa de Cloe" (1 Co 1:11) vão a Éfeso, levando para Paulo
as notícias da divisão em Corinto.
c) 1 Coríntios, capítulos 1-4, é escrita em resposta e Timóteo deve ser
o portador dessa carta (1 Co 4:17).
d) Três homens (Estéfanas, Fortunato e Acaico: 1 Co 16:17) chegam
com mais notícias e uma carta de Corinto: Paulo imediatamente
escreve os capítulos 5 e 6 e, em resposta a essa carta, redige os
capítulos 7 a 16. Timóteo leva toda a carta de 1 Coríntios aos
destinatários.
e) A situação piora e Paulo faz uma desastrosa visita a Cormto,
depois da qual as coisas ficam ainda mais dolorosas para ele (cf.
2 Co 2:1).
f) Então ele envia a "Carta Severa" (2 Co 10-13) através de Tito (2 Co
2:13; 7:13).
g) Paulo fica tão preocupado que não consegue esperar a volta de
Tito; parte para encontrá-lo na Macedônia (2 Co 7:5-13), e então
escreve 2 Coríntios 1-9, a "Carta de Reconciliação".

Notas:

1. Ilíada, 2.570.
2. T u cíd id es8.7.
3. J. C. Pollock, The Apostle (H odder & Stoughton, 1969), pág. 120.
4. Cf. 1 Rs 11:1-9,33; 2 Rs 23:13.
5. Cf. 1 Rs 17ss.
6. Cf. Rm l:26ss.
7. F. F. Bruce, The Spreading Flam e (Paternoster, 1958), pág. 13.
8. C itado por Barclay, pág. 4.
9. Ibid.
10. J. C. Pollock, The Apostle, pág. 121.
11. 1 Co 2:3.
12. Cf. A t 19:9, juntamente com a descrição do seu estilo de vida cotidiano, contido
em seu discurso de despedida aos anciãos da igreja em Éfeso, em A tos 20:18­
35, especialm ente o versículo 34. Veja tam bém 1 Ts 2:9.
13. A t 18:8.
14. A t 18:17.
15. 1 Co 1:1.
16. A t 18:8.
17. J. C. Pollock, T heA postle, pág. 124. '
18. A t 18:11.
19. Cf. 2 Co 12:7-10.
20. A t 18:10.
21. 1 Co 9:2.
22. 1 Co 15:58.
23. Barrett, págs. 36ss.
24. Barclay, págs. 6-9.
25. 1 Co 5:9.
26. 2 Co 12:14 e 13:1-2.
1 Coríntios 1:1-9
1. A Igreja Perfeita

Antes de examinarmos a descrição que Paulo faz da igreja de Corinto


do ponto de vista divino, vale a pena termos uma visão geral das
principais características dessa igreja, conforme apresentadas nas duas
cartas.
Essa era uma igreja grande —muitos coríntios se converteram a
Cristo. Estava repleta de divisões; cada grupo seguia uma
personalidade diferente. Muitos cristãos eram esnobes: nas refeições
de confraternização, os ricos mantinham-se à parte, deixando os
pobres sozinhos. Havia pouca disciplina na igreja: muita
permissividade, tanto na moral como na doutrina - uma combinação
muito comum. Não queriam submeter-se a nenhum tipo de
autoridade, e a própria integridade do apostolado de Paulo era
freqüentemente posta em dúvida. Havia uma visível falta de
humildade e de consideração entre eles; alguns estavam prontos para
levar seus irmãos cristãos aos tribunais, enquanto outros celebravam
a recém-descoberta liberdade em Cristo sem a menor preocupação
com os companheiros mais fracos, dotados de consciências menos
sólidas. De maneira geral, eram muito entusiasmados com os dons
espirituais mais dramáticos, faltando-lhes o amor enraizado na
verdade. Esta é a igreja que Paulo saúda.

1. Paulo saúda a igreja em Corinto (1:1-3)

Paulo, chamado pela vontade de Deus, para ser apóstolo de Jesus Cristo, e o"
irmão Sóstenes, 2à igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em
Cristo Jesus, chamados para ser santos, com todos os que em todo lugar
invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso: 3Graça
a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.

Paulo se descreve quase da mesma maneira como faz no começo de


Romanos, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios e Colossenses; isto é, como um
apóstolo comissionado por Deus. Assim, desde o princípio, ele deixa
^explícita a sua vocação apostólica para os coríntios que dela
duvidavam.
A saudação obedece à fórmula convencional grega e hebraica, com
um conteúdo especificamente cristão: em vez de chaire ("saudações"),
Paulo usa charis ('graça"); e ele usa o shalom hebraico, dando ênfase à
pessoa de Jesus Cristo, o Senhor.
No versículo 2, Paulo usa algumas frases pungentes para descrever
a igreja em Corinto. Uma investigação mais detalhada revela o que
parece ser um jogo de palavras deliberado com a raiz kaleín
("chamado"), um tema que é central no pensamento de Paulo,
particularmente nestes parágrafos iniciais da carta, 1:9: "Fiel é Deus,
pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso
Senhor"; 1:23-24: "mas nós pregamos a Cristo crucificado... para os que
foram chamados... Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus"; 1:26:
"Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados
muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos
de nobre nascimento."
Evidentemente, essa idéia de chamado predomina na mente de
Paulo quando ele comenta o seu relacionamento com a igreja coríntia
e quando recorda as circunstâncias em que a comunidade cristã foi
formada em Corinto. No fundo, Paulo está ciente de que o seu próprio
chamado e o dos cristãos de Corinto, tanto em nível individual como
corporativo, resultam da iniciativa de Deus. O apóstolo parece estar
dizendo o seguinte: "Deus me chamou para ser apóstolo e Deus
chamou cada um de vocês para serem santos, para desfrutarem a
comunhão do seu Filho, Jesus." Se Deus não os tivesse assim chamado,
Paulo não seria um apóstolo e eles não teriam descoberto em Jesus
Cristo a sabedoria e o poder de Deus, muito menos teriam se tomado
0 seu povo especial, os seus santos. Essa repetição quase
constrangedora da vocação divina indica que Paulo, ao usar a palavra
ekklesia (literalmente, "um grupo chamado para fora") para descrever
a igreja em Corinto, também não o fez acidentalmente.
Assim, Deus chama cada indivíduo pelo nome, e a pessoa responde
invocando o nome do Senhor (cf. v.2). A existência desses coríntios e
inúmeros outros que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus
Cristo é uma prova positiva de que Deus já tornou o seu chamado
suficientemente claro para que o ouvissem e lhe respondessem.
Todos aqueles que assim ouvem a convocação de Deus e
respondem são membros da ekklesia de Deus. Eles são separados por
1 )eus nesse chamamento e são reservados para Jesus Cristo
(santificados em Cristo Jesus). A união entre essas pessoas em todo lugar
é tão íntima quanto a que existia entre Paulo e oí> cristãos de Corinto
naquele único lugar.
Paulo não fala da "minha igreja", mas da igreja de Deus. Ele foi tão
responsável pelo nascimento e vida dessa igreja em Corinto quanto
seria possível para um ser humano; mas ela pertencia a Deus, não a
Paulo. Muitas vezes usamos com liberdade excessiva a expressão
"minha igreja” ou "nossa igreja". Seria muito saudável observarmos
o exemplo de Paulo. De fato, muitos problemas na igreja giram em
torno de uma dominação egoísta, do pastor e da congregação , em
relação à vida e às atividades do corpo. Também é preciso dizer que
nenhum cristão ou grupo de cristãos tem qualquer posição
privilegiada junto a Jesus: ele é Sejihor deles e nos$o.
Para Paulo, provavelmente não havia nenhuma diferença no tempo
entre o seu chamado para ser santo, juntamente com todos os demais
crentes, e o seu chamado para ser apóstolo. Um incluía o outro: o
primeiro era um chamado partilhado com os outros, e o último, algo
que o diferenciava dos outros cristãos.
Um resumo conciso do que estava envolvido no apostolado
especial confiado a Paulo, bem como aos primeiros discípulos de
Jesus, pode ser encontrado em Gospel and Spirit ("O Evangelho e o
Espírito"), publicado pela primeira vez em 1977,1 que diz: "Através da
revelação e da inspiração divina, esses homens foram porta-vozes
autorizados, testemunhas e intérpretes de Deus e seu Filho. Sua
autoridade pessoal como mestres e guias - concedida e garantida pelo
Cristo ressurrecto — era final, e não se permitia que ninguém
questionasse o que eles diziam."
Quando Deus chamou Paulo, tirando-o da feroz perseguição contra
a igreja cristã, ele o convocou para o ministério apostólico. Essa
vocação apostólica não era um segundo chamado, depois do inicial.
Da mesma forma, cada cristão recebe um chamado duplo: o ministério
que nos é designado faz parte do que significa ser salvo. Talvez leve
algum tempo para descobri-lo, e (com certeza) para se encaixar nele;
mas não resta dúvida de que cada cristão também é chamado para
servir.2
É claro que o chamado de Paulo para ser apóstolo, embora sob
muitos aspectos fosse visivelmente diferente do chamado dos outros
apóstolos,3 era crucial para o estabelecimento de suas credenciais
diante da igreja coríntia, que estava sendo contestada por outros que
se diziam não simplesmente apóstolos, mas apóstolos com muito mais
autoridade e eficiência do que ele.4 Paulo viu-se obrigado a fazer
indagações penetrantes e dolorosas sobre o seu próprio chamado
22
apostólico. Talvez não tenhamos de enfrentar esse tipo particular de
luta, mas precisamos lembrar que o chamado para a salvação é
necessariamente um chamado para o seviço.
Paulo não diz que a comunidade do povo de Deus em Corinto era
parte da igreja, mas a igreja de Deus que estava em Corinto. Da mesma
forma, numa carta provavelmente escrita mais tarde em Corinto, ele
fala da igreja que está na casa de Áqüila e Priscila.5 Em outras palavras,
quer pensemos em cristãos reunidos numa área geográfica ou na casa
de alguém, a diferença é apenas numérica. A igreja está presente como
um todo, em um microcosmo. Realmente, há boas justificativas
bíblicas para considerar a igreja reunida na casa de alguém como o
fundamento e o resultado dessa unidade básica.6
A presença de uma pessoa chamada Sóstenes como co-autor da
primeira carta de Paulo aos coríntios é interessante. Embora Sóstenes
não fosse de maneira nenhuma um nome desconhecido na época, era
incomum o suficiente para presumirmos que ele seja o mesmo
Sóstexves que subsfeU\i\\ Q dspo co«\o chefe da smagoga cm Cwiwto,
quando este aceitou a Cristo.7 O fato de Paulo incluir o nome de
Sóstenes sem comentários indica que ele era bem conhecido entre os
cristãos de Corinto. A conversão de dois líderes da comunidade
judaica, um após o outro, deve ter gerado alguma confusão. Uma
situação semelhante surgiu na Universidade de Oxford, no começo da
década de 60, no apogeu da Sociedade Humanista. O presidente do
grupo converteu-se a Cristo, o que exigiu uma reunião extraordinária
da Sociedade. A pessoa então eleita também se converteu dentro de
poucas semanas, exigindo assim outra reunião extraordinária. O caso
de Sóstenes, portanto, deve nos incitar a apresentar Jesus Cristo
àqueles que parecem mais entrincheirados numa oposição oficial.

2. A confiança de Paulo na igreja de Corinto (1:4-9)

Sempre dou graças a meu Deus a vosso respeito, a propósito da sua graça, que
vos foi dada em Cristo Jesus; 5porque em tudo fostes enriquecidos nele, em toda
palavra e em todo o conhecimento; 6assim como o testemunho de Cristo tem
sido confirmado em vós; 7de maneira que não vos falte nenhum dom,
aguardando vós a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo; so qual também vos
confirmará àté ao fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus
Cristo. 9Fiel ê Deus, pelo qualfostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus
Cristo nosso Senhor.
O fato que a maioria das pessoas tem na ponta da língua em relação
à igreja coríntia é que ela era uma grande confusão: cheia de
problemas, pecados, divisões, heresias. Nesse sentido, ela não diferia
de nenhuma igreja da atualidade. A igreja é uma congregação de
pecadores antes de ser uma congregação de santos. Mesmo quando
têm uma reputação brilhante, os seus própios membros e pastores
reconhecem que são repletas de fraquezas e pecados. O triste é que os
membros insatisfeitos muitas vezes têm o pensamento ingênuo de que
uma outra igreja na região seria uma opção um pouco melhor. Dessa
inquietação surge o hábito comum do "troca-troca" de igrejas. Talvez
um dos melhores antídotos para esta espécie de enfermidade seja
examinar novamente o que Paulo diz em 1:4-9, sobre a igreja de
Corinto, notoriamente imperfeita.
Convém observarmos esta verdade importante: antes de considerar
qualquer outro aspecto da igreja coríntia, Paulo a vê como estando em
Cristo. Tal declaração rigorosa de fé é raramente feita nas igrejas locais.
Os defeitos são examinados e lamentados, mas na maioria das vezes
não há uma visão daquilo que Deus já operou por meio de Cristo. Se
os nove primeiros versículos desta carta fossem extraídos do texto,
seria impossível que qualquer leitor tivesse uma visão da igreja em
Corinto que não fosse completamente pessimista. As declaraçãoes de
fé, esperança e amor, que aparecem no texto a intervalos freqüentes,
não teriam nenhum contexto; degenerariam em sonhos piedosos.
Atualmente, o povo de Deus está perecendo em muitos lugares pela
falta dessa visão apresentada nos versículos 4-9: ou fingem ser uma
igreja sem expectativas reais de verdadeiro crescimento em direção
à maturidade; ou insistem desesperadamente uns com os outros para
que se esforcem mais, orem mais e tenham mais fé e mais atividades
- porque acreditam serem essas as coisas certas.
Se a única coisa que falta a uma igreja pequena reunida numa casa
ou numa determinada área é um número maior de membros, então
o que Paulo diz a respeito da igreja de Corinto em Cristo é uma
descrição exata dessa e também de cada igreja de Deus. A confiança
que Paulo tinha na igreja em Corinto baseia-se na generosidade e
fidelidade de Deus.

a) A igreja está plenamente habilitada com todos os dons da graça de Deus


(4-7)

"...sua graça, que vos foi dada... em tudo fostes enriquecidos nele... não
vos falte nenhum dom" — são três declarações que falam da
generosidade abundante de Deus para com aqueles pecadores
remidos em Corinto. É importante destacar de imediato que essas
declarações se referem à igreja de Deus em Corinto, não a indivíduos
que crêem. Se quisermos conhecer a plenitude da bênção divina e
experimentar todos os dons de sua graça que são nossos em Cristo,
precisamos estar em comunhão uns com os outros. Não há cristão que
possa, individualmente, proclamar que "nenhum dom espiritual" lhe
falta - como os capítulos 12 e 14 de 1 Coríntios expõem claramente.
A igreja local tem potencialmente todos os dons espirituais em sua
vida corporativa e deve esperar em oração que Deus os conduza a
uma expressão madura. Quando Deus nos deu o seu Filho Jesus, ele
nos ofereceu tudo o que possuía; ele não pode nos dar mais; temos
todas as coisas nele.Para tornarmos esses dons gradativamente reais
em nossa vida comunitária, precisamos penetrar mais profundamente
nas riquezas da sua graça; e também ficarmos alertas à sua revelação
(v. 7), sua manifestação. Essa esperança tem dentro de si o seu próprio
incentivo para nos levar adiante como aqueles que foram destinados
a ser a esposa de Cristo, porque somente a partir daí alcançaremos a
plena realidade de tudo o que é nosso em Cristo.
Ao falar dos dons da graça de Deus,8 Paulo destaca especificamente
que a igreja foi enriquecida em toda palavra e em todo o conhecimento. Os
vocábulos empregados aqui são logos e gnosis, verdadeiras cargas de
dinamite na igreja primitiva. É muito provável que Paulo se
concentrasse nesses dois grupos de dons porque os coríntios se
especializaram neles.9 Também há, sem dúvida, uma referência
precoce aos ensinamentos penetrantes do gnosticismo: a confusão
herética do segundo século (já perceptível pelos meados do primeiro
século), acerca da qual ainda é difícil ser preciso, mas que criou uma
elite espiritual que alegava ser a única possuidora do verdadeiro
conhecimento, a única capaz de colocá-lo em palavras e a única com
a devida autoridade para dirigir e controlar a vida da igreja.10
Paulo mostra-se inflexível ao dizer que Deus capacitou plenamente
toda a congregação com esses dons do conhecimento e da palavra e,
sem dúvida, está pensando em amigos específicos de Corinto
agraciados com diferentes dons. No que se refere à palavra, estariam
inclusos dons como profecia, ensino, pregação, evangelização, falar
em línguas e interpretação de línguas, e qualquer uso do dom da
palavra que contribua para a edificação da igreja. No que se refere ao
conhecimento, a igreja como corpo tem acesso a toda a sabedoria,
percepção, discernimento e verdade de que necessita;11 não precisa de
gurus especiais para recebê-lo.12
Dois pontos importantes acerca das pregações são colocados (de
forma um tanto criptográfica), na frase bastante obscura do versículo
6: assim como o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vós. O
significado provável é o seguinte: à medida que o próprio Paulo
proclamava "as insondáveis riquezas de Cristo"13 à igreja de Deus em
Corinto, durante aqueles dezoito meses muito atarefados, eles
começaram a apreciar e a experimentar gradualmente as riquezas de
sua herança como filhos de Deus. Em outras palavras, eles foram
enriquecidos na proporção da qualidade e clareza da pregação de
Paulo. Os dois pontos aqui sobre a pregação são, portanto, estes.
Primeiro, o privilégio e a responsabilidade do pregador é desvendar
e explicar tudo o que é nosso em Cristo; segundo, uma simples
pregação não é suficiente: ela precisa ser confirmada (mais
literalmente, "assegurada") nas vidas dos ouvintes, e isso exige a obra
do Espírito de Deus,14 que traz convicção, iluminação e fé.
A igreja fica assim plenamente habilitada com todos os dons da
graça de Deus. E preciso descobri-los, explicá-los e apropriar-se deles.
Para que isso aconteça, a pregação deve dar testemunho das
insondáveis riquezas de Cristo. Tal pregação exige o poder do Espírito
para garantir aquelas riquezas na vida da comunidade cristã.

b) A igreja será completamente sustentada pela fidelidade de Deus (8-9)

Além de ser muito positivo quanto aos recursos da igreja de Deus em


Corinto, Paulo também confia totalmente no Senhor quanto ao seu
futuro. Sejam quais forem os altos e baixos que possam vir a enfrentar,
Paulo tem certeza da fidelidade de Deus: ele os chamou para a
comunhão do seu Filho, ele os confirmará (esta é a mesma palavra do
versículo 6, e significa "tornar firme") até o final. A frase do versículo
9, koinonia de Jesus Cristo, poderia significar que a igreja é a comunidade
de Jesus Cristo, isto é, o grupo de pessoas que pertencem a Jesus e o
chamam de Senhor; ou que Deus nos chama para nos associarmos
com o seu Filho, Jesus. Esta última interpretação é mais provável,
especialmente porque esta verdade é retomada mais tarde, para
destacar o pecado da divisão com base na fidelidade àqueles que são
simplesmente "servos por meio de quem crestes, e isto conforme o
Senhor concedeu a cada um".15
Se, por iniciativa do próprio Deus, fomos chamados para nos
associarmos com o seu Filho, Jesus Cristo, então Deus não nos
abandonará nem retrocederá em suas promessas. Esta é a força da
palavra pistos ("fiel"). Podemos depender totalmente de Deus: ele não
é homem, ele não pode negar-se a si mesmo, ele manterá a sua palavra.
A igreja está sob a sua reponsabilidade: ele está comprometido com
"o aperfeiçoamento dos santos".16
O ponto final da história para Deus não é simplesmente o fim da
vida de cada indivíduo, o que certamente ele guarda com cuidado
especial, mas o dia de nosso Senhor Jesus Cristo (v. 8). Se buscarmos o
ensinamento sobre esse assunto nessa carta, descobriremos que esse
dia marcará a revelação plena (literalmente, "desvendamento") de
Jesus Cristo como ele realmente é, e da qualidade exata de nosso
serviço prestado a Cristo (3:10-15), como também dos propósitos e das
motivações íntimas de nossos corações (4:5). E o dia, gozado
antecipadamente em cada celebração da Ceia do Senhor (11:26),
quando os mortos em Cristo serão ressuscitados (15:23,52) para uma
vida incorruptível em um corpo que Paulo chama "um corpo
espiritual” (15:44). É um dia, portanto, pelo qual Paulo anseia
conforme a oração que conclui a carta (16:22): Maran atha ("Vem, nosso
Senhor!”).
A fidelidade de Deus se estende até aquele dia e além dele, até a
plenitude da eternidade. Ele conservará o seu povo livre de culpa
naquele dia quando os segredos dos corações dos homens forem
revelados e nós ficarmos com um medo legítimo de sermos finalmente
declarados culpados diante dele. Deus vai garantir que absolutamente
nenhuma culpa ou acusação seja levantada contra o seu povo, seja
pelos seres humanos, seja por Satanás, o grande "acusador dos
irmãos".17 Naquele dia ficará claro para todos que é Deus quem
justifica, e que àqueles que ele justificou, também, naquele mesmo ato,
glorificou.18 E Jesus que importa naquele dia; é o seu dia; ele estará no
comando; ele determinará as questões. Uma vez que fomos chamados
para sermos unidos a Jesus, participaremos de sua supremacia
naquele dia e não seremos julgados pelo pecado. Não só isso, o Novo
Testamento ensina que nós exerceremos o juízo junto com Jesus
Cristo.19
Se fomos chamados para sermos unidos a Jesus, vamos permanecer
nele20 - a única maneira de nos tomarmos gradualmente semelhantes
a ele. Quando nos tomarmos semelhantes a ele, por meio da graça de
Deus que continuamente opera em nós, será impossível a existência
de qualquer culpa, ou até mesmo motivo de culpa. Deus se
comprometeu com esse propósito radical quando nos chamou para
termos comunhão com o seu Filho.
As implicações práticas desta "gloriosa esperança" em termos de
visão para a igreja local são relativamente simples. Certamente isso
deve significar que estamos comprometidos sem reservas com a igreja
de Deus, em que ele nos colocou; que estamos resolutamente
confiantes quanto ao desejo de Deus e a sua capacidade para tomar
a igreja local semelhante a Jesus Cristo; e que temos uma certeza
inviolável de que fomos chamados para sermos santos, como ele é
santo. São essas as implicações que Paulo desenvolve no restante da
carta.

Notas:
1. D eclaração conjunta do Concílio Evangélico da Igreja A nglicana e da
"Fountain Trust", publicada como suplem ento n° 1, do Theological Renewal,
a b ril/m a io de 1977. •
2. Cf. A t2 6 :1 5 s s e G l l:15ss.
3. Cf. 1 Co 15:8-9.
4. Cf. 1 Co 4:18-19 e os dados em 2 Co 10—13.
5. Rm 16:5.
6. Veja outras implicações desta perspectiva no livro do autor, The Church in the
H om e (M arshalls, 1983).
7. Veja A t 18:8 e 17.
8. N. B.: charis (graça) e charism a (dom) vêm da m esm a raiz.
9. Cf. capítulos 12—14.
10. Convém consultar C. K. Barrett sobre 2 Coríntios, págs. 36-42, onde há um
bom resum o sobre o tipo de gnosticismo existente em Corinto, até onde
podem os acompanhar o seu desenvolvimento nessas cartas. Em The M essage
o f Colossians and Philemon: Fullness and Freedom (IVP, 1980), D ick Lucas
identifica sete aspectos do que tem sido cham ado de "heresia colossense",
m uitos dos quais provavelm ente estavam em brionariam ente presentes em
Corinto (págs. 22-24).
« 1 1 . Cf. Cl 2:3.
12. Cf. I jo 2 :2 0 e 2 7 .
13. Cf. E f3:8.
14. 1 Ts 1:5.
15. 1 Co 3:5.
16. Cf. Rm 8:28-30.
17. Ap 12:10.
18. Cf. Rm 8:33.
19. Cf. 1 Co 6:2-3.
20. Cf. 1 J o 2:28 ss .
1 Coríntios 1:10-17
2. Partidos em Corinto

Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos
a mesma coisa, e que não haja entre vós divisões; antes sejais inteiramente
unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer. nPois a vosso
respeito, meus irmãos, fu i informado, pelos da casa de Cloe, de que há
contendas entre vós. nRefiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de
Paulo, e eu de Apoio, e eu de Cefas, e eu de Cristo. 13Acaso Cristo está
dividido? fo i Paulo crucificado em favor de vós, ou fostes porventura,
batizados em nome de Paulo? u Dou graças (a Deus) porque a nenhum de vós
batizei, exceto Crispo e G aio;15para que ninguém diga que fostes batizados
em meu nome. 16Batizei também a casa de Estéfanas; além destes não me
lembro se batizei algum outro. 17Porque não me enviou Cristo para batizar,
mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não
anule a cruz de Cristo.

A opinião elevada que Paulo tinha sobre a igreja, de Corinto e as outras


em geral, destaca a tristeza que ele deve ter sentido ao ouvir a notícia
das divisões que existiam entre os cristãos coríntios: Pois a vosso
respeito, meus irmãos, fu i informado, pelos da casa de Cloe, de que há
contendas entre vós (v. 11). Tudo indica que Paulo considerou essa
notícia extremamente dolorosa. Ele sabia o suficiente acerca das
realidades da vida da igreja para não se surpreender. Mas, mesmo
assim, ficou profundamente ressentido. Isso se verifica pela dupla
ocorrência da palavra irmãos, nos versículos 10 e 11. A fraternidade
cristã é o fundamento do apelo de Paulo à união: se Jesus Cristo, pela
sua graça, tornou-os um, e se eles participam de Jesus Cristo, então
devem "se transformar no que já são": Rogo-vos... pelo nome do nosso
Senhor Jesus Cristo... _
Qual o motivo exato dessa divisão em Corinto? Podemos ver as
causas explícitas e implícitas nos versículos 12-17. É evidente que
estavam surgindo cultos às personalidades, centralizados em três
figuras importantes da igreja primitiva. Tais cultos certamente não
contavam com o apoio de Paulo, Apoio ou Cefas (Pedro). Mas é bem
provável que existissem outros motivos para o surgimento das
divisões, segundo vemos na argumentação de Paulo nos versículos 13­
17, onde ele fala, por exemplo, como se o batismo estivesse se
tomando um problema. Também é possível que houvesse alguma
heresia incipiente que separava "o Jesus da história" do "Cristo da fé".1
Seja qual for a causa dessas divisões que estavam se
desenvolvendo, a situação provocou rivalidade: contendas (v .ll) talvez
seja uma tradução imprecisa. Vale a pena explicar detalhadamente
aqui os diferentes estágios na rota para a divisão. Em 1 Coríntios 11:18­
19, Paulo se refere novamente a essas divisões. Nessa passagem ele
lamenta que tenham permitido o surgimento de inevitáveis "partidos"
no corpo de Cristo, produzindo "divisões". Em outras palavras,
sempre haverá diferentes ênfases e idéias dentro da igreja local: a
palavra traduzida por "partidos" em 11:19 é haireseis (da qual procede
a nossa palavra "heresia"), e o significado de seu radical é "escolher".
Todos os cristãos apegam-se a aspectos diferentes da verdade, em
diferentes ocasiões, gerando determinadas ênfases. É inevitável que
tal seleção afaste o foco dos outros aspectos da verdade, para se
concentrar em urna ou duas questões específicas. Isso é permissível,
se não necessário, contanto que se reconheça que está havendo uma
seletividade. Quando um cristão ou um grupo de cristãos fica
totalmente absorvido por um aspecto da verdade, negligenciando,
excluindo ou até mesmo negando o todo da verdade que está em
Jesus, então atinge-se o ponto crítico. Nesse momento, a seletividade
se transforma em heresia e rapidamente percebemos quem é
"genuíno" (11:19) e quem é falso.
Paulo deseja que a igreja em Corinto aprenda o jeito certo de lidar
com o que chamamos de "seletividade". Quando alguns cristãos
começam a enfatizar um aspecto da verdade, precisam tomar
consciência do que estão fazendo, e os demais devem se recusar a
reagir negativamente. Os coríntios permitiram que tais ênfases
levassem à formação de partidos, cujos componentes estavam se
recusando a ter comunhão com os outros irmãos. A seletividade
produziu grupos dissidentes (a palavra grega traduzida por divisões
é schismata, da qual procede o termo "cisma", que significa literalmente
"seccionar"), havendo luta aberta entre eles.

1. Os quatro grupos

O problema principal era que esses "partidos" haviam desviado os


seus olhos do Senhor Jesus Cristo. Cada grupo reunia apoio a
determinada personalidade.2 Cada grupo tinha os seus próprios
lemas. É importante entendermos a natureza de cada divisão, porque
elas ocorrem regularmente na igreja. Na verdade, é interessante
(apesar de triste) descobrir que Clemente de Roma, escrevendo em
cerca de 95 d.C., fala da existência dos mesmos tipos de "partidos" e
divisões em Corinto, embora ele não mencione o "partido de Cristo".
De modo que, quarenta anos mais tarde, o problema ainda não fora
erradicado. Isso mostra que devemos esperar tendências divisórias e
nos resguardar contra elas em qualquer tempo. Vamos examinar cada
grupo.

a) O partido de Paulo

"Pois eu pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus" (4:15). Obviamente


havia muitas pessoas em Corinto que, por este motivo fundamental,
sentiam-se fortemente ligadas a Paulo. Ele as levara à fé, e elas tinham
uma dívida eterna para com ele. A transformação total que Deus
efetuara em suas vidas, das trevas do paganismo absoluto para a
maravilhosa luz do evangelho, fez com que se sentissem duplamente
gratas pelo trabalho de Paulo em favor delas. Assim, tudo o que Paulo
dizia, ou que imaginavam ter dito, essas pessoas aceitavam verbatim.
Provave ImcTrtFroffild^ãvam q ue todos os outros irmãos pertenciam
a uma segunda categoria. É verdade que Paulo tinha ido embora há
vários anos, mas a sua lembrança continuava viva. Provavelmente não
existe nenhum pastor de uma igreja com alguma história que não
tenha descoberto um partido de Paulo como esse, em sua
congregação. Ao longo dos anos, eles foram desviando os olhos do
Senhor e, conseqüentemente, sempre querem voltar aos "bons tempos
de outrora".
Barclay sugere que o partido de Paulo enfatizava a liberdade cristã
e o fim da lei. O fato de Paulo mencionar especificamente os nomes
das personalidades, e não os assuntos teológicos, dá a entender que
esta interpretação é pouco provável. Geralmente, o que acontece numa
igreja local hoje é que as diferenças crescem em torno de;
personalidades (de dentro da igreja local ou da comunidade mais
ampla) e, depois, se articulam ao redor de polêmicas doutrinárias.
Talvez haja uma divergência teológica genuína, mas a "briga" surge
porque as relações pessoais não são boas. Quando o amor de Deus
controla verdadeiramente os relacionamentos dentro de uma igreja,
as áreas de divergência encontram a sua devida perspectiva e não
precisam de "brigas", muito menos de "cismas".3
Geralmente, as chamadas "diferenças de personalidade", não
passam de uma desculpa. Na realidade, não conseguimos ou não
queremos permitir que o amor de Deus modifique as nossas atitudes
uns para com os outros. Deixamos que as diferenças teológicas (e não
o amor de Deus) determinem a qualidade, a franqueza e a
profundidade de nossos relacionamentos. Por exemplo, nossa
tendência ocidental de sermos neutros e objetivos quando discutimos
uma situação capacita-nos a analisar as diferenças na igreja de um
modo que nós cremos ser cuidadoso e bíblico. Podemos discutir tais
assuntos reunidos na mesma sala que os nossos opositores —e nunca
nos encontramos como pessoas, muito menos como irmãos e irmãs
em Cristo. Nós nos despedimos, então, convencidos de que o
verdadeiro problema é teológico, quando na verdade conseguimos,
com a nossa própria neutralidade, impedir que o amor de Deus
produza a harmonia e a aceitação mútua. E ainda pensamos que são N
_as_diferenças teológicas que causam as divisões que existem entre nós.
Parece que foi este caso clássico que surgiu na Inglaterra nos anos
60 e 70, quando a igreja se dividiu em relação à renovação carismática.
Quinze anos de divergência doutrinária precederam qualquer
tentativa séria em nível nacional de se estabelecer um relacionamento
de amor. Do debate doutrinário surgiu a divisão, mas da criação de
pontes entre as pessoas surgiu um notável grau de confiança e
aceitação mútuas.4 Se (como Paulo diz em 1 Co 13) o amor é
fundamental e tem importância preeminente, então torna-se
imperativo criar e incentivar bons relacionamentos em que possamos
discutir as diferenças teológicas no amor de Deus.
É quase certo que o partido de Paulo surgiu em reação aos outros
grupos formados em Corinto, em torno das outras pessoas
mencionadas aqui. Antes do surgimento desses dois pregadores, é
provável que todos apoiassem Paulo. Em outras palavras, aqueles que
apoiavam Paulo reagiram do mesmo modo, formando o seu próprio
grupo. É fácil reagir ao comportamento carnal (como Paulo o chama
em 3:1-4) dentro da igreja, utilizando métodos igualmente carnais, ao
invés de tomar a armadura de Deus no poder do Espírito.

b) O partido de Apoio

Apesar de termos relativamente pouca informação sobre Apoio, o que


sabemos nos dá um retrato nítido e uma explicação satisfatória,
embora especulativa, para o fato de ele ter se tomado o centro de uma
divisão em Corinto. De acordo com Atos 18:24-19:7, Apoio viera de
Alexandria do Egito, provavelmente a ridade universitária mais
respeitada e criativa do Mediterrâneo. Tarso era uma cidade "não
desprezível", mas estava longe de Alexandria: quando Apoio veio a
Corinto com a sua capacidade intelectual, sua oratória excelente, sua
capacidade de expor as Escrituras do Antigo Testamento, seus
ensinamentos corretos sobre Jesus, seu entusiasmo fervoroso, sua
poderosa confrontação pública com os judeus e sua pregação ousada,
sem dúvida começou a atrair discípulos para si.
Áqüila e Priscila o acolheram em Éfeso e cuidadosamente
redirecionaram o seu ministério.5 Apoio exerceu, então, um ministério
valioso junto a cristãos recém -convertidos. Lucas observa
particularmente que Apoio "auxiliou muito àqueles que mediante a
graça haviam crido",6 tanto proclamando Jesus como o Messias, como
dando-lhes um ensino mais completo para fortalecer os cristãos em
seus embates com os judeus hostis.7
Alguns acham que Apoio, com tais antecedentes, deve ter sido
involuntariamente responsável pela criação de uma espécie de elite
intelectual na igreja de Corinto. Os cristãos jovens na fé certamente
podem ser atraídos por um líder, chegando a cultuá-lo por causa dos
seus dons e de suas pregações impressionantes, especialmente
quando seu ensino edifica e ajuda as pessoas. Apoio provavelmente
não ficou muito tempo em Corinto, mas o prazo foi suficiente para que
alguns começassem a compará-lo favoravelmente com Paulo, que não
perdia no fervor, na capacidade de expor as Escrituras do Antigo
Testamento ou na capacidade intelectual, mas que - segundo suas
próprias palavras —não tinha grande eloqüência.8 Certamente não
convém acusar Apoio de intelectualização do cristianismo, como
sugere Barclay. Ao mesmo tempo, quando um erupo de cristãos
começa a receber ensinamentos d_e__apena_s um guru^escolhido, a
divisão não estálonge.9

c) O partido de Pedro

Parece que, de um modo geral, todos concordam que "de alguma


forma, o grupo de Cefas representava o cristianismo judaico".10Talvez
Pedro tivesse visitado Corinto, o que explicaria o surgimento de tal
partido. Alguns dos seus seguidores também poderiam ter estado lá
incentivando a criação desse partido. Temos amplos indícios de
tendências legalistas na igreja em Corinto, especialmente no debate
sobre comer ou não a carne oferecida aos ídolos, nos capítulos 8 a 10.
Basta ler a narrativa da discussão de Paulo com Pedro acerca das leis
dietéticas (em G1 2), para perceber que a questão dos alimentos
permitidos pela lei (kosher) deve ter permanecido como um fogo
latente entre o apóstolo dos gentios e aquele que recebera a
responsabilidade do "evangelho da circuncisão".11 Desde o início
houve conversões significativas entre os judeus coríntios, e a tentação
de retomar ao legalismo devia ser muito forte, especialmente na vida
notoriamente dissoluta da sociedade coríntia.
O viço inicial de uma vida nova no Espírito pode, muitas vezes, dar
lugar a um legalismo muito negativo e restritivo, sobretudo na vida
familiar de cristãos convertidos das fileiras do paganismo para a
liberdade do evangelho. Quando o fogo do entusiasmo se apaga,
surge uma alternativa "segura": geralmente, a letra sem o Espírito. Essa
tendência reflete o nosso desejo natural de termos regras explícitas de
fé e comportamento, em vez de andarmos na corda bamba da
obediência ao Espírito, entre os dois extremos da licenciosidade e do
legalismo.
Atualmente, são muitos os exemplos de uma renovação genuína no
Espírito escorregando para este tipo de legalismo, no qual certos
mestres enfatizam a importância de determinados padrões externos
de comportamento, de deveres rigorosos para com a igreja e de
estruturas específicas de supervisão pastoral. Muitos cristãos sentem-
se seguros em tais camisas-de-força. Chega-se ao ponto de avaliar a
verdadeira espiritualidade através de tais evidências externas.12 Pode-
se discutir se chamadas indiscriminadas para a igreja retomar à prática
apostólica primitiva, registrada em Atos dos Apóstolos, não
representariam uma tendência similar, uma "volta a Jerusalém". O que
está claro é que precisamos vigiar constantemente contra qualquer
redução da vida cristã a uma série de regras ou proibições: "Faça isto.
Não faça aquilo."

d) O partido de Cristo

À primeira vista, a existência de um partido com o lema "Eu pertenço


a Cristo" parece estranho e inverossímil.13 A experiência de hoje,
contudo, sublinha fortemente a exatidão imutável das palavras de
Paulo. Onde quer que o Espírito de Deus opere, sempre surgem
pessoas que não dão muita importância à liderança humana. A
presença de três grupos em Corinto, cada uma dando excessiva
atenção a um determinado líder, provocaria, por si só, o surgimento
de um quarto partido, para o qual todo esse "culto aos heróis" seria
anátema. Embasados em uma forte dose de anti-autoritarismo,
utilizariam um argumento que parece bem lógico: "Quem precisa de
um líder? Cristo é o nosso líder. Ele é a cabeça do corpo. Dependemos
apenas dele e vamos diretamente a ele. Ele nos diz o que fazer e,
quando esperamos nele, sua vontade nos é revelada.”
Todos os três grupos pareciam lógicos em suas posições, mas este
grupo é o mais difícil de avaliar. Sua ênfase e sua linguagem
geralmente estão acima de qualquer censura, e sua "linha direta" com
Deus pode ser muito intimidante. O resultado da presença desse
quarto partido na igreja é que quase todos os outros sentem-se
espiritualmente inadequados: "Nós não recebemos mensagens claras
do Senhor; não sentimos a mesma intimidade com Deus na oração;
não podemos falar de uma certeza assim tão inabalável acerca da
vontade do Senhor." Sempre há um ar de superioridade espiritual,
vago, mas perceptível, quando os membros desse grupo estão
presentes. Não é fácil enfrentar comentários do tipo: "O Senhor me
disse que..."
Geralmente a base psicológica para esse tipo de ênfase está em uma
mistura de forte mdividualismo com umajnsegurançaJatente. Isso
leva a uma resistência interior contra as linhas de ação ditadas por
outras pessoas e se manifesta na necessidade de proteger a incerteza
com declarações que expressem a validade de experiências fortes e
subjetivas. Tais pessoas sustentam que suas experiências não podem
ser avaliadas, muito menos ser consideradas erradas, porque estão
acima de qualquer análise. Afirmam que não é relevante nem justo
avaliar tais experiências, porque elas não podem ser discutidas.
É bem possível que esse partido de Cristo tenha dado um ímpeto
considerável às tendências gnósticas em Corinto. Se o grupo de Apoio
foi responsável pela introdução de uma elite intelectual naquela igreja,
este grupo teria rapidamente gerado uma elite superespiritual. As
duas tendências perpetuaram-se na igreja cristã ao longo dos séculos.
Imaginamos que este partido de Cristo tenha sido um reflexo das
religiões de mistério de Corinto, com sua ênfase nas experiências
espirituais que ultrapassam todo e qualquer entendimento humano.
lim relação a esse partido de Cristo, é interessante observar que os
seus integrantes tendem (mais cedo ou mais tarde) a sair e a formar
,i sua própria "igreja", principalmente porque acabam sentindo que as
igrejas locais em geral não são suficientemente espirituais. Essa pode
ser a razão pela qual Clemente de Roma não menciona o partido de
Cristo em Corinto, quando se refere aos outros três partidos em sua
epístola sobre a igreja coríntia escrita em 95 d.C.
Por mais inevitável que fosse a existência de tais grupos em Corinto,
Paulo não podia ignorar que eles tinham potencial para provocar uma
divisão. No versículo 10, ele faz um apelo profundo para que haja
unidade e, a seguir, apresenta três argumentos poderosos contra a
desunião (vs. 13 e 17). O apelo paulino contém três expressões de
cunho conciliatório: falar a mesma coisa, divisões e estar unidos. A
primeira expressão, falar a mesma coisa, foi encontrada na sepultura de
um casal do primeiro século, e não indica uma mentalidade do tipo
"sim, senhor", mas uma cooperação dentro de um relacionamento
harmonioso. Paulo crê e insiste que os quatro partidos devem
trabalhar juntos. Cada um tem uma ênfase importante, e essa ênfase
deve ser desenvolvida sem reservas, em toda sua plenitude, na vida
da comunidade cristã. É preciso tomar todo o cuidado quando a cisão
parece iminente, não permitindo que diferenças de ênfase produzam
divisões.
Em outras palavras, Paulo preferia a harmonia —não o uníssono.
Ele não só acreditava que uma grande variedade de cristãos podiam
viver juntos em harmonia, mas que essa era a sua vocação divina. O
reconhecimento mútuo, que permite que cada pessoa expresse as suas
convicções e os seus pontos de vista, restauraria a verdadeira união,
na mesma disposição mental e no mesmo parecer (nous e gnome).u

2. A centralidade de Jesus Cristo

Todos os argumentos de Paulo contra a desunião estão centralizados


em Jesus Cristo, e é preciso dizer sem concessões que, de um modo
geral, as divisões e desuniões surgem, tanto em Corinto como hoje,
porque os olhos dos cristãos estão fixados em algum outro ponto que
não Jesus Cristo. Esses argumentos giram em tomo da integridade, da
cruz e do Senhorio de Cristo.

a) A integridade de Cristo

Acaso Cristo está dividido? ou, literalmente, "Cristo foi repartido?" (v.
13). Paulo está perguntando aos coríntios, com todas as suas divisões:
"Vocês acham que existem pedaços de Cristo e que eles podem ser
distribuídos entre os grupos? Se vocês têm Cristo, vocês o têm por
inteiro. Jesus não pode ser dividido." Não podemos ter a metade de
uma pessoa, como se disséssemos: "Por favor, entre, mas deixe suas
pemas lá fora". A propósito, o conceito da integridade de Cristo lança
luz sobre frases comuns do tipo: "Quero mais de Cristo". Isso não pode
acontecer; pelo contrário, precisamos permitir que Cristo tenha mais
de nós. Nós é que somos desintegrados, e Cristo está nos refazendo
gradualmente, para que nos tornemos mais semelhantes a ele -
integrados e inteiros. O mesmo argumento aplica-se quando alguém
deseja ter mais do Espírito Santo. Se o Espírito é pessoal, uma Pessoa,
há duas opções: ou ele vive dentro de nós ou simplesmente não vive;
neste caso, também, o nosso desejo e a nossa oração devem ser no
sentido de que o Espírito Santo tenha mais de nós.

b) A cruz de Cristo

O seg u n d o argum ento d e Paulo contra a desunião é ainda mais


vívido: Foi Paulo crucificado em favor de vós? (v. 13). Ele está desafiando
os coríntios a abandonarem os cultos às personalidades, e a fixarem
a atenção deles novamente em "Jesus Cristo crucificado". Esse tinha
sido o ponto central da mensagem de Paulo, quando ele pregou em
Corinto pela primeira vez (2:2). Era essa a mensagem que os havia
atraído desde o começo. Eles deviam a sua nova vida a Jesus Cristo.
Quem havia morrido pelos pecados deles, proporcionando-lhes
perdão e purificação, era Jesus - e não Apoio, nem Pedro, nem Paulo.
Eles conheciam, portanto, a realidade da redenção e da regeneração;
portanto, tinham uma dívida para com Jesus Cristo, quaíquer que
fosse o grupo que tivessem adotado.
Sempre que os cristãos prestam fidelidade a uma personalidade
humana, como um pregador ou um pastor talentoso, desviam os seus
olhos de Jesus Cristo e, inevitavelmente, ocorre a desunião. Jesus é o
único que pode unir as pessoas, e ele o faz por meio de sua cruz,
porque só podemos nos achegar a Deus através da cruz de Cristo, cujo
terreno ao redor é nivelado: todos são iguais perante a cruz. Jamais
podemos nos afastar da cruz. Quando o fazemos, afastamo-nos do
lugar da reconciliação —com Deus e com os outros.15
Isso explica a importância da Ceia do Senhor como um marco dessa
reconciliação. Ser continuamente lembrado da cruz é um dos
resultados sadios da participação regular na Santa Comunhão.
Quando enfrentam o fato da desunião na igreja cristã da atualidade,
parece estranho a muitos cristãos que esta celebração seja considerada
por alguns como o último passo para a união, e não o primeiro. Alguns
cristãos afirmam que não poder participar da Mesa do Senhor é o
castigo que sofremos pela nossa desunião, e que só o podemos fazer
quando estamos mais unidos. Argumentaríamos fortemente que a
reconciliação e a união entre os cristãos é o fruto do sacrifício expiador
de Cristo no Calvário, e que a celebração da Santa Comunhão é,
portanto, onde começamos a demonstrar essa unidade que é um dom
de Deus para nós, através da obra de reconciliação do seu Filho.
Sugerir que temos de nos esforçar para que haja uma união visível
antes que venhamos a participar juntos da Ceia do Senhor parece ser
perigoso; seria como acrescentar nossas boas obras à graça de Deus
demonstrada no Calvário. Todos nós nos aproximamos da Mesa do
Senhor como pecadores remidos pelo seu sangue; reconhecemos ali
a desunião causada por nosso pecado e nossa culpa; então, cheios de
gratidão e de alegria, celebramos a nossa união no perdão e na
purificação. Não há nenhuma outra verdade que seja mais eloqüente
ou que produza uma união mais sólida entre os cristãos do que a cruz
de Cristo.

c) O Senhorio de Cristo

Este argumento contra a desunião está incluído na terceira pergunta


retórica do versículo 13: Fostes porventura, batizados em nome de Paulo?
Ser batizado em (eis, literalmente: "para dentro do") nome de alguém
significa conceder-lhe a posse sobre a própria vida, sujeitar-se à sua
autoridade e estar à sua disposição. Paulo destaca este ponto, por si
mesmo evidente: no batismo, os coríntios tinham se tornado
propriedade de Jesus Cristo - e de ninguém mais. Ele sabia muito bem
que alguém poderia considerar-se seu discípulo. É o que havia
acontecido com as pessoas batizadas por João Batista. Paulo decidiu
(como João)16 que ele deveria diminuir, e Jesus deveria crescer no afeto
e na lealdade dos fiéis.
Tudo indica que, na verdade, Paulo estava tratando de uma
situação em Corinto, onde estava se atribuindo ao batismo per si uma
importância exagerada. Certamente ele fazia questão de diminuir a
importância daquele que realiza a cerimônia: Dou .graças (a Deus)
porque a nenhum de vós batizei, exceto Crispo e Gaio (v, 14). A última coisa
que desejava era que alguém dissesse que foi batizado em nome de
Paulo (v. 15). Desde o início do seu ministério, portanto, Paulo parece
ter deixado aos outros a tarefa de batizar. Ele estava muito consciente
dos cultos às personalidades que crescem facilmente em tomo do
batismo. Ainda hoje há cristãos desinformados que falam como se a
identidade da pessoa que batiza fosse importante.
Se Paulo tivesse batizado todos os que se converteram através do seu
ministério, poderia haver espaço para um mal-entendido muito
grande. Parece que ele se esqueceu, mesmo, das pessoas que havia
batizado em Corinto; ele precisou vasculhar a memória para se
lembrar da casa de Estéfanas}7
Contudo, embora possamos dizer que Paulo desprezava o batismo
em termos de seu próprio ministério (versículo 17: Porque não me
enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho), é importante
observar o significado do batismo como o terceiro ponto por ele
salientado, ao rogar pela união entre os cristãos de Corinto. Ele
reconhece o significado fundamental do batismo para cada crente. O
apóstolo conduz cada cristão de volta a esse sacramento e destaca que
a cerimônia não foi vazia, mas que indicava a d ed icação total a o
Senhorio de Jesus Cristo. Agora, todos pertencem a ele, não a Apoio
nem a Pedro ou a Paulo. Para Paulo, o que conta é o significado
profundo do batismo, não a maneira como o sacramento é ministrado
ou a pessoa que o realiza. Ele salienta a natureza especial da vida do
batizado, e, pastoralmente, esta ênfase parece ser necessária nas
discussões atuais acerca do batismo hoje.
Com base nestes três pontos - a integridade, a cruz e o Senhorio de
Cristo - Paulo roga que os cristãos de Corinto expressem a unidade
em Jesus Cristo, que foi outorgada por Deus. Tal como Paulo, nós
também recebemos ordens de pregar o evangelho (v. 17), e devemos
fazê-lo de maneira a não diminuir a cruz de Cristo. E muito fácil
diminuí-la sobretudo quando somos enredados pela sabedoria do
mundo. Isto nos remete ao primeiro tema principal de Paulo: a
verdadeira sabedoria e a falsa.

Notas:
1. C. K. B arrett escreve seguindo essas linhas em sua introdução a 2 Coríntios
(veja especialm ente págs. 41-42) e em seu com entário sobre 2 C oríntios 5:16
e 11:23.
2. N .B.: a palavra usada para "divisões" contém uma referência a conflito de
personalidades.
3. Francis Sch aeffer escreve de m aneira acertada a respeito da questão da
verdad e cristã e da necessidade de um contexto adequado de am or cristão,
em O Sinal do C ristão (A B U B /A P L IC , 1970).
4. A declaração Cospel and Spirit, publicada em 1977, foi o fruto de quatro
encontros de um dia, ao longo de dezoito meses. A declaração começa assim:
"Estam os satisfeitos em fazê-lo (isto é, reunirm o-nos desta m aneira), e em
reconhecer que o nosso fracasso em fazê-lo antes pode ter prolongado
desentendim entos e polarizações desnecessárias." (Veja acima, pág. 22, n° 1).
5. A t 18:26.
6. A t 18:27.
7. A lexand ria era o centro de exegese e exposição do A ntigo Testam ento, e foi
testem unha do surgim ento da Septuaginta, a versão grega do A ntigo
Testam ento.
8. Cf. 2 Co 10:10 e l Co 2:3-4.
9. O prim eiro cristianismo de Alexandria do qual temos notícia caracterizava­
se pelas tendências gnósticas. H ow ard M arshall escreveu: "Não seria
surpreendente se A poio tivesse recebido um conceito defeituoso da fé (em
Alexandria)... Podemos supor que ele foi instruído (por Áqüila e Priscila) nas
doutrinas distintivam ente paulinas" (Aios, Série Cultura Bíblica, M undo
C ristão, V ida Nova, 1982, pág. 286).
10. Barrett, pág. 44.
11. G 12:7.
12. Por exem plo, o reavivam ento no leste africano (cham ado de m ovim ento
"Balokole") tem agora um m ovim ento dentro do m ovim ento para os "re-
reavivados", mas suas diferenças se encontram num comportamento especial.
13. Tem -se sugerido que a frase: "Eu pertenço a Cristo", teria sido a resposta
exasperada de Paulo às outras três posições.
14. A m bas as palavras indicam uma luta (para chegar à verdade e não um a
unidade sem conteúdo). A palavra em pregada aqui no final do versículo 10
(unidos) é usada para se referir ao ato de recolocar um osso deslocado ou
rem endar redes (cf. Mc 1:19), isto é, trazer de volta à condição anterior. A
m esm a palavra foi usada por Paulo em Ef 4:12 em relação ao im pacto do
m inistério quádruplo/quíntuplo (apóstolos, profetas, evangelistas, pastores
e m estres) sobre a igreja com o um todo, "equipando-a" para "o trabalho do
m inistério". Isso poderia sugerir duas coisas: prim eira, que a unidade de
mente e de opinião faz parte da unidade em Cristo que nos foi dada e que nós
devem os manter (cf. E f 4:3); segunda, que precisam os do m inistério
m encionado em Ef 4:11 para voltarmos a essa unidade. Esta última dedução
confirma a verdade do comentário de Barrett: "Paulo não sugere neste ponto,
nem m ais tarde, que a igreja possa ser rem endada pela política eclesiástica"
(pág. 42).
15. Cf. Cl 1:19-22.
16. Cf. Jo 3:30.
17. Outros exemplos de tais batismos, incluindo toda uma casa, encontram-se em
A t 16:15,32-33.
1 Coríntios 1:18-2:16
3. A Verdadeira Sabedoria e a Falsa

Ao longo de toda esta seção, Paulo contrasta a sabedoria do mundo


com a sabedoria de Deus. Muitas das características de ambas vão se
tornar claras à medida que examinarmos o texto, mas é útil
contemplarmos o tema como um todo. A palavra chave (sophos ou
sophia) ocorre mais de vinte vezes e "é possível, embora não se tenha
certeza, que Paulo esteja usando um slogan de Corinto".1
Barrett explica que Paulo usa a palavra "sabedoria" em quatro
sentidos, dois negativos e dois positivos.2 Um exemplo negativo de
sabedoria é o mencionado em 1:17 ("sabedoria de palavra"), que se
refere a um modo particular de falar, isto é, à habilidade de organizar
argumentos humanos. Em 1:19, Paulo está descrevendo, não tanto um
modo de falar, mas um modo de pensar, isto é, uma atitude para com
a vida que se baseia no que eu desejo crer e fazer.
Em contraste com esses exemplos de sabedoria humana, Paulo fala
da sabedoria de Deus, também em dois sentidos (de acordo com
Barrett). Ele descreve (1:21 e 2:7) o plano da salvação determinado pela
sabedoria de Deus; mas também vê Jesus Cristo como a própria
sabedoria divina e, desse modo, a verdadeira substância da salvação
(1:24 e 30). Para Paulo, portanto, qualquer tentativa de estabelecer a
salvação fora do fundamento de Jesus Cristo crucificado é loucura
completa.
Paulo via duas maneiras fundamentais pelas quais o mundo
incrédulo tentava abrir tal caminho para Deus: os judeus queriam que
Deus preenchesse todos os seus requisitos, fornecendo provas
irrefutáveis e tangíveis em que pudessem basear suas convicções.
"Eles exigiam provas, e o seu interesse estava no que é prático... E por
isso exigiam um sinal do Senhor (por exemplo, Jo 6:30). Pensavam no
Messias como alguém credenciado por manifestações extraordinárias
de poder e majestade. Um Messias crucificado era uma contradição
de termos."3
Os gregos, por sua vez, preferiam especular sobre o caminho para
Deus através do raciocínio e do debate. Usando o intelecto para criar
um deus à sua própria imagem, julgavam impossível conceber um
Deus em termos pessoais: "no pensamento grego, a primeira
característica de Deus era apatheia... a total incapacidade de sentir. Os
gregos alegavam que Deus não podia sentir... Um Deus sofredor era
uma contradição de termos... Deus devia ser totalmente neutro e
rem oto."4 Inevitavelm ente, a m entalidade grega julgava
incompreensível e ridícula a pregação da cruz, ou seja, que Deus
estivesse reconciliando o mundo consigo em Cristo.
Na visão de Paulo, a sabedoria do mundo (judaica e grega) brotava
claramente da rebeldia do homem contra Deus, de sua recusa em
dobrar os joelhos e de sua determinação em fazer Deus se encaixar em
suas próprias idéias e desejos. Uma vez que Deus está determinado
a arrancar todo esse orgulho humano, deve-se rejeitar qualquer
sabedoria que não se baseie no "Cristo crucificado" (e nas verdades
derivadas desse evangelho, a saber, a natureza essencialmente
pecadora do homem e a provisão graciosa de salvação através de um
Deus Criador, santo e amoroso).
Parece evidente que tal sabedoria do mundo andava solta nas ruas
e nos auditórios de Corinto. Conzelmann, de fato, cita alguns ditados
da filosofia popular da época: "o homem sábio é rei" e "ao sábio
pertencem todas as coisas".5 Paulo rejeitava esta sabedoria do mundo.
Ele também rejeitava a forma como ela era fornecida, isto é, com
eloqüência persuasiva. "Os gregos estavam intoxicados com palavras
bonitas."6 Como muitas personalidades acadêmicas de hoje, eles não
se preocupavam tanto com a verdade ou com o que era dito, mas com
a eloqüência e a perspicácia com que se falava.
Seríamos, contudo, ingênuos se pensássemos que Paulo escreveu
esta carta simplesmente para contrastar a pregação e a verdade cristãs
com a sabedoria grega e judaica contemporânea. O clima intelectual
(acadêmico ou popular) da época sempre contamina a igreja cristã de
maneira muito sutil. Como Barrett escreve: "não foi a falsa presunção
da sabedoria e da capacidade do mundo que levou Paulo a escrever
1 Coríntios, mas essa mesma falsa presunção na igreja... onde os
cristãos estavam se gloriando nos homens e avaliando erroneamente
os seus dons. Só podiam fazer isso porque haviam esquecido que a sua
existência como cristãos dependia, não de seus méritos, mas da
vocação de Deus, e do fato de que o Evangelho é a mensagem da
Cruz."7
É necessário muito tempo, um estudo profundo das Escrituras e
uma iluminação constante do Espírito Santo para reproduzir "a mente
de Cristo" numa comunidade cristã. Tal processo envolve a
42
"desaprendizagem" da sabedoria do mundo, bem como a absorção da
sabedoria de Deus. Portanto é importante que os cristãos de hoje
saibam reconhecer a maneira como o seu pensamento é influenciado
pelo secularismo de nossa época, assim como Paulo considerou
necessário desvendar para a igreja de Corinto a vacuidade e a loucura
do pensamento de então.
Ao denunciar a loucura da sabedoria do mundo, Paulo não
subestima, de maneira alguma, o significado ou o impacto dela sobre
nós. A característica essencial da sabedoria do mundo é que ela pode
esvaziar a palavra da cruz, tirando-lhe o poder (1:17). Por isso, ela é
uma séria ameaça para o evangelho e a igreja. Não estamos lidando,
portanto, com algo periférico ou superficial, mas com um inimigo sutil
que golpeia o coração da nossa mensagem. Se não pudermos
identificá-lo e afastá-lo, nosso evangelho será insignificante e yazio.
Paulo também admite claramente a eficácia dessa sabedoria. Nos
versículos 17-21 ele usa quatro frases que indicam o seu ponto de vista:
tal sabedoria é "eloqüente" (v. 17), até "inteligente" (v. 19); mas não
passa de palavras (v. 20), sendo, portanto, com pletam ente
insatisfatória em relação às necessidades e desejos básicos do homem
(v. 21).
A palavra inteligência (v. 19) é uma citação de Isaías 29:14. O contexto
dessa passagem descreve um momento na vida do reino de Judá no
século oitavo a.C. Quando o povo pensava, planejava e agia,
praticamente ignorava a realidade e, mais ainda, a relevância de um
Deus transcendente, capaz de afetar significativamente qualquer
situação aqui e agora. Em sua astúcia, apoiavam-se na engenhosidade
e nos recursos puramente humanos. Hoje, tanto os cristãos como os
incrédulos muitas vezes se incham de tal sabedoria.
Um dos sinais da sabedoria puramente humana é o fato de se apoiar
em uma apresentação eloqüente e persuasiva, acompanhada de uma
profusão de palavras. Ingmar Bergman, o diretor de cinema sueco,
observou certa vez: "Quando Deus está morto, os cristãos tagarelam."
O próprio Jesus nos advertiu explicitamente contra uma religião que
se expressa em linguagem ortodoxa, mas não resulta em mudança de
estilo de vida.8 Paulo sabia dar o devido valor ao argumento
persuasivo na proclamação de Cristo; em Corinto ele "discorria" na
sinagoga todas as semanas, "persuadindo judeus e gregos".1' Mas ele
mesmo não acreditava que a palavra persuasiva, por si mesma,
pudesse levar alguém à fé em Jesus e a um conhecimento de Deus
capaz de transformar vidas.
Aos líderes cristãos mais jovens como Timóteo e Tito, Paulo reiterou
a futilidade e o perigo dos debates verbais sem fim. Os detalhes exatos
das práticas condenadas nas Epístolas Pastorais não estão explícitos;
mas o destaque principal é óbvio: Paulo estava buscando vidas
transformadas, cheias de fé, de amor e de santidade. Ele combatia
qualquer tipo de verbosidade que parece estar cheia de conteúdo
religioso, mas que não passa de "fábulas", "discussões", "loquacidade
frívola", "contendas de palavras", "falatórios inúteis e profanos",
"debates". O seu conselho é simples: "Evite-os".10
Porém, tanto no conteúdo como no método de apresentação, a
sabedoria do mundo põe em perigo "a palavra da cruz". Presume-se
que Paulo não rejeitava todo o conhecimento, a sabedoria e a filosofia
do mundo não-cristão (embora ele não tenha expressado tais
sentimentos em 1 Coríntios). Provavelmente ele reconhecia os seus
méritos, apesar das suas muitas e inevitáveis limitações. Tal sabedoria
pode realizar muitas coisas, bem como impressionar muitas pessoas,
produzir um grande impacto e gerar muita fama, mas nunca satisfaz
a alma faminta com o perdão e a paz de Deus. T. S. Eliot escreveu:

Todo o nosso conhecimento nos aproxima mais da nossa


ignorância,
Toda a nossa ignorância nos aproxima mais da morte,
Proximidade da morte, não de Deus.
Onde está a vida que perdemos vivendo?11

Vejamos então algumas características e limitações da sabedoria do


mundo. Nesta passagem (1:18-2:16) Paulo desvenda a sabedoria de
Deus a partir de três perspectivas: a palavra da cruz (1:18-25), os
caminhos de Deus (1:26-31) e o ministério do Espírito (2:1-16). Talvez
essa aparência trinitária não seja mera coincidência: no capítulo 2, os
ensinamentos de Paulo sugerem um conteúdo explicitamente
trinitário.

1. A palavra da cruz (1:18-25)

Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós,
que somos salvos, poder de Deus. 19Pois está escrito: Destruirei a sabedoria
dos sábios, e aniquilarei a inteligência dos entendidos. 2uOnde está o
sábio? onde o escriba? onde o inquiridor deste século? Porventura não tornou
Deus louca a sabedoria do mundo? 21Visto como, na sabedoria de Deus, o
mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aos
que crêem, pela loucura da pregação. 22Porque tanto os judeus pedem sinais,
como os gregos buscam sabedoria; 23mas nós pregamos a Cristo crucificado,
escândalo para os judeus, loucura para os gentios; umas para os que foram
chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e
sabedoria de Deus. 25Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens;
e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

É importante notar a ênfase que Paulo coloca sobre "a palavra" (v. 18)
e a pregação (vs. 21 e 23). Contudo, por mais que denuncie a
prolixidade da sabedoria humana, renunciando a ela, ele crê
apaixonadamente na natureza racional da sabedoria de Deus
revelada. Não somente o próprio Jesus é a sabedoria e a palavra de
Deus, mas Paulo também escreve explicitamente (2:13) sobre
comunicar a sabedoria de Deus "em palavras... ensinadas pelo
Espírito". Não podemos pregar nem receber a mensagem usando os
recursos meramente humanos, mas nunca devemos deixar que esse
fato acabe com a nossa responsabilidade de pregar o evangelho em
palavras relevantes, "ensinadas pelo Espírito".
A sabedoria - e a loucura - de Deus se materializa na palavra da cruz
(18).12 A frase paralela em 1:23, pregamos a Cristo crucificado, enfatiza
o conteúdo dessa palavra. Muitas vezes o termo "cruz" é usado de
maneira excessivamente vaga, sem destacar o fato de que uma Pessoa
em particular foi pendurada naquele instrumento de execução
romano. A sabedoria de Deus é vista no Messias pendurado no
madeiro. Para os judeus isso representava uma pedra de tropeço, um
escândalo completo (skandalon, em grego), porque "o que for
pendurado no madeiro é maldito".13 Como o Messias cheio de
autoridade e poder, aquele que havia de vir, poderia acabar os seus
dias pendurado em um madeiro? Isso basta para provar que Jesus não
pode ser o Messias. Não há sabedoria nessa mensagem; é tudo
bobagem! Mas Paulo insiste: "Pregamos a Cristo, o ungido, o Messias,
o que foi crucificado". Pode parecer um absurdo total, uma loucura,
uma estupidez para os judeus e gregos incrédulos, mas isso serve para
provar que eles de fato estão entre aqueles que se perdem (v. 18).
Os judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria (v. 22); mas, até
que desistam de depender de sua própria visão e entendimento,
nunca serão capazes de receber a sabedoria de Deus em Jesus Cristo.
Pois todos os fatos acerca de Jesus —o Filho de Deus nascer em forma
humana, crescer até a idade adulta virtualmente sem ser reconhecido,
fazer o bem e curar todos os tipos de enfermidades, entregar a sua vida
nas mãos de homens inescrupulosos e morrer crucificado como um
criminoso - desafiam a sabedoria e o entendimento humano.
Enquanto os gregos continuarem buscando tenazmente a
sabedoria, seguindo o seu próprio entendimento, vão continuar
andando em círculos, numa espiral que leva finalmente à destruição.
A palavra perder (v. 18) envolve uma "destruição definitiva", não
simplesmente no sentido de extinção da existência física, mas de um
mergulho eterno no Hades, e de um destino mortal sem esperanças,
em cuja descrição são usados termos como 'ira e fúria, tribulação e
desespero'.”14
A pergunta chave é: será que o judeu ou o grego prefere ser salvo,
a perecer? O primeiro insistiria em exigir sinais convincentes, em vez
de pedir para ser salvo? Será que o outro iria perecer buscando
sabedoria, em vez de admitir a necessidade de alguém para salvá-lo
de tal destruição? É exatamente para esse senso de "eternidade na
alma do homem" que Deus dirige a palavra da cruz.
C. S. Lewis escreveu:

É bem pouco elogioso para Deus que O escolhamos como uma


alternativa para o inferno: mas até mesmo isso ele aceita. A ilusão
da auto-suficiência da criatura deve, em seu próprio benefício, ser
destruída. E pelas dificuldades ou medo das dificuldades na
terra, pelo medo indisfarçado das chamas eternas, Deus a
destroça, "não levando em conta a diminuição de sua glória".
Chamo a isto de humildade divina, porque é deprimente
procurar Deus quando o navio está afundando debaixo de nós;
deprimente achegar-nos a Ele como um último recurso, oferecer
nossa pessoa quando não vale mais a pena guardá-la. Se Deus
fosse orgulhoso, Ele jamais nos aceitaria nesses termos, mas Ele
não é orgulhoso, Ele se abaixa para conquistar, Ele nos aceita
embora tenhamos mostrado que preferimos tudo o mais a Ele, e
nos achegamos porque agora não há "nada melhor" que
possamos ter.15

A sabedoria dos homens, a sabedoria que os "gregos" buscam


constantemente, não permite que tais questões de consciência, de
necessidade de salvação, de uma perspectiva de destruição etema, de
uma completa incapacidade de encontrar e conhecer a Deus, os leve
a ajoelhar-se e dizer: "Senhor, salva-me". Deus se fez desconhecido e
"não-conhecível" pela sabedoria humana. Elese fez conhecido nesse
Messias crucificado. Ele resolveu salvar da destruição eterna não
46
aqueles que acreditam ter sabedoria própria ou os que fazem boas
obras até o limite de sua capacidade, mas os que crêem (v. 21) neste
Cristo crucificado. Desta maneira Deus realmente destruiu a sabedoria
dos sábios (v. 19).
Quando alguém, judeu ou grego, dobra os joelhos diante de Jesus
Cristo como Senhor, começa a experimentar o poder salvador de Deus
(v. 18). Antes ele não tinha saída, mergulhado na espiral descendente
do pecado e da morte, mas agora experimenta cada vez mais o
chamado de Deus em Cristo Jesus, que o conduz para cima (v. 24). É
importante observar que Deus não discute com aqueles que
discordam dele. A resposta de Deus para toda a sabedoria do mundo
é agir em poder (em grego dynamis, de onde deriva "dinamite"); assim,
a melhor defesa do evangelho são os homens e as mulheres que estão
sendo salvos (18) à medida que atendem à palavra da cruz. Esta
sabedoria pode parecer tola e inconsistente, mas é muito, muito mais
sábia e sólida do que qualquer coisa que a sabedoria do mundo possa
oferecer (v. 25).
Desse modo, por mais que "a palavra da cruz" seja racional e
significativa, nunca deveríamos cair na armadilha de rebater os
argumentos em favor da sabedoria do mundo simplesmente com
palavras, mesmo sendo "palavras ensinadas pelo Espírito". É no poder
de Deus para salvar e transformar homens e mulheres que se encontra
a resposta mais eficaz: Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus (v. 24),
pois Deus o fez "sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" (1:30).

2. Os métodos de Deus (1:26-31)

Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos
sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre
nascimento; 27pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para
envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar
as fortes; 28e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas,
e aquelas que m o são, para reduzir a nada as que são; 29afim de que ninguém
se vanglorie na presença de Deus. 30Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual
se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção,
Mpara que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.

"Aprouve a Deus salvar aos que crêem" (v. 21). Assim Deus resolveu
salvar da destruição aqueles que são suficientemente humildes para
descansar suas vidas (passada, presente e futura) em "Jesus Cristo,
crucificado": a esses crentes, ele chamou a fim de partilhar de sua
própria vida.16
Vemos a sabedoria de Deus mais precisamente na maneira como
ele opera: o Senhor salva aqueles que crêem, não os sábios ou os
inteligentes, expressando assim sua própria determinação de acabar
com todo o orgulho humano. "Deus resiste aos soberbos"17 e o seu
propósito é que ninguém se vanglorie na presença dele (v. 29).18Aqueles
que preferem confiar em sua própria sabedoria e discernimento
podem continuar a fazê-lo, mas não na presença de Deus; pois com
essa atitude, excomungam-se a si mesmos. Na verdade, Deus está tão
interessado em acabar com todo o orgulho hum ano que
deliberadamente age de modo a revelar a vacuidade disso.
Foi o que fez em Corinto: Deus escolheu as coisas loucas do mundo para
envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar
as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e
aquelas que não são, para reduzir a nada as que são (vs. 27-28). Nova vida
e amor, nova pureza e paz, nova esperança e felicidade se
manifestaram de maneira evidente na comunidade cristã de Corinto,
e em nenhum outro lugar daquela cidade decadente. Ainda, não foram
chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos
de nobre nascimento (v. 26). Todos os nobres, os filósofos, os negociantes
e os proprietários de terras, toda a gente que andava pelos corredores
do poder', todos eles se destacavam pela virtual ausência na igreja de
Corinto. Havia uma ou duas exceções, mas não muitas.
Corinto não era uma cidade fora do comum, pois o cristianismo
espalhou-se mais rápido entre as classes inferiores da sociedade
mediterrânea, e, em parte, este simples fato (nas sociedades grega e
romana, onde havia muita consciência de classe) é a causa de o
cristianismo ser tão ofensivo. O povo simples estava se convertendo,
sendo salvo, transformado. Deus pegou a escória da terra e
transformou-a em reis e sacerdotes no seu reino.19Foi exatamente isso
que o próprio Jesus disse quando anunciou o seu ministério: "O
Espírito do Senhor... me ungiu para evangelizar aos pobres."20É este
o caminho de Deus, sua sabedoria, o poder do evangelho.
Através desses métodos, Deus está derrotando um dos falsos
padrões do mundo, isto é, a noção de que ele se importa com os sábios,
os de boa família, os eloqüentes, os talentosos, os ricos, que detêm o
poder e a influência. Esses falsos padrões estão muito encravados até
mesmo na igreja cristã e exerciam uma força poderosa em Corinto.
Hoje, ainda encobrem a glória de Deus. Tiago dirigiu palavras severas
para os cristãos que adotavam esse padrão,21 dando tratamento
48
especial às pessoas influentes nas reuniões da igreja.
O método divino consiste em conceder posição e honra especiais
apenas ao seu Filho, Jesus. Deus fez com que Jesus Cristo fosse tudo
para nós: nossa sabedoria, nossa justiça, nossa santificação e nossa
redenção.22 Se uma pessoa está à procura dessas coisas, só as
encontrará em Jesus: profundidade, posição, pureza, liberdade —estão
em Jesus, e só em Jesus, mediante a sua morte na cruz. Se o método
divino exalta e glorifica Jesus, o homem sábio seguirá o caminho
divino, humilhando-se diante do Salvador crucificado, renunciando
qualquer dependência das vantagens do mundo e gloriando-se apenas
no Senhor: eis a verdadeira sabedoria. A gramática do grego no
versículo 30 indica que Paulo está dizendo que "a sabedoria é igual à
justiça, à santidade e à redenção"; conhecer essas três coisas é ser um
sábio de verdade.
Ao observar a sabedoria de Deus na maneira como ele opera,
também vale a pena notar que é em amor que ele resiste aos soberbos.
Ele só salva aqueles que se humilham ao ponto de se voltarem para
Jesus Cristo suplicando por ajuda, e ele deseja que todos os homems
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.23 Deus sempre
está colocando deliberadamente as pessoas soberbas de joelhos, para
que possam penetrar na sua presença em arrependimento e fé. As
pessoas que se gloriam na sua própria inteligência e discernimento
serão envergonhadas por aquelas que, pelos padrões do mundo, são
ignorantes, mas conhecem a Deus por meio de Jesus Cristo. Os
grandes e poderosos são desmascarados em toda a sua
vulnerabilidade pela impressionante força interior de indivíduos
muito fracos que amam a Deus. Muitas vezes, cidadãos insignificantes
e muito comuns incomodam os bem sucedidos e os influentes que,
normalmente, os ignorariam e desprezariam. Dessa e de outras
formas, a soberba do homem é puncionada pelo sábio amor de Deus.
Somos instados, como cristãos, a nos humilharmos sob a poderosa
mão de Deus;24mas, se não formos suficientemente sábios para fazer
isso, Deus tratará de nos humilhar, muitas vezes através das pessoas
mais improváveis. Esses são os métodos amorosos de nosso sábio
Deus. Assim se tomam verdadeiras as palavras:
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos
caminhos os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são
mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os
vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos
pensamentos.25
O contexto dessas palavras de Isaías torna-se ainda mais apropriado
a este trecho de 1 Coríntios, porque os dois versículos anteriores
descrevem o perdão livre e abundante de Deus, que se estende a todos
os que procuram o Senhor "enquanto se pode achar", que o invocam
"enquanto está perto". Esta aceitação completa e eterna do pecador
arrependido que clama a Deus para ser salvo é totalmente estranha
à sabedoria do mundo e aos métodos e idéias dos seres humanos. Sem
exceção, os métodos humanos exigem esforço, boas obras e palavras
sábias para o caminho da salvação. Os métodos de Deus, porém,
dizem: "buscai ao Senhor... invocai o Senhor... voltai para o Senhor,
para o nosso Deus, pois ele perdoa abundantemente."
Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (v. 31). Esta citação refere-se
a uma passagem particularmente relevante de Jeremias: "Assim diz
o Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o forte na sua
força, nem o rico nas suas riquezas; mas o que se gloriar, glorie-se
nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor, e faço misericórdia,
juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor."26

3. O ministério do Espírito (2:1-16)

Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus,


não ofiz com ostentação de linguagem, ou de sabedoria. 2Porque decidi nada
saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. 3E foi em fraqueza,
temor e grande temor que eu estive entre vós.4A minha palavra e a minha
pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em
demonstração do Espírito e de poder, spara que a vossa fé não se apoiasse em
sabedoria humana; e, sim, no poder de Deus.
6Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a
sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a
nada; 7mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual
Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; 8sabedoria essa que
nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido,
jamais teriam crucificado o Senhor da glória; 9mas, como está escrito: Nem
olhos viram, nem ouvidos ouviram, mm jamais penetrou em coração humano
o que Deus tem preparado para aqueles que o amam.
I0Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas
perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. nPorque, qual dos homens sabe
as coisas do homem, semo o seu próprio espírito que nele está? assim também
as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus.
nOra, nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem
de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos fo i dado gratuitamente.
nDisto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana,
mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais.
uOra, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente.
,5Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado
por ninguém. 16Pois, quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir?
Nós, porém, temos a mente de Cristo.

A obra do Espírito Santo é sublinhada repetidas vezes no capítulo 2.


Além disso, este capítulo compreende explicitamente a doutrina da
Trindade; por exemplo, 2:2: "Jesus Cristo, e este crucificado"; 2:8: "o
Senhor da glória"; 2:16: "a mente de Cristo"; Deus, por sua vez, é
mencionado em 2 :1 ,5 ,7 ,9 ,1 0 ,1 1 ,1 2 e 14. A outra verdade importante
embutida no capítulo é o relacionamento íntimo que existe entre a cruz
e o Espírito. P. T. Forsyth denominou essas duas verdades de
"companheiras inseparáveis", e toda a discussão sobre a sabedoria nos
capítulos 1 e 2 toma isso muito claro. A sabedoria de Deus é revelada
em Jesus Cristo, e este crucificado, e esta sabedoria é revelada por suas
testemunhas originais através do ministério do Espírito (2:10 e 13).
Nos versículos 1-5, Paulo lembra que chegou a Corinto em temor e
grande tremor (v. 3), tais eram a reputação da cidade e o seu próprio
senso de vulnerabilidade em todos os níveis. Ele tomou uma decisão
consciente, deliberada e firme de abandonar qualquer sabedoria
natural ou mundana, e concentrar-se em Jesus Cristo, e este crucificado
(vs. 1-2). A enganosa capacidade de persuasão dos filósofos
contemporâneos foi rejeitada: em vez disso, Paulo dependeu do poder
do Espírito (v. 4) e sua própria pessoa era uma demonstração de tal
poder. Essa decisão garantiu que os resultados nas vidas dos coríntios
transformados repousassem seguros, não... em sabedoria humana; e, sim,
no poder de Deus (v. 5).
Este parágrafo fornece a pedra de toque perfeita para toda pregação,
tanto naquilo que Paulo rejeitou como naquilo que ele se determinou
a buscar. Levantam-se aqui indagações profundas para o pregador. A
nossa pregação é uma proclamação genuína? Estamos proclamando
os poderosos atos pelos quais Deus deu testemunho de si mesmo em
Jesus? Será que não estamos obscurecendo nossa proclamação com
ostentação de linguagem (v. 1) ou qualquer outra coisa? Tomamos a firme
decisão de fazer de Jesus Cristo crucificado o tema de nossa pregação
e o centro de nossas vidas? Sentimos a nossa própria vulnerabilidade
como pregadores do evangelho em um mundo pagão e hostil? A
nossa pregação manifesta o poder do Espírito? Os resultados de nossa
pregação demonstram o poder do Espírito? As vidas das pessoas estão
sendo transformadas? Elas reconhecem o poder do Espírito em suas
próprias vidas?
No versículo 6 a linguagem de Paulo muda e ele toma outra direção.
Desde 1:18 ele vinha pintando em cores luminosas o contraste entre
a sabedoria do mundo e a sabedoria de Deus. Ele também denunciou
a nulidade de todos os planos de salvação feitos pelo homem e nele
centralizados. Paulo realmente destituiu a sabedoria humana de todo
e qualquer valor e, conseqüentemente, de qualquer poder de atração.
O impacto final poderia muito bem ter sido a conclusão de que o
apóstolo não estava interessado em qualquer sabedoria —a não ser a
"loucura" do evangelho. A simples palavra entretanto (v. 6) introduz
a resposta imediata de Paulo a qualquer conclusão desse tipo:
Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados.
É importante notar, em 2:6, a mudança da primeira pessoa do
singular (2:1-5, "eu") para a primeira pessoa do plural (2:6-16, "nós”).
Essa diferenciação se faz ainda mais notável porque Paulo retoma ao
"eu" a partir de 3:1. Uma explicação para tal mudança é que neste
parágrafo Paulo está se referindo à prática normal dos apóstolos,
incluindo-se a si mesmo, no ensino da igreja; isto é, normalmente os
apóstolos ensinavam verdades espirituais a pessoas espirituais no
poder do Espírito (cf. v. 13); mas a imaturidade dos coríntios - na
verdade, sua condição infantil —impediu tais ensinamentos. Se esta
é a interpretação correta, a frase difícil e polêmica do versículo 16,
temos a mente de Cristo, toma-se uma reivindicação feita pelos apóstolos
em seu papel singular na edificação da igreja.
Já se argumentou que não existe nenhum significado especial na
troca do "eu" pelo "nós" e o posterior retorno para o "eu". Sugere-se,
então, que Paulo esteja descrevendo o costume da maioria das igrejas,
destacando a riqueza da sabedoria divina disponível àqueles que não
são imaturos como os cristãos de Corinto. Aqueles que são
"espirituais" e progridem experimentando, por meio do Espírito, tudo
o que Deus dá em Jesus (cf. v. 12) podem, então, dizer com Paulo: temos
a mente de Cristo.
No versículo 6, Paulo reafirma que a sabedoria de Deus não é uma
sabedoria deste sécido. Ela não tem origem neste mundo passageiro, não
revela as características do mundo, nem pode ser obtida através da
astúcia mundana. A expressão deste século reaparece em 1:20 e 3:18.
Uma vez que este século está condenado ao pó, qualquer sabedoria
deste século vai exibir todas as características embutidas neste século.
Esta sabedoria, que vem dos poderosos deste século ou é vista
principalmente neles, vai passar, assim como eles, porque são mortais,
temporários e efêmeros.
Mas o que Paulo queria dizer com poderosos desta época (vs. 6 e 8)?
Talvez ele se referisse aos governadores como Pilatos e Caifás, que
representavam a sabedoria romana e judaica; ou talvez seja uma
referência aos poderes demoníacos. Embora nunca identifique os
poderes demoníacos com as estruturas de poder e os governantes
humanos deste mundo, a Bíblia insinua fortemente uma visão do
mundo em que os poderes do mal m anifestam controle,
particularmente em situações onde o poder humano é exercido com
mais eficiência.27É possível, portanto, que Paulo estivesse dizendo que
a sabedoria humana mais influente é aquela que controla as decisões
e ações dos que estão em posição de autoridade.28 Mas mesmo essa
sabedoria imensamente poderosa passa, assim como passam os
governantes que a encarnam.
Até essa sabedoria influente desvanece e sucumbe diante da
sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta (v. 7). Esta sabedoria foi
revelada, encarnada e tornou-se acessível em Jesus Cristo. Se os
governantes deste século tivessem percebido a verdadeira identidade
de Jesus, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (v. 8). Essa
ignorância, essa cegueira e essa atitude destrutiva revelam a loucura
total da sabedoria humana.
Na notável frase do versículo 7, onde Paulo descreve a sabedoria
divina como aquela que Deus preordenou desde a eternidade para a nossa
glória, temos uma perspectiva que vai de eternidade a eternidade. Em
suma, Paulo está dizendo que, em sua sabedoria, Deus decidiu que
jesus Cristo, e este crucificado, fosse o caminho da salvação muito antes
de o tempo e o espaço serem chamados à existência, muito antes de
nos criar à sua própria imagem (desde a eternidade). Mais do que isso,
desde a eternidade ele planejou reunir todos os seus "santos" para
participarem de sua glória.
^ É importantíssimo notar que "o mistério do qual Paulo fala não é
um acréscimo à mensagem salvadora do Cristo crucificado: é no Cristo
crucificado que se encarna a sabedoria de Deus. Antes, ela consiste na
revelação mais detalhada do propósito divino resumido no Cristo
crucificado."29 Portanto, jamais avançamos além da cruz de Cristo, mas
avançamos rumo a uma compreensão mais profunda da cruz. "Paulo
não tinha um evangelho da cruz simplificado para crianças e outro
evangelho-sabedoria, para pessoas maduras. Todos os cristãos são
potencialmente maduros em Cristo, embora apenas alguns sejam o
que realmente todos deveriam ser."30
Esta sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, é, portanto, nada
mais, nada menos, que Jesus Cristo, e este crucificado. Embora secreto
e oculto durante gerações, agora ele nos foi revelado como o Filho de
Deus e o Salvador do mundo. A palavra mistério (no grego, mysterion)
tem uma ênfase dupla: simples homens não podem penetrar no
mistério, más Deus em seu amor revelou-o àqueles que se humilham
diante dele. A sabedoria de Deus permanece misteriosa e oculta para
aqueles que continuam dependendo da sabedoria humana. "As três
grandes fontes do conhecimento humano (ver, ouvir e pensar)
fracassam igualmente. Até aqui esta sabedoria era um mistério, uma
coisa oculta. Aqui, porém, Deus mesmo a revelou."31 Ele a revelou pelo
Espírito (vs. 9-10).
Em poucas e hábeis pinceladas, Paulo apresenta aos imaturos
coríntios um vislumbre da sabedoria gloriosa de Deus.32 Paulo anseia
que eles demonstrem aquela maturidade que lhe permita expor-lhes
essa sabedoria. O termo experimentado (v. 6) é uma das palavras
prediletas e mais importantes de Paulo. Era usada para designar os
"iniciados" nas religiões de mistério gregas, mas o que Paulo tinha em
mente era aquele desenvolvimento de toda a igreja até a maturidade.
o alvo de todo o seu ministério.33 Uma passagem chave é Filipenses
3:8-15, que podemos resumir da seguinte maneira: "Eu quero conhecer
Cristo; ainda não alcancei plenamente esse alvo, mas estou me
esforçando para atingir esse ponto; esquecendo-me de onde estive
antes, procuro avançar... e qualquer pessoa amadurecida terá
exatamente a mesma atitude." Sintetizando, para Paulo, ser maduro
é eu saber que ainda não atingi o alvo e continuar avançando.TJéssê
sentido, o cristão mais inexperiente põ3i"ser "maduro" e os veteranos
podem cair numa rotina e parar de progredir no Senhor. A
maturidade, portanto, é um processo, não um platô.
Talvez a chave desse processo de amadurecimento se encontre na
última frase do versículo 9, onde Paulo afirma que o Espírito Santo
revela a sabedoria de Deus para aqueles que o amam. Para os coríntios,
o conhecimento era mais importante do que o amor; para Paulo, o
amor de Deus é a chave para conhecermos tudo o que ele tem
preparado para nós. Aparentemente, anos depois, a citação contida
no versículo 9 (que vem principalmente de Isaías 64 e 65) acabou
sendo um lema dos gnósticos, que reivindicavam conhecimento e
posição superiores diante de Deus. Paulo esclarece que tal sabedoria
está à disposição de todos, e o caminho é amar a Deus.34 "Se alguém
ama a Deus, essa pessoa é conhecida por ele.”35
Nos versículos 10-16, Paulo explica detalhadamente o ministério do
Espírito Santo quanto à revelação de Jesus, a sabedoria personificada
de Deus. Esse ministério é essencial, porque, sem ele, jamais
entenderíamos as coisas de Deus (v. 11). O Espírito perscruta até mesmo
as profundezas de Deus, e ele capacita todos os crentes (isto é, todos os
que receberam o Espírito, v. 12) a conhecer, comunicar e interpretar
tudo o que Deus nos tem dado em Jesus (vs. 12-13).
É nesta seção (vs. 12-13) do parágrafo (2:6-16) que o pronome "nós"
refere-se naturalmente ao ministério específico de Paulo e de seus
companheiros apóstolos. Embora cada cristão seja potencialmente
capacitado pelo Espírito para entender, comunicar e interpretar tudo
o que Deus nos concedeu na sua graça, os ensinamentos apostólicos
sobre a salvação de Deus em Jesus têm autoridade única, conforme
descrito no versículo 13: Disto também falamos, não em palavras ensinadas
pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito. Rejeitando novamente
a eloqüência da sabedoria humana, Paulo sustenta aqui que a sua
doutrina, tanto na linguagem como na substância, é conferida pelo
Espírito Santo. As palavras que ele usa verbalizam os pensamentos de
Deus e, portanto, são envoltas na autoridade dele.
A inspiração do Espírito Santo se faz necessária não apenas para a
instrução, a iluminação e a capacitação dos mensageiros apostólicos,
mas também para aqueles que os ouvem. Aquele que não recebeu o
Espírito (v. 14, o homem natural) não tem os recursos para reconhecer,
apreciar ou receber o que o Espírito deseja comunicar através dos seus
mensageiros. Nos versículos 12-14 Paulo usa seis verbos importantes
para descrever o ministério do Espírito naqueles que ensinam e
naqueles que ouvem o evangelho: aos primeiros ele dá a capacidade
de saber, declarar e explicar; aos outros ele dá a capacidade de receber,
entender e apreciar. Sem tal ministério da parte do Espírito não pode
haver comunicação nem tampouco crescimento para a maturidade:
a verdade toma-se incompreensível e as coisas do Espírito são
consideradas loucura (v. 14).
Podemos começar a entender por que Paulo se sentia tão
decepcionado com a evidente camalidade dos cristãos de Corinto.
Como todos os cristãos, eles tinham acesso à mente de Cristo (v. 16), mas
estavam se privando do privilégio de, pela obra do Espírito, julgar
todas as coisas_Cv.liB) por meio da auto-revelação de Deus em Jesus
Cristo, que é a própria sabedoria de Deus. Grandes áreas de
experiência humana, projetos e aventuras estariam fora do alcance
daqueles cristãos de Corinto, enquanto eles permanecessem naturais
(v. 14). A palavra grega aqui é psychikos, que se refere a "tudo o que faz
parte da nossa herança desde o primeiro Adão",36 que foi criado como
um psyche vivente (cf. 15:45). Paulo está dizendo que os cristãos podem
voltar a se comportar como incrédulos. Quando uma pessoa nasce de
novo através do Espírito de Deus, ela se torna potencialmente um
"homem espiritual", mas não irá continuar andando no Espírito de
forma automática.
Precisam os nos precaver de qualquer tendência de nos
acomodarmos, pensando que "já chegamos". Precisamos tomar a
decisão de amar a Deus com cada fibra de nosso ser. Precisamos nos
ligar intimamente aos nossos companheiros crentes 110 corpo de
Cristo, porque ter a mente de Cristo é uma experiência essencialmente
corporativa: nós "temos a mente de Cristo" (v. 16). Quando buscarmos
essas prioridades, o Espírito nos revelará mais e mais a sabedoria de
Deus em Jesus Cristo, nosso Senhor crucificado e ressurrecto.

Notas:
1. Conzelm ann, pág. 37.
2. Barrett, págs. 67-68.
3. M orris, pág. 36.
4. B arclay, págs. 20-21.
5. Conzelm ann, pág. 15.
6. Barclay, pág. 22.
7. Barrett, pág. 59.
8. Cf. M t 7:21; Lc 6:46.
9. A t 18:4.
10. Cf. 1 Tm 1:3-7; 4:6-7; 2 Tm 2 :14ss;T t 3:8-11.
11. T. S. Eliot, linhas 11-14 de "Choruses from 'The Rock"' (1934). Veja The complete
Poems and Plays o fT . S. Eliot. C. Faber and Faber, 1978, pág. 147.
12. Esta frase (logos tou staurou) parece um trocadilho deliberado com a palavra
logos, que tam bém é usada no versículo 17 (sophia logon, "sabedoria de
palavra").
13. D t 21:23; cf. G 13:13-14.
14. A. O epke em Kittel. TW N T, vol. I, pág. 396.
15. C. S. Lew is, O Problema do Sofrimento Humano, (M undo Cristão, 1986), pág.
44s.
16. Cf. 2 Pe 1:3-4.
17. 1 Pe 5:5.
18. Cf. Is 2:11-17.
19. Cf. A p 5:9-10.
20. Cf. L c4:16ss.
21. T g 2:1-9.
22. Consulte Barrett, págs. 60-61, para um a exposição soberba do versículo 30.
23. 1 Tm 2:4.
24. Cf. l P e 5 :6 .
25. Is 55:8-9.
26. Jr 9:23-24.
27. Cf. Jo 16:11; Ef 6:12.
28. E ste contraste entre uma sabedoria influenciada pelas forças m alignas e a
sabedoria de D eus é claram ente delineado em Tg. 3:13ss.
29. Bruce, pág. 38.
30. Barrett, pág. 69.
31. D ods, pág. 66.
32. D iversos com entaristas (como, por exem plo, Dods e Bruce) acreditam que
Paulo explica esta sabedoria mais claramente em Efésios, especialm ente em
3:1-13.
33. Cf. Ef 4:13; Cl 1:18.
34. Poderíam os dizer que a interpretação gnóstica de 1 Co 2:9 é refutada
explicitam ente em 1 Jo 1:1.
35. 1 Co 8:3.
36. Bruce, pág. 40.
1 Coríntios 3:1 4:21
4. Loucos por Amor a Cristo

Uma das maiores falhas da igreja em Corinto era o seu conceito


distorcido de liderança cristã. Isso já estava aparente em 1:11-16. Os
cristãos coríntios eram muito propensos a exaltar certos indivíduos,
e a jogar um contra o outro e a comparar este com aquele. Careciam,
portanto, de um ensinamento correto sobre a natureza e a função da
liderança cristã. Na verdade, usar a palavra "liderança" é fazer-se de
desentendido. Como Paulo prossegue mostrando nos capítulos 3 e 4,
tal conceito, se foi baseado na visão secular, está virtualmente ausente
do N ovo Testam ento e lhe é fundam entalm ente estranho.
Considerando que nos círculos seculares de hoje há uma grande
ênfase na necessidade de liderança e, freqüentemente, de um modelo
particular de liderança (de acordo com as inclinações políticas de cada
um), torna-se importante que a igreja redescubra o que as Escrituras
realmente ensinam sobre a genuína liderança cristã. Estes dois
capítulos nos dão várias pistas.
Ao reprovar a sabedoria falsa e jactanciosa dos coríntios, a mente
fértil e imaginativa de Paulo introduz diversas metáforas vívidas, das
quais examinaremos seis, junto com o parágrafo final do capítulo 3,
que trata da sabedoria do mundo.

1. Crianças e adultos (3:1-4)

Eu., porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais; e, sim, como a
camais, como a crianças em Cristo. 2Leite vos dei a beber, não vos dei alimento
sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque
ainda sois carnais.3Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contentas, não é
assim que sois camais e andais segundo o homem? 4Quando, pois, alguém diz:
Eu sou de Paulo; e outro: Eu, de Apoio; não é evidente que andais segundo
os homens ?

Já vimos que Paulo lamentava (v. 1) porque a igreja de Corinto não era,
de modo algum, espiritual. "Em um só Espírito, todos nós fomos
batizados em um corpo" - sim; "e a todos nós foi dado beber de um
só Espírito" (12:13) - sim. Mas será que os coríntios estavam seguindo
a orientação do Espírito, andando no poder do Espírifo,
demonstrando a unidade do Espírito? —certamente não. Eles próprios
se julgavam espirituais, cristãos sábios e maduros, especialmente em
virtude da multiplicidade de dons espirituais visíveis em sua vida
comunitária. Paulo, no entanto, mostra-se firme: Eu, porém, irmãos, não
vos pude falar como a espirituais. Ele não hesita em chamá-los de irmãos,
mas, ao mesmo tempo, tem de chamá-los de carnais (v. 1), homens
comuns (ERAB: que andam segundo o homem - vs. 3,4). Na verdade, ele
os chama de crianças; crianças em Cristo, sim, mas crianças que ainda
usam fraldas e que dificilmente seriam capazes de falar alguma coisa,
quanto mais a verdadeira sabedoria vinda do alto.
Aparentemente, este fôra o problema dos coríntios desde o começo:
Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis
suportá-lo. Nem ainda agora podeis (v. 2). É interessante notar que Paulo
considerava apropriado que os crentes recém-nascidos recebessem
"carne" além de "leite", mas isso não se aplicava aos coríntios. Eles não
estavam preparados para o alimento sólido, mesmo anos depois de
se converterem a Cristo. "O simples passar do tempo não amadurece
o cristão" (Barrett).
Com que fundamento Paulo identifica esses cristãos com homens
comuns sem Cristo? Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não
é assim que sois carnais e andais segundo o homem? (v. 3). Os ciúmes eram
freqüentes na igreja de Corinto. Eles se observavam desconfiados,
invejando os dons alheios. Havia pouco amor em Corinto e muita
competitividade. Não havia reconhecimento pelas diferentes
contribuições dadas por Deus, através de pessoas como ele mesmo ou
Apoio; só criavam "partidos" e se recusavam a se misturar com certas
pessoas de opiniões diferentes.
Esse comportamento é infantil, diz Paulo. Quase podemos ouvi-lo
esbravejando mentalmente: "Cresçam! Parem de se comportar como
bebês!" É assim que as criancinhas se comportam quando esperneiam:
"Quero aquele brinquedo, aquele presente", ou quando batem os pés
no chão, dizendo: "Não brinco mais com você; você não é mais meu
amigo". Também é assim que se comportam os homens comuns, os
homens sem Cristo, sem o Santo Espírito. Como diz Tiago: "Se, pelo
contrário, tendes em vosso coração inveja amargurada e sentimento
faccioso, nem vos glorieis disso, nem mintais contra a verdade."1
2. Plantando e regando (3:5-8)

Quem ê Apoio? e quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto
conforme o Senhor concedeu a cada um. 6Eu plantei, Apoio regou ; mas o
crescimento veio de Deus. 7De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem
o que rega, mas Deus que dá o crescimento. sOra, o que planta e o que rega
são um: e cada um receberá o seu mlardão. sevundo o seu nrnnrin trabalha.

Agora Paulo vai direto ao âmago da questão. O v.5 no texto grego


original diz, claramente, Que é Apoio? e que é Paulo? Lançando a
pergunta desta maneira desdenhosa, sem ao menos dizer "Quem é
Apoio? Quem é Paulo?" ele imediatamente esvazia a controvérsia
sobre o culto à personalidade. Alguns admiravam este, outros
admiravam aquele: mas Paulo é bem claro - nós dois somos servos,
diakonoi ("diáconos"). Servimos à mesa para que vocês sejam supridos;
seguindo as instruções de Deus. Quando obedecemos aos desejos
dele, vocês são abençoados. Nós trabalhamos sob as ordens dele. Ele
nos designou para as nossas responsabilidades.
Eu plantei, Apoio regou (v. 6). As duas atividäftes são vitais. Cada uma
depende da outra. De nada vale plantar onde o outro não possa regar,
e aquele que rega não consegue muita coisa se rega por toda a parte,
exceto onde as sementes estão plantadas. Ambas as funções são
importantes, mas inúteis Äse D%is não der o crescimento. Tanto o que
planta como o que rega são completamente dependentes de Deus -
e um do outro: "são cooperadores de Deus" (v. 9), iguais perante Deus,
iguais em valor.(v. 8). Ambos precisam trabalhar muito e ambos
podem aguardar uma recompensa no final (cf. v. 14): cada um receberá
o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho (v. 8).
Essa ênfase no serviço é crucial para se redescobrir uma perspectiva
bíblica 'de Jicférança. Jesus ensinou exatamente a mesma coisa: "O
maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o
que serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve?
Porventura não é quem está à mesa? Pois, no meio de vós, eu sou
como quem serve."12 Divisões, rivalidades e ciúmes surgem na igreja
porque certos lideres agem como senhores sobre o rebanho, e o povo
de Deus muitas vezes gosta disso; parece que exige menos, e cria
menos questionamento. A autoridade na igreja, a verdadeira
autoridade cristã, procede daqueles que dão a vida pelos seus innãos,
servindo-os e se colocando à disposição deles. Qualquer outra
autoridade pertence a este mundo e deve ser rejeitada. -
Embora a principal intenção destes versículos seja diminuir a
importância individual dos líderes, vale a pena notar que Paulo não
cai no erro de depreciar o seu papel e o de Apoio, considerando-os
irrelevantes. Na verdade, ele ressalta que através do ministério de
ambos, dele e de Apoio, os coríntios vieram a ter fé em Deus (v. 5:
Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada
um). Os dois pregadores são insignificantes, se comparados ao próprio
Deus, "que dá o crescimento" (v. 7), mas são vitais para o processo
divino. Cada um tem o seu próprio trabalho a executar, e esse trabalho
exige esforço árduo (cf. 15:10); o mesmo ocorre com todos os cristãos
(15:58). Assim, no trabalho de Deus, a contribuição de cada indivíduo
é essencial: "Paulo proíbe que o homem se imponha contra a
comunidade ou que desapareça dentro dela" (Barrett).
Se esta é a maneira adequada de entender o ministério daqueles que
receberam a responsabilidade de liderar a igreja de Deus, então os
coríntios deviam parar de dizer "Eu sou de Paulo" e "Eu sou de Apoio"
—a ênfase dessas frases recai no pronome pessoal. Tanto Paulo como
Apoio são dádivas de Deus para a igreja de Corinto e devem ser
recebidos como tais.

3. Fundamentos e edifícios (3:9-17)

Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Dens sois


vós.wSegundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento como
prudente construtor; e outro edifica sobre ele. Porém cada um veja como
edifica. nPorque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi
posto, o qual é Jesus Cristo. nContudo, se o que alguém edifica sobre o
fundamento é ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha,13manifesta
se tornará a obra de cada um; pois o dia a demonstrará, porque está sendo
revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará. uSe
permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse receberá
galardão; lsse a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano; mas esse mesmo
será salvo, todavia, como que através do fogo.
K'Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em
vós? uSe alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o
santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.

No versículo 9 Paulo passa de uma metáfora agrícola para uma


arquitetônica: Lavoura de Deus, edifício de Deus sois vós. Um edifício
precisa tanto de fundamentos como de colunas e vigas. Assim como
lhe deu a tarefa de plantar a semente do evangelho nos corações dos
coríntios, Deus, na sua graça, também capacitou Paulo a estabelecer
os fundamentos de uma igreja forte naquela cidade.
Paulo se compara a um prudente construtor, alguém que traz toda
experiência e conhecimento para o trabalho e distribui tarefas a cada
operário. A palavra grega dá origem ao termo "arquiteto", em
português. É óbvio, especialmente para o próprio arquiteto, que ele
não pode realizar tudo, que ele depende da habilidade, da perícia e
do trabalho simples e árduo de muitos outros cooperadores. Paulo fez
a sua parte: lançou os fundamentos, proclamando Jesus Cristo, e este
crucificado, de maneira clara (2:2). Ele fez isso para garantir que a fé
dos cristãos de Corinto repousasse segura no poder de Deus em Jesus,
o único fundamento verdadeiro (cf. 2:5 e 3:11).
Alguns cristãos de Corinto falavam como se o próprio Paulo fosse
a pedra fundamental de suas vidas na igreja; nenhum ser humano,
porém, pode sustentar a vida de uma igreja ou de um cristão. Pastores
e pregadores mudam-se, morrem; somente a igreja edificada em Jesus
Cristo sobrevive. Talvez haja aqui uma referência indireta ao partido
de Pedro, que poderia estar confiando nele, a rocha, considerando-o
o fundamento da igreja.3
Uma vez bem estabelecido o fundamento, o edifício deve começar
a subir. Paulo lançou o fundamento, e outro edifica sobre ele (v. 10).
Realmente, são muitas as pessoas envolvidas na edificação da igreja
em Corinto, e, ao longo de toda a carta, a preocupação de Paulo é que
a igreja seja edificada em fé e amor. Essa é a tônica explícita dos
capítulos 8,10 e 14, mas o tema rege toda a carta.
É comum pensar que os versículos 12-15 se referem à maneira como
a qualidade de vida de um cristão vai ser revelada no dia do Senhor.
Mas no contexto, Paulo está retratando a qualidade do serviço
realizado por aqueles que contribuíram para a edificação da igreja em
Corinto. Porém cada um veja como edifica (v. 10), inclusive Apoio e Pedro,
a liderança local e qualquer um envolvido na vida da igreja.
Paulo vislumbra a chegada daquele dia (cf. 1:8), quando a
verdadeira natureza da obra do cristão se tornará manifesta (v. 13) e se
fará visível a todos, porque está sendo revelada pelo fogo. Esse fogo
provará a obra de cada um, isto é, a sua qualidade. Não se trata de
avaliar o sucesso, ou a eficiência, ou a popularidade, ou o elogio dos
homens. Haverá uma revelação dos materiais usados: serão ouro, prata
ou pedras preciosas? ou não passarão de madeira, fa io e palha? A obra dos
cristãos em Corinto é uma prova do que Deus tem feito através de seu
Espírito, ou do que os homens têm erigido com seus próprios
recursos, para o seu próprio benefício e glória? E muito fácil camuflar
o material com que um edifício é construído, para que este tenha uma
aparência resistente e impressionante. Mas a obra de cada um, o dia a
demonstrará.4
Se estamos envolvidos, portanto, na edificação da igreja de Deus,
devemos orar para que nossas boas resoluções e nossos atos de fé
sejam impregnados com o poder e a graça de Deus, e que nossas
motivações visem unicamente a glorificação do nome de Jesus Cristo.
Se esse for o caráter do nosso serviço, receberemos um galardão (v. 14).
Sem dúvida, as obras de todo cristão são heterogêneas em qualidade;
certamente todos sofreremos a profunda tristeza de ver grande parte
de nosso trabalho consumido pelo fogo. Isto deveria inspirar todos os
cristãos a serem mais cuidadosos na edificação. Mas, seja qual for a
extensão da perda que iremos sofrer, nada na justiça eterna desse fogo
pode nos separar do amor de Deus ou de sua salvação. Em virtude do
que Jesus Cristo fez na cruz, "aprouve a Deus salvar aos que crêem"
nele (1:21). Nenhuma quantidade de madeira, de feno ou de palha,
nem qualquer outro tipo de refugo pode nos fazer recuar para a espiral
descendente que leva à destruição eterna: se a obra de alguém se queimar,
sofrerá ele dano; mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo
(v. 15).
— Aqueles que crêem em Cristo crucificado para receber perdão,
purificação e vida eterna não precisam temer a condenação, mesmo
de um Deus santo, que conhece os nossos segredos mais íntimos. O
próprio Jesus disse: "Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve
a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não
entra em juízo, mas passou da morte para a vida".5 Esses versículos
em 1 Coríntios 3 insistem que assumamos com toda a seriedade tanto
a certeza da vida etema como o exame minucioso que o Senhor fará do
nosso serviço diário, como cristãos. Ele está apaixonadamente
preocupado com a igreja, seu edifício (v. 9); ela é o seu templo; seu
Espírito habita na igreja, em cada igreja local (v. 16). Não é de admirar,
portanto, que ele esteja pronto para destruir qualquer um que use os
seus talentos dados por Deus para sugar a vida da igreja e demolir o
templo divino.6
Isso constitui tanto uma advertência como um incentivo: porque o
santuário de Deus, que sois vós, é sagrado (v. 17). Deus não permitirá que
alguém maltrate, muito menos que destrua, o seu templo vivo. Não
devemos, pois, permitir que alguém nos maltrate, nem nós mesmos
devemos nos maltratar. O Espírito de Deus habita em vós (v. 16), ou seja,
em todos os membros da igreja, juntos, formando o corpo de Cristo
(em Corinto ou em qualquer outro lugar). Mais tarde, Paulo vai
enfatizar que o Espírito de Deus habita no próprio corpo de cada
cristão, o qual também é o "santuário do Espírito Santo" (6:19).
Conforme veremos, as implicações práticas dessa verdade para a
pureza pessoal são igualmente penetrantes. .

4. Sabedoria do mundo (3:18-23)

Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem por sábio neste
século, faça-se estulto para se tornar sábio. wPorque a sabedoria deste mundo
é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: Ele apanha os sábios na
própria astúcia deles. 20E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos
sábios, que são pensamentos vãos. 2íPortanto, ninguém se glorie nos homens;
porque tudo é vosso; 22seja Paulo, seja Apoio, seja Cefas, seja o mundo, seja
a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso,
23e vós de Cristo, e Cristo de Deus.

O parágrafo final do capítulo 3 retoma o tema da sabedoria do mundo


e da futilidade de qualquer tipo de vanglória baseada em líderes de
grande capacidade. Certamente é assim que o mundo pensa, mas a
sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus (v. 19). Os
verdadeiram ente sábios diante de Deus são aqueles que
deliberadamente rejeitam essa sabedoria do mundo e adotam uma
atitude para com as pessoas e coisas, que todos os outros consideram
louca (v. 18). Essa atitude não vê motivos para a vanglória, porque
tudo e todos são dons de Deus concedidos a pecadores que nada
merecem, inclusive os apóstolos e os mestres como Paulo, Apoio e
Cefas, sem falar em todo o mundo, a vida e a morte, o presente e o
futuro. E, portanto, totalmente inadequado vangloriar-se em pessoas
e coisas que, imerecidamente, foram colocadas em nossos regaços por
um Deus prodigamente generoso. Realmente, conclui Paulo, o fato de
essas coisas nos pertencerem como dons da graça divina deve estar
arraigado ao contexto de que nós pertencemos a um outro Alguém,
ao próprio Cristo: vós (sois) de Cristo (v. 23). E o apóstolo ainda
completa o seu argumento acrescentando que Cristo (é) de Deus (v. 23),
provavelmente para indicar a dependência e a submissão do Filho em
relação ao Pai.7

5. Servos e mordomos (4:1-7)

Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo,
e despenseiros dos mistérios de Deus. 2Ora, além disso o que se requer dos
despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel. 3Todavia, a mim mui
pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu tão
pouco julgo a mim mesmo. 4Porque de nada me argúi a consciência; contudo,
nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor. 5Portanto,
nada julgueis antes de tempo, até que venha o Senhor, o qual não somente trará
à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios
dos corações; e então cada um receberá o seu louvor da parte de Deus.

Se os coríntios tinham uma opinião completamente distorcida sobre


Paulo, Apoio e Pedro, qual seria a opinião correta? Assim, pois, importa
que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos
mistérios de Deus (v. 1). Centrando-se em homens, os coríntios estavam
prestando fidelidade a homens, homens de Deus, é verdade, mas
apenas homens. Essa era a maneira como o mundo se comportava e
ensinava - e ainda é assim, sobretudo por causa do poderoso impacto
da televisão. Sempre que a igreja segue os grandes nomes e gira em
tomo de homens, está imitando o mundo. Não, diz Paulo, não se
gloriem nos homens; vocês não são servos deles; eles é que são seus
servos. A palavra grega usada no texto original para servos não é
comum e designa literalmente um remador subordinado, alguém que
simplesmente obedece às ordens de uma autoridade superior e assim
executa o seu trabalho. Essa autoridade é a de Jesus Cristo.
A segunda palavra, despenseiros, é muito comum no Novo
Testamento. O vocábulo grego oikonomos designa um mordomo ou
superintendente (geralmente um escravo), encarregado de
providenciar o alimento e todas as coisas necessárias a uma grande
propriedade. Ele prestava contas, não aos seus colegas, mas ao seu
senhor. Não tinha de tomar suas próprias iniciativas, e muito menos
exercer sua própria autoridade pessoal. Simplesmente tinha de
cumprir as ordens do seu senhor e cuidar do serviço. Da mesma
forma, Paulo se considera responsável, não perante os coríntios ou
qualquer tribunal humano (v. 3), mas somente perante o Senhor (v. 4).
Vemos em Paulo uma consciência tenaz de que deve prestar contas de
sua mordomia, e essa sensibilidade o toma ainda mais alerta para as
necessidades dos irmãos coríntios. Ele não vai dominá-los, nem
bajulá-los. Ele não vai agir de modo irresponsável com eles, nem
privá-los do que Deus providenciou para eles. Como um bom
mordomo, ele vai garantir que o alimento certo chegue na hora certa.
O apóstolo nada tem a lhes oferecer exceto o que ele mesmo recebeu
do seu Senhor. A motivação suprema de Paulo como ministro de Deus
entre os coríntios consistia nisto: "Um dia terei de prestar contas a
Deus".8
Por considerar a si mesmo e aos outros como mordomos, Paulo
exorta os coríntios a que não se desviem para algum tipo de
julgamento: não nos condenem, e também não nos louvem. Deixem
isso com o Senhor: ele fará o julgamento. Se o homem merece ser
elogiado por seu bom trabalho, então o Senhor realmente há de elogiá-
lo (v. 5). Nada julgueis antes do tempo; em outras palavras, antes que
todas as evidências sejam descobertas, e isso vai acontecer apenas
quando vier o Senhor, o qual não somente trará à piem luz as coisas ocultas
das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações (v. 5). Eis uma
revelação que o bom despenseiro ou mordomo não teme. Paulo está
livre de qualquer sentimento de culpa acerca de como se desincumbiu
de sua mordomia (v. 4), mas uma consciência limpa não é por si
mesma uma quitação completa: apenas Deus, o justo juiz, pode dar
tal pronunciamento. Assim, Paulo fica mais do que satisfeito em
deixar o seu caso nas mãos de Deus.
O versículo 4 é especialmente interessante. A primeira parte pode
ser interpretada da seguinte maneira: "Minha consciência não me
acusa, mas não sou justificado nessa base." Vemos em Romanos 2:14­
16 como Paulo entende o papel da consciência: "Quando, pois, os
gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com
a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram
a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes
também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-
se ou defendendo-se; no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus,
julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu
evangelho." O próprio Paulo disse a Félix, governador romano da
Judéia: "Por isso também me esforço por ter sempre consciência pura
diante de Deus e dos homens."9 Mesmo que essa consciência o
acusasse, havia dois segredos para a purificação e o fortalecimento,
resumidos nestas duas passagens: "Muito mais o sangue de Cristo...
purificará a nossa consciência de obras mortas para servirmos ao Deus
vivo!" e "Deus é maior do que o nosso coração, e conhece todas as
coisas".10
Os filósofos gregos e romanos (Platão e Sêneca, por exemplo)
consideravam a consciência como o juiz máximo do homem. Para
Paulo, apenas Deus pode sê-lo. O fundamento essencial da
consciência limpa de Paulo repousa no fato de que Deus "justifica ao
ímpio"11 pela virtude da cruz de Cristo. Assim, quando Paulo diz no
66
versículo 4 que, mesmo não havendo nada em sua consciência, ele não
é justificado por ela, está na verdade apontando para o único
fundamento da justificação e para a única fonte de uma consciência
limpa: Jesus Cristo crucificado. Não admira que ele tenha feito disso
o cerne de sua pregação.
A última frase do versículo 5 é interessante, porque, no original, a
ênfase recai sobre as primeiras e as últimas palavras: e então... da parte
de Deus, ou seja, nessa hora, e não antes, certamente não agora, quando
todo julgamento não passar de "pré-conceito", os elogios virão da parte
de Deus, e de ninguém mais, em Corinto ou em qualquer outro lugar.
Neste parágrafo encontramos uma porta aberta para a verdadeira
liberdade dos obreiros cristãos. Paulo tinha um passado negro como
um oponente ferrenho de Jesus Cristo, como ele mesmo admite mais
tarde (15:8-9); mas tal é a sua experiência da graça de Deus em perdoá-
lo, que pode dizer com toda a ousadia: Porque de nada me argúi a
consciência (v. 4). O restante de sua vida (depois da experiência na
estrada de Damasco) foi consagrado à tarefa de ser um servo de Cristo
e um despenseiro dos mistérios12 de Deus. Ele sabe que o critério do
Senhor, que finalmente esquadrinhará o seu ministério, não é o
sucesso ou a popularidade, mas a fidelidade: O que se requer dos
despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel (v. 2).13

"Estas coisas, irmãos, apliquei-as figuradamente a mim mesmo e a Apoio por


vossa causa, para que por nosso exemplo aprendais isto: Não idtrapasseis o
que está escrito; afim de que ninguém se ensoberbeça a favor de um em
detrimento de outro. 7Pois quem é que te faz sobressair? e que tens tu que não
tenhas recebido? e, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras
recebido?

O pequeno parágrafo de 4:6-7 é um resumo dos ensinamentos, não


apenas desta seção (4:1-5), mas dos capítulos 3 e 4. Estas coisas (v. 6)
provavelmente se refere ao material contido nos dois capítulos até
aqui. Paulo está afirmando que, apesar de sua análise da natureza da
liderança cristã ser válida para qualquer ocasião, ali ela está sendo
aplicada a ele mesmo e a Apoio para o benefício dos coríntios. Esses
cristãos viam até os dons de Deus como objetos de vanglória. Mas, diz
Paulo, eles não são diferentes de qualquer outra igreja. Que tens tu que
não tenhas recebido? e, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não
tiveras recebido? (v. 7) Todo o verdadeiro ministério na igreja, qualquer
que seja o ministro e o tipo do ministério, procede de Deus: é ridículo
que alguém se ensoberbeça a favor de um em detrimento de outro (v. 6).
O hiato na vida da igreja coríntia fôra causado pela ausência de
amor: "O amor não se ensoberbece" (13:4). Pelo contrário, "o amor
edifica" (8:1), enquanto "o 'saber' ensoberbece". Estava claro que esse
"saber", essa falsa sabedoria dos coríntios levava-os a ultrapassar o que
está escrito (v. 6). Esta é uma frase difícil, que Barret interpreta como
um imperativo para que a "vida seja de acordo com os preceitos e
exemplos bíblicos".14Considera-se que a frase "não ultrapasseis o que
está escrito" tenha sido a principal característica e a palavra de ordem
do partido de Cristo, no sentido de que eles viam as Escrituras do
Antigo Testamento como coisa do passado, que os cristãos
"amadurecidos" deviam deixar para trás. Também poderia ser,
alternativamente, uma fórmula judaica que o partido de Pedro
trouxera a Corinto. Jamais saberemos todo o significado dessa
expressão que é, evidentemente, uma alusão a um tópico de alguma
importância naquela época. O ponto principal destes dois versículos
é a loucura da vanglória entre pessoas que devem tudo à graça de
Deus.

6. Reis e mendigos (4:8-13)

Já estaisfartos, já estais ricos: chegastes a reinar sem nós; sim, oxalá reinásseis
para que também nós viéssemos a reinar convosco.9Porque a mim me parece
que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos
condenados à morte; porque nos tomamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos,
como a homens. wNós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em
Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis.11Até à presente
hora sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada
certa, ne nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando
somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos;13quando
caluniados, procuramos conciliação: até agora temos chegado a ser
considerados lixo do mundo, escória de todos.

No centro da presunção dos coríntios reinava a convicção de que eles


realmente constituíam uma igreja de muito sucesso, muito viva,
madura e eficiente. Os cristãos estavam satisfeitos com a sua
espiritualidade, com a liderança e com a qualidade geral de vida
comunitária. Estavam acomodados na ilusão de que haviam
alcançado o máximo que podiam. Pensavam que nada mais havia
para ser alcançado. Por isso, a ironia de Paulo no duplo já do versículo
8: "já estais fartos, já estais ricos; chegastes a reinar" —já! Com tais
palavras Paulo indica sua convicção de que esta é uma parte válida da
mensagem cristã, mas não é para ser plenamente experimentada nesta
vida na terra; fomos enchidos, enriquecidos, elevados para reinar com
Cristo (cf. 1:4-9); mas não gozaremos essa herança, plenamente, aqui
e agora. Essa é uma teologia da glória, mas ela deve ser colocada no
contexto da teologia da cruz, o que Paulo passa a fazer nos versículos
9 a 13.
Ele reconhece prontamente que gostaria de receber a total liberdade
em Cristo, juntamente com os coríntios: Oxalá remásseis para que
também nós viéssemos a reinar convosco! (v. 8). Ele gostaria de se
encontrar longe de toda perseguição dos espancamentos, da
depressão e da dura tarefa de ser reputado como louco por causa de
Cristo (v. 10). Talvez eles já tivessem chegado lá, mas Paulo não. Eles
se achavam fortes, mas Paulo estava por demais consciente de sua
fraqueza. Eles se gloriavam da sua reputação e respeitabilidade dentro
de uma sociedade mundana, mas Paulo era escarnecido e zombado
pelo mundo. Num trecho de 2 Coríntios, onde recorda suas poderosas
declarações sobre a sua fraqueza e vulnerabilidade,15 Paulo pinta as
marcas autênticas do ministério do próprio Cristo. "O servo não é
maior do que seu senhor"16 e, por amor a Cristo, ele se tomou a escória
do mundo (v. 13). Paulo vê os apóstolos como pessoas que receberam
um chamado especial para passar por esse sofrimento. Ele imagina o
desfile triunfal de um general romano em seu retorno a Roma. Os
prisioneiros e os despojos são exibidos como um espetáculo para o
deleite do público, culminando com a exibição do general ou rei
capturado, e já condenado à morte. Os apóstolos encontram-se em tal
posição.
Para as pessoas que, como os coríntios, estão preocupadas com o
seu próprio status, reputação e popularidade, é imensamente difícil
aceitar o ministério cristão autêntico —quanto mais abraçá-lo! O fato
de a força de Deus se aperfeiçoar em nossa fraqueza é uma lição muito
difícil de assimilar. Ser um espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a
homens (v. 9) vai contra a natureza porque significa ser constrangido
a viver sob a avaliação minuciosa, crítica e, muitas vezes desdenhosa,
de todo o mundo. Nossa inclinação natural é levantar uma cortina ao
redor da nossa vida particular e da nossa personalidade real, e só
permitir que os escolhidos entrem e nos vejam como somos de fato.
Não constitui um fenômeno sociológico ou circunstancial o fato de
a igreja cristã estar crescendo de modo mais notável entre os pobres
nos países do Terceiro Mundo: esse crescimento reflete exatamente a
maneira como esses cristãos estão muito mais próximos do padrão de
vida e do ministério descritos no Novo Testamento. "Deus escolheu as
coisas loucas ... fracas ... humildes ... desprezadas" (1:27-28). É esta
sabedoria divina que tanto intriga não somente os homens, mas
também os anjos (quando têm a oportunidade de vê-la em ação). Os
anjos sempre ficaram fascinados com a mensagem do evangelho,17e
a igreja foi comissionada a tornar "os principados e as potestades"
conscientes da sabedoria de Deus na cruz de Cristo.18
Três princípios sobre o ministério cristão devem ser destacados
nesta metáfora de reis e mendigos. Primeiro, se estamos entre aqueles
que são abençoados na vida e 110 trabalho cristãos, é axiomático que
outros estejam sendo esbofeteados. Segundo, se estam os
experimentando as bofetadas e pagando o autêntico preço do
ministério cristão, então podemos ter certeza de que isso abre a porta
para que haja bênçãos nas vidas daqueles a quem tocamos (consciente
ou inconscientemente, direta ou indiretamente).ll) Terceiro, todos os
cristãos são, ao mesmo tempo, tanto reis corno mendigos. Em outras
palavras, a autêntica experiência cristã é ser rico em Cristo e, também,
desprezado pelo mundo. Jamais alcançaremos a perfeita bem-
aventurança aqui: não teremos saúde perfeita, não teremos uma
orientação instantânea, não estaremos em contato constante e
maravilhoso com o Senhor. Ainda somos humanos; ainda estamos no
mundo; ainda somos mortais; ainda estamos expostos ao pecado, ao
mundo, à carne e ao diabo; ainda temos de lutar, vigiar e orar; ainda
vamos cair e falhar. Existe vitória; existe poder; existe cura; existe
orientação; existe salvação —mas ainda não alcançamos a perfeição.
Vivemos em dois mundos e, portanto, deve haver uma tensão. Paulo
descreve a verdadeira condição humana nestes termos: "Porque vos
foi concedida a graça de padecerdes por Cristo, e não somente de
crerdes nele."20

7. Pais e filhos (4:14-21)

Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos
admoestar como a filhos meus amados. 15Porque ainda que tivésseis milhares
de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu pelo
evangelho vos gerei em Cristo Jesus. uAdmoesto-vos, portanto, a que sejais
meus imitadores. 17Por esta causa vos mandei Timóteo, que é meu filho amado
efiel no Senhor, 0 qual vos lembrará os meus caminhos em Cristo Jesus, como
por toda parte ensino em cada igreja.38Alguns se ensoberbeceram, como se
eu não tivesse de ir ter convosco; 19mas em breve irei visitar-vos, se o Senhor
quiser, e então conhecerei não a palavra, mas o poder dos ensoberbecidos.
20Porque o reino de Deus consiste, não em palavra, mas em poder. n Que
preferis ? Irei a vós outros com vara, ou com amor e espírito de mansidão?

No versículo 14, Paulo parece reconhecer que esteve beirando o


sarcasmo no parágrafo anterior, e se detém assegurando aos coríntios
que não pretende envergonhá-los, de maneira inadequada. Ele não
reluta em despertar neles um devido sentimento de vergonha,21 mas
agora enfatiza que está falando como um pai a filhos amados (v. 14).
Antes de procurarmos descobrir como Paulo se considera um pai
para os cristãos em Corinto, convém salientar que ele não se vê numa
posição de autoridade, muito menos como alguém de status superior.
Certamente conhecia as palavras do próprio Jesus: "A ninguém sobre
a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está
no céu... o maior dentre vós será vosso servo."22 Os ministros
ordenados de certas denominações negam este ensinamento pela
maneira como usam e aceitam o título de "pai" (ou "padre"). Na
verdade, muitas outras seções da igreja continuam a manifestar um
estilo de liderança paternalista, superdominante, mesmo sem usar o
título "pai”.^A religião popular que está por trás disso não é de maneira
alguma tão culpada como a teologia antibíblica que gerou e ainda
endossa tal conceito de status e autoridade na igreja. Eu diria que,
atualmente, esse falso ensinamento é a maior barreira contra o
crescimento e a saúde da igreja. Ele afeta a unidade, a evangelização,
o culto, o ministério leigo, o ministério das mulheres e o treinamento
teológico da igreja. Na verdade, cada aspecto da missão da igreja de
Deus fica prejudicado enquanto esse conceito anti-cristão de liderança
v perpetuado na igreja.
Positivamente, Paulo considera-se pai dos cristãos em Corinto (e
particularmente de Timóteo, seu filho amado efiel no Senhor, v. 17), no
sentido de lhes ter proclamado o evangelho, sendo, portanto,
responsável por sua fé em Cristo, em um nível humano. Como
qualquer pai, e porque os filhos sempre imitam o pai, o apóstolo
sentia-se na obrigação de apresentar-lhes na vida diária um exemplo
do comportamento que se espera dos cristãos; admoesto-vos, portanto,
a que sejais meus imitadores (v. 16). A tarefa de Timóteo consistia em
lembrar-lhes os caminhos de Cristo (v. 17) trilhados por Paulo. Este
exemplo sólido era a prioridade máxima para Paulo, onde quer que
fosse (como por toda parte ensino em cada igreja v. 17). Isso realça a
importância vital do comportamento exemplar na vida diária de todos
os que foram chamados para liderar a igreja. Os coríntios não tinham
visto Jesus em carne; não possuíam a Bíblia; mas haviam observado
Paulo (cf. 11:1). Muitos outros tinham indicado o caminho para
Cristo,23 mas ele foi o primeiro a ir até eles, levando o evangelho: eu
pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus (v. 15).
E, então, na qualidade de pai que Paulo agora promete voltar.
Quando o pai fica longe da família por algum tempo, deseja voltar
para a casa com amor e espírito de mansidão (v. 21), não com vara. Muitos
dos coríntios que ele trouxera à fé em Cristo estavam se comportando
de maneira arrogante e cheia de vanglória, não dando valor a Paulo
e ao seu ministério, e causando grandes problemas e divisões na igreja.
O coração paterno de Paulo estava profundamente ferido com tal
comportamento, e um pouco desse sofrimento pode ser notado em
seus comentários numa outra passagem: "Meus filhos, por quem de
novo sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós!"24
As crianças costumam reclamar gritando, de maneira orgulhosa, o
que é um reflexo de sua imaturidade. Falam demais, mas não têm
muito poder para colocar as palavras em ação. Assim, Paulo conclui
estes dois capítulos tal como os iniciou: com um forte apelo (sentido
intensamente) para que os coríntios parem de se vangloriar e
comecem a crescer: Porque o reino de Deus consiste, não em palavra, mas
em poder (v. 20). Nas cartas de Paulo não é freqüente o uso da expressão
o reino de Deus, tão comum nos evangelhos sinóticos; mas, quando o
faz, ele sempre se refere aos fundamentos. Sem explicar sequer o seu
significado, ele aceita essa expressão como o âmago do evangelho —
e a proclama dia após dia.25

Notas:
1. Tg. 3:14.
2. Lc 22:24-27.
3. Tem os uma indicação da mesma possibilidade na descrição que Paulo faz de
seu confronto com Pedro, Tiago e João em G 12, onde ele menciona esses três
apóstolos com o "colunas" (2:9).
4. Cf. M l 3 :ls s; 2 Ts 1:6-12.
5. Jo 5:24.
6. Cf. T g 4:5.
7. Cf. 1 Co 15:28.
8. Cf. H b 13:17; T g 3:1.
9. A t 24:16.
10. H b 9:14; l j o 3:20.
11. R m 4:5.
12. A expressão "os m istérios de Deus" refere-se, por analogia com as religiões
de mistério gregas, a tudo o que Deus tem para compartilhar com o seu povo,
isto é, todas as riquezas do céu. A expressão jam ais pode ser aplicada apenas
ao que acontece no centro da eucaristia, ainda que seja verdad e que a m orte
de C risto é o evento que colocou essas riquezas à nossa disposição.
13. A prendem os a mesma lição de liberdade do próprio Jesus: "Q uem é, pois, o
servo fiel e prudente a quem o senhor confiou os seus conservos para dar-lhes
o sustento a seu tempo? Bem -aventurado aquele servo a quem seu senhor,
quando vier, achar fazendo assim" (M t 24:45-51). A passagem paralela em
Lucas (12:41-48) term in a co m o d e s a fio clássico a to d o s o s envolvidos n o
m inistério cristão: "àquele a quem m uito se confia, m uito m ais lhe pedirão".
14. B arret, pág. 106.
15. 2 Co 4:7-11; 6:3-10; 11:23-33.
16. Cf. Jo 13:16; 15:20.
17. Cf. l P e l :1 2 .
18. Cf. E f 3:8-11.
19. Cf. 2 Co 4:12.
20. Fp 1:29.
21. Cf. 1 Co 5:2; 6:5; 11:22; 15:34.
22. M t 23:9-11.
23. O termo grego equivalente a preceptores, no versículo 15, é "pedagogo", palavra
que Paulo usa em G1 3:24, falando da função da lei em preparar as pessoas
para a vinda de Jesus Cristo como Salvador.
24. G 14:19.
25. Cf. com entários sobre 6:9-10, m ais adiante.
1 Coríntios 5:1-13; 6:9-20
5. Fugi da Fornicação

Outro grave problema em Corinto era a imoralidade sexual, que


novamente salienta a profunda imaturidade do discipulado deles.
Parece ter havido um caso particularmente desagradável de desvio
sexual, contra o qual Paulo agora se pronuncia.

1. A exposição do problema (5:l-2a)

Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade, e imoralidade tal, como nem
mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de
seu próprio pai. 2E, contudo, andais vós ensoberbecidos, e não chegastes a
lamentar... ?

Não nos esqueçamos que Corinto abrigava um porto marítimo


obcecado por sexo. Seria muito difícil que um coríntio convertido não
fosse contaminado, direta ou indiretamente, por algum tipo de
imoralidade sexual. Os seus tentáculos agarravam com firmeza e o seu
veneno espalhava-se rapidamente. Em tal contexto haveria de ser
muito tentador comprometer a posição cristã, tanto por expressões
condenatórias de horror diante do desvio sexual, como pela tolerância
condescendente. Hoje as posições assumidas são muito semelhantes,
por exemplo, nos grandes centros urbanos, onde imoralidades de
todos os tipos têm permeado a igreja professa. Isso levou certo pastor
a comentar: "Eu acredito que não se passa uma semana sem que se
ouça a respeito de líderes cristãos que abandonaram suas esposas,
fugiram com as secretárias, caíram no homossexualismo ou estejam
enfrentando algum tipo de crise moral em suas igrejas."
O problema específico apresentado a Paulo é registrado assim:
Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade, e imoralidade tal, como nem
mesmo entre os gentios, isto ê, haver quem se atreva a possuir a mulher de
seu próprio pai. A frase grega diz literalmente: "um homem possuir a
mulher de seu pai", provavelmente para indicar que essa pessoa
tomava sua madrasta por esposa ou concubina enquanto o pai ainda
estava vivo. Isso era proibido pelo Torá,1e "a proibição foi transferida
para a igreja".2 Morris3 não tem certeza se a frase "significa que o
ofensor tinha seduzido a sua madrasta, ou que esta se divorciou do
pai, ou que o pai falecera, deixando-a viúva... O que está bem claro é
que se contraíra uma união ilícita de natureza particularmente malsã."
Era um caso de incesto4 e até os pensadores pagãos ficavam
estarrecidos com isso.5
Embora Paulo tenha um problema especialmente desagradável
para resolver, o centro da questão está na palavra mais ampla,
traduzida por imoralidade em 5:1. O vocábulo grego é porneia, que
significa literalm ente "procurar prostitutas". Em Corinto as
sacerdotisas do templo de Afrodite eram prostitutas sagradas, e, nesse
ambiente, a prática da porneia era bem generalizada. A palavra veio
a designar, pelo seu conseqüente uso no Novo Testamento, qualquer
comportamento sexual que transgride a norma cristã, isto é, todo
relacionamento sexual pré-marital ou extraconjugal, ou contra as leis
da natureza, sendo "usada num sentido amplo, incluindo todas as
violações do sétimo mandamento".6
A história da igreja mostra que a forte tentação em questões sexuais
tomou-se uma das estratégias mais freqüentes na tentativa de Satanás
para acabar com a vitalidade espiritual. Aqui no capítulo 5, Paulo
escreve de maneira muito específica sobre uma forma de imoralidade
particularmente impudente. Temos de tomar o cuidado de não aplicar
esses ensinamentos, indiscriminadamente, a qualquer situação em
que os cristãos "se excedam" na área da moralidade sexual. Em 6:9-20
ele estabelece princípios gerais muito claros para a comunidade cristã
como um todo. No momento, o que o incomoda em especial é a total
falta de preocupação, entre os cristãos em Corinto, com as implicações
do que está acontecendo. Na verdade Paulo parece estar menos
preocupado com a imoralidade propriamente dita do que com a
atitude arrogante e insensível deles dinte da situação: E, contudo, andais
vós ensoberbecidos, e não chegastes a lamentar (5:2).
Tal arrogância era um dos pecados predominantes da igreja em
Corinto. Antes de observar (em 13:4) que o verdadeiro amor cristão
jamais manifesta tal coisa, Paulo tem pelo menos outros três motivos
para ferir o orgulho dos coríntios: a rivalidade pessoal (4:6), as atitudes
de rejeição para com o próprio Paulo (4:18-19) e o acúmulo de
conhecimento especial (8:1). Este conjunto de vaidades não é incomum
hoje. Paulo sente profundamente a ausência total, entre os coríntios,
de uma sensibilidade adequada diante de um pecado específico, que
realmente provê aos inimigos do cristianismo um motivo ainda mais
forte para amaldiçoar e ridicularizar as suas afirmações. "Uma igreja
viva, que tivesse em si o poder de sua Cabeça, teria se levantado como
um único homem, concentrando-se em um ato de humildade e luto,
tal como uma família na morte de um de seus membros."7
Tal situação destaca três necessidades: disciplina (5:2b-13),
convicções claras (6:9-11) e pureza (6:12-20), todas centralizadas em
Jesus Cristo.

2. A necessidade de disciplina (5:2b-13)

A disciplina pode ser resumida em uma simples sentença: Para que


fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou (v. 2b). E digno
de nota que Paulo nada tem a dizer acerca da mulher envolvida na
questão, provavelmente porque não era cristã, estando, portanto, fora
do alcance da disciplina cristã, ou porque, em tal situação, Paulo
considera o homem mais culpado. Precisamos esclarecer aqui a
natureza radical desta disciplina: o homem deve ser retirado ek mesou,
isto é, do meio da comunidade de fé e adoração. Isso é excomunhão,
proibição de participar da Ceia do Senhor e, portanto, exclusão
completa da comunhão. Por que era necessária uma disciplina tão
absoluta? Para o bem, tanto do indivíduo, quanto da comunidade
cristã.

a) A disciplina é necessária para o bem do indivíduo (3-5)

Eu, na verdade, ainda que, ausente em pessoa, mas presente em espírito, já


sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, 4em
nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus,
nosso Senhor, sentregue a Satanás para a destruição da carne, afim de que
o espírito seja salvo no dia do Senhor (Jesus).

A necessidade da disciplina individual resume-se melhor na frase: a


fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus (v. 5). Esta é a
perspectiva correta em relação à nossa atitude para com todos os
homens em qualquer lugar - a sua salvação. Se, aos olhos de Deus,
está certo e é bom que uma determinada pessoa sofra nesta vida para
que possa ser finalmente salva, assim seja.
A linguagem usada para descrever os detalhes do castigo para o
ofensor é extremamente poderosa. Supõe-se que a finalidade e a
autoridade absoluta da sentença pronunciada se devem ao grande
peso da autoridade apostólica, exercida mesmo à distância. Paulo já
havia julgado, em nome do Senhor Jesus, o autor de tal infâmia (vs. 3-4).
Por menos inclinados que estivessem a aceitar a autoridade de Paulo
como apóstolo, os coríntios devem ter sentido a força dessa afirmação.
Sem mencionar todas as possíveis traduções do original, parece
mais provável que Paulo esteja colocando todo o procedimento
disciplinar em três contextos: a autoridade total de Jesus Cristo como
Senhor (em nome do Senhor Jesus), a presença corporativa de toda a
comunidade cristã em Corinto (apoiada pela sua própria presença em
espírito, v. 3) e o controle soberano do Senhor sobre tudo o que Satanás
tem permissão para fazer, mesmo a um cristão rebelde. Em outras
palavras, aqui não se fala de disciplina eclesiástica arbitrária, exercida
por alguns líderes, ou de uma decisão unilateral, tomada sem o
conhecimento de Paulo (isto é, na qualidade de apóstolo autorizado
pelo Senhor). Muito menos se trata do problema de o cristão, mesmo
quando culpado do tipo de pecado grosseiro aqui descrito, perder a
esperança na salvação eterna e distanciar-se do estado da graça. Pelo
contrário, o pior dano que Satanás pode causar (a destruição da carne,
v. 5) está totalmente sob a autoridade de Jesus Cristo. Realmente, a
comunidade eclesiástica não tem o direito de entregar ninguém aos
tentáculos de Satanás, exceto com o poder de Jesus, nosso Senhor (v. 4).
O fracasso da igreja atual ao exercer a disciplina correta na igreja
geralmente brota de uma convicção distorcida, e talvez covarde, de
que tais assuntos são atribuições da liderança, e não da congregação
como um todo. Paulo dirige aqui suas palavras de repreensão severa
(não chegastes a lamentar) a toda a igreja, não à sua liderança.
Novamente, percebemos a ilusão dos coríntios quanto ao devido lugar
da liderança na igreja (cf. capítulos 1—4). Hodge comenta: "É um
direito inerente a toda sociedade, e necessário para a sua existência,
julgar a qualidade de seus próprios membros. Aqui se reconhece
claramente que esse direito pertence à igreja ... O poder foi outorgado
à igreja em Corinto, não a alguma autoridade que presidia a igreja. O
bispo ou pastor não foi reprovado pela negligência ou falta de
disciplina, mas sim a igreja propriamente dita, em seu aspecto
organizado."8Então, onde o comportamento de um cristão individual
afetar a vida corporativa de uma igreja local (quer pela proeminência
desse indivíduo, quer pelo conhecimento geral de seu mau
comportamento na congregação como um todo), ali a disciplina
precisará ser exercida e explicada quando toda a igreja se reunir.
Haverá, naturalmente, muito mais ocasiões em que esse procedimento
público é desnecessário e impróprio, e alguma disciplina adequada
pode ser aplicada particularmente.
Diversos motivos impedem uma congregação de assumir a devida
responsabilidade nesse setor. A absoluta falta de comunhão genuína
entre os irmãos é o fator mais comum e mais destrutivo. Quando os
cristãos não costumam partilhar de suas vidas de maneira real, parece
incoerente (se não presunçoso) falar em termos de guardar um padrão
adequado de conduta cristã. Outra barreira é o tamanho exagerado
de muitas congregações e a falta de "integração" dentro delas: quando
são poucas as pessoas que realmente se conhecem, não pode haver
nenhum sentimento legítimo de responsabilidade mútua.
Um terceiro problema comum é a distância entre os líderes e os
liderados. Como resultado, os primeiros são colocados sobre um
pedestal e os últimos preferem que isso aconteça. Assim, quando um
cristão, líder ou liderado, transgride a lei de Deus, cria-se um
sentimento de surpresa quase hipócrita.
Entre outros cristãos há um obstáculo diferente: eles pensam que
em vez de demonstrar qualquer atitude de condenação e julgamento
diante do com portamento imoral, a igreja deve expressar
compreensão das pressões inerentes à vida no mundo atual, não se
apegando a quaisquer absolutos morais como os apresentados no
Novo Testamento. Em certa igreja local, um homem casado (mais
tarde divorciado) estava vivendo com uma mulher por mais de quatro
anos, servindo, ao mesmo tempo, na liderança da igreja local de
maneira muito pública e com plena aceitação do seu pastor. Tendo
decidido se casar, ambos pediram permissão para que a união fosse
abençoada no culto semanal de Santa Ceia, convidando amigos e
familiares para participarem da celebração do casamento. O que uma
tal atitude diz à comunidade incrédula sobre o significado de ser
cristão?
As implicações desta passagem são muito encorajadoras, bem como
admoestadoras. O pior que Satanás, o "adversário" de Deus e do
homem, pode fazer está totalmente sob controle, sob a autoridade de
Cristo através de sua igreja. Jesus disse explicitamente aos discípulos
que "tudo o que ligardes na terra, terá sido ligado no céu, e tudo o que
desligardes na terra, terá sido desligado no céu".9 Se é drasticamente
necessário que os cristãos - como este coríntio ou, presumivelmente,
Ananias e Safira,10 ou Himeneu e Alexandre11 - sejam entregues a
Satanás para algum tipo de castigo físico, final ou temporário, então
o pior que venha a acontecer não coloca a pessoa fora do controle de
Deus.
A mesma lição está evidente na saga de Jó, como também em toda
a seqüência do ministério do próprio Jesus. Os propósitos soberanos
de Deus incluem o poder destrutivo de Satanás. A forma precisa de
como Satanás efetua a destruição da carne (v. 5) não é explicada. No caso
de Jó ,12 ele foi entregue a Satanás para ser afligido "nos ossos e na
carne". Paulo também fala de seu "espinho na came" como sendo "um
mensageiro de Satanás".13 Mas nem Jó nem Paulo foram punidos por
algum pecado conhecido. Eles estavam sendo purificados para que
fossem muito mais úteis como servos de Deus.14
E difícil compreender a extrema vulnerabilidade espiritual que recai
sobre uma pessoa, até então protegida e privilegiada dentro da
comunidade do povo de Deus, quando ela é excluída de tal segurança.
E o mesmo que ser largado, indefeso e desamparado, no território
ocupado pelo inimigo. O choque profundo de tal experiência pode
produzir algo semelhante a um ataque cardíaco, de modo que uma
severa disciplina eclesiástica bem poderia ter essas conseqüências.
Afinal, algo desse tipo parece ter sido operante no caso de Ananias e
Safira.15
Convém destacar que esse membro excluído perderia toda a
utilidade potencial de sua vida nesta terra e, portanto, toda a
esperança de ser recompensado por sua mordomia fiel dos dons de
Deus, quando chegasse à plenitude da vida eterna.16 Ele seria salvo,
mas por um triz, pior que um cristão que desperdiçou todas as
oportunidades concedidas por Deus.
Por outro lado, a não ser que ele seja excluído e entregue a Satanás
para a destruição de seu corpo terreno, ficará sujeito a degenerar-se
em um apóstata completo, que acabará esmagando o Filho de Deus,
crucificando-o de novo e tornando-se um ser totalm ente
irrestaurável.17 Com referência a isso, lembro-me de um pastor
muitíssimo experiente (com mais de trinta anos de ministério), que
dizia conhecer apenas duas pessoas às quais aplicaria o termo
"apóstata"; e uma delas, ao que parece, retomou a Cristo depois da
recente morte desse ministro. Em outras palavras, definitivamente, era
para o seu próprio bem que precisava ser disciplinado de modo tão
radical. Ele preferiu anular sua consciência, como Himeneu e
Alexandre,18e precisava ser conscientizado das conseqüências eternas
de tal "infâmia".

b) A disciplina é necessária para o bem da comunidade dos cristãos (6-8)

Não é boa a vossa jactância. Não sabeis que um pouco de fermento leveda a
massa toda? 7Lançaifora o velho fermento, para que sejais nova massa, como
sois de fato sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi
imolado. gPor isso celebramos a festa, não com o velho fermento, nem com
o fermento da maldade e da malícia; e, sim, com os asmos da sinceridade e
da verdade.

Paulo retoma à arrogância dos coríntios. Não é boa a vossa jactância (v.
6) é uma declaração atenuada, magistral. Ele, que estivera
preocupado com a salvação e com a integridade do cristão, como
indivídio em Corinto, preocupa-se agora com a integridade, a
salvação da igreja. Parece muito provável que Paulo estivesse
escrevendo estas palavras na época dos preparativos para a
celebração anual da festa da Páscoa, pois os detalhes desta estão
vivos em sua mente, à medida que vai apresentando a importância
crucial de uma disciplina adequada na comunidade cristã.
Todos os anos, por ocasião da Páscoa, os judeus recordavam a
maneira como Deus os havia libertado da escravidão do Egito.19 "Um
dos aspectos da guarda da Páscoa era a solene busca e destruição de
todo o fermento,20 antes de a festa começar (durante sete dias só se
podia comer pão sem fermento). Fazia-se a remoção de todo o
fermento antes que a vítima da Páscoa fosse oferecida no templo."21
A celebração da Páscoa era, por excelência, a celebração da
comunidade de fiéis; de modo que Paulo está chamando a atenção
para a devastadora contradição evidenciada pela tolerância dos
coríntios em relação ao fermento na massa: o Cordeiro pascal (isto
é, Jesus) já fora sacrificado; as celebrações da festa (que normalmente
duravam uma semana para os judeus) já haviam começado e
deveriam ser a característica permanente da comunidade remida.
Mas ainda havia fermento na comunidade, e em grandes proporções.
A própria natureza da comunidade cristã se baseava no sacrifício do
novo Cordeiro pascal e por isso exigia pureza absoluta.22
Um pecador persistente, pego em flagrante, que continua sendo
aceito sem disciplina dentro da comunidade cristã, mancha todo o
corpo. Tal como os judeus celebravam a libertação da escravidão
rejeitando o fermento, os cristãos devem celebrar continuamente a
libertação do pecado sem nenhum compromisso com as mesmas
coisas das quais foram libertados. Caso contrário, todo o culto e toda
a vida da comunidade cristã se transformam em uma farsa, cheia de
insinceridade e hipocrisia.23 Notemos que Paulo se refere a práticas
pecaminosas deliberadamente repetidas dentro da comunidade.
Godet denomina tal atitude de "conivência ativa"24 e Hodge a descreve
como fazer o mal "com deleite e persistência".25 Todos nós cometemos
pecados, todos nós precisamos de purificação; mas todos nós temos
a obrigaçãode ser implacáveis com qualquer coisa que traia a nossa
vocação e contamine a nossa comunhão em Cristo. Paulo não está
esperando santidade perfeita ou pureza absoluta; ele apela para que
haja sinceridade e verdade (v. 8).
A primeira dessas duas palavras significa permitir que a luz do sol
brilhe sobre nós, a fim de pôr à prova as nossas motivações, bem como
o nosso comportamento. Isso implica em acabar com tudo o que é
furtivo, falso ou fingido. Significa não nos fecharmos aos outros como
pessoas. Significa liberdade. A ênfase desse termo, eilikrineia, não está
na perfeição e na ausência de pecado, mas na franqueza e na
honestidade, que nos levem a andar na luz da presença divina e a
desejar que Deus, através de sua luz, ilumine as áreas em trevas,26para
que possamos nos aproximar mais uns dos outros como também
dele.27
É nesta atmosfera de franqueza, sinceridade, veracidade e
integridade que nossos pecados e falhas podem ser devidamente
tratados no corpo de Cristo; não em um espírito de crítica, mas de
maneira franca, corajosa e coerente. É essa transparência que distingue
a comunidade cristã. Paulo é realista demais para pensar que alguma
congregação local seja moralmente pura de ponta a ponta. Mas ele
procura esse tipo de integridade e sinceridade.
Um incentivo poderoso para que vivessem este tipo de vida
corporativa é encontrado na frase sois de fato sem fermento (v. 7). Que
Paulo qualificasse qualquer congregação por ele conhecida como sem
fermento constitui um fato notável; e que ele assim considerasse a igreja
de Corinto é espantoso; todavia o fato de ele se dirigir àquela igreja,
em meio àquela obscenidade específica, dizendo que ela era de fato sem
fermento é tão impressionante que exige uma investigação mais
detalhada. Através de tal declaração o apóstolo resume claramente a
sua convicção essencial sobre todos os cristãos: "Vocês são sem
fermento, purificados do mal que lhes pertence por natureza; portanto
tornem-se o que são." Este, de fato, é o ponto central da teologia de
Paulo e a essência do seu incentivo para uma vida santa: "Vejam o que
Deus em Cristo fez por vocês... Agora continuem se tomando aquilo
que ele fez possível."
Eis a razão para a sua insistência na celebração: Por isso celebremos
a festa (v. 8). É possível que Paulo esteja pensando explicitamente na
alegria especial da celebração da Páscoa. Se é que ele escrevia esta carta
por ocasião da Páscoa, estava muito preocupado com que a igreja em
Corinto não ficasse privada da alegria total da sua celebração. Esta
seria, então, a referência mais antiga da comemoração da Páscoa como
um dia especial da igreja cristã. Provavelmente, Paulo está lembrando
aos coríntios o seguinte, conforme vi num poster recentemente:
"Somos o povo da Páscoa, e 'Aleluia!' é o nosso hino"; isto é, vivemos
no outro lado da cruz e da ressurreição e, portanto, certos hábitos estão
simplesmente fora de questão; se nos apegamos a eles, não podemos
celebrar verdadeiramente, nem no culto público, nem no decorrer de
nossa vida diária.
A celebração é um sinal característico da comunidade cristã; daí a
tradução de Lightfoot: "Vamos celebrar perpetuamente".28 Uma das
maneiras mais simples de celebrar a Páscoa com maior regularidade
é usar os conhecidos hinos pascais durante o ano inteiro, participar
explicitamente da Ceia do Senhor como uma reafirmação das
promessas feitas por ocasião do batismo (morte e ressurreição com
Cristo); e enfatizar constantemente o padrão de comportamento
completamente novo que se espera e está à disposição daqueles que
foram levantados para partilhar do poder da ressurreição de Jesus.
Dessa forma estaremos fazendo jus à declaração de Godet: "A festa
pascal do cristão não dura uma semana, mas toda a vida."29
Crisóstomo o expôs da seguinte maneira: "Para o verdadeiro cristão,
é sempre Páscoa, sempre Pentecoste, sempre Natal."
O mundo anseia por ver uma igreja assim, uma igreja que leva o
pecado a sério, que desfruta plenamente o perdão, e que, em seus
momentos de reunião, mistura uma celebração cheia de alegria com
um respeitoso senso da presença e da autoridade de Deus. "Quando
vivemos em vitória sobre as forças que destroem os outros, então as
pessoas começam a ver que há significado e propósito e motivação na
salvação que professamos ter" (Stedman). Mas isso jamais acontecerá,
se nos recusarmos a manter um contato dispendioso e compassivo
com os homens e as mulheres do mundo. Daí a importante
advertência de Paulo nos versículos 9-13, onde ele esclarece algumas
das falsas deduções dos coríntios, em resposta a uma carta anterior
escrita por ele mesmo (v. 9).

c) Algumas palavras de advertência (9-13)


Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros; 10refiro-me
com isto não propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou
roubadores, ou idólatras; pois, neste caso teríeis de sair do mundo. nMas agora
vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, fo r
impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador;
com esse tal nem ainda comais. nPois com que direito haveria eu de julgar os
de fora? Não julgais vós os de dentro? 13Os de fora, porém, Deus os julgará.
Expulsai, pois, de entre vós o malfeitor.

A facilidade com que os cristãos podiam optar pela falta de contato


com os incrédulos fica sintetizada na correção contida nos versículos
9-11. Em uma carta anterior, Paulo advertira os coríntios de que não
se misturassem com os homens imorais. A confusão provavelmente
surgiu devido ao duplo sentido que a palavra synanamignysthai tem
no grego. O significado principal seria proibir toda intimidade social,
ou poderia significar todo contato social. Talvez com certa medida de
deturpação deliberada, os coríntios consideravam apenas o segundo
significado e o aplicavam em seus relacionamentos com todas as
pessoas. Paulo tivera a intenção de condenar a manutenção deliberada
de uma amizade íntima com os cristãos professos que persistiam em
pecados escandalosos.
Certamente é possível que os membros mais legalistas da igreja de
Corinto tenham decidido interpretar as instruções do apóstolo como
carta branca para se isolarem do mundo. Afinal, Corinto era um
cenário assustador para os cristãos, sobretudo para aqueles que
haviam sido salvos recentemente de seus piores vícios. Em muitos
cristãos é quase como se existisse um mecanismo subconsciente que
os desliga quando se defrontam com um verdadeiro envolvimento
com o mundo secular, que parece perigoso e atraente demais. Paulo
na verdade alude a esta tendência no versículo 10: Refiro-me com isto
não propriamente (em grego, ou pantos) aos impuros deste mundo.
Através dos séculos, muitas vezes, os cristãos têm preferido rejeitar
o chamado de Deus para se moldarem totalmente ao padrão de sua
própria encarnação. O primeiro caminho é o disfarce pietista, de quem
não pode enfrentar o mundo e se retira para dentro do seu próprio
relacionamento pessoal com Deus, vendo as pessoas simplesmente
como almas a serem salvas. Há a opção monástica que, desde o
terceiro ou quarto século d.C., sempre se coloca a serviço dos outros,
particularmente dos pobres e dos necessitados. Talvez a tendência
mais sutil e comum seja a psicológica: os cristãos não podem enfrentar
os problemas do mundo, por serem demasiadamente grandes e
graves; portanto, é mais seguro não se preocupar com eles. A
demonstração mais explícita desta atitude é a maneira como
preenchemos nossas agendas com reuniões de igreja, em vez de
estarmos mais disponíveis para encontros genuínos com incrédulos,
numa amizade franca.
Os cristãos coríntios não eram, portanto, pessoas fora do comum.
O princípio de Paulo é claro e em nada ambíguo: "disciplina severa
dentro; liberdade completa de associação lá fora".30 É importante
observar que, apesar do desafio específico da porneia (fornicação)
mencionado neste capítulo, Paulo recusa-se a permitir qualquer
"classificação" de pecados na mente dos coríntios. Nos versículos 10
e 11 ele cataloga diversos pecados que insultam igualmente os padrões
divinos, dentro e fora da igreja. Cada um deles deve ser encarado com
a mesma seriedade quando ocorre persistentemente dentro da
comunidade cristã. Deve-se notar cada um cuidadosamente, por causa
de sua relevância em todo o tempo e porque é fácil tratar
determinados pecados com menos escrúpulos do que outros.
Paulo fala sobre cinco áreas de comportamento —sexo, dinheiro,
bens, bebida e língua - nas quais a transgressão constante dos padrões
cristãos exige disciplina. É óbvio que a igreja cristã de hoje carrega
uma pesada responsabilidade de ser totalmente distinta no que diz
respeito ao comportamento sexual.
a) Avareza. O mesmo acontece com o pecado da avareza. A palavra
grega pleonexia, normalmente traduzida por "ganância", tem a
conotação de "ajuntar cada vez mais, nunca se satisfazendo totalmente
com o que já se tem". Se tivermos de perguntar a qualquer cristão
africano ou indiano qual é o pecado mais comum e mais destrutivo
da igreja ocidental, a resposta invariavelmente será "ganância".
Martinho Lutero deu um bom exemplo nesta questão: "Lutero
ameaçou excluir da igreja um homem que pretendia vender uma casa
por 400 florins, quando ele mesmo a comprara por 30. Lutero sugeriu-
lhe 150 como um preço razoável. A inflação nessa ocasião havia
elevado os preços, mas o lucro que esse homem pretendia obter era
exorbitante, e Lutero, que de um modo geral não usava de meias-
palavras, acertou quando rotulou esse tipo de ganância desenfreada
como um pecado sujeito à disciplina."31Dificilmente poderíamos ter
um exemplo mais explícito (ou que fosse mais apropriado para o
século XX) da natureza abrangente da verdadeira disciplina da igreja.
b) Idolatria. O próximo exemplo de pecado na comunidade cristã,
citado por Paulo, é a idolatria, uma prática que penetra em tudo e
dificilmente é reconhecida pelos cristãos ocidentais. René Padilla, da
Argentina, escreveu o seguinte: "Hoje em dia, os ídolos que
escravizam os homens são os ídolos da sociedade de consumo. Por
exemplo, o culto ao aumento da produção através da irreparável
destruição da natureza, a fé cega na tecnologia, a propriedade privada
como um direito inalienável, a ostentação, a moda, os resultados, o
sucesso. Esses são os ídolos da sociedade de consumo."32 Desde que
é esse o caráter da sociedade na qual vivemos, não podemos nos
desvencilhar totalmente dela, a não ser que saiamos do mundo (v. 10).
Isso seria uma negação completa da oração do próprio Jesus pelos seus
discípulos: "Não peço que os tires do mundo; e, sim, que os guardes
do mal."33 Não obstante, devemos nos perguntar se nosso padrão de
vida eclesiástica de um modo geral —e a integridade e a transparência
dos relacionamentos entre os companheiros cristãos em particular —
permite que incluamos assuntos como os que Padilla destaca na
discussão sobre o que significa viver de maneira diferente como
comunidade cristã no mundo de hoje.
c) Maledicência. Uma outra ocasião para exercer tal disciplina na
igreja, diz Paulo, dá-se quando um cristão se mostra maldizente (em
grego, loidoros). Barrett traduz isso por "um homem injurioso",34
Morris prefere "maldizente... que injuria os outros"35 e, então, cita as
palavras de condenação do próprio Jesus:"... quem proferir um insulto
a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe
chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo."36 O vocábulo grego
tem o significado particular de injuriar os que estão na liderança, uma
tendência tão escandalosa nas igrejas ocidentais de hoje como em toda
a sociedade ocidental. O desrespeito por aqueles que receberam a
responsabilidade de cuidar dos outros — sejam eles professores
primários ou conferencistas universitários, policiais ou políticos, pais
ou magistrados —é endêmico. Trata-se principalmente de um ato de
violência praticado com a língua, e também se dirige contra aqueles
que receberam o encargo de supervisionar a igreja de Deus. Tais
pessoas são constantemente críticas, desprezando tudo e todos na
comunidade cristã. Elas revelam uma rebeldia profundamente
enraizada contra toda autoridade e recusam-se a mudar tal
procedimento.37
d) Bebedice. O cristão que regularmente incorre no pecado da
embriaguez é considerado por Paulo sob a mesma luz. Essas pessoas
precisam ser disciplinadas tal como aquelas que persistem na
imoralidade sexual, na ganância desenfreada ou no desprezo ofensivo
para com as autoridades. Uma atitude de indiferença diante do
pecado da embriaguez pode facilmente invadir a comunidade cristã.
Tal atitude —que sob muitos aspectos reflete uma reação extremada
contra a abstinência total — torna-se mais grave à vista do imenso
aumento do consumo de bebidas alcóolicas no mundo. Em tal clima,
as bebedices passam geralmente a ser consideradas uma
escorregadela temporária, um assunto para piadas de festinhas, e não
uma perigosa entrega das faculdades a uma força que não é o Espírito
Santo.
é)Violência. A palavra íiarpax, traduzida por roubador, tem a explícita
conotação de violência. Na primeira lista (v. 10) a ganância e o roubo
(avarentos, ou roubadores) estão inter-relacionados. Se as pessoas
realmente desejam uma coisa, nada pode impedi-las de obtê-la.
Atualmente a violência está dominando a sociedade contemporânea:
violência nas salas de aula, nos centros das cidades, nas telas da
televisão; violência para com as crianças, mesmo no útero, para com
os idosos e os doentes terminais; violência nos campos esportivos e
nas estradas. Tal violência - sem mencionar a violência mais sangrenta
do terrorismo urbano, da guerra civil, da hostilidade internacional e
da ameaça nuclear — está constantemente a serviço dos lucros
pessoais. A sanidade dos homens, bem como a glória de Deus, clama
por uma igreja que seja diferente em todas essas áreas, seja qual for
o custo em termos de reputação. Para isso é preciso haver, portanto,
uma disciplina consistente, centralizada em Cristo.
Seria ingenuidade pensar que não é extremamente difícil observar
este princípio que une dois aspectos: a pureza dentro da igreja e
contato aberto, sem reservas, com os de fora. Mas ele contém a chave
do testemunho cristão eficaz. Sal e luz, as duas metáforas usadas por
Jesus para descrever o caráter da igreja,38 pressupõem envolvimento
com a corrupção e com as trevas. O exemplo de Jesus também aponta
na mesma direção: ele era inteiramente sem pecado, e no entanto foi
acusado de ser "um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos
e pecadores”.39 A tragédia de muito "cristianismo moderno" e,
incidentalmente, o motivo básico para tanta evangelização ineficaz,
é que a comunidade cristã se toma distante em relação aos incrédulos
enquanto se toma relaxada em relação aos convertidos que persistem
no pecado de um tipo ou de outro. Resumindo, a igreja não é diferente,
não é distinta.
A necessidade desesperada de os cristãos acabarem com inúmeras
reuniões da igreja, a fim de abrirem espaço em suas agendas para
encontros com os incrédulos, foi resumida por Martinho Lutero com
uma candura e uma pungência características: "O reino deve ser
estabelecido no meio dos seus inimigos. E aquele que não aceita isso
não quer pertencer ao reino de Cristo. Ele deseja ficar entre amigos,
assentar-se no meio de rosas e lírios, não com pessoas más. Ó
86
blasfemadores e traidores de Cristo! Se Cristo tivesse feito o que vocês
fazem, quem teria sido poupado?"
Os coríntios não estavam simplesmente deixando de ser diferentes,
nem eram apenas acomodados quanto ao padrão de comportamento
cristão; eles eram realmente "arrogantes" quanto à sua tolerância e
liberalidade. Assim como acontecia naqueles dias, hoje também a
igreja muitas vezes é culpada, não apenas de frouxidão moral, como
também de presunção. Existe uma cegueira culposa em relação à
seriedade de certos pecados, acoplada a uma recusa perversa em
reconhecer o elo íntimo que existe entre esse comprometimento
pecaminoso e essa ineficácia evangelística. Em todos os setores do
comportamento humano mencionados por Paulo nos versículos 10 e
11, não é difícil encontrar igrejas mais ricas tão manifestamente
culpadas, que cristãos mais pobres e simples ficam profundamente
feridos e chocados com o seu comodismo. Em vez de a igreja se afastar
do mundo, o mundo a permeia totalmente.
Talvez o resultado mais danoso de a igreja não mostrar diferença
alguma esteja no julgamento severo que ela pronuncia contra os
incrédulos. Apresentamos assim, por nossas palavras, uma paródia
do evangelho, ao mesmo tempo em que pela nossa prática negamos
o seu poder de transformar totalmente as nossas vidas. Ficamos
parados ao lado do imenso abismo entre a igreja e o mundo, e
proclamamos alto e claro: "Como vocês são maus!" Alguns capítulos
adiante, Paulo esclarece que a sua própria política consiste em
transpor todas as barreiras entre os cristãos e os incrédulos a fim de
ganhá-los para Cristo.40Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora?
... Deus os julgará (vs. 12-13). A relevância disso para a responsabilidade
conjunta da igreja em uma nação também é digna de nota. Na África
do Sul, durante algumas décadas, a maioria dos cristãos protestou em
alto e bom som contra a injustiça e a maldade do apartheid. Tais críticas
eram acertadas e oportunas, mas o triste fato é que a igreja cristã não
revelava nada diferente, nada melhor em seu próprio estilo de vida
comunitária. Como resultado, a ênfase dos cristãos da África do Sul
nos anos 70 começou a mudar, para assegurar que houvesse,
especificamente na vida comunitária da igreja, mais justiça com
verdade, amor e compaixão, sem discriminação.
E essencial que haja em cada nação um ministério profético a
exemplo dos profetas do Antigo Testamento, tais como Amós e
Jeremias; mas o impacto desse ministério, muitas vezes, fica
emudecido à medida que a igreja se confunde com a sociedade na qual
se encontra. Pureza dentro da igreja e penetração no mundo são duas
responsabilidades complementares dos cristãos em Corinto, na
Cidade do Cabo, em Cuiabá ou em qualquer lugar. Por mais paradoxal
que possa parecer, as duas partes (a igreja e o mundo) realmente
interagem de maneira criativa. Contrariando a convicção dos
legalistas, antigos e modernos, quanto mais os cristãos que são
diferentes se misturam com os incrédulos, menor o perigo de um
comprometimento moral, especialmente se tal testemunho for
corporativo, compassivo e claro. Da mesma forma, os incrédulos são
atraídos mais eficazmente para as comunidades cristãs onde há uma
diferenciação inconfundível e translúcida nas áreas que realmente
contam: sexo, dinheiro, bens, bebida e língua.
Precisamos ainda sublinhar as severas restrições feitas por Paulo
quanto ao julgamento dos de fora (v. 12). Tal julgamento não passa de
crítica. Alguns cristãos têm a tendência de julgar à primeira vista,
enquanto outros cristãos são positivos e confiantes, quase que em
demasia. O espírito hipercrítico é a raiz de tanta desconfiança e
suspeita existentes entre muitos cristãos da atualidade. Com esse
hábito usurpa-se a prerrogativa do próprio Deus. As palavras de Jesus
são categóricas, quando ele nos adverte: "Não julgueis, para que não
sejais julgados”.41 Na verdade, o fato de nos desviarmos dessa
instrução do Sermão do Monte indica que percebemos as faltas dos
outros exatamente porque se aplicam a nós mesmos, e, normalmente,
ainda mais do que a eles. Em outras palavras, foi-nos dada a facilidade
de notar as falhas dos outros, não para nos assentarmos sobre a
cátedra de juiz, mas para examinarmos e corrigirmos a nós mesmos
nas respectivas áreas. As pessoas são como espelhos para nós.42
Não existe contradição alguma entre a firme insistência de Paulo
na necessidade da disciplina, quando se trata de pecado contínuo e
escandaloso dentro da comunidade da igreja, e a injunção de Jesus de
que não devemos nos julgar uns aos outros. Esta promove as
características cristãs, e aquela as preserva. Devemos, portanto, aplicar
nossa capacidade de julgamento, não para com os de fora (pois eles
são responsabilidade de Deus), nem para com os nossos irmãos em
Cristo em nosso viver diário (nossa responsabilidade para com eles
é encorajá-los e edificá-los), mas para com qualquer pessoa que,
dizendo-se irmão (v. 11), transgride os padrões cristãos básicos,
escandalizando a comunidade dos que crêem, diminuindo o poder do
evangelho, entregando um território importante aos inimigos de Deus
e roubando a glória do Senhor.
Assim, as instruções de Paulo nessa situação são explícitas: que seja
"tirado do vosso meio" (5:2); "entregue a Satanás para destruição da
carne" (v. 5); "lançai fora o fermento velho" (v. 7); "não vos associeis
com alguém que... for impuro... com esse tal nem ainda comais” (v. 11);
"expulsai de entre vós o malfeitor" (v. 13).
Esta última instrução é, na realidade, uma citação do livro de
Deuteronômio. Ela ocorre em seis ocasiões diferentes: em conexão
com um falso profeta que se propõe a dar instruções (através de
sonhos) ao povo de Deus para que siga outros deuses (13:5);
relacionada a um homem ou mulher que começou a servir a outros
deuses (17:7); referindo-se a um homem que seja pego roubando (24:7);
com referência a uma mulher dada em casamento na suposição de que
é virgem, quando não é (22:21); com relação a um homem que obriga
"uma virgem desposada" a se deitar com ele dentro dos limites da
cidade, onde ela poderia ter pedido socorro (22:24); e em se tratando
de qualquer pessoa que maliciosamente tenha dado falso testemunho
contra outra (19:19). Quer seja uma questão de idolatria, quer seja uma
questão de imoralidade, a ordem de Deus é a mesma: "eliminarás o
mal do meio de ti" (significando a morte do culpado). Na verdade, se
tomarmos esses seis exemplos de Deuteronômio, encontraremos um
paralelo notável com os pecados mencionados em 1 Coríntios 5:11,
que exigem uma medida disciplinar semelhante. A única, mas
importante diferença, é que as instruções em Deuteronômio foram
todas dadas na segunda pessoa do singular, enquanto Paulo as
menciona no plural. Desta maneira simples ele endossa a verdade de
que "a excomunhão não é uma prerrogativa apostólica; se tiver de ser
exercida, tem de ser exercida por toda a comunidade, em cujas mãos
(sob Cristo) está a autoridade".43
Ao longo de toda esta seção usamos a palavra "excomunhão" ao
falarmos da disciplina exigida por Paulo no caso do cristão coríntio.
Para os ouvidos modernos o termo pode não parecer adequado; para
os contemporâneos de Paulo, porém, devia parecer muito mais clara.
Sempre que os cristãos se reuniam como povo do Senhor na casa de
um crente, eles "partiam o pão" e oravam: uma combinação de
"eucaristia" (isto é, ação de graças) e "ágape" (isto é, participação em
uma refeição de amor fraternal), que juntas expressavam a unidade
fundamental do corpo de Cristo. A medida disciplinar sugerida por
Paulo consiste na exclusão do culpado, nessas ocasiões, cujo
equivalente atual é a chamada "excomunhão".44
O sofrimento inicial envolvido no cumprimento de uma disciplina
severa como essa fica mais do que compensado pelo aumento da
pureza do testemunho corporativo da igreja, não mencionando o
alívio quase tangível sentido pelos outros membros da congregação
f u g i d a f o r n ic a ç ã o

cujas vidas foram afetadas, em maior ou menor escala, pela situação.


De um modo geral, são afetadas mais pessoas do que podemos
imaginar, e numa profundidade maior do que esperamos.
Toda a questão pode ser resumida na clara convocação do Senhor
para que a sua igreja seja diferente, santa e perfeita. O pietismo ou o
monasticismo não são, para Paulo, uma opção viável. Por motivos
igualmente fortes, a igreja não pode assimilar tanto as características
de seu ambiente externo, de modo que seja impossível perceber a
diferença entre os cristãos e os de fora. A igreja foi chamada para ser
um tertium genus, uma terceira raça, a comunidade alternativa da
sociedade; nas palavras de Pedro: "Vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus,
a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua maravilhosa luz, vós, sim, que antes não éreis povo, mas
agora sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas
agora alcançastes misericórdia."45

3. A necessidade de convicções claras (6:9-11)

A segunda parte do capítulo 64íl brota naturalmente da insistência de


Paulo na disciplina eclesiástica adequada, no capítulo 5. O objeto do
discurso ainda é principalmente a moralidade sexual. Obviamente
uma arrogância enfatuada diante de um caso desagradável de incesto
representa de fato nada mais que a ponta de um iceberg letal em um
oceano de atitudes altamente duvidosas em relação às coisas físicas
e sexuais.
Apesar de todo o seu pretenso conhecimento, os cristãos em
Corinto haviam perdido de vista a centralidade de Jesus Cristo, o
poder controlador do Espírito Santo e a experiência transformadora
de terem sido chamados e salvos por Deus. Eles se vangloriavam de
sua ampla liberalidade, de seus gurus escolhidos e de sua
independência do próprio apóstolo. Por isso Paulo faz os irmãos
coríntios retornarem diretamente aos fundamentos, às convicções
básicas sobre o futuro e o passado.

a) As convicções sobre o futuro (9-10)


Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos
enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem
sodomitas, wnem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem
roubadores herdarão o reino de Deus.
Com muita freqüência se diz que Paulo não fala muito sobre o reino
de Deus.47 Se examinarmos, porém, com mais cuidado as ocasiões em
que ele se refere explicitamente ao reino de Deus, constataremos uma
importante ênfase.48 Tais referências evidenciam que, para Paulo, a
realidade do reino de Deus é completamente essencial às suas próprias
convicções e ao seu ensino sólido, que bem sabemos (cf. 4:17; 7:17) ser
basicamente o mesmo em cada situação. Podemos acrescentar a essas
referências o próprio resumo de Lucas sobre os ensinamentos diários
de Paulo em Roma: "Por dois anos permaneceu Paulo na sua própria
casa, que alugara, onde recebia a todos que o procuravam, pregando
o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum,
ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo."41'
Considerando que o Novo Testamento contém muitas expressões
diferentes do evangelho, cada uma devidamente relevante ao seu
contexto, convém destacar que, hoje em dia, uma exposição relevante
e cuidadosa dos ensinamentos bíblicos sobre o reino de Deus é de
importância crucial. Os evangelicais têm destacado a pregação do
evangelho; outros têm destacado a importância do reino: Jesus veio
proclamando o evangelho do reino.50 Tal equilíbrio se faz necessário
em todo tipo de situação na atualidade. Faz-se necessário, quer a
ênfase seja a "teologia da libertação" na América Latina, ou a "teologia
negra" na África. Faz-se necessário no contexto das opressões das
ditaduras militares ou da ameaça da dominação comunista. Faz-se
necessário quando surge tensão por causa do imenso abismo entre o
credo e a conduta, e da dolorosa angústia entre a obediência a Cristo
e a lealdade à nação. Faz-se necessário quando nossa preocupação é
com a opressão dos pobres ou a indiferença dos ricos. Faz-se
necessário quando focalizamos a irrelevância eclesiástica e a
burocracia, ou os interesses políticos egoístas e a manutenção do
padrão de vida atual a qualquer custo. Em cada situação a igreja tem
a obrigação de proclamar o evangelho do reino. "Jesus veio como o rei
dos reis; ele estabeleceu o reino de Deus; ele é supremo sobre todos
os demais governantes; seu reino é eterno, total, invencível; você
dobrará o joelho diante do rei Jesus?" Paulo passou a sua vida assim,
"pregando o reino de Deus" e ensinando "as coisas referentes ao
Senhor Jesus Cristo" porque ele estava absolutamente convencido da
preeminência do Filho de Deus.
Este reino tem uma aplicação futura, por mais que tenhamos de
penetrar nele e desfrutá-lo agora. Isto se resume na palavra herdar, nos
versículos 9 e 10: no grego, kleronomein. Em quatro ocasiões quando
se refere ao reino de Deus, Paulo fala em herdá-lo (ou não herdá-lo).
Morris51 diz que o verbo grego kleronomeo significa "entrar em plena
posse de" alguma coisa que já foi prometida. Pedro fala da herança à
disposição de todos aqueles que "nasceram de novo" (o único meio de
entrar no reino de Deus52), quando diz: ”... segundo a sua muita
misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança mediante a
ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança
(,kleronomian) incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos
céus para vós outros."53
Essa herança futura é aqui comparada (e contrastada) com a Terra
Prometida que o povo de Deus aguardava sob a antiga aliança. A
herança terrena estava sujeita'a desastres naturais, ã invasão de
inimigos hostis, ao assalto de animais selvagens e, muitas vezes, a
problemas que o povo de Deus tinha de resolver, para poder desfrutá-
la plenamente.
A despeito de todas as dificuldades que o povo de Israel enfrentou
para tomar posse de sua herança prometida, ele recebeu a ordem
divina de exterminar qualquer influência estranha, tanto na terra
como em sua própria vida comunitária. A mesma intimação é feita ao
povo de Deus sob a nova aliança: a nossa herança é imperecível,
imaculada e imarcescível; não há nada inerentemente corrupto ou
corruptível no reino de Deus; e nada dessa natureza terá permissão
de entrar nele. As duas coisas não podem se misturar. Os injustos não
podem herdar o reino de Deus, porque Deus é totalmente justo. Os
injustos, na verdade, se excluem do reino de um Deus justo. Excluem-
se devido ao comportamento que eles mesmos escolhereram. Desde
que o reino reflete o próprio caráter divino de justiça e compaixão,
aqueles que insistem em viver com base em outros padrões nunca
entrarão nele. Paulo não está falando de atos isolados de injustiça, mas
de todo um modo de vida seguido persistentemente por aqueles que
assim denunciam sua incompatibilidade com o reino da verdade e da
luz.
À igreja em Corinto, ou em qualquer outro lugar, em qualquer outra
ocasião, foi convocada para refletir as condições que prevalecem no
reino de Deus. A igreja é um sinal do reino, uma indicação do seu
verdadeiro caráter. A disciplina na igreja, portanto, não é uma questão
de decisões arbitrárias sobre moralidade sexual; ela se baseia em
convicções firmes (enraizadas nas Escrituras e delas extraídas) sobre
o caráter essencial do reino de Deus, tal como é descrito pelas palavras
com que Jesus revelou a sua natureza, e também pelo retrato
visionário que recebemos (sobretudo no livro de Apocalipse) da
qualidade da vida que um dia se manifestará plenamente. "Fora ficam
92
os cães, os feiticeiros, os impuros, os assassinos, os idólatras, e todo
aquele que ama e pratica mentira."54
O significado desta convicção sobre quem vai e quem não vai
herdar o reino de Deus envolve efetivamente as nossas crenças sobre
o juízo de Deus. Se não formos capazes de aceitar a realidade, a
realidade eterna do julgam ento, não aceitarem os a urgente
necessidade de disciplina na igreja. A advertência de Paulo aos
coríntios não é trivial: Não vos enganeis (v. 9). O verbo indica uma
tendência de se desviar do curso, caindo em um campo minado por
falsidade: falsos ensinamentos e falso comportamento.55
Quando examinamos a lista total daqueles que são excluídos da
plena posse do reino de Deus, há pouca diferença com os
mencionados em 5:10-11. As palavras extras empregadas pelo
apóstolo são: adúlteros, efeminados, sodomitas e ladrões. A palavra
genérica, os injustos, é usada provavelmente com a intenção de prever
a obra de Deus em justificar os injustos, mencionada no versículo 11:
Mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do
nosso Deus. Quanto ao adultério, este constitui, de fato, o tema
principal dos versículos 12-20 (veja a próxima seção).
Segundo M orris,56 por ladrões, Paulo se referia a "gatunos
insignificantes, ladrões baratos, e não salteadores". Barclay57 nos faz
apreciar a seriedade deste mal: "O mundo antigo estava amaldiçoado
com eles. As casas eram facilmente arrombadas. Os ladrões
assaltavam dois lugares em especial: os banhos públicos e os ginásios,
onde roubavam as roupas daqueles que tomavam banho ou se
exercitavam. Era comum o rapto, especialmente de escravos que
tinham talentos especiais. A lei vigente revela como era sério esse
problema. Havia três tipos de roubo que eram punidos com a morte:
a) roubos no valor acima de 50 dracmas (cerca de 8 dólares); b) roubos
nos banhos públicos, ginásios, portos e ancoradouros no valor de 20
dracmas; c) roubos de qualquer coisa à noite. Os çristãos viviam no
meio de uma população que costumava roubar." A sociedade
gananciosa de hoje produziu uma situação onde a necessidade de todo
tipo de proteção (para indivíduos, bens, prédios, propriedades, etc.)
faz com que a segurança seja um negócio rendoso.
A única adição importante à lista de Paulo daqueles que serão
excluídos do reino de Deus é sintetizada num a palavra:
"homossexuais". Na verdade o termo moderno engloba as duas
palavras gregas, malakoi ("efeminados") e arsenokoitai ("sodomitas").
Barret considera estas palavras como referências a "parceiros
respectivam ente passivos e ativos na relação hom ossexual
masculina",58 mas há quem traduza a primeira palavra por "homens
que praticavam a prostituição" e a segunda por "infratores
homossexuais", pressupondo que Paulo não se referia a todas as
práticas homossexuais, mas apenas àquelas consideradas como
desvios.
Os comentários de Paulo aqui nada dizem a respeito das tendências
homossexuais: os que não podem entrar no reino de Deus são aqueles
cujo comportamento despreza os mandamentos do Rei. Hoje,
certamente, entendemos melhor os fatores que estimulam, ou até
produzem as tendências hom ossexuais. O indivíduo é
significativamente afetado pelo seu meio, pela hereditariedade, pelas
circunstâncias, pelo tratamento recebido (especialmente dos pais),
tanto na infância como na adolescência. Deus conhece toda esta
realidade mais do que qualquer psiquiatra, e qualquer julgamento que
ele vier a fazer será justo. Mas isso não apaga os dizeres: Os injustos
não herdarão o reino de Deus. Precisamos de uma honestidade radical
para perguntar: "Será que realmente pensamos que as leis de Deus
serão alteradas para a nossa geração, só porque nascemos nela?"
E difícil reafirmarmos as palavras nada ambíguas de Paulo nestes
versículos, sem incorrer no risco de parecermos preconceituosos para
com os praticantes do homossexualismo. Até que ponto podemos
lançar a responsabilidade desse tipo de vida sobre tais pessoas? Será
que não existem homossexuais praticantes que são mais vítimas do
pecado do que culpados? Temos um exemplo gritante de uma
situação dessas na África do Sul contemporânea. É bem sabido que
o homossexualismo era virtualmente desconhecido entre os negros
africanos até relativamente pouco tempo atrás. Com a instituição do
apartheid, que obriga os homens africanos a se mudarem para as
grandes cidades industriais à procura de trabalho, surgiram grandes
complexos residenciais só para homens em bairros urbanos tais como
Soweto, perto de Johannesburg, e Langa, perto da Cidade do Cabo.
Os trabalhadores não têm permissão de levar consigo suas esposas e
suas famílias para esses "bairros" e são forçados a deixarem a família
toda em seu lugar de origem. Em lugares como Soweto e Langa há um
número muito maior de homens do que de mulheres, numa
proporção de pelo menos 10 para 1. Um dos resultados inevitáveis
desse desastroso fracionamento da vida familiar causado pela
legislação estatal foi o aumento da prática do homossexualismo entre
os homens - além de todos os outros efeitos nocivos sobre a estrutura
moral dessas pessoas, por causa do trabalho migratório forçado de
maneira tão desumana.
Este é um dos exemplos mais eloqüentes de como os que detêm o
poder conseguem corromper a vida moral dos seus concidadãos.
Muitas das práticas erradas esboçadas nestes dois capítulos poderiam,
da mesma maneira, ser atribuídas às condições sociais impostas à
maioria por aqueles que estão em posição de autoridade. Temos,
portanto, que denunciar com a mesma firm eza tanto a
responsabilidade inerente de cada ser humano (criado à imagem de
Deus) pelos seus atos, como as circunstâncias mitigantes que Deus (que
julga com justiça) certamente vai considerar quando determinar quais
serão os cidadãos do seu reino. Devemos novamente nos lembrar de
que "Deus julgará os de fora", e que ele "ao Filho confiou todo o
julgamento... E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do
homem."59
Essas eram as convicções fundamentais de Paulo sobre o futuro e
representam o âmago de seus ensinamentos costumeiros "em todas
as igrejas". Ele cria que o reino de Deus já fora introduzido neste
mundo com a chegada do Rei Jesus. Os cidadãos desse reino eram
chamados para viver de maneira especial: mais do que isso, eram
capazes de viver dessa maneira diferente, e por isso era duplamente
importante que fossem diferentes.

b) Convicções sobre o passado (11)

Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas
fostes justificados, em o nome do Senhor Jesus Cristo c no Espírito do nosso
Deus.

Poucas declarações no Novo Testamento são mais emocionantes e


mais motivadoras do que esta pequena frase: Tais fostes alguns de vós.
Temos de nos lembrar apenas do inferno moral que era Corinto no
primeiro século para entendermos a maravilha da afirmação de Paulo.
Nenhum poder terreno conseguiria produzir uma transformação
como essa, naquele conjunto heterogêneo de cristãos, a quem Paulo
se dedicava profundamente, a ponto de chamá-los explicitamente de
"irmãos" vinte vezes, nesta única epístola. Ele mesmo ficara
atemorizado perante a simples idéia de levar o evangelho do reino a
uma cidade daquelas. Cada indivíduo libertado dos tentáculos do
vício desenfreado era um glorioso troféu da graça divina. Paulo jamais
estivera tão convencido de que Deus é capaz de salvar cabalmente a
todo aquele que vem a ele através de Jesus.“ Cada cristão coríntio era
uma evidência viva de que a resposta divina à sofisticada sabedoria
grega não era uma argumentação inteligente, mas vidas
transformadas.
Uma das biografias cristãs mais interessantes e comoventes dos
últimos tempos descreve a graça de Deus em operação na vida de John
Newton, o capitão de navios que comercializava escravos entre a
Inglaterra, a África e as Antilhas, cuja vida foi transformada de modo
tão completo (embora de maneira dolorosa e turbulenta), que ele
mesmo se tomou amigo e pastor de William Wilberforce, um famoso
parlamentar britânico, na sua dedicada missão de abolir a escravatura.
Isso é o que o Deus de toda a graça pode fazer com desastres morais
e espirituais como John Newton.61
Para termos uma impressão mais vívida da extensão do abismo
entre o paganismo e o cristianismo vivo, vale a pena citar
integralm ente uma passagem de Barclay sobre o poder do
homossexualismo no mundo mediterrâneo, no primeiro século: "Era
um pecado que assolava a vida grega como um câncer e que, da
Grécia, invadiu Roma. Mal podemos imaginar como o mundo antigo
se prejudicava com isso. Até um grande homem como Sócrates o
praticava; 'O Simpósio', o diálogo de Platão, é considerado uma das
maiores obras do mundo sobre o amor, mas seu tema não é o amor
natural, mas o antinatural. Catorze dos primeiros quinze imperadores
romanos praticavam esse vício antinatural. Na época da carta, Nero
era o imperador. Ele tomou um rapaz chamado Sporus e mandou
castrá-lo. Casou-se com ele em uma cerimônia de casamento
completa, levou-o em procissão até o seu palácio e vivia com ele como
se ele fosse a sua esposa. Com incrível depravação, Nero também era
casado com um homem chamado Pitágoras e o chamava de seu
marido... No que se refere a este vício em particular, no tempo da igreja
primitiva, o mundo estava vergonhosamente perdido."62
Tais fostes alguns de vós, e só precisamos nos lembrar do amor
coríntio às modas e modismos para valorizar o milagre que era a
existência de uma igreja cristã ali em Corinto. "Tais fostes alguns de
vós"; alguma coisa acontecera; já não estavam indissoluvelmente
presos a esse estilo de vida. Paulo é absolutamente explícito: mas vós
fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados. Todos os três
verbos estão no tempo aoristo, indicando um acontecimento único
que os transformara completamente. Concorda-se de um modo geral
que estes verbos, seguidos das expressões: em o nome do Senhor Jesus
Cristo e no Espírito do nosso Deus, têm um claro tom batismal. Embora
reconhecendo que a igreja em Corinto já incorria no perigo de
considerar os dois sacramentos (do batismo e da santa ceia) como uma
espécie de proteção mágica contra o julgamento divino,63 ainda
podemos avaliar o impacto teológico e psicológico dessas três
declarações: "vós vos lavastes... fostes santificados... fostes
justificados". O batismo era um evento dramático que todos podiam
lembrar. "Pensem no que o batismo simbolizou", diz Paulo. Assim ele
lembra a esses cristãos ambivalentes a realidade e a profundidade da
graça que os libertara de um passado desastroso. "Tal profundeza
insondável da graça não deve ser cruzada novamente."64
Os elementos humanos e divinos na salvação, simbolizados pelo
batismo nas águas, recebem destaque através das vozes dos três
verbos no versículo 11.0 primeiro está na voz reflexiva (literalmente,
"vós vos lavastes"), enquanto que os outros dois estão na passiva. Isso
corresponde ao ato decisivo dos coríntios em assumir um rompimento
definitivo com seu antigo estilo de vida, interagindo com a iniciativa
soberana de Deus em aceitá-los no seu reino como súditos reais
plenamente justificados, separando-os para um serviço especial sob
o seu comando real.
A intensidade da transformação realizada é sublinhada pela tripla
ocorrência da conjunção alia ("mas") no original, precedendo cada
verbo: "Vocês eram assim, mas agora vocês se lavaram; vocês eram
assim, mas agora receberam um trabalho diferente e especial para
realizar; vocês eram assim, mas agora tudo pertence ao passado e
vocês são filh os reais d e um m onarca real!" Paulo está totalmente
convicto acerca do que aconteceu aos cristãos em Corinto. Apesar dos
problemas existentes na igreja, apesar dos fracassos pessoais e do
mundanismo corporativo, apesar da dor que sentia pela atitude dos
coríntios para consigo, Paulo continuava firme em sua convicção sobre
o passado: eles haviam sido lavados, santificados, justificados ... e todo
o peso de Deus, a Santa Trindade, está por trás dessa convicção. O
versículo 11 tem um sabor claramente trinitárío.
Por mais que a linguagem de Paulo lembre a liturgia e a prática do
batismo, ele não está colocando a confiança dos coríntios, quanto à sua
posição diante de Deus, no ato do batismo em si. Isso é esclarecido
pela frase: em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.
Ter —e ser controlado por - convicções centralizadas em Cristo
sobre o futuro e sobre o passado é essencial para uma vida corporativa
na igreja local e para a saúde espiritual do próprio cristão,
individualmente .65
4. A necessidade de pureza (6:12-20)

Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são
lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas. 13Os alimentos
são para o estômago, e o estômago para os alimentos; mas Deus destruirá tanto
estes como aquele. Porém o corpo não é para a impureza, rnas para o Senhor,
e o Senhor para o corpo. uDeus ressuscitou ao Senhor e também nos
ressuscitará a nós pelo seu poder. 15Não sabeis que os vossos corpos são
membros de Cristo? E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e osfaria
membros de meretriz? Absolutamente, não. 16Ou não sabeis que o homem que
se une à prostituta, forma um só corpo com ela? porque, como se diz, serão
os dois uma só carne. uMas aquele que se une ao Senhor é um espírito com
ele. 18Fugi da impureza! Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer, é
fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio
corpo. 19Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que
está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?
20Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso
corpo.

O tema continua sendo a ética sexual, mas Paulo passa dos aspectos
da disciplina da igreja e da imoralidade de certos comportamentos
para uma apresentação magistral da beleza da santidade sexual. As
injunções negativas sobre certas práticas sexuais têm o seu lugar, e as
advertências sobre as conseqüências da desobediência são necessárias.
Mas o aspecto mais atraente de um comportamento sexual
verdadeiramente bíblico está na sus capacidade de fornecer o que Os
Guinness66 chamou de "a base e o equilíbrio para o amor humano -
sua altura, sua profundidade, seu realismo e seu romantismo."
Num mundo imensamente obcecado pelo sexo como panacéia
universal para o vazio de seus habitantes, a advertência de Paulo
chega a nós com uma pungência atual. Uma das muitas pichações nos
muros da cidade de Berkeley, na Califórnia, no fim dos anos 60, dizia:
"O sexo liberta". Muitos cristãos coríntios estavam olhando para essa
mesma direção, talvez sob pressões diferentes e por motivos
diferentes, mas Paulo sentiu-se compelido a apanhá-los em suas
próprias pressuposições. A maior premissa deles era: "Todas as coisas
me são lícitas" (v. 12). Até é concebível que eles estivessem imitando o
próprio Paulo, pois, certamente, essa pode ter sido uma das suas frases
de efeito.67 Mas de qualquer forma, fosse um ditado coríntio ou um
lema de Paulo, precisava ser reinterpretado, assim como a frase de
Agostinho citada freqüentemente: "Ame a Deus e faça o que quiser."
O dilema de Paulo foi acentuado pela presença dos antinomianos
e dos legalistas na igreja de Corinto. Ele estava fadado a lutar contra
os dois lados: se fizesse concessões demasiadas numa direção, daria
muita liberdade ao extremo oposto. Andar no Espírito sempre é
equilibrar-se na corda bamba, entre a licenciosidade e o excesso de
regras e regulamentos.
Outro sentimento que influenciava o mundo de cultura grega no
tempo de Paulo era a atitude estóica para com o corpo, como se ele
fosse a camisa-de-força da alma. Um provérbio grego da época dizia:
"O corpo é uma sepultura." O filósofo Epicteto dizia: "Eu sou uma
pobre alma algemada a um cadáver." Se o corpo humano é assim
denegrido e trivializado, logicamente é possível adotar uma das duas
atitudes mutuamente contraditórias: ou submetemos à sujeição total
e controlamos impiedosamente todos os nossos apetites físicos,68 ou
deixamos que o corpo tenha plena liberdade de ação e satisfaça cada
capricho e fantasia, porque este afinal não tem significado moral
algum e certamente não afeta a alma e o espírito.
Antes de Paulo apresentar uma perspectiva totalmente cristã do
corpo, ele comenta o princípio geral contido no lema: "Todas as coisas
me são lícitas." Paulo vê a necessidade de restringir aquilo que poderia
parecer uma carta branca para o cristão fazer o que quer. Na verdade,
isoladamente, isso se parece muito com uma forte tendência ocidental
que tem se infiltrado na igreja desde o começo dos anos 70: "Faça o que
você tiver vontade de fazer, e se você não tiver vontade, não faça." Tal
atitude, obviamente, precisa de uma base teológica mais sólida.
Se colocarmos lado a lado os versículos 6:12 e 10:23, teremos três
restrições cruciais a esta aparente carta branca. Vale a pena examiná-
las uma a uma, porque Paulo está enunciando princípios para todo o
nosso comportamento diário no mundo, antes de aplicá-los
especificamente à área da sexualidade.
Primeiro, ele declara: nem todas (as coisas) convêm. Certamente é
verdade que o evangelho cristão traz uma mensagem de liberdade,69
mas isso não significa que toda e qualquer coisa seja conveniente ou
aconselhável. Como diz Morris: "Há algumas coisas que não são
expressamente proibidas, mas cujos resultados são tais que elas são
rejeitadas pelo crente."70 Paulo não está satisfeito com um
"denominador comum inferior" para o seu comportamento diário; ele
quer garantir que o que faz é genuinamente conveniente para o seu
testemunho diário diante dos incrédulos, para o seu trabalho na igreja
e para a sua vida diária com Cristo. Assim, Paulo deseja que tudo o
que façamos tenha um resultado positivo em nossas próprias vidas
e nas vidas com que nós cruzamos no dia-a-dia. Tal princípio poderia
ser aplicado com mais proveito em todas as áreas dos relacionamentos
interpessoais, especialmente nas relações com o sexo oposto.
A segunda restrição de Paulo ao lema "todas as coisas me são lícitas"
contém um interessante jogo de palavras, que se capta melhor na
paráfrase de Barclay: "Todas as coisas me são permitidas, mas não vou
permitir que coisa alguma me domine."
Nos capítulos 8—10 veremos Paulo argumentando de modo
apaixonado e persuasivo que a essência da liberdade cristã é a
liberdade, e m o o ser livre; ou seja, trata-se de uma escolha deliberada
de restringir a liberdade pessoal por amor ao evangelho. Na verdade,
o homem que precisa expressar a sua liberdade está escravizado à
necessidade de provar que é um homem livre. O hom em
genuinamente livre não tem nada a provar. De fato, é bem possível
que o jogo de palavras que Paulo emprega aqui aponte uma
importante área de debate entre o apóstolo e os coríntios. Entre 6:12
e 11:10 há dezesseis usos do radical grego em forma verbal (exestin e
exousiazein) ou nominal (exousia).n Ao que parece, Paulo está tendo um
confronto direto com os coríntios sobre a etema questão dos "direitos"
de uma pessoa. Os cristãos de Corinto tinham muita consciência dos
seus direitos e insistiam muito neles, e não gostavam quando Paulo
reagia à altura, ainda que fosse um apóstolo em todos os sentidos. Na
verdade, como vamos descobrir, a realidade da liberdade interior de
Paulo em Cristo proporcionava-lhe a capacidade de renunciar a
quaisquer direitos que ele reivindicasse.72
Na questão específica em jogo, em 6:12, Paulo parece estar dizendo
que nenhum tipo de direito tem valor determinante em sua vida
diária. Essa é uma declaração extremamente revolucionária e indica
um grau de liberdade pouco familiar à maioria dos cristãos, muito
menos ao mundo incrédulo em geral. A tensão constante, em
quaisquer disputas, está nos "direitos" dos envolvidos, quer sejam os
direitos dos trabalhadores, quer dos patrões, dos pais ou da família,
dos negros ou dos brancos, das mulheres ou dos homens, dos pobres
ou dos ricos. Costuma-se afirmar muitas vezes sem que haja
murmúrios de discórdia, que todos nós temos direito a comida, roupa,
casa, educação, assistência médica, férias e, particularmente, um
padrão de vida em constante elevação ou, pelo menos, a salários que
acompanhem o aumento do custo de vida. O cristão geralmente
reivindica esses direitos pessoais sem discutir. Mas será que Paulo não
estaria se recusando a permitir que até mesmo esses direitos,
chamados legítimos, infringissem a sua verdadeira liberdade em
Cristo? Se eu estou constantemente preocupado com os meus direitos,
tal qual os cristãos em Corinto, como posso ser genuinamente livre
para atender ao que o meu Senhor quer que eu faça?73
Os "direitos" de Paulo englobam toda a vida,74 mas ele não vai
permitir que esses "direitos" universais o dominem. Apenas Jesus
Cristo pode fazê-lo, e ele tem pleno direito sobre cada parte da vida
de Paulo.
Quando somos libertados da necessidade de receber ou pelo menos
de reivindicar os nossos direitos, podemos enxergar claramente os
hábitos e as coisas que tendem a nos escravizar. Se descubro algo a que
não posso renunciar, isso se transforma numa violação da minha
liberdade em Cristo: "Pois cada um é escravo daquilo que o domina."75
Muitas dessas coisas não têm significado moral algum; são, quando
muito, moralmente neutras. Algumas delas são simples ocupações,
passatempos, atividades esportivas, lazer, etc. Quando as mantemos
em seus devidos lugares, na devida proporção, elas contribuem para
o nosso bem-estar como indivíduos em Cristo e, conseqüentemente,
para a maneira como refletimos a imagem de Deus. Mas Paulo é firme
em declarar que não renderá o controle de sua vida a qualquer coisa
ou pessoa, a não ser ao "Senhor Jesus Cristo" e ao" Espírito de Deus".
Ele se considera um escravo de Jesus Cristo e por isso não permitirá,
de modo algum, que a sua pessoa ou o seu comportamento sejam
controlados por qualquer outra força. Na verdade, a última frase do
versículo 12 poderia ser traduzida assim: "Eu não serei escravizado
por ninguém."
A terceira restrição de Paulo para as "coisas que me são lícitas"
aparece em 10:23: "mas nem todas convêm". O contexto específico
dessa declaração será examinado mais detalhadamente no devido
momento, mas uma rápida leitura de 1 Coríntios já evidencia que a
preocupação principal de Paulo é que o corpo de Cristo em Corinto
seja edificado, não apenas sobre o fundamento adequado, mas através
do uso sábio de materiais saudáveis.76 A pergunta chave que Paulo
deseja que cada cristão faça a si mesmo constantemente é a seguinte:
"Será que esta ou aquela conduta proposta revela-se construtiva?"
Toda esta seção (6:12-20) é uma das contribuições mais significativas
para a ética sexual cristã, tanto no Novo Testamento como fora dele.
Antes de apresentar sua rica exposição da atitude cristocêntrica em
relação ao corpo (soma), Paulo repudia uma tática diversiva em relação
ao estômago (koilia) - apresentadas, provavelmente, na forma de outra
expressão usada por aqueles que tentavam justificar todas as
indulgências físicas.77Ele ataca abruptamente o lema deles, deixando
claro que não está pensando em estômagos e intestinos de forma
alguma. Há uma diferença enorme entre o alimento, que é digerido
pelo estômago e lançado fora pelo intestino, e o relacionamento
sexual, que afeta a pessoa toda e não pode ser desprezado
levianamente como um fenômeno puramente fisiológico. O apóstolo
conclui esse argumento negativo ou citando um ditado coríntio ou
-
---
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-- J-
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---- -
1--
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---T'.-..- L ...L 1-
---
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aquele (isto é, os alimentos e o estômago). Caberia também aqui a sua


inequívoca declaração aos romanos:78 "O reino de Deus não é comida
nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo."7?
Agora o cenário está armado e Paulo pode desenvolver o seu ponto
de vista sobre o corpo, em contraste com a opinião prevâlecerite entre
os filósofos pagãos e alguns cristãos coríntios ignorantes. Quando
fazemos uma pausa para lembrarmos que a linguagem referente ao
corpo é fundamental em diversos capítulos de 1 Coríntios (por
exemplo, 6,10 e 11,12 e 15) —cada um com uma ênfase diferente na
aplicação - ficamos numa posição melhor para apreciar a teologia de
Paulo. Tais capítulos tratam do propósito prático do corpo (6), o corpo
de Cristo na Santa Ceia (10 e 11), os dons e a variedade no corpo de
Cristo (12) e a ressurreição final do corpo (15). Não nos causa
admiração que se afirme comumente que, entre todas as religiões
principais, não há outra que dê tanta importância ao corpo: a
perspectiva mais óbvia desta verdade é o próprio fato da encarnação.
Essa é a dimensão do compromisso de Deus com o corpo.
Paulo faz cinco declarações poderosas sobre o corpo e, então,
conclui com este tour de force: Acaso não sabeis... que não sois de vós
mesmos? Porquefostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus
no vosso corpò (6:19-20). Lembremo-nos que Paulo se refere aos nossos
corpos físicos, corpos que "ficam cansados e desgastados, que suam,
sangram e vomitam, que ficam barrigudos e perdem o fôlego” (Os
Guihness). "São os nossos corpos", prossegue Guinness, "que são
instrumento para o bem ou para o mal. São os nossos corpos que Paulo
insiste que apresentemos a Deus como sacrifício vivo. Se não forem
expressas em nosso corpo, a obediência ou a desobediência não serão
expressas em nenhum outro lugar. Para o cristão, a obediência é uma
atividade física. Deus não se dirige a nós como se fôssemos apenas
mente, ou emoção, ou vontade, mas como pessoas com corpos. Seu
interesse não está em atos abstratos, como o adultério em teoria, ou
a imoralidade em teoria, mas o seu interesse está na pessoa toda que
pratica tais atos."
As cinco verdades sobre o corpo, apresentadas por Paulo, podem
ser resumidas como segue:

a) O propósito do corpo no Senhor (v. 13).


b) A ressurreição do corpo no Senhor (v. 14).
c) A interação do corpo com o Senhor (vs. 15-17).
d) A habitação do corpo pelo Senhor (v. 19).
e) A redenção do corpo pelo Senhor (vs. 19-20).

Cada uma dessas verdades contradiz a idéia dos contemporâneos


do apóstolo, sendo dignas de um exame mais detalhado.

a) O propósito do corpo no Senhor (13)

Deus tem um propósito para os nossos corpos, e certamente não


devemos ser indulgentes com eles em relação a qualquer tipo de
imoralidade sexual, muito menos ao tipo especial predominante em
Corinto, a prostituição licenciosa. O fato de o próprio Jesus ter
assumido o corpo e o sangue humano prova que o Senhor é para o corpo.
Isso também se destaca pelo fato de que Deus não permitiu que "o seu
Santo visse a corrupção", mas ressuscitou-o dos mortos.80 Prova,
também, que a morte não é o fim do propósito divino para os nossos
corpos. Mais do que isso, "o Senhor é para o corpo”, isto é, o Senhor
é necessário para o funcionamento do corpo. Godet sintetiza assim:
"O corpo é para Cristo, para lhe pertencer e para servi-lo; e Cristo é
para o corpo, para nele habitar e glorificá-lo."81 O restante do trecho
(6:12-20) esclarece melhor o assunto.

b) A ressurreição do corpo no Senhor (14)

O propósito de Deus para os nossos corpos não é absolutamente


desvirtuado pela morte e desintegração. Paulo esclarece melhor este
tema no capítulo 15, mas resume essa verdade extremamente
relevante em 6:14: Deus ressuscitou ao Senhor e também nos ressuscitará
a nós pelo seu poder.82 Alio83 destaca que, no versículo 14, Paulo endossa
a crença judaica na vida após a morte, mas contradiz expressamente
a filosofia grega divulgada por Platão: presumindo que o corpo é parte
integral da personalidade total e indestrutível, ele diz que "Deus nos
ressuscitará", referindo-se especialmente à ressurreição de nossos
corpos. Essa é a dimensão etema do propósito de Deus para o corpo.
Paulo preserva a coerência do ensinamento do Novo Testamento
atribuindo a ressurreição de Jesus à atuação dinâmica de Deus Pai.84
Tudo o que é verdade acerca de Jesus é verdade acerca dos que estão
em Jesus.85 Nossos corpos não são dispensáveis, no sentido final: são
a matéria-prima de uma criação mais gloriosa. Observamos que é o
poder dinâmico (dynameos) do Senhor que garante a ressurreição de
nossos corpos; nenhum outro poder na terra poderia alcançar tal
resultado, ainda que muitas "agências funerárias" tenham um negócio
muito lucrativo congelando defuntos para uma ressurreição posterior.
Incidentalmente, é mais notável ainda que Paulo tenha confiança na
ressurreição do corpo, tanto daqueles coríntios arrogantes e divididos
quanto de sua própria estrutura humana frágil, desgastada pelo
tempo, açoitada, arruinada pela febre, apedrejada e exposta. Se
podemos olhar para os nossos próprios corpos mortais frágeis e dizer
com a mesma certeza: "Eu creio na ressurreição do corpo", somos
realmente filhos da ressurreição.

c) A interação do corpo com o Senhor (15-17)

A amplitude do entrelaçamento entre o corpo humano dos cristãos e


o próprio Senhor é descrito de forma eloqüente na frase do versículo
15: Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? A linguagem
do apóstolo mostra-se extraordinariamente ousada: nossos corpos
físicos são membros de Cristo, e a pergunta retórica de Paulo ("Não
sabeis?") revela como é fundamental esta união com o Senhor
ressurrecto. Essa é a extensão de nossa unidade com Cristo: Aquele qiie
se une ao Senhor é um espírito com ele (v. 17). As duas personalidades se
tornam uma só, tão mescladas que Paulo usa o mesmo vocábulo
(kollomenos = "coladas") tanto para descrever a integração do cristão
com Cristo como para descrever a ação de alguém que se une a uma
prostituta (v. 16).86
O próprio Jesus ensinou esta perfeita unidade entre ele e todos os
que nele crêem .87 Esta linguagem, embora freqüentem ente
considerada mística, também possui sugestões claras de uma união
física e espiritual. Por isso é que Paulo usa o mesmo vocabulário,
especificamente em conexão com o casamento, para descrever o
relacionamento existente entre Cristo (o Noivo) e a igreja (sua Noiva).88
A unidade completa e permanente entre o marido e a mulher indica
com precisão o relacionamento, presente e eterno, entre Cristo e sua
igreja. Dentro do propósito ideal de Deus para o casamento, os
cônjuges cristãos devem ser tão unidos como pessoas que "dois se
tomam um" —o que se expressa na união física da relação sexual. Mas
mesmo se aproximando do plano ideal de Deus, ele é, no máximo,
apenas um indicador (e nesse sentido um "sacramento") da união
perfeita (casamento) entre Cristo e a igreja.
Se os membros físicos de cada cristão realmente pertencem a Cristo,
é inconcebível (como também imoral) abusar do corpo, buscando o
relacionamento sexual com prostitutas. Esse também é o motivo mais
forte para que os crentes não se casem com incrédulos.89 Os membros
físicos de um cristão pertencem a Cristo; os de um descrente não.
Contudo, se um cristão resolve ter relação sexual com uma incrédula,
forma um só corpo com ela (v. 16), de acordo com a verdade fundamental
expressa na afirmação: serão os dois uma só carne.90 Mas é impossível
que tal relação "carnal” seja integrada à relação de "um só espírito"
entre aquele cristão e o seu Senhor (v. 17). Desse momento em diante,
tal crente passa a viver uma vida desintegrada.9'
Alguns comentários de Os Guinness demonstram as implicações
dessa verdade fundamental: "Esse é o ideal que rege todo o restante
da ética sexual cristã nas Escrituras. É o que está por trás de cada
proibição nesta área. Por que os homens não devem dormir com
animais? Por que o adultério é errado? Por que a prática homossexual
é errada? Por que as relações sexuais pré-conjugais são erradas?
Simplesmente porque nesses casos não existe uma verdadeira união
e, portanto, não pode haver a formação de uma só carne. E é
exatamente isso que Paulo está dizendo aqui. Não é que um cristão
coríntio estivesse dormindo com uma prostituta; Paulo poderia
facilmente ter dito: 'Aquele que se une à dona-de-casa bonita do fim
da rua' ou 'Aquela que se une ao atleta bonito do andar de baixo'. Mas
o apóstolo menciona 'aquele' porque em Corinto eram os homens que
tinham a tendência de viver segundo padrões duplos; e ele diz
'prostituta' porque era esse o problema específico naquele lugar. Mas
o verdadeiro problema era uma intimidade sem objetivo, e uma
comunhão sem compromisso." Poderíamos afirmar positivamente
que a virgindade é um dos dons mais criativos, libertadores,
purificadores e belos que podem ser trazidos para o casamento cristão.
Se um dos parceiros não pode apresentar tal contribuição, toda a sua
personalidade está prejudicada, mas não irrecuperavelmente, pois o
poder redentor de Cristo é capaz de tornar novas todas as coisas.
d) A habitação do corpo pelo Senhor (19)

O quarto argumento de Paulo para defender a pureza centralizada em


Cristo é o fato de o Senhor, pelo Espírito Santo, habitar em nossos
corpos. O nosso corpo não é um simples invólucro orgânico de notável
composição: é templo do Espírito Santo. Antes,92 Paulo afirmou que toda
a igreja de Deus em Corinto era templo de Deus, advertindo
seriamente qualquer um que pudesse destruir esse templo. Agora, ele
usa a mesma metáfora para relembrar aos indivíduos cristãos em
Corinto que Deus concedeu a cada um o dom da habitação do seu
Espírito Santo, o qual tendes da parte de Deus. Na passagem anterior, fez-
se uma referência simples ao "Espírito de Deus"; mas aqui o apóstolo
sente-se compelido a enfatizar o chamado à santidade: "o vosso corpo
é santuário do Espírito Santo" (v. 19).

e) A redenção do corpo pelo Senhor (19-20)

O argumento final de Paulo para a pureza baseia-se no preço da


redenção de nossos corpos: Não sois de vós mesmos... fostes comprados
por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo. Antes de
começarem a experimentar a liberdade para a qual Cristo os libertou,
os coríntios encontravam-se na mais servil escravidão. Eram escravos
de si mesmos, de seus desejos egocêntricos, da auto-satisfação e das
paixões físicas.93 Então veio um senhor com os recursos para libertá-
los completamente e pagou o resgate necessário. Eles foram libertos
da futilidade e da servidão de seu estilo de vida anterior. Seus corpos
já não eram como nacos de came expostos para serem vendidos pelo
preço mais alto conseguido no mercado de escravos, ou colocados à
disposição de uma prostituta cultual sob o pagamento de um
honorário.94 Tinham sido comprados por um preço e agora pertenciam
a um novo senhor. Agora, o que importava eram as ordens desse novo
senhor, e não suas próprias fantasias ou fraquezas. Esse senhor
desejava que cada faculdade física de seus servos expressasse a glória
de Deus. Longe de desprezar seus corpos, marcados como estavam
por todo tipo de degradação e indisciplina do pecado, ele estava
interessado em fazer brotar, de dentro para fora, "a redenção dos seus
corpos".95 Carne e sangue, particularmente a carne e o sangue
dissolutos, jamais poderiam herdar o reino de Deus;96 mas o poder do
seu amor redentor poderia completar - e completaria - a obra que o
Espírito Santo já havia começado.
Por isso, urge que aprendamos do Espírito de Deus o que significa
glorificar a Deus em nossos corpos: não devemos alcovitá-los, justificá-
los ou tratar com leviandade as muitas fortes tentações no sentido de
abusar deles. Paulo ordena energicamente aos coríntios que fujam de
dois pecados: da imoralidade (6:18) e da idolatria (10:14). José precisou
fugir dos ataques sexuais da esposa de Potifar.97 Os cristãos atualmente
não precisam ser cidadãos de Corinto, nem atraentes visitantes das
cortes egípcias opulentas e amorais, para descobrirem a sabedoria
prática de fugir das tentações quando elas lhes são fortes demais.
Este, entretanto, é o aspecto negativo (embora necessário) da pureza
centralizada em Cristo. A última palavra de Paulo sobre o assunto é
muito mais desafiadora e positiva: glorificai a Deus no vosso corpo.
Deixemos para Godet o comentário final sobre este chamado à pureza:
"Revelemos positivamente, no uso do nosso corpo, a glória e,
especialmente, a santidade do Mestre celestial que de nós tomou
posse."98 A visão poética do salmista compõe o epílogo perfeito:

Pois tuformaste o meu interior,


tu me teceste no seio de minha mãe.
Graças te dou, visto que por modo assombrosamente
maravilhoso me formaste;
as tuas obras são admiráveis,
e a minha alma o sabe muito bem;
os meus ossos m o te foram encobertos,
quando no oculto fui formado,
e entretecido como nas profundezas da terra.
Os teus olhos me viram a substância ainda informe,
e no teu livro foram escritos todos os meus dias,
cada um deles escrito e determinado,
quando nenhum deles havia ainda."

Notas:
1. Lv 18:8; D t 22:30; 27:30.
2. Bruce, pág. 53.
3. M orris, pág. 69.
4. Segundo M orris, mas não de acordo com Barrett (pág. 121).
5. Cf. Cícero, Pro Cluentio 5.14, "um crim e incrível; um crim e, além do mais,
com pletam ente desconhecido com exceção deste caso particular".
6. H odge, pág. 81.
7. G odet, I, pág. 242.
8. H odge, pág. 83.
9. M t 18:18. '
10. A t 5 :l - l l .
11. 1 Tm 1:20.
12. Cf. Jó 2:5.
13. 2 Co 12:7.
14. Bruce considera que "talvez essa palavra forte 'destruição' indique mais que
um a sim ples aflição ou enferm idade" (pág. 55). M orris crê que Paulo tinha
em m ente um processo de ficar tão totalmente abandonado à "carne" (usada
no seu sentido paulino, isto é, a natureza inferior do hom em ) que resultaria
em com pleta repulsa e conseqüente rejeição de tal concupiscência da carne.
15. Tanto M orris como Bruce consideram difícil im aginar que tais resultados
realm ente sigam -se a um a excomunhão.
16. Cf. 1 Co 3:11-15.
17. Cf. Hb 6:4-6.
18. 1 Tm 1:20.
. 19. Cf. Ê x 12. .
20. Na Bíblia, o fermento é normalmente usado em referência a alguma coisa ruim
que afeta tudo o que toca (por exemplo, GI 5:9). A exceção se encontra em duas
parábolas de Jesus, quando ele descreve o bom efeito do reino dos céus (M t
13:33; Lc 13:20-21).
21. Bruce, pág. 90.
22. H odge escreve (pág. 87): "Assim como o sangue do cordeiro aspergido sobre
os umbrais das portas garantia isenção do golpe do anjo destruidor, o sangue
de Cristo garante isenção do golpe da justiça divina. Cristo foi morto 'por nós',
no m esm o sentido que o cordeiro pascal era morto pelos hebreus. Foi uma
m orte vicária. Uma vez que Cristo m orreu para nos rem ir de toda a
iniqüidade, se continuam os vivendo no pecado, não só vam os contra o
objetivo de sua morte, como também damos uma prova de que não estamos
interessados em seus benefícios."
23. O provérbio "Um pouco de fermento leveda toda a massa" simboliza a noção
de que a perm anência de um transgressor dentro da com unidade torna
culpada da transgressão a própria com unidade". (G. A ngel, D icionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol. 3, Vida Nova, 1983, pág. 73).
24. G odet, I, pág. 266.
25. H odge, pág. 88.
26. Cf. Jo 3:19-21.
27. A palavra eilikrineia é usada cinco vezes no Novo Testamento; quatro das quais
são diretamente aplicáveis aqui. Primeiro, todas as nossas palavras devem ser
honestas e francas (2 Co 2:17). Segundo, na área do pensamento, devemos estar
abertos a novas idéias, estando preparados para penetrar com a nossa mente
em assuntos que talvez pareçam perigosos (2 Pe 3:1). Terceiro, todo o nosso
com portam ento, tanto na igreja como no mundo deve ser cheio da graça de
Deus (2 Co 1:12). Quarto, isso servirá para moldar o nosso caráter com vistas
ao D ia de Cristo (Fp 1:10).
28. O verbo grego está no presente contínuo.
29. G odet, I, pág. 266.
30. Barrett, pág. 132.
31. Citado por M arlin Jeschke em Discipling the Brother (Herald Press, 1972), pág.
76.
32. R. Padilla, The Neiv Face o f Evangelicalism (Hodder & Stoughton, 1976), págs.
212-213.
33. Jo 17:15.
34. Barrett, pág. 131.
35. M orris, pág. 73.
36. M t5:22.
37. Cf. 2 Pe 2:9-22.
38. M t 5:13-14.
39. Lc 7:34.
40. Cf. 1 Co 9:19-23; 10:27.
41. M t 7 :l.
42. C f.R m 2:1-11.
43. Barrett, pág. 133.
44. H á quem pense que a pessoa descrita neste capítulo foi levada finalm ente ao
arrependimento, à restauração, tendo sido readmitida à plena com unhão por
m eio da firm e disciplina que Paulo advoga nesta passagem (cf. 2 Co 2:5ss.).
A lguns detectam uma referência semelhante a este caso em 2 Co 7:6-13. M as
é discutível se qualquer uma dessas duas passagens se refere a esta crise em
Corinto.
45. 1 P e 2:9-10.
46. O parágrafo que trata da lei (6:1-8) será examinado separadamente no capítulo
6 deste livro.
47. Por exem plo, M orris (pág. 68) e Barrett (pág. 140).
48. Isto é, Rm 14:17; 1 Co 4:20; 6:9; 15:24,50; G 15:21; E f 5:5.
49. A t 28:30-31.
50. Cf. Lc 4:43.
51. M orris, pág. 77.
52. Cf. Jo 3:1-6.
53. I P e 1:3-4.
54. A p 22:15.
55. Cf. G1 6:7ss, E f 5:6; Cl 3:5-6.
56. M orris, pág. 77.
57. Barclay, pág. 59.
58. B arrett, pág. 140.
59. Cf. Jo 5:22-27.
60. Cf. H b 7:25.
61. John Pollock, A m azing Grace (H odder & Stoughton, 1981).
62. Barclay, pág. 60.
63. Cf. capítulo 10.
64. Godet, I, pág. 297.
65. Cf. Tt 3:3-7.
66. Em um serm ão na Igreja de St. A ldate, em O xford, dezem bro de 1979.
67. Ele virtualm ente adm ite isso aqui e em 10:23.
68. Cf. a concessão do próprio Paulo em 9:27.
69. Cf. G 15:lss.
70. M orris, pág. 79. .
71. A s traduções portuguesas refletem a variedade do grego: líc ita s /p o d e r/
dom ínio/liberdade/direito/autoridade. As referências são 6:12; 7:4; 7:37; 8:9;
9:4-6; 9:18; 10:23; 11:10.
72. Cf. especialm ente 9:12.
73. Um exemplo perfeito dessa necessidade de preservar a própria liberdade para
se colocar sob o Senhorio de Jesus em cada situação encontra-se em 7:3-5, onde
os direitos conjugais do marido sobre o corpo de sua esposa (e vice-versa) são
especificam ente subjugados a um chamado ocasional de D eus para oração
especial.
74. Cf. 3:21-22: "Porque tudo é vosso... seja a vida, seja a m orte, sejam as coisas
presentes, sejam as futuras".
75. 2 Pe 2:19, BLH.
76. Cf. 3:11-15.
77. Bruce (pág. 63): "Isto talvez também fizesse parte do argumento libertino: se
o alim ento e o estôm ago vão igualm ente desaparecer um dia, por que lhes
atribuir um a im portância religiosa — ou, no caso, às relações sexuais? Paulo
concorda que o alimento e a bebida e coisas parecidas 'com o uso, se destroem'
(Cl 2:22); com respeito a elas a consciência do cristão não fica sujeita ao
julgamento humano (Rm 14:3; Cl 2:16). Mas as relações sexuais são totalmente
diferentes: elas afetam a personalidade das partes envolvidas, enquanto o
alimento não afeta. Jesus contrastou o alimento que 'de fora entra no hom em '
e 'não pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre', com
aquelas coisas m alignas que 'vêm de dentro e contam inam o hom em ' (M c
7:18-23)."
78. Rm 14:17.
79. Ao m esm o tem po precisam os nos lem brar da tristeza de Paulo ao escrever
aos filipenses (3:18-21) sobre m uitos cristãos que estavam vivendo com o
"inimigos da cruz de Cristo", exatamente porque "o deus deles é o ventre" (gr.
koilia, com o em 1 Co 6:13). Tais cristãos talvez fossem sem elhantes aos que
despertaram a apaixonada explosão de Paulo nesta carta. Em sua resposta
aos hereges filipenses, Paulo efetivamente apresenta a mesma distinção entre
o ventre e o corpo de Cristo. Tam bém é m uito possível que, pela glutonaria
ou b ebedice, a pessoa adore o alim ento e a bebida; m as o resultado m ais
im portante dessa desobediência é o excesso de indulgência que ignora
totalm ente nossa vocação mais importante, a qual Paulo assim descreve: "O
Senhor Jesu s Cristo... transform ará o nosso corpo de hum ilhação, para ser
igual ao corpo da sua glória."
80. Cf. A t 2:22-32; 13:27-37.
81. G odet, I, pág. 307.
82. Cf. Rm 8:11; 2 Co 4:14.
83. A lio, pág. 145.
84. Cf. A t 2:24,32; 3:15,26; 4:10; 5:30, etc.
85. Cf. 1 Co 15:20ss.
86. A palavra com posta proskollaom ai é usada na Septuaginta em G n 2:24 para
descrever o hom em "apegando-se" à sua mulher.
87. Cf. Jo 17:20ss.
88. E f 5:21ss.
89. Cf. 2 C o 6:14ss.
90. G n 2:24.
91. C. F. D. M oule (An Idioni Book o fN ew Testament Greek, pág. 196) sugere que a
frase "qualquer outro pecado que um a pessoa com eter, é fora do corpo" (v.
18) era outro ditado dos coríntios, dando a entender que a concupiscência física
não pode afetar a personalidade real dos "iniciados". Pelo contrário, diz Paulo,
se um cristão com ete fornicação, é exatam ente a sua personalid ad e que é
prejudicada. Godet diz que "o homem imoral peca contra o seu corpo que terá
na eternidade". Presum im os que ele quer dizer que, de algum m odo
indescritível, o cristão que fornica põe em perigo ou prejudica a pessoa que
está destinada a ser depois da ressurreição. Com o A lio (pág. 149) explica:
"Nosso corpo foi chamado para a glória eterna como m em bro de Cristo; não
há nada que prejudique tão diretam ente a dignidade pessoal, a honra, a
nobreza de nosso corpo do que torná-lo m em bro de um a prostituta,
reduzindo-o à escravidão, a um a condição onde é entregue a prazeres que
são transitórios e vulgares."
92. 1 Co 3:16-17.
93. Cf. E f 2:3; R m 6:20; Jo 8:34.
94. Já se sugeriu (H éring, seguido por Ruef, pág. 51) que Paulo tinha em m ente
o preço pago à prostituta, em troca dos seus favores. O preço seria, então, a
adoração da divindade do templo (A frodite), e os resultados d evastadores
de tal com portam ento com prostitutas cultuais seria idolatria além de
im oralidade. R u ef argum enta que Paulo está advertindo os coríntios da
seguinte maneira: "Vocês foram comprados (por Deus), portanto o seu corpo
p ertence a ele e o serviço que ele exige é a sua glorificação." Com o o próprio
Ruef admite: "Esta não é uma maneira muito delicada de expor o assunto, mas
os coríntios provavelm ente não eram pessoas m uito d elicad as."
95. Cf. Rm 8:23.
96. 1 Co 15:50.
97. Cf. G n 39:6ss.
98. G odet, I, pág. 314.
99. SI 139:13-16.
1 Coríntios 6:1-8
6. Soluções Fora dos Tribunais

Aventura-se algum de vós, tendo questão contra outro, a submetê-la a juízo


perante os injustos e não perante os santos? 2Ou m o sabeis que os santos hão
dejidgar o mundo? Ora, se o inundo deverá ser julgado por vós, sois acaso
indignos de julgar as coisas mínimas? 3Não sabeis que havemos de julgar os
próprios anjos; quanto mais as coisas desta vida? 4Entretanto, vós, quando
tendes a julgar negócios terrenos, constituís um tribunal daqueles que não têm
nenhuma aceitação na igreja! bPara vergonha vo-lo digo. Não há, porventura,
nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade?
6Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos?7O
só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que
não sofreis antes a injustiça? por que não sofreis antes o dano? 8Mas vós
mesmosfazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos próprios irmãos.

A primeira vista, esses versículos parecem uma interpolação aos


incisivos comentários de Paulo sobre a moralidade sexual, que de fato
prosseguem sob uma perspectiva diferente no capítulo 7. Existe,
entretanto, um encadeamento importante que explica a mudança de
assunto para o litígio entre cristãos.1 Já vimos que os coríntios eram
presunçosos, competitivos e dogmáticos. Eles se preocupavam a
maior parte do tempo com os seus direitos. Seus direitos virtualmente
assumiram o lugar da redenção como a motivação principal de sua
vida em conjunto. Em resultado disso, eram extremamente sensíveis
quando alguém infringia seus direitos ou inibia sua liberdade.
Inevitavelmente, isso levava a ressentimentos mútuos, e tais
ressentimentos podiam ser alimentados infinitamente. Ir aos tribunais
envolvia, como ainda hoje, um processo demorado e dispendioso, que
em nada melhorava os relacionamentos dentro do corpo de Cristo.
Mas quando um grupo de cristãos se torna obcecado pelos seus
direitos, em lugar de suas responsabilidades, surgem problemas
incalculáveis até que cheguem ao verdadeiro arrependimento.
Em Corinto, o método dos partidários da "liberdade" consistia em
reivindicar direitos aqui, ali e em toda a parte: no casamento, na
questão das leis dietéticas, na ética comercial, nos relacionamentos
informais, no culto público, no exercício dos dons espirituais e até
mesmo nas áreas específicas da doutrina cristã elementar. "Por que eu
não faria o que quero?", era essa a sua reivindicação desafiadora.
O grupo dos ascetas e legalistas apegava-se inflexivelmente ao
método seguro, previsível e sem riscos. Em se tratando de levar as
desavenças aos tribunais seculares, seus vínculos com o costume
judaico deveriam tê-los condicionado a um sentimento de repulsa só
de pensar no assunto: "Era costume dos judeus resolver as dissenções
sem sair da própria comunidade judaica, e havia também outros
grupos sociais e religiosos, gregos e romanos, que seguiam a mesma
prática."2 Barclay3 faz uma fascinante descrição do apego que os gregos
tinham ao litígio. As citações abaixo resgatam o espírito da época: "Os
gregos se caracterizavam por ser um povo naturalmente litigioso. Os
tribunais eram de fato um de seus divertimentos e passatempos
principais... Numa típica cidade grega todos os homens eram mais ou
menos advogados e passavam grande parte do tempo decidindo casos
legais ou se envolvendo com eles. Os gregos eram de fato famosos, ou
notórios, pelo seu apego à lei. Obviamente alguns gregos
introduziram suas tendências litigiosas na igreja cristã; e Paulo sentiu-
se abalado com isso." Em outras palavras, o hábito de os cristãos de
Corinto buscarem o litígio não era, em essência, nada diferente de sua
assimilação da frouxidão sexual coríntia: novamente o mundo invadia
a igreja.
A prática de os cristãos levarem uns aos outros aos tribunais havia,
provavelmente, se tornado um hábito regular em Corinto. Uma ou
duas ocorrências dificilmente teriam despertado a ira de Paulo com
tanta força. É bem possível que o notório caso de incesto, registrado
no capítulo 5, também tenha sido levado aos tribunais.
Pode haver um outro motivo para Paulo despender tempo, a esta
altura da carta, tentando acabar com o espírito litigioso na igreja de
Corinto. Se os direitos eram uma das obsessões dos coríntios, a outra
era o julgamento. O radical do vocábulo grego krinein aparece em seus
cognatos mais de quarenta vezes na carta, e oito vezes nos oito
primeiros versículos deste capítulo. A combinação da defesa dos
direitos pessoais com o julgamento dos outros é uma das mais
insidiosas tendências na igreja de Deus. Os dois males devem ser
transcendidos pela redenção que é nossa em Jesus Cristo. Os direitos
deram lugar à reconciliação e à mútua responsabilidade; o julgamento
foi sepultado com Cristo, como uma das características mais
destrutivas e odiosas de nossa natureza inferior não remida. Dentre
tudo o que Paulo pregara em Corinto acerca de Jesus Cristo e este
crucificado, estas duas lições importantíssimas simplesmente não
haviam sido assimiladas.
O mesmo espírito litigioso freqüentemente permeia a igreja no
século XX. Nos anos 70, a comunidade cristã internacional foi ferida
e envergonhada por uma ação desse tipo entre duas agências
envolvidas no trabalho missionário. Finalmente, tudo foi resolvido
sem que houvesse a necessidade de concluir o processo legal. As
instruções de Paulo, se tivessem sido seguidas, teriam evitado que o
desacordo chegasse aos tribunais.
É preciso fazer mais um comentário geral sobre a atitude de Paulo
para com as autoridades legais contemporâneas, antes de
examinarmos os detalhes dos seus ensinamentos. Por mais inflexível
que Paulo seja aqui acerca da indecência de os cristãos levarem uns
aos outros aos tribunais, o livro de Atos dos Apóstolos evidencia que
ele considerava plenamente correto e importante (para si mesmo e
para seus colegas) insistir que as pessoas em posição de autoridade
têm a responsabilidade de administrar a justiça com integridade e
coerência.4
Paulo apelou à justiça romana, mas nunca em questões entre
irmãos, nem com o propósito de acusar os seus companheiros judeus:5
apenas em defesa de sua obra como ministro do evangelho. Ele cria
basicamente nos direitos e nas responsabilidades dadas por Deus
àqueles que ocupam uma posição de autoridade;6 mas também cria
que, como cidadão, ele se encontrava sob a obrigação divina de insistir
com as autoridades para que agissem dentro dos limites do seu ofício,
a fim de que a justiça prevalecesse.7Portanto, é importante entender
que a explosão de Paulo contra os coríntios, que levavam suas
desavenças aos tribunais, nada tinha a ver com qualquer falta de
confiança na integridade ou na competência dos tribunais. Há tempo
e lugar para todas as coisas, mas (no entender de Paulo) os cristãos não
devem jamais ir aos tribunais uns contra os outros. Chamar os juizes
de injustos (adikoi, v.l), aqueles que não têm nenhuma aceitação na igreja
(v.4) e incrédulos (v.6) no espaço de poucos versículos talvez pareça um
exagero ou uma espécie de preconceito. Mas, em cada caso, Paulo
salienta que, na verdade, a comunidade cristã possui dentro de si os
recursos necessários para resolver quaisquer problemas dessa
natureza. Os coríntios tinham uma atitude totalmente errada para com
seus fracassos, seu destino, seus recursos e sua vocação. Por isso,
Paulo os chama à realidade.
1. Vocês estão fazendo alarde de seus fracassos (6:1)

"Vocês estão lavando roupa suja em público." Os de fora rapidamente


se arremetem sobre a menor incoerência do cristão ou da igreja; daí
os escândalos com os clérigos serem uma "matéria" tão atrativa para
os jornais. Naturalmente isso não é motivo para varrermos toda a
sujeira para debaixo do tapete, fingindo que os cristãos são todos
maravilhosamente santos. Mas há lugar para uma discrição piedosa
e um devido sentimento de vergonha diante dos fracassos de nossos
irmãos em Cristo. Por isso o protesto de Paulo: "Aventura-se... a
submetê-la (a questão) a juízo?" A palavra grega para o verbo grifado
ocorre logo no começo da sentença (e do parágrafo), destacando o
sentimento de indignação do próprio Paulo, ao saber que um irmão
na fé podia ser tão presunçoso. Quanto aos dois termos, os injustos (ton
adikon) e os santos (ton hagion) não têm conotação moral ou
confessional.

2. Vocês estão se esquecendo do seu destino (6:2-4)

Em um dos diversos exemplos (seis, neste capítulo) em que Paulo faz


a pergunta retórica: "Não sabeis...?”, ele desafia os cristãos a se
lembrarem das responsabilidades que terão quando o reino de Deus
for totalmente estabelecido. O fato de o apóstolo enfatizar isso revela
a natureza básica dessa doutrina. Apesar de tudo o que Paulo m o fora
capaz de ensinar aos coríntios por causa da sua enorme imaturidade,8
pôde ensinar-lhes os fatos elementares acerca da vinda e do
cumprimento do reino de Deus.
Sem dúvida, os ensinamentos recebidos do próprio Jesus
formavam a espinha dorsal dessa catequese.9 Não é difícil identificar
as passagens dos evangelhos das quais o escritor deve ter formulado
esta perspectiva escatológica sobre o futuro papel dos "santos" na
nova dispensação. Por exemplo, quando Simão Pedro estava
começando a sentir o peso do discipulado, depois da quase abrupta
rejeição do jovem rico, pergunta: "Eis que nós tudo deixamos e te
seguimos: que será, pois, de nós?" Ao que Jesus respondeu: "Em
verdade vos digo que vós os que me seguistes, quando, na
regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória,
também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de
Israel."10
Ao longo de todo o Novo Testamento, é amplamento alardeado que
os cristãos serão ressuscitados para partilharem, com Cristo, de toda
a realidade de sua vida ressurrecta.11 Contudo, é provável que a maior
fonte dos ensinamentos de Paulo seja uma passagem do livro de
Daniel, que descreve um sonho particularmente vívido. Vale a pena
citar alguns versículos de todo esse capítulo, para que percebamos
como é substancial a perceção do próprio Paulo sobre o reino de Deus.

Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de dias se
assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça como a pura
lã; o seu trono era chamas de fogo, cujas rodas eram fogo ardente. Um rio de
fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríade
de miríade estavam diante dele; assentou-se o tribunal, e se abriram os livros...
e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-
se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio e glória,
e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem;
o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será
destruído... Mas os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para
todo o sempre, de eternidade em eternidade... depois se assentará o tribunal...
O reino e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu, serão dados
ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os
domínios o servirão e lhe obecederão.12

A grandeza absoluta desta perspectiva da consumação do reino de


Deus e a parte a ser desempenhada pelos "santos", tais como aqueles
coríntios briguentos, deviam fazer Paulo estremecer sempre que se
lembrava da situação em Corinto; tal como Daniel,13ele devia declarar:
"Aqui termina o assunto". Como, em nome do Deus Altíssimo, aqueles
indivíduos em Corinto podiam se rebaixar tanto? Não sabeis que os
santos hão de julgar o mundo? Tudo se tomava grotesco, se não blasfemo,
quando eles iam aos tribunais por causa de coisas mínimas (uma
expressão que encontra o seu paralelo na instituição legal das
"pequenas causas").
Mas Paulo ainda não terminou. Os cristãos em Corinto tanto se
esqueceram do seu destino no reino de Deus, que não perceberam que
até os anjos estarão sentados no banco dos réus. De que valem, pois,
tantas discussões sobre "as coisas desta vida"? Os anjos têm um difícil
papel a cumprir no melhor dos tempos. Eles despendem toda a sua
energia para adorar no céu e servir aos santos,15 mas têm imensa
dificuldade em entender as glórias da salvação. Na verdade, Pedro os
imagina espiando a terra lá dos céus, na tentativa de penetrar nos
mistérios do que significa ser remido.16De um modo geral, porém, "a
multiforme sabedoria de Deus", vista nas "insondáveis riquezas de
116
Cristo", está além do alcance dos "principados e potestades".17 É tarefa
do povo remido de Deus, incluindo a igreja em Corinto, comunicar
a sabedoria divina aos seres angelicais.
Como Paulo já havia explicado,18 essa sabedoria está em "Jesus
Cristo e este crucificado", e há anjos caídos que não toleram esse fato.
Foi o orgulho que originalmente os lançou fora do reino de Deus, e eles
continuam aguardando o julgamento divino por causa dessa
rebeldia.19 "Cristãos coríntios, vocês não sabem que vamos julgar
aqueles anjos? Como puderam esquecer uma doutrina cristã tão básica
e mergulhar nas profundezas da vergonha de julgar uns aos outros?"20
Essa dupla perspectiva da co-responsabilidade de Cristo e do
cristão no julgamento, tanto dos homens como dos anjos, em questões
de significado eterno, lança uma luz inteiramente nova sobre o prazer
que os coríntios tinham em defender os seus direitos e julgar uns aos
outros com espírito arrogante e voraz. Embora possa denotar certo
exagero, o método de Paulo é inegavelmente impressionante.
Ao designar os magistrados de Corinto como aqueles que não têm
nenhuma aceitação na igreja (v. 4), Paulo está dizendo aos cristãos: "se
tudo será assim em relação aos destinos espirituais dos homens e das
mulheres na eternidade, certamente vocês podem resolver os seus
próprios negócios no mundo e acertar qualquer disputa interna, sem
recorrer a homens, a quem, naquele grande Dia, vocês mesmos irão
julgar. Sim, vocês estão se esquecendo do seu destino." Talvez Paulo
até se permitisse dar um sorriso de satisfação ao pensar na notável
inversão que haverá quando Jesus se revelar como Rei, na plena
consumação do reino de Deus.
Alguns comentaristas sugerem que Paulo desejava que os membros
de menor bagagem intelectual e os mais obtusos da comunidade cristã
fossem encarregados dessa tarefa: "Por que vocês não os colocam
diante dos menos estimados na igreja?" (esta é uma tradução possível).
A provável intenção de Paulo é inverter deliberadamente os padrões
coríntios que determinavam quem era realmente importante numa
comunidade, fosse ela cristã ou secular. A palavra traduzida por
aqueles que não têm nenhuma aceitação foi usada anteriormente21 para
denotar "as coisas desprezadas" ou "reconhecidas como nulidades".
Com uma rápida referência, Paulo poderia estar condenando os
coríntios, e muitos cristãos da atualidade, pelo que pensavam sobre
quem é importante para Deus. Uma das atitudes mais traiçoeiras e
comuns entre os cristãos evangélicos é a valorização das "pessoas de
destaque". Empregaam-se proporcionalmente muito mais tempo,
energia, imaginação, dinheiro, orações e empenho a fim de ganhar
para Cristo os homens influentes, os líderes naturais e os bem-
sucedidos, e quase invertemos o próprio padrão e a prioridade do
ministério de Jesus.
Os cristãos de Corinto provavelmente consideravam que os
magistrados locais eram homens importantes, cuja amizade precisava
ser cultivada por motivos egoístas. Paulo rejeita tal atitude: "Ao
aceitarem os padrões de Cristo, os cristãos deliberadamente puseram
de lado os padrões do mundo."22 Uma das camisas-de-força mais
apertadas que imobilizam a maior parte do cristianismo evangelical
no mundo ocidental de hoje é a sua natureza suburbana, de classe
média. A fascinante verdade que se contrapõe a isso, de uma
perspectiva global, é aquele cristianismo bíblico que hoje floresce com
mais evidência em países, continentes e culturas menos afetados pela
síndrome da "gente importante".

3. Vocês estão desviando os seus recursos (6:5-6)

O sentimento de indignação de Paulo assume agora um traço de


ironia. Os coríntios eram muito convencidos de sua sabedoria; mesmo
assim, era aparentemente impossível descobrir um cristão sábio que
pudesse julgar no meio da irmandade (v. 5). Paulo acreditava que cada
igreja estava provida de tudo o que era necessário para a expressão
do amor de Cristo. Ele lhes fizera lembrar que, como igreja, tinham
sido "enriquecidos nele, em toda palavra e em todo o conhecimento".23
Cristo habita na igreja e ele é a própria sabedoria de Deus, a quem
Deus transformou em fonte de vida.24 Se tal sabedoria, contida na
igreja em Corinto, não podia ser mobilizada para resolver algumas
dificuldades pessoais, então aqueles cristãos certamente precisavam
voltar à cartilha.
Sempre que os relacionamentos pessoais dentro do corpo de Cristo
ficam abalados, é importante identificar e usar os membros da
congregação que são especialmente dotados para introduzirem na
situação a sabedoria de Deus. Poucas coisas prejudicam mais o
testemunho de uma igreja do que relacionamentos quebrados. Sempre
haverá desentendimentos entre os cristãos, mas a disciplina com que
Jesus trata de tais assuntos25 exige uma obediência mais completa.
Geralmente os melhores agentes catalisadores para a cura de
relacionamentos quebrados são aqueles que têm corações prontos
para escutar e paciência para ouvir os dois lados até o fim. Tais
membros têm, "mediante o Espírito, a palavra da sabedoria".26
4. Vocês estão traindo sua vocação (6:7-8)

A traição da vocação está implícita no modo como os coríntios


estavam tratando uns aos outros. Eles haviam sido chamados para
serem santos,27 para partilhar do próprio Cristo,28 para conhecer em
Cristo o poder e a sabedoria de Deus,29para envergonhar os sábios e
os fortes pela simples qualidade diáfana de sua vida comunitária30—
e ali estavam eles, vivendo vidas derrotadas, comportando-se como
pagãos não convertidos e se entregando a tentações básicas, como
ressentimentos e ganância. Alguns cristãos, sem dúvida, estavam
ganhando causas nos tribunais às expensas de outros, mas: o só existir
entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Como Morris
expõe: "Ir a juízo com um irmão já é incorrer em derrota, seja qual for
o resultado do processo legal."31
Há um procedimento muito melhor, que representa a verdadeira
vocação da igreja cristã: aqueles que foram realmente defraudados ou
sofreram alguma injustiça devem aceitar isso sem amargura. O
ensinamento de Jesus é claro: "Ouvistes que foi dito: Olho por olho,
dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao perverso; mas
a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e ao
que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a
capa."32 A idéia deste ensinamento se aplica especificamente às
disputas entre irmãos em Cristo: "Acautelai-vos. Se teu irmão pecar
contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. Se por sete
vezes no dia pecar contra ti, e sete vezes vier ter contigo, dizendo:
Estou arrependido, perdoa-lhe."33 Não foi por menos que os apóstolos
reagiram imediatamente, pedindo: "Aumenta-nos a fé!"34
Os cristãos de Corinto haviam se afastado tanto do caminho do
perdão e da aceitação das injustiças praticadas pelos irmãos na fé, que
estavam na realidade praticando injustiças e defraudando uns aos
outros. A palavra injustiça refere-se a injustiças de um modo geral;
dano, a prejuízos materiais. De modo que a reputação e os bens
pessoais já não eram considerados sacrossantos na comunidade cristã.
Eles tinham se afastado tanto da realidade sobrenatural do amor
mútuo no amor de Cristo, que estavam desprezando deliberadamente
os padrões normais da ética social e comercial. Alio35 considera que
a linguagem de Paulo indica que essa flagrante má conduta já se
tomara comum na igreja de Corinto. Não é de se estranhar que
possamos “sentir a tristeza de Paulo", nas entrelinhas de toda a
linguagem legal e das declarações concretas deste pequeno
parágrafo.36
Notas:
1. Alio (pág. 132) acredita que o velho pecado da ganância (pleonexia) era a causa
principal de todo o litígio que prevalecia na igreja de Corinto. O desejo de
obter o m áxim o possível está tão enraizado em nossas naturezas pecadoras,
que talvez ele tenha razão. Em vez de estarem dispostos a abandonar todos
os direitos que tivessem sobre determinada propriedade ou bem , os cristãos
estavam se apegando com todas as forças a qualquer coisa que rem otam ente
estivesse dentro dos seus direitos.
2. Barrett, págs. 135-136.
3. Barclay, págs. 55-56.
4. Cf. A t 28:19.
6. Cf. Rm 13:1-7.
7. Cf. A t 16:37; 24:24.
8. Cf. l C o 3 :l s s .
9. Paulo refere-se a essas "tradições" em 11:2; 23; 15:3.
10. M t 19:27-28.
11. Cf. Rm 6:4ss; E f 2:4ss; A p 20:4-6.
12. D n 7:9-27.
13. D n 7:28.
14. A p 5:11-12.
15. -H b 1:14.
16. 1 Pe 1:12.
17. E f 3:8-10.
18. 1 Co 2:1-2.
19. Cf. 2 Pe 2:4; Jd 6.
20. H odge (pág. 95) pensa que o uso da palavra "julgar" em to d o e s te parágrafo
tem o sentido mais amplo de "presidir", isto é, não necessariam ente de
condenar pessoas (e anjos) pelo erro, mas indicar, de um m odo geral, aquele
que governa. Ele cita exemplos do Antigo Testamento: "Um a vez que os reis
eram sem pre juizes, e, por outro lado, a administração da justiça era um a das
principais funções do seu cargo, governar e julgar são nas Escrituras termos
m uitas vezes intercam biáveis."
21. 1 Co 1:28.
22. M orris, pág. 76.
23. 1 C o 1:5.
24. Cf. 1:24,30.
25. Cf. M t 18:15-17.
26. 1 Co 12:8.
27. 1:2.
28. 1:9.
29. 1:24.
30. 1:27.
31. M orris, pág. 76.
32. M t 5:38-40.
33. Lc 17:3.
34. Lc 17:5.
35. A lio, pág. 137.
36. A lio, pág. 136.
1 Coríntios 7:1-40
7. Casamento e Celibato: Dons de Deus

Quanto ao que me escrevestes, é bom que o homem não toque mulher.

Paulo começa a lidar com as questões específicas contidas na carta


recebida de Corinto. Provavelmente ele a tem aberta diante de si
enquanto dita a resposta. A expressão quanto a parece indicar os
assuntos específicos: casamento e divórcio (7:1), virgindade (7:25),
alimentos oferecidos a ídolos (8:1), dons espirituais (12:1), a oferta para
a igreja em Jerusalém (16:1) e Apoio (16:2). Bruce acredita que outras
pergu ntas d o s coríntios também foram respondidas nos capítulos 7
a 16, "embora a discussão delas não seja introduzida com essa
fórmula."1
Nesses capítulos, Paulo caminha habilmente entre os excessos
gêmeos da licenciosidade e do legalismo, da libertinagem e do
ascetism o. A versão mais pronunciada da segunda dupla
provavelmente se resume na frase de efeito em 7:1: é bom que o homem
não toque mulher. Barrett2 acrescenta que a formação judaica do próprio
Paulo teria imediatamente lhe trazido à mente a réplica de Gênesis:
"Não é bom que o homem esteja só."3 Seja qual for a origem da frase,
Paulo enfrenta os diferentes tipos de relacionamentos dentro da igreja
de Corinto, no contexto da controvérsia interna entre os dois partidos.

1. Pessoas casadas (7:2-5)

Mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa e cada uma
o seu próprio marido. 30 marido conceda à esposa o que lhe é devido, e também
semelhantemente a esposa ao seu m arido.4A mulher não tem poder sobre o
seu próprio corpo, e, sim, o marido; e também, semelhantemente, o marido não
tem poder sobre o seu próprio corpo, e, sim, a mulher. sNão vos priveis um
ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum tempo, para vos
dedicardes à oração e novamente vos ajuntardes, para que Satanás não vos
tente por causa da incontinência.
A maneira de Paulo tratar todas as situações mencionadas na carta que
recebeu de Corinto acaba com algumas opiniões populares de que ele
fosse misógino, e até um partidário fiel dos intransigentes daquele
tempo. Os coríntios rigoristas reagiram com tanta força contra a
licenciosidade sexual da cidade, que caíram totalmente no outro
extremo, proibindo o que Deus criou para que desfrutássemos
ricamente. O casamento, diz Paulo, é dom e plano de Deus. O sexo é
dom e plano de Deus. Rejeitá-los como se fossem coisas más é fugir
da vontade de Deus, tanto quanto entregar-se a um relacionamento
sexual fora do casamento.
Nos versículos 2-5, Paulo faz quatro declarações sobre o casamento,
desafiando fundamentalmente a opinião que prevalecia em Corinto
naquele tempo.

a) Ele proíbe a poligamia (2)

É uma proibição indireta,'mas clara: cada um tenha a sua própria esposa


e cada uma o seu próprio marido. O raciocínio de Paulo é extremamente
pragmático e, com certeza, influenciou as mentes daqueles que foram
os responsáveis pelo preâmbulo da cerimônia matrimonial do "Livro
de Oração", escrito em 1662, onde um dos três propósitos do
casamento é ser "um remédio contra o pecado e evitar a fornicação".4
A frase por causa da impureza significa literalmente: "por causa da
fornicação", referindo-se aos "inúmeros atos e variadas tentações que
abundavam em Corinto".5 Esta superabundância de tentações sexuais
produzia inevitavelmente uma oposição generalizada ao casamento
como "uma reação contra os modos licenciosos que reinavam naquela
cidade".6 Também é possível que as pessoas convertidas que vinham
de um estilo de vida praticamente amoral considerassem nada realista
a insistência de Paulo na monogamia. Argumentos semelhantes
certamente ecoam nos dias de hoje, nos chamados círculos
esclarecidos. Portanto, sob diversos aspectos, Paulo se expunha a um
fogo cruzado ao fazer esta firme asseveração sobre o propósito divino
para o casamento.

b) Ele destaca a completa mutualidade dos direitos conjugais (3-4)

O fundamento de Paulo para insistir em que marido e mulher dêem


um ao outro o que lhes é devido é a sua convicção sobre as
responsabilidades, e não tanto sobre os direitos dos casais. O marido
não tem direito sobre o seu próprio corpo, nem a esposa sobre o dela.
"Por meio dos votos matrimoniais cada um renuncia aos direitos
exclusivos sobre seu próprio corpo, e os entrega ao cônjuge."7 "Por
meio do enlace matrimonial, cada cônjuge adquire um direito sobre
a pessoa do outro. Conseqüentemente, cada um perde uma porção da
independência pessoal."8 Os cônjuges privam-se um ao outro dentro
do casamento quando falham no dar, especialmente dar o que Deus
quer que se dê. Paulo intercepta aqui qualquer egoísmo ou excesso
desm edido nos aspectos físicos do casam ento. Todas estas
considerações sobre igualdade e mutualidade do relacionamento
conjugal eram completamente revolucionárias no tempo de Paulo,
mantiveram-se revolucionárias muitos séculos depois e continuam
sendo revolucionárias em virtualmente todas as civilizações
modernas.
Marido e mulher se pertencem um ao outro, e a questão das
atividades sexuais, inclusive o ato sexual, depende da sensibilidade
em relação aos desejos do parceiro. Na verdade, 7:4 é uma das
diversas passagens onde Paulo fala explicitamente de direitos; e, longe
de expressar algum tipo de machismo chauvinista, ele concede à
esposa exatamente os mesmos direitos que concedeu aos homens, de
desfrutar o corpo do cônjuge. Como Morris explica: "Paulo não
salienta o dever de um dos parceiros em detrimento do outro, mas os
coloca no mesmo nível. O imperativo presente, conceda, indica o dever
habitual."9 Em nível prático, esta é uma palavra muito desafiadora
para todos os casais cristãos. Apresentam-se muitas razões para se
negar o que é devido ao outro: cansaço, ressentimento, desinteresse,
tédio, etc. Para os maridos coríntios, tão apegados aos seus próprios
direitos, esta instrução tão "mundana" deve ter sido um verdadeiro
golpe frontal.
De fato, a ordem do versículo 5 para que os cônjuges não se
"defraudem" ou não se "neguem" um ao outro na questão do
relacionamento sexual ressoa como um eco deliberado da questão do
litígio tratada em 6:1-8. Os coríntios haviam se acostumado a defender
os seus direitos com tal tenacidade, que estavam constantemente
exibindo seus casos de defraudação nos tribunais públicos. Quando
Paulo lhes instruiu francamente a não defraudarem seus cônjuges em
seus direitos matrimoniais, eles devem ter se sentido realmente
humilhados ou, usando uma metáfora mais adequada aos coríntios,
viram estourar o balão da arrogância.
No decorrer de todo este trecho, Paulo fala em termos de absoluta
igualdade dentro do casamento cristão, o que não era nada normal no
seu tempo. Além disso, quando levamos em consideração "a
generalizada exaltação do celibato'1,10 a ênfase de Paulo sobre a
indispensabilidade da relação sexual para o sucesso do casamento
cristão é ainda mais notável. A vista dos atuais debates com a teologia
moral católica romana sobre o propósito do ato sexual dentro do
casam ento, vale a pena observar que esta discussão das
responsabilidades conjugais não traz nenhuma indicação de que o ato
sexual deva ter, necessariamente, uma função procriativa.

c) Ele afirma a capacidade e a necessidade de os casais cristãos se absterem


temporariamente das relações sexuais (5)

Para determinados cristãos em Corinto, a própria idéia de se abster


das relações sexuais era simplesmente ridícula, se não totalmente
idealista. A antiga inclinação para a licenciosidade sexual, antes da
conversão, não teria desaparecido com o batismo, por maior que fosse
a experiência com o poder do Espírito de Deus. Para essas pessoas, a
única exceção apresentada por Paulo para a satisfação mútua de um
casal cristão poderia ser como que um desafio.
A instrução de Paulo é cercada por quatro condições importantes.
Prim eira, tanto o marido como a mulher devem agir, não
simplesmente por mútuo consentimento, mas "em sinfonia" (tradução
literal).11 Só isso poderia evitar o hábito tão comum de um parceiro
"hiperespiritual" considerar tudo, exceto a oração, como algo não puro
o suficiente para um casamento centralizado em Deus. Se outras
espiritualízações coríntias comuns em nossos dias precisam ser
denunciadas em seus verdadeiros aspectos, esta forma de suborno
conjugal também precisa ser denunciada.12
A segunda condição de Paulo é que tal acordo harmonioso sobre
a abstinência sexual só deveria vigorar por algum tempo (em grego, pros
kairori), isto é, porque é exatamente a hora certa para fazê-lo, não
porque (por exemplo) "não temos feito isso há meses ou mesmo anos".
O vocábulo grego kairos sempre se refere a um período chave dentro
do tempo determinado por Deus, e é exatamente o que Paulo tem em
mente: uma necessidade especial (talvez na família, na igreja local, na
nação ou no campo missionário) exige que o marido e a mulher
deixem tudo de lado para se entregarem à oração especial.
Isto nos leva à terceira condição imposta por Paulo: que a
abstinência tenha a intenção expressa de vos dedicardes à oração. Cabe
aqui um estudo mais detalhado, pois as Escrituras consideram o
casamento como uma oportunidade singular de oração a dois; e de
124 ’
acordo com Jesus, este tipo de oração vem acompanhado de poder e
promessas especiais.13 Pedro conclui seus profundos ensinamentos
aos casais cristãos14 com a declaração: "Maridos, vós, igualmente, vivei
a vida comum do lar, com discernimento; e, tendo consideração para
com a vossa mulher como parte mais frágil, tratai-a com dignidade,
por isso que sois juntamente herdeiros da mesma graça de vida, para
que não se interrompam as vossas orações." Pedro está sugerindo que
o maior propósito no casamento cristão é liberar o poder de Deus
através de um verdadeiro companheirismo na oração. Para que tal
união se aprofunde cada vez mais são necessários períodos especiais
dedicados à oração, com a exclusão de qualquer expressão prazenteira
do relacionamento carnal que também é vital no plano de Deus para
o casamento.15
Morris tem comentários utilíssimos sobre essa dedicação de ambos
os parceiros à oração: "Normalmente cada um pertence ao outro de
modo tão completo, que Paulo pode chamar a negação do corpo de
um ato de 'fraude'. Para vos dedicardes (hina scholasete; deste verbo
derivamos a nossa palavra ’escola’) literalmente é, ’para que tenhais
vagar para’. A oração não deve ser apressada. Nas correrias da vida
pode ser que seja necessário, às vezes, tomar medidas excepcionais
para assegurar um tranqüilo e sereno intercâmbio com Deus."16
A quarta condição de Paulo para este tipo de abstinência talvez
pareça óbvia, mas precisa ser apresentada: é necessário haver a
intenção deliberada de retomar a relação sexual, quando o kairos tiver
passado. Paulo não é ingênuo quando fala da atuação de Satanás neste
ponto —o que será analisado com mais detalhes posteriormente. Um
casal unido para ser uma só carne no Senhor fica aberto a todo tipo de
akrasia, ou incontinência, se continuar se abstendo do ato sexual, além
dos limites do kairos que lhe foi imposto pelo Espírito Santo. No
contexto de Corinto, tal akrasia poderia muito be"m ser uma tentação
de retornar à porneia, ou seja, à fornicação.17

d) Ele expõe a atividade de Satanás na área sexual (5)

Em Corinto, como atualmente, a atividade sexual (na mente popular)


era "deixar o barco correr". Já vimos os motivos reais mencionados por
Paulo18 para se honrar a santidade do sexo e a vocação para glorificar
a Deus com os nossos corpos. Está claro que Satanás concentra
deliberadamente grande parte de sua astúcia na tentação sexual.
Tal idéia certamente seria rejeitada pelos libertinos da igreja em
Corinto: para eles, o corpo (c, portanto, a atividade sexual) era
. 125
moralmente neutro; não tinha qualquer relevância para a atividade do
Espírito Santo, não tinha qualquer relevância para a atividade de
Satanás. No outro lado da balança, os rigoristas viam Satanás por toda
a parte, na cidade de Corinto dominada pelo sexo. Para eles, a única
maneira de fugir da contaminação (ou de algo pior) era rejeitar
completamente toda atividade sexual. Para tais pessoas deve ter sido
quase um escândalo ouvir as instruções de Paulo para os casais
cristãos: depois de terem um período especial devotado à oração,
deviam voltar a desfrutar as relações sexuais p a ia fugir das tentações
de Satanás.
Se a oração a dois é fundamental no casamento cristão, então
Satanás fará de tudo para acabar com ela. Qualquer estudo sincero
sobre a vida de oração dos casais cristãos deveria estabelecer dois
fatores comuns: primeiro, que os casais geralmente consideram a
oração conjunta como a parte mais difícil de todo o seu
relacionamento; segundo, que é particularmente o marido que
encontra maiores problemas em se submeter a orar junto com a
esposa. Os motivos disso não são óbvios, mas provavelmente estão
ligados ao imenso orgulho natural do homem em não desejar revelar
perante a esposa qualquer falta de autoconfiança, e a oração expressa,
por excelência, a dependência de Alguém maior e mais forte. Da
mesma forma, se a verdadeira entrega mútua no ato sexual é a
essência de uma união realizada por Deus, então Satanás fará de tudo
para inibir, estragar, roubar a sua pureza e o seu potencial de
concretização. Satanás está sempre interferindo em um casamento
cristão, para esfriar a oração em conjunto e reduzir o prazer sexual a
um nível indigno.

2. Observações pessoais de Paulo (7:6-9)

E isto vos digo como concessão e não por mandamento.' Quero que todos os
homens sejam tais como também eu sou; no entanto cada um tem de Deus o
seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro de outro. SE aos solteiros
e viúvos digo que lhes seria bom se permanecessem no estado em que também
eu vivo. 9Caso, porém, não se dominem, que se casem; porque é melhor casar
do que viver abrasado.

Agora, depois de recolocar o casamento cristão no seu devido lugar,


Paulo lança mais duas observações pessoais. Primeira (v. 6), admite
que o seu conselho ("isto" provavelmente se refere ao que ele disse no
versículo 5) aos casados não se apóia na autoridade apostólica: E isto
vos digo como concessão e não por mandamento.19
Segunda, ele afirma que é muito mais feliz permanecendo solteiro:
Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou (v. 7). Podemos
encontrar muitos motivos para isto: práticos e vocacionais, pessoais
e psicológicos. Paulo era "o apóstolo dos gentios" e essa vocação única
exigia completa liberdade para movimentar-se sem se preocupar com
problemas interpessoais, quanto mais com responsabilidades com
esposa e família. Ele também não era uma pessoa fácil de conviver; era
impaciente com aqueles que não trabalhavam no seu ritmo ou que
deixavam de atingir suas elevadas expectativas. Paulo era um cristão
que aprendera a depender de seus próprios recursos internos,
recebidos de Deus, e a exercer o poder do domínio-próprio (o pleno
significado de enkrateuesthai, em 7:9). Ele não precisava da presença
de uma "companheira que lhe fosse idônea", embora desse muito
valor à companhia de colegas em quem pudesse confiar. É evidente
que Paulo tinha o dom do celibato, e é precisamente isso que ele diz
no versículo 7. Este é um charisma ("dom"), tal como a evangelização,
ou o falar em línguas, ou a operação de milagres.20 Paulo fala
exatamente o mesmo sobre o casamento: também é um charisma pois
cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro
de outro.21
Paulo está reabilitando, assim, tanto o celibato quanto o casamento,
como manifestações da graça de Deus que devem ser assumidos e
mantidos puramente na força que o Senhor fornece diariamente.
Como Godet22 declara, ambos são dons "para o reino de Deus".
Não há como ter absoluta certeza sobre qual era o estado civil de
Paulo. Normalmente assume-se que ele nunca se casou, mas isto seria
extremamente incomum para um rabino judeu.23 Podemos imaginar
então que, quando ele se converteu a Cristo, sua esposa resolveu
deixá-lo, voltando para a casa de seus pais (um exemplo muito pessoal
do que Paulo menciona em 7:15). Naturalmente, é possível que Paulo
fosse viúvo e que sua opinião sobre permanecer nessa condição, em
vez de contrair um novo casamento (7:40), fosse baseada novamente
em um julgamento bem pessoal, como ele insinua.
Se Paulo era solteiro e nunca se casou, seu conselho aos solteiros24
nos versículos 8 e 9 é inequívoco: seria bom se permanecessem solteiros
como eu. A palavra "solteiros" aqui é gratuita, mas o significado de seu
conselho é inconfundível. A argumentação de Paulo consiste no
seguinte:25 A melhor situação (a sua própria) é a de uma pessoa solteira
que não é pressionada a se casar. Em segundo plano vem a situação
da pessoa que precisa expressar fisicamente a sua sexualidade e o faz
dentro do casamento. A situação menos desejável é a da pessoa que
precisa do casamento como um meio de expressão de sua sexualidade,
mas é compelida a (ou tenta com esforço) passar sem ele: é melhor casar
do que viver abrasado (v. 9).26 A propósito, a última expressão ("viver
abrasado") não pode significar explodir em atos licenciosos, mas ser
tão comsumido por um desejo íntimo que praticamente nada mais
interessa nem pode ser considerado com serenidade. Paulo trata mais
detalhadamente a situação dos casais de noivos em 7:36-38.

3. Casamento e divórcio (7:10-16)

Ora, aos casados, ordeno, não eu mas o Senhor, que a mulher não se separe
do marido n(se, porém, ela vier a separar-se, que não se case, ou que se
reconcilie com seu marido); e que o marido não se aparte de sua mulher. nAos
mais digo en, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula, e esta
consente em morar com ele, não a abandone; ue a mulher que tem marido
incrédulo, e este consente em viver com ela, não deixe o marido. uPorque o
marido incrédulo é santificado no convívio da esposa e a esposa incrédula é
santificada no convívio do marido crente. Doutra sorte os vossos filhos seriam
impuros; porém, agora, são santos. í5Mas, se o descrente qidser apartar-se,
que se aparte; em tais casos não fica sujeito à servidão, nem o irmão, nem a
irmã; Deus vos tem chamado à paz. wPois, como sabes, ó mulher, se salvarás
a teu marido? ou como sabes, 6 marido, se salvarás a tua mulher?

Na mente de Paulo surge uma outra pergunta vital, embora ela não
esteja no texto: como devem agir aqueles que, sendo casados "na
felicidade ou na desventura", sentem agora que não precisam do
casamento ou que cometeram um erro ao casar-se, ou que seriam bem
mais eficientes no serviço do Senhor sem as responsabilidades do
casamento? Há muitos casos desse tipo na igreja hoje. A questão exige,
portanto, uma resposta clara, sobretudo porque, numa era de divórcio
fácil, é muito tentador adotar uma atitude laissez-faire diante de um
relacionamento conjugal difícil, em vez de empenhar-se no poder que
Deus fornece, na convicção de que ele é capaz de fazer brotar algo
valioso e bom de uma concha vazia.
Paulo faz um desafio inequívoco aos casais que vêem poucas
esperanças no seu casamento: Ora, aos casados, ordeno, não eu mas o
Senhor, que a mulher não se separe do marido (se, porém, ela vier a separar-
se, que não se case, ou que se reconcilie com o seu marido); e que o marido não
se aparte de sua mulher (vs. 10-11).
A frase de Paulo, não eu mas o Senhor, é evidentemente decisiva.
Estaria ele dizendo que recebeu comunicação direta do Senhor nesse
ponto? Nesse caso, como aconteceu isso? através de uma visão? de
uma mensagem? de um sonho? ou que outro meio? Estaria ele
traçando algum contraste menos radical entre suas próprias decisões
(tomadas, sem dúvida, sob muita oração) e a inequívoca autoridade
divina? A mudança dessa ênfase no versículo 12 aumenta ainda mais
a polêmica, quando ele diz: digo eu, não o Senhor. Existem outras frases,
dentro do capítulo 7, que poderiam ser (e foram) interpretadas como
indicadores de certa ambivalência na própria mente de Paulo quanto
à autoridade ou procedência do seu ensino em diferentes estágios: por
exemplo, em 7:6, "isto vos digo como concessão e não por
mandamento"; em 7:25, "com respeito às virgens, não tenho
mandamento do Senhor; porém dou minha opinião como tendo
recebido do Senhor a misericórdia de ser fiel"; em 7:40, "será mais feliz
se permanecer viúva, segundo a minha opinião; e penso que também
eu tenho o Espírito de Deus".
Obviamente, aqui há espaço para diversas opiniões acerca dessas
frases. Em sua totalidade, os comentários de Barret27parecem sensatos
e coerentes: onde Paulo tinha de transmitir palavras realmente ditas
por Jesus, ele as citou explicitamente. Barret observa que 1 Coríntios
foi escrita antes dos evangelhos; e Paulo não teria conhecido,
necessariamente, mais do que algumas poucas palavras proferidas por
Jesus. Sem dúvida, ele parece citar bem poucas, e se o apóstolo sabia
mais do que aquilo que citou, talvez ele só tenha mencionado aquelas
em que os ensinamentos de Jesus discordavam consideravelmente
dos ensinamentos judeus prevalecentes; e, na questão particular do
divórcio, sabemos que os ensinamentos de Jesus eram totalmente
diferentes das escolas rabínicas de Hillel e Shammai (as duas mais
influentes) e do próprio ensino contido no Antigo Testamento.
Certamente hão há nenhuma necessidade, ou justificativa para se
traçar uma divisão entre os conselhos de Paulo e os verdadeiros
ensinamentos de Jesus, como costumam fazer alguns autores. A
expressão no versículo 12: não o Senhor, não tem a intenção de indicar
que Paulo está dizendo alguma coisa diferente, muito menos
contrária, daquilo que o próprio Senhor teria dito. Certamente ele não
considerava que suas próprias palavras não tinham autoridade,
qualquer que seja o sentido da declaração do versículo 40 ("e penso
que também eu tenho o Espírito de Deus"); Paulo realmente espera ser
recebido com mais do que mero respeito. Ele era um apóstolo,
independentemente do que os coríntios pudessem pensar a respeito
de suas credenciais apostólicas.29
Retomando diretamente à questão do casal cujo casamento está em
crise, Paulo repete categoricamente as palavras de Jesus: "Quem
repudiar sua mulher e casar com outra, comete adultério contra
aquela. E se ela repudiar seu marido e casar com outro, comete
adultério." O compromisso matrimonial entre um homem e uma
mulher é para toda a vida, é confirmado pelo próprio Deus e não pode
ser desfeito, muito menos destruído, por simples seres humanos.
"Portanto, o que Deus juntou não o separe o homem."30
No Evangelho de Mateus31 há uma só justificativa (e apenas uma)
para o divórcio de cônjuges cristãos: adultério, fornicação, porneia. Por
que Paulo não menciona isso aqui? Não sabemos. A causa pode ser
simples: uma vez que geralmente se aceita que Marcos foi o primeiro
evangelho a ser redigido, talvez Paulo só conhecesse a versão
marcana dos ensinos de Jesus. Por outro lado, a porneia que assolava
Corinto poderia fornecer essa justificativa a tantos casamentos dentro
da igreja, devido à conduta passada de inúmeros casais cristãos, que
mencioná-la sem ter oportunidade de um aconselhamento pastoral
face a face com cada casal poderia colocar em perigo muitos
casamentos bons. Os cristãos de Corinto não estavam tão firmemente
enraizados na realidade da regeneração e da renovação no Espírito
Santo, a ponto de terem a estabilidade necessária para lidar com um
parceiro que revolvesse um passado cheio de lama, durante uma
briga doméstica amarga, numa noite difícil, após uma semana ruim
no serviço.
A forma básica de Paulo tratar a questão dos cristãos que buscam
o divórcio é, portanto, muito simples: "Não o façam. O Senhor o
proibiu expressamente; portanto nem se permitam ao luxo de
acalentar essa possibilidade." Se esta é a ordem expressa do Senhor,
não há nenhum benefício em flertar mentalmente com uma coisa que
extrapola os limites de modo tão claro. Se, como acontece muitas
vezes, um casal cristão pensa que cometeu um erro ao se casar, então
é importante que aceitem a autoridade do ensinamento do Senhor e
se dediquem ao seu relacionamento na convicção de que, se o fizerem,
Deus pode transformá-lo em algo novo e vital.
Convém também apreciar devidamente o parêntese que Paulo abre
no versículo 11: se, porém, ela vier a separar-se, que não se case, ou que se
reconcilie com seu marido. Em outras palavras, Paulo reconhece que um
casamento entre dois cristãos sinceros pode chegar a um impasse.
Quando ele está arruinado, devem-se considerar dois cursos de ação:
a primeira opção é separar e permanecer solteiro. O conselho de Paulo
em 7:40, ali aplicado a uma situação um tanto diferente, indica que esta
pode ser a melhor opção a seguir. A outra opção, depois de ficarem
separados por algum tempo - provavelmente para permitir que
respirem um pouco mais livremente e reorganizem a dinâmica de seu
relacionamento - é fazer a devida reconciliação, para reconstruírem
um casamento melhor e mais forte. As duas opções — a primeira,
sendo um reconhecimento realista do inevitável, e a segunda, um
compromisso genuíno em busca de um verdadeiro progresso —têm
a bênção de Paulo. Contudo, de maneira alguma o apóstolo apóia a
hipótese do divórcio.32
A seguir, Paulo ataca um problema que devia ser muito comum em
Corinto: um cristão recém-convertido casado com uma incrédula ou
vice-versa. Isso sempre acontece onde o evangelho é proclamado com
poder. Quando um dos cônjuges se converte, surge uma imensa, e às
vezes intolerável, tensão entre os dois. O parceiro cristão dpscobre um
modo de vida totalmente novo e se compromete com novos padrões,
com uma nova fidelidade, com novas prioridades, com novos desejos:
ele (ou ela) é "uma nova criatura".33 Os ajustes necessários são
enormes. Haverá muitas frustrações, muita incoerência e grandes mal­
entendidos. As vezes o novo cristão se sentirá dividido.
Da mesma forma, o incrédulo dificilmente entende o que
aconteceu; e ao que parece (pelo menos estatisticamente), o marido é
quem descobre que está vivendo com um outro tipo de mulher santa.
O impacto devastador desse acontecimento, mesmo naquilo que
poderíamos chamar genuinamente de um ótimo casamento, não pode
ser subestimado. Um cirugião neurologista da Cidade do Cabo
explicou-o de maneira muito comovente. Quando lhe perguntaram
o que julgava mais difícil de aceitar em sua esposa recém-convertida
a Cristo, ele destacou duas coisas: primeiro, ela já não era a pessoa pela
qual ele havia se apaixonado e com quem decidira casar-se; segundo,
havia um outro Homem em casa, a quem ela consultava o tempo todo,
em cada decisão que precisava tomar, e cujos conselhos e instruções
ela resolvera seguir. Ele já não era o chefe de sua própria casa: Jesus
dava as ordens e dominava a situação.
Paulo estava bastante consciente da existência dessas tensões em
muitos lares de Corinto. Ele também reconhecia que diversos fatores
externos, e ainda mais a sua declarada preferência pela vida de
solteiro, exerciam uma pressão muito forte sobre o cônjuge crente no
sentido de que ele desistisse e começasse uma nova vida, sem todos
os atritos e o pesado fardo de um jugo desigual.34 E bem provável que
o cônjuge cristão se inclinasse a desprezar, ou até mesmo rejeitar, o
cônjuge não-convertido. Pedro julgou necessário dedicar palavras
especiais para as esposas cristãs que tinham maridos não-convertidos:
"Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vossos próprios
maridos, para que, se alguns ainda não obedecem à palavra, sejam
ganhos sem palavra alguma, por meio do procedimento de suas
esposas, ao observarem o vosso honesto comportamento cheio de
temor."35 A ênfase de Pedro no comportamento, mais do que nas
palavras, é fundamental neste contexto.
Tendo reconhecido a realidade da situação em Corinto, Paulo
enfatiza a necessidade de dar uma atenção especial ao casamento, da
mesma forma que os casais cristãos que enfrentam problemas
precisam se empenhar para melhorar o casamento. Ele apresenta,
então, quatro razões para o seu conselho: a realidade da santificação,
a situação dos filhos, a possibilidade de conversão e a santidade do
casamento.

a) A realidade da santificação (14)

Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa e a esposa


incrédula é santificada no convívio do marido crente.

O tempo do verbo traduzido por é santificado é o perfeito, e indica um


relacionamento estabelecido no passado que ainda está em vigor.36
Assim, quando um se converte a Cristo e nasce de novo, o outro se
toma "santificado" de modo especial. Os coríntios provavelmente
pensavam que a incredulidade de um cancelava a crença do outro.'
Paulo insiste exatamente no oposto: a crença de um leva o parceiro
incrédulo a um relacionam ento diferente com o Senhor. E
virtualmente impossível definir com exatidão o que vem a ser esse
relacionamento, mas, com certeza, é alguma indicação de um sinal
especial para Deus. Não se pode afirmar que Paulo se refira à
"salvação", porque a possibilidade de isso acontecer é um outro
incentivo, diferente, para que se dedique com afinco ao casamento (v.
16).
Apesar de toda a incerteza que precisamos carregar, também
precisamos dar atenção à palavra traduzida por santificação, no grego
hegiastai, que é o passivo perfeito do verbo "santificar" usado em 6:11,
onde Paulo diz aos coríntios: "fostes santificados". Esta também é a
raiz da qual obtemos a qualificação de Paulo para cada cristão: hagios
("santo"). Se ele quisesse usar uma palavra grega com menos
significado teológico, sua mente fértil certamente a teria encontrado.
Talvez o caminho mais certo para interpretar a palavra seja recordar
o verdadeiro contexto de Corinto: Paulo está lidando cum um grupo
de rigoristas que consideram o sexo como pecado em qualquer
situação. É provável que ele esteja defendendo a "santidade" da
relação sexual e, também, do nascimento de filhos em casamentos
entre cristãos e não-cristãos. Çalvino comenta: "A piedade de um
contribui mais para "santificação" do casamento, do que a impiedade
do outro para torná-lo impuro."37

b) A situação dos filhos (14)

Já notamos que Paulo usa o mesmo radical (hagia) para descrever a


situação dos filhos de um casal, quando apenas um cônjuge é crente.
Para Paulo, este argumento finaliza o assunto, pois ele o considera
evidente por si mesmo. Paulo parece se ater às convicções e ao
costume dos judeus, os quais consideram que os filhos participam da
aliança. "Enquanto não tiver idade bastante para tomar sobre si a
responsabilidade, o filho de um pai crente deve ser considerado
cristão. A santidade do pai ou da mãe abrange a criança."38
A propósito, os judeus traçam a sua ascendência através da mãe,
sob o fundamento prudente de que, normalmente, a identidade da
mãe da criança é evidente, mas nem sempre se pode precisar quem
é o pai. Se os filhos de uma judia são incluídos na aliança do povo
especial de Deus, Paulo argumenta que os filhos de um pai (ou mãe)
cristão também são "santos". Paulo também coloca a razão pela qual
tais crianças são consideradas "santas" ao dizer: Doutra sorte os vossos
filhos seriam impuros (v. 14). A última palavra desse trecho (akatharta),
não fala apenas de um não-relacionamento com o Senhor, mas
também indica uma verdadeira impureza que o próprio Paulo não
acredita ser uma descrição exata da condição dos filhos criados numa
comunidade cristã. Na verdade, Paulo apresenta a lógica dessa
convicção de maneira sólida em suas instruções às famílias cristãs em
Efésios 5 e 6 e Colossenses 3, onde ele trata os filhos dos crentes como
estando "no Senhor", e assume que esse status é o fundamento da
educação cristã deles.

c) A possibilidade de conversão (16)

Quaisquer que sejam as provações e os obstáculos inerentes à


manutenção de um convívio assim tão desigual, Paulo insiste em que
se apeguem à real possibilidade de que o milagre da conversão
finalmente leve a família à unidade em Cristo.31’ Tal possibilidade, que
ocorre em inúmeros casos, é o maior dos incentivos para que se
empenhe no casamento, mesmo durante longos períodos de aparente
obstinação.
A maneira como Paulo expõe o caso deixa a questão totalmente em
aberto: Pois, como sabes, ó mulher, se salvarás a teu marido? ou como sabes,
ó marido, se salvarás a tua mulher? A resposta simples é que ninguém
o sabe, mas temos todo o incentivo para alimentar tal esperança. E
provável que a própria abertura das perguntas feitas à mulher e ao
marido tenha a intenção de garantir a soberania de Deus no processo
de salvar pessoas. De fato, o próprio apóstolo usa a mesma linguagem
mais tarde: "Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os
modos, salvar alguns."40 O sentimento que permeia este versículo foi
muito bem expresso por Michael Green: "Se um de vocês converteu-
se enquando casado, então há motivos para se supor que o bondoso
Senhor esteja operando em sua família. Ore e tente viver uma vida
coerente, de modo que se o seu parceiro não for ganho por suas
palavras, ele o seja sem que se diga nenhuma palavra, mas pela
santidade de sua vida."41

d) A santidade do casamento (15)

Há um outro incentivo para que se procure m elhorar esse


relacionamento, apesar de todos os problemas a ele inerentes. Isso se
encontra implícito nas instruções de Paulo para que o parceiro cristão
jamais tome a iniciativa de acabar com o casamento. Mesmo que o
cônjuge incrédulo esteja pouco interessado em manter os votos
matrimoniais e a própria instituição do casamento, o parceiro cristão
preserva a santidade e o caráter indissolúvel desse compromisso.
Somente após defender estes quatro pontos com certa veemência
é que Paulo menciona a possibilidade de separação. Ele sempre
orienta o cristão a tomar o caminho da fé e da esperança antes de
desistir. É o parceiro incrédulo que deve chegar à conclusão de que é
impossível dar continuidade ao casamento, e a implicação contida em
toda a passagem é que a base de tal incompatibilidade está na fé do
cristão. É exatamente aqui que as racionalizações podem começar a
se intrometer, decidindo optar pela separação.
Cientes disso, temos de avaliar corretamente as palavras de Paulo:
Deus vos tem chamado à paz (v. 15). Para ele, este parece ser o princípio
dominante. Temos visto várias vezes, nesta carta, a importância
máxima da vocação divina: e o próximo grande parágrafo (7:17-24)
retoma o mesmo tema. Aqui Paulo lembra aos coríntios que estão
experimentando grande tensão e sofrimento nos lares que a essência
do chamado de Deus para cada um deles é um convite, na verdade
uma convocação, à paz, na qual deseja que eles habitem diariamente.
Essa paz não consiste em simples ausência de discórdia ou o fim das
discussões: ela abrange a integridade e a cura de todos os nossos
relacionam entos. E trágico reconhecer que existem certos
relacionam entos intratáveis, onde o cristão nunca chega a
experimentar a paz de Deus: em tais casos não fica sujeito à servidão, nem
o irmão, nem a irmã. Para Paulo, a prioridade mais importante e
absoluta é que os filhos de Deus conheçam a paz criativa do Senhor;
por isso, se for para duas pessoas continuarem se desgastando sob um
jugo desigual, que se separem.
Mas continua o dilema quanto ao significado real da frase: não fica
sujeito à servidão (literalmente, "não está escravizado"). Poucos cristãos
questionariam a legitimidade de uma separação permanente de duas
pessoas incompatíveis, em circunstâncias extremas, quando todas as
soluções concebíveis já foram tentadas. Mas será que a frase apóia o
divórcio como uma separação definitiva? (isto é, a pessoa estaria livre
dos votos matrimoniais?) E se o divórcio é uma opção válida, existe
também a possibilidade de um novo casamento (obviamente, com um
crente; cf. 7:39) ? Qual é, exatamente, a liberdade a que Paulo se refere?
Parece evidente que o parceiro cristão não está obrigado a continuar
"segurando mecanicamente um relacionamento que o outro parceiro
deseja desfazer".42 Mas será que esse cristão fica assim “sujeito” ou
“condenado" a viver escravizado, como uma pessoa divorciada, sem
perspectiva alguma de um novo casamento? Essa é uma questão sobre
a qual os cristãos de todas as convicções provavelmente concordam
em discordar. Uma consideração que, acima de todas as outras, evita
que essa grande discussão degenere em uma ética teológica alienada
da realidade é a gránde possibilidade de Paulo estar, de fato,
escrevendo a partir do trauma de sua própria experiência.

4. A vocação cristã (7:17-24)

Ande cada um segundo o Senhor lhe tem distribuído, cada um conforme Deus
o tem chamado. E assim que ordeno em todas as igrejas. lsFoi alguém
chamado, estando circuncíso? não desfaça a circuncisão. Foi alguém chamado
estando incircunciso? não se faça circuncidar. 19A circuncisão em si não é
nada; a incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar as ordenanças
de Deus. 20Cada um permaneça na vocação em que fo i chamado. 21Foste
chamado sendo escravo? não te preocupes com isso; mas, se ainda podes
tornar-te livre, aproveita a oportunidade. 22Porque o que fo i chamado no
Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente o que foi
chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. 23Por preço fostes comprados; não
vos torneis escravos de homens. 24Irmãos, cada um permaneça diante de Deus
naquilo em que foi chamado.

Este parágrafo registra uma espécie de divagação dentro dos


ensinamentos de Paulo sobre os diferentes relacionamentos dentro da
família de Deus. O apóstolo, de fato, insiste numa atitude básica de
contentamento diante de qualquer destino que Deus nos tenha
reservado, mesmo que isso inclua circunstâncias que provoquem
desgastes e frustrações. Nesse sentido, ele insiste que se encarem as
outras tensões~cTa vida da mesma forma que o casamento. Há três
prioridades básicas na mente do apóstolo; e todas permeiam os
ensinamentos contidos no restante do capítulo: a necessidade dg
sermos firmes em qualquer situação; a necessidade de sermos flexíveis
quanto às coisas materials~e a necessidade de sermos livres de
qualquer coisa que nos afaste do único propósito que é agradar ao
Senhor. Neste trecho Paulo apEca essas treS^rTõridades a cada um (v.
17). Ele toma dois exemplos particulares, a circuncisão e a escravidão,
e apresenta uma abordagem cristã radical para ambos. A circuncisão
e a escravidão representavam os dois fenômenos que mais causavam
divisão 110 mundo do Novo Testamento. A circuncisão constituía a
barreira religiosa mais forte; a escravidão, a maior barreira socTál. Nos
dois casos, Paulo foi bastante ousado para afirmar que a salvação de
Deus em Cristo os anulou e os tomou sem sentido. Qualquer homem
ou mulher em Cristo é refeito de tal forma que seu status terreno, ou
a falta dele, é irrelevante. Portanto, é uma loucura os cristãos ficarem
obcecados com tais questões.
Precisamos, é claro, reconhecer que a inspiração do Espírito de
Deus nos últimos séculos de existência da igreja tem produzido
diferentes prioridades, em diferentes fases: as vítimas do comércio de
escravos do século XVIII ou do holocausto judeu no século XX teriam
muita dificuldade em reduzir essas questões a simples preocupações.
Dito isso, podemos ver a força do raciocínio de Paulo. Ele está
enfrentando uma comunidade inquieta em um porto marítimo muito
cosmopolita, para quem estava em jogo a firme dedicação à rotina do
dia-a-dia. Paulo quer encorajar a estabilidade e, portanto, destaca o
mesmo ponto três vezes: Ande cada um segundo o Senhor lhe tem
distribuído, cada um conforme Deus o tem chamado (v. 17). Cada um
permaneça na vocação em que fo i chamado (v. 20).... Cada um permaneça
diante de Deus naquilo em que foi chamado (v. 24).
Paulo está dizendo aos coríntios que a chave para que cada uma
dessas situações tenha o seu devido valor consiste em deixar que Deus
os transforme diariamente, cada um no lugar em que por Deus foi
colocado. A circuncisão realmente coloca barreiras imensas entre
judeus e gentios; mas Deus pode transpor tais barreiras, operando nos
judeus cristãos e nos gentios cristãos (vs. 18-19). O abismo entre
escravos e livres parece profundo e intransponível, mas Deus pode
edificar uma ponte sobre essa brecha, realizando sua obra nos cristãos
escravos e nos cristãos livres (vs. 21-23).
Isto significava um compromisso deliberado de permanecerem
firmes naquele lugar onde estavam quando Deus os chamou para a
comunhão com o seu Filho, Jesus Cristo.43 Este foi o sábio conselho que
alguns amigos chegados do cantor Cliff Richard lhe deram, quando
muitos outros conselheiros insensatos insistiam em que ele deixasse
os espetáculos.
Podem-se conceber três ou quatro atividades a que o novo crente
teria de renunciar imediatamente (tais como: o jogo, o crime
organizado, a prostituição); mas, normalmente, "um homem não é
chamado para uma nova ocupação: a sua antiea ocupacão recebe um
novo significado".44 Como Paulo diz no versículo 24: "cada um
permaneça diante de Deus" (os itálicos são meus); ao contrário do que
acontecia antes, existe agora uma sociedade entre nós e Deus. Isso
realmente resultará numa influência transformadora em toda a nossa
maneira de "andar" (v. 17),45 e será um desafio empolgante nos
empenharmos em praticar as implicações daquilo que Deus
"designou" para nós de maneira singular. Quando chegar a hora
divina de mudarmos de ocupação, ele nos dará a inquietação
necessária para nos levantarmos do lugar e sairmos.
Havia, de fato, uma outra pressão que provocava uma perpétua
inquietação em Corinto. Paulo a enfrentou, numa forma
particularmente destrutiva em Tessalônica.46 Os cristãos macedônios
estavam convencidos de que o fim do mundo e a volta de Jesus em
glória estavam prestes a acontecer. Atividades seculares e rotineiras
eram, portanto, "pouco espirituais". Isso produziu, em parte, um tipo
de evangelização frenética (porque esse era o único nome que
poderíamos dar ao culto cristão daquele momento crítico); por outro
lado, havia aqueles que simplesmente desistiam de tudo, senisequer
fazer um trabalho diário honesto': afinal - pensavam eles —de que
valia trabalharem pelo "lucro sujo" se o fim do mundo estava às portas
para tragá-los? Paulo teve de ser muito firme com os cristãos
macedônios, especialmente com os provedores do lar, que agiam com
tamanha irresponsabilidade.
Resumindo, eis o que estava acontecendo em Corinto: os cristãos
novos e influenciáveis estavam se deixando transformar em escravos
de homens (v. 23). Crentes novos são facilmente dominados por aquilo
que os outros, principalmente os "cristãos maduros", pensam e
ensinam. Eles permitem que o seu discipulado se transforme numa
questão de seguir práticas consagradas, certos padrões de conduta e
preferências culturais. Em Corinto ainda havia aqueles que insistiam
na circuncisão como o verdadeiro sinal de um crente genuíno. Da
mesma forma, havia aqueles que reagiam violentamente contra esse
legalismo e insistiam na importância de uma outra operação física
para a remoção das marcas da circuncisão.47 Os líderes de ambos os
grupos estavam escravizando os cristãos imaturos, e Paulo precisava
enfatizar que tanto a circuncisão como a incircuncisão eram
irrelavantes (v.
V
19).
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importaui. 11é"■ aM obediência
M -— i | —.... • . ■

aos, mandamentos
■ -■ t ________________

do Senhor, e isso nada tem a ver com os rituais religiosos.48


Havia também pessoas influentes em Corinto que tiravam proveito
da questão dos escravos e livres. Paulo também expõe abertamente
esse assunto. Ele simplesmente alega que Cristo elimina todas as
categorias humanas e todos os sinais de separação: Porque o que fo i
chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantamente o
que foi chamado, sendo livre, c escravo de Cristo (v. 22). Jesus Cristo é a
única realidade para todos os homens, sejam escravos ou livres,
judeus ou gentios, homens ou mulheres, casados ou solteiros, negros
ou brancos, ricos ou pobres, jovens ou velhos. Paulo também parece
mostrar a direção em que o vento do Espírito estava começando a
soprar em sua própria mente, em relação à ética da escravidão; cf.
versículo 21: se ainda podes tornar-se livre, aproveira a oportunidade.
Embora seja uma declaração muito hesitante, ela indica que o apóstolo
não apoiava a escravidão. Em Cristo estamos unidos, somos um.
Portanto, de agora em diante, os cristãos jamais devem permitir que
qualquer categoria humana os separe, especialmente quando os
outros tentam escravizá-los, impondo tais divisões.
Todos nós temos um único Mestre, um único Professor, um único
Salvador, um único Senhor; a ele somente devemos a nossa total
fidelidade. Fomos comprados por um preço (v. 23; a mesma frase de
6:20). Com esse tipo de fidelidade cada um de nós descobrirá uma
firme obrigação para com a sua posição atual, uma crescente
flexibilidade nas questões materiais e uma liberdade que nos afasta
das incontáveis loucuras que nos confrontam ao exercermos a nossa
vocação no mundo.

5. As virgens (7:25-35)

Com respeito às uirgens, não tenho mandamento do Senhor; porém dou minha
opinião como tendo recebido do Senhor a misericórdia de ser fiel. 26Consideror
por causa da angustiosa situação presente, ser bom para o homem permanecer
assim como está. 27Estás casado? não procures separar-te; estás livre de
mulher? não procures casamento. 2SMas, se te casares, com isto não pecas;
e também se a virgem se casar, por isso não peca. Ainda assim, tais pessoas
sofrerão angústia na carne, e eu quisera poupar-vos. 29Isto, porém, vos digo,
irmãos: o tempo se abrevia; o que resta é que não só os casados sejam como
se o não fossem ;30mas também os que choram, como se não chorassem; e os
que se alegram, como se não se alegrassem; e os que compram, como se nada
possuíssem; 31e os que se utilizam do mundo, como se dele não usassem;
porque a aparência deste mundo passa.
320 que realmente eu quero é que estejais livres de preocupações. Quem não
é casado cinda das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor; 33mas o que
se casou cuida das coisas do mundo, de como agradar à esposa, 34e assim está
dividido. Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas
do Senhor, para ser santa, assim no corpo como no espírito; a que se casou,
porém, se preocupa com as coisas do mundo, de como agradar ao marido.
35Digo isto em favor dos vossos próprios interesses; não que eu pretenda
enredar-vos, mas somente para o que é decoroso e vos facilite o consagrar-vos,
desimpedidamente, ao Senhor.

O trecho sugere que Paulo foi interrogado sobre o que pensava a


respeito da virgindade. Ele escreve primeiro sob o ângulo das pressões
que sobrevinham das circunstâncias vigentes (vs. 26-31); depois da
perspectiva pragmática de um senso comum de santificação (vs. 32­
35) e, finalmente, nos termos realistas de um jovem casal apaixonado
(vs. 36-38).
Em bora os estudiosos tenham levantado duas ou três
possibilidades quanto à identidade dessas parthenoi (virgens), é mais
provável que Paulo esteja enfrentando aqui outro rigorista indagador
dentre os ascetas legalistas de Corinto.49 Conhecendo a preferência do
apóstolo pelo celibato (mencionado novamente em 7:26, 32, 38, 40),
queriam dele um firme endosso para suas preferências pessoais. Paulo
é escrupulosamente sincero nesta passagem. Ele não condena o
casamento em si, mas determinadas pressões (thlipsin, v.28) e
preocupações (merimmi, vs. 32ss.) características das pessoas casadas.
O seu conselho, portanto, cabe a todos aqueles que estão pensando em
casar-se ou fazendo planos nesse sentido.
Um fator se destaca na mente de Paulo. Esta é a primeira vez, em
toda a narrativa da carta, que ele vem à tona. No versículo 26 ele fala
da angustiosa situação presente; no versículo 29 ele diz que o tempo se
abrevia; no versículo 31, afirma que a aparência deste mundo passa. O que
Paulo está querendo dizer, afinal? Bruce comenta o seguinte: "Toda a
discussão acerca do casamento neste capítulo foi influenciada pela
consciência escatológica de Paulo, além de sua preocupação
pastoral."50
A primeira frase, a angustiosa situação presente, pode também
significar "as circunstâncias difíceis que nos pressionam neste exato
momento". O próprio Jesus mencionou várias vezes uma tal ananke,
uma tão "grande aflição" que viria sobre a "terra", bem como a "ira
contra este povo" (isto é, os judeus).51 O contexto imediato dessa
"aflição" era a destruição de Jerusalém, que ocorreu cerca de quinze
anos após Paulo ter escrito 1 Coríntios. Uma das mais severas pressões
que tal crise provocaria seria o impacto destruidor na vida familiar.
Basta visitar países como a Uganda ou o Zimbábue para captar um
pouco da incrível agonia produzida numa situação de guerra. E muito
pouco provável que alguma família tenha deixado de ser afetada de
modo violento pelas longas guerras nesses dois países, na última
década. Qualquer cristão sensível, especialmente os que têm um
coração amoroso de pastor como Paulo, teria o desejo intenso de
poupar de tais sofrimentos as ovelhas sob os seus cuidados. Os fatos
simplesmente indicam que os casais com famílias têm de enfrentar as
experiências mais horríveis em tais ocasiões. De acordo com o
versículo 28: Ainda assim, tais pessoas sofrerão angústia na carne, e eu
queria poupar-vos.
Para entender o raciocínio de Paulo precisamos levar em
consideração diversos fatores históricos. A perseguição aos judeus era
um fato ainda recente.52 As autoridades romanas, na capital e
sobretudo nas províncias, encontravam muitas dificuldades em
determinar as verdadeiras diferenças entre a antiga ameaça do
140
judaísmo e a nova "seita" cristã. A loucura crescente do imperador
Nero já estava começando a se fazer sentir no tratamento vil e bestial
que alguns cristãos recebiam aqui e ali, em todo o império. O próprio
Paulo escapara, havia pouco tempo, de uma perseguição
particularmente cruel em Éfeso, a cidade de onde ele agora escrevia
esta carta.53
Parece que, na mente de Paulo, os acontecimentos ligados à
destruição de Jerusalém (profetizada por Jesus) eram vistos como
exemplos em microcosmo (o mundo mediterrâneo do primeiro
século) do que aconteceria cosmicamente no final dos tempos. Por
isso, era de se esperar que ele aconselhasse perseverança, flexibilidade
e simplicidade diante da situação iminente, se não presente, de grande
precariedade. Se houve alguma solicitação por escrito de um parecer
sobre a sabedoria prática de se entregar a um compromisso vitalício
como o casamento, tais conselhos adquirem um realismo adicional.
Eis o que Hodge54 comenta a respeito: "O apóstolo escreve aos
coríntios como se o fizesse a algum exército prestes a entrar em um
conflito extremamente desigual em um país inimigo, por um tempo
prolongado."
Naturalmente, não é necessário presumir que Paulo visualizasse
alguma perspectiva escatológica. E possível que a igreja em Corinto
estivesse passando por circunstâncias especialmente difíceis, sobre as
quais nada sabemos, mas que o apóstolo conhecia muito bem. "Em
vista dos tempos tormentosos, Paulo achava que era melhor que os
homens permanecessem como estavam. Quando os mares se
encapelam, não é hora de mudar de navio."55
Na segunda afirmação de Paulo, o tempo se abrevia (v. 29), o sentido
literal é: "A crise está para começar". A palavra grega para "tempo",
kairos (cf. 7:5), designa um momento particularmente importante na
economia de Deus. Esse "momento" foi abreviado; por definição, já
não demora muito mais.56 Qualquer que seja a quantidade de tempo
que ainda resta, diz Paulo, sejam condicionados por prioridades não-
mundanas: os casados sejam como se o não fossem; mas também os que
choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se
alegrassem; e os que compram, como se nada pussuíssem; e os que se utilizam
do mundo, como se dele não usassem. Casamentos, funerais, prazeres,
bens, comércio e negócios —Paulo roga que os cristãos se apeguem
muito pouco a esses eventos diários da vida humana.
Nós também não sabemos por quanto tempo estaremos nos
enveredando por esses trilhos familiares. As declarações do apóstolo
adequavam-se à Corinto do primeiro século, mas também são
perfeitamente aplicáveis à presente geração de cristãos nas, até agora,
estáveis sociedades ocidentais do final do século XX. Certamente,
muita gente neste limiar de um novo século (incrédulos, em particular)
tem evitado as responsabilidades familiares normais (por exemplo,
inúmeros casais preferem não ter filhos). Muitos também estão
recusando a existência consumista apregoada pela sociedade
materialista de hoje. A profunda sensibilidade dos europeus,
especialmente na Alemanha Ocidental, para com a ameaça de uma
guerra nuclear está produzmdo um fenômeno social notável no
condado de Cork, na extremidade ocidental da Irlanda. Muitos
alemães ocidentais estão migrando para as comunidades agrícolas de
West Cork com o intuito de ali morar e trabalhar, porque estudos
científicos revelaram que a região é menos vulnerável, no caso de um
conflito nuclear entre as duas superpotências.
Talvez já seja mais do que tempo de os cristãos se lançarem
indagações que exijam respostas ainda mais radicais, com base nos
ensinamentos de Paulo apresentados neste capítulo. Michael Green
interpreta "o tempo se abrevia" (v. 29), como sendo, literalmente,
"recolhido como um velame". Eis sua explicação: "O tempo de Deus
foi recolhido. O Senhor chegou ao ponto central, na cruz e na
ressurreição, e nós nos encontramos entre esse tempo recolhido e a
segunda vinda. Não sabemos quanto vento ainda soprará, mantendo
aberto esse velame, mas sabemos que estamos no período do velame
recolhido."57
As duas notáveis expressões analisadas acima (vs. 26 e 29) fornecem
uma nítida perspectiva da terceira: a aparência (em grego, schema) deste
mundo passa (v. 31). O melhor comentário sobre isto é registrado por
João: "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo ... porque
tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do
mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele,
porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente."58 É
notoriamente tolo aquele que investe em um "esquema" que está em
rápida desintegração.
Esta perspectiva tripla, ainda que simples, do cenário
contemporâneo de Corinto explica de modo muito adequado o
conselho de Paulo às virgens. Em síntese: é bom para o homem
permanecer assim como está (v. 26; o princípio de manutenção da
situação em que se está). Estás casado? não procures separar-te; estás livre
de mulher? não procures casamento (v. 27). Todavia, caso a preferência
do cristão resulte numa consciência excessivamente culposa, ele
acrescenta: Mas, se te casares, com isto não pecas; e também se a virgem se
casar, por isso não peca (v. 28).
Nos versículos 32-35 Paulo apresenta um outro assunto relativo a
sua preocupação em promover o que é decoroso e facilitar o consagrar-
vos, desimpedidamente, ao Senhor (v. 35). Isso nos dá um quadro de
equilíbrio estável e uma devoção desimpedida ao Senhor. A palavra
chave (que aparece seis vezes nos três versículos) refere-se às
"preocupações". A raiz da palavra grega é meros, ou "parte". Quando
Paulo escreve aos coríntios: O que realmente eu quero é que estejais livres
de preocupações (v. 32), está expressando seu cuidado no sentido de que
nada divida suas vidas em partes e assim os fragmente. Os cuidados
e as obrigações da vida em família fazem exatamente isso. Há um
conflito de preocupações na vida do homem casado: o que se casou
cuida ("está fragmentado") das coisas do mundo, de como agradar à esposa
(vs. 33-34). O mesmo acontece à mulher casada (v. 34). Os cristãos
solteiros podem dedicar mais tempo à disciplina espiritual que
proporciona profundidade e impacto notáveis ao ministério. Quando
a pessoa aceita a responsabilidade de cuidar de um companheiro no
casamento, e mais ainda dos filhos, resta pouco tempo para tais coisas.
O apóstolo não é tão ingênuo a ponto de supor que só os cristãos
solteiros podem servir ao Senhor de maneira totalmente integrada. Ele
ainda fala da preocupação única dessas pessoas como algo que abriga
as sementes da não-integração, porque cuidar das coisas do Senhor, de
como agradar ao Senhor;... para ser santa, assim no corpo como no espírito
(vs. 32 e 34), não produz, por si, santidade. Isso é prerrogativa do
Espírito de Deus. Se um solteiro, homem ou mulher (e Paulo
provavelmente inclui ambos neste parágrafo), não se resolveu em
termos emocionais e psicológicos, como também espirituais, quanto
à vocação para o celibato, irá, com freqüência, se ver inclinado a
agradar algum companheiro em potencial, ao invés de agradar ao
Senhor.
Ademais, Paulo não está pronunciando nenhum julgamento moral
neste parágrafo, mas simplesmente declarando fatos (cf. v. 35: Digo isto
em favor dos vossos próprios interesses): o homem casado deve estar
preocupado em agradar à esposa, como também ao Senhor. De modo
nenhum Paulo pretende, através dos seus ensinamentos, amarrar um
cabresto (significado literal de brochos, v. 35: "enredar-vos") no pescoço
dos cristãos casados, submetendo-os, assim, a uma dura escravidão.
Retomamos, pois, a declaração original de Paulo de que tanto o
casamento como o celibato são igualmente charismata, ou seja, dons
da graça de Deus. O cristão solteiro encontra sua integração pessoal
no charisma do celibato; o casado, por sua vez, pode conseguir uma
completa devoção ao Senhor no charisma do casamento.

6. Os noivos (7:36-38)

Entretanto, se alguém julga que trata sem decoro a sua filha, estando já a
passar-lhe a flor da idade, e as circunstâncias o exigem, faça o que quiser. Não
peca; que se casem. 37Todavia, o que está firme em seu coração, não tendo
necessidade, mas domínio sobre o seu próprio arbítrio, e isto bem firmado no
seu ânimo, para conservar virgem a sua filha, bem fará. 38E assim quem casa
a sua filha virgem faz bem; quem não a casa faz melhor.

Tudo indica que havia em Corinto aqueles que exigiam que os noivos
se abstivessem do casamento pelo maior tempo possível —ou até mais.
As pessoas que advogavam tal atitude eram, provavelmente, como
muitos dos que hoje defendem os noivados longos, bem instalados nas
alegrias (e na rotina) da vida a dois. A insistência no auto-controle era
uma questão simples para essa gente. Paulo, entretanto, não permite
que esse tipo de espírito sacrificial seja exaltado, transformando-se na
virtude suprema; nem se prontifica a apoiar a maneira leviana e
despreocupada de lidar com as relações sexuais, defendidas por
alguns noivos mais liberais. Se um casal sente que o seu desejo sexual
é tão forte59 que não conseguem esperar mais tempo, então devem se
casar e que Deus os abençoe; eles "fazem bem” (v. 38); m o pecam (v. 36).
É, praticamente, igual ao conselho dado em 7:9. Se puderem esperar,
também "fazem bem" (v. 37). Ele insiste em que os noivos sejam
sinceros um com o outro; pois deve ser uma decisão firme, muito bem
pensada, baseada na certeza de que os desejos sexuais estão,
controlados de tal maneira que eles podem passar, genuinamente, sem
satisfazê-los. O ponto principal é que tanto os que aguardam algum
tempo antes de se casarem como os que concluem ser "melhor casar
do que viver abrasado" (7:9) não correm o risco de perderem a bênção
de Deus para o seu casamento.

7. As viúvas (7:39-40)

A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o marido,


fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor. 40Todavia será
mais feliz se permanecer viúva, segundo a minha opinião; e pemo que também
eu tenho o Espírito de Deus.
Depois de salientar que o casamento deve durar toda a vida, Paulo
concede às viúvas liberdade completa para se casarem novamente. A
única condição é aquela que ele impõe inflexivelmente a todos os
cristãos que aspiram ao casamento: mas somente no Senhor:60À primeira
vista, a concessão de Paulo parece surpreendente, em face da ênfase
global de todo o capítulo para que o cristão permaneça na condição
em que está. Daí ele acrescenta sua opinião pessoal: uma viúva cristã
será mais feliz se não se casar novamente, apesar da necessidade de
satisfação sexual.
Desde os primórdios registrados em Atos, a igreja reconhecia a sua
responsabilidade especial de cuidar das viúvas da comunidade.61
Parece que uma "ordem de viúvas" foi instituída logo no começo, e
que o cuidado para com elas tomou-se um exemplo prático de religião
pura, "sem mácula, para com o nosso Deus e Pai".62 Após anos de
experiência nas diversas igrejas locais, Paulo insistiu em que Timóteo
estabelecesse regras claras para o funcionam ento de tais
organizações.63 Nas instruções ao seu sucessor em Efeso, de onde
enviou a presente carta aos coríntios, Paulo diz claramente a Timóteo
que rejeite "viúvas mais novas"64 por uma série de motivos negativos
e alguns positivos. Naquele contexto, para Paulo as mulheres
"verdadeiramente viúvas"65 eram as que tinham "ao menos sessenta
anos de idade”.66 Uma mulher mais idosa, enfrentando sozinha os
anos de declínio de sua existência, pode sentir a falta de um
companheiro e, no vácuo de sua vida, ver-se tentada a lançar-se a um
novo casamento, apenas por causa do companheirismo.
O fato de o apóstolo novamente (7:40) referir-se à sua opinião
pessoal (como em 7:25) talvez revele a natureza embrionária de suas
idéias neste estágio. A observação final: e penso que também eu tenho o
Espírito de Deus (v.40), pode conter certa inclinação levemente irônica
que freqüentemente parece colorir o relacionamento do autor com a
igreja em Corinto.

Notas:
1. Bruce, pág. 66.
2. Barrett, pág. 154.
3. G n 2:18.
4. Paulo não está dizendo que o casam ento não tem nenhum outro propósito
além de agir com o profilaxia contra a fornicação, m as que serve para esse
propósito. H om ens e m ulheres têm necessidades sexuais, e se estes forem
expressos dentro da instituição que Deus m esmo designou, haverá m enos
possibilidade de serem expressos por meios que Deus proibiu. O casamento,
além disso, deve ser real, não "espiritual" (Barrett, pág. 156).
5. G odet, I, pág. 322.
6. Ibid., pág. 317.
7. Bruce, pág. 67.
8. Godet, I, pág. 324.
9. M orris, pág. 85.
10. Ibid., pág. 85.
11. N.B.: essa "sinfonia" deveria ser a característica perpétua do casamento cristão.
12. "O casam ento deve ser real, e qualquer tentativa de espiritualizá-lo da parte
de um dos parceiros significa que o outro está sendo defraudado" (Barrett,
pág. 156).
13. M t 18:19.
14. I P e 3:1-7.
15. E fascinante descobrir que no judaísm o os hom ens recém -casados eram
dispensados da obrigação de recitar o "Shema", "pela razão evidente de que
sua m ente estaria ocupada de tal m aneira que não poderiam dispensar a
devida atenção à oração" (Barrett, pág. 156).
16. M orris, pág. 85.
17. A lio (pág. 158): "O apóstolo, com o seu bom senso, sua m oderação e com a
exatidão de sua percepção psicológica, teme aqui que o zelo irrestrito de um
dos cônjuges possa im por ao outro, menos altruísta ou meiros disciplinado,
um a pressão m oral que ele não teria capacidade de suportar, expondo-se à
infidelidade ou a outras tentações."
18. 1 Co 6:9-20.
19. A palavra tem a conotação de uma avaliação solidária da situação deles.
20. Cf. o ensinam ento de Jesus em M t 19:10ss., onde ele responde ao crescente
senso de alienação dos discípulos em relação a um casam ento que honrasse
a D eus e estivesse verdadeiram ente centralizado nele. Ele diz: "Q uem
repudiar sua m ulher, não sendo por causa de adultério, e casar com outra,
comete adultério" (v 9). "Nem todos são aptos para receber este conceito, mas
apenas aqueles a quem é dado. Porque há eunucos de nascença; há outros a
quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos,
por causa do reino de Deus. Quem é apto para o adm itir, adm ita." Paulo foi
um dos que foram capazes de aceitá-lo.
21. "A graça necessária para se viver um casamento de maneira cristã não é menor
do que a necessária para se viver de maneira cristã o celibato" (Godet, I, pág.
328).
22. Ibid., pág. 328.
23. Em A t 26:10, em sua defesa diante de Agripa em Jerusalém , Paulo se refere
ao exercício de seu direito de votar nos processos do Sinédrio. Como membro
desse grupo, ele deveria ser casado.
24. Q uanto à sua referência às "viúvas", veja os com entários sobre 7:39-40.
25. Tam bém Barrett, pág. 161.
26. Para uma interpretação totalm ente diferente desta frase (que iguala
basicam ente o "abrasar-se" com os tormentos do Geena), veja Bruce, pág. 68.
27. Especialm ente págs. 162-163.
28. Cf. D t 24:1-4.
29. Diversos mestres, inclusive Bruce (pág. 69) e Moffatt (citado por M orris, pág.
146
87), enfatizam que os escrúpulos de Paulo em citar os termos exatos de Jesus
destacam a exatidão histórica dessas palavras conform e o registro que
possuímos e a integridade da igreja primitiva em não "inventar” tais palavras
para resolver as disputas existentes na com unidade cristã.
30. Mc 10:9,11. cf. Ml 2:13ss., culminando com "O Senhor Deus de Israel diz que
odeia o repúdio".
31. M t 5:32; 19:9.
32. N .B.: a ordem dada à esposa para não se "separar" (choristhenai), m as ao
m arido para não se "divorciar" (aphienai), "talvez reflita o fato de que, no
judaísmo, apenas o marido tinha o direito de divorciar-se" (Barrett, pág. 161).
Na verdade, o comentário de Godet sobre esta passagem tem o mérito de um
bom senso prosaico: "O motivo (da diferença de palavras) talvez seja porque
o homem esteja em sua própria casa, e permanece lá, enquanto a mulher deixa
o seu dom icílio" (I, pág. 334).
33. 2 Co 5:17.
34. Cf. 2 Co 6:14.
35. I P e 3:1-2.
36. A preposição grega é en. Im aginam os que Paulo esteja argum entando,
baseando-se na realidade de "uma só carne" em 6:16ss., dizend o que D eus
considera os dois indivíduos que se uniram pelo casam ento com o um só, e
que essa unidade é a verdade fundam ental que produz a consagração do
cônjuge incrédulo no (literal e fisicam ente) crente.
37. Citado em Barrett, pág. 165.
38. M orris, pág. 88.
39. E preciso dizer que alguns comentaristas têm um ponto de vista exatam ente
oposto acerca das perguntas de Paulo no versículo 16, isto é: "Pois, como sabes,
ó mulher, se salvarás a teu marido?" Cf. M orris (pág. 89): "Para outros, o que
Paulo quer dizer é que o casamento não deve ser considerado sim plesm ente
com o um instrum ento da evangelização. A garrar-se a um casam ento que o
pagão está determ inado a term inar não levaria a nada, senão a frustração e
tensão. O esforço certo não é justificado pelo resultado incerto."
40. 1 Co 9:22.
41. Em um sermão pregado na Igreja de St. Aldate, Oxford, em dezembro de 1979.
42. Barrett, pág. 166. .
43. 1 Co 1:9.
44. Barrett, pág. 170.
45. Peripatein é um a palavra predileta de Paulo para descrever o com portam ento
diário do cristão; cf. Ef 2:2,10; 4:1,17; 5:2,8,15.
46. Cf. l T s 4:9-12; 2 Ts 3:6-13.
47. No livro The Source de James Michener, conta-se a história de um jovem judeu
que desejava tornar-se igual aos gregos: então ele passou por um a dolorosa
operação cirúrgica a fim de remover as marcas da circuncisão. Isso era comum
nos jo go s olím picos, em que os atletas com petiam nus.
48. Tem os um trio fascinante de versículos paralelos sobre a questão da
circuncisão em 1 Co 7:19, G1 5:6 e G1 6:15. O problem a que Paulo enfrentou
com o partido da circuncisão nas igrejas da Galácia, e também em toda a saga
de sua confrontação com Pedro sobre este assunto, indica que em C orinto a
controvérsia não foi tão pronunciada. Nas igrejas da G alácia, o debate se
d ifund iu tanto e se tornou tão determ inante que o próprio fundam ento do
evangelho foi perigosamente posto em jogo. Nos dois casos m encionados em
Gálatas há uma referência explícita a certos indivíduos que estavam tentando
levar os cristãos a um a escravidão pessoal.
49. Para obter detalhes, cf. Bruce, págs. 73-74.
50. Bruce, pág. 74.
51. Lc 21:23.
52. A presença de A qüila e Priscila em Corinto com o principais com panheiros
de Paulo devia-se a um decreto im perial que expulsou todos os ju d eus de
Rom a; cf. A t 18:1-2.
53. Cf. A t 19.
54. C itado em Bruce, pág. 74.
55. M orris, pág. 93.
56. Cf. E f 5:16, onde as oportunidades apresentadas por esse kairos devem ser
agarradas com urgência.
57. Uma citação do sermão pregado na Igreja de St. Aldate, Oxford, em dezembro
de 1979.
58. l j o 2:15-17.
59. "Se suas paixões são fortes" é uma paráfrase da palavra grega hyperakmos, que
pode se referir ao hom em hipersexuado, ou à muiher que chegou ao apogeu
em term os de fertilidade.
60. Esta frase pode significar, de um modo mais geral, "apenas dentro da vontade
do Senhor". N esse caso, devemos prestar atenção a outras questões, além do
fato de o cônjuge proposto ser cristão.
61. A t6 :ls s .
62. Tg 1:27.
63. Cf. 1 Tm 5:
64. 1 Tm 5:11.
65. 1 Tm 5:3.
66. 1 Tm 5:9.
1 Coríntios 8:1-13
8. Liberdade e Sensibilidade Diante dos
Outros

A próxima seção de valor substancial (8:1 - 11:1) abrange a resposta


de Paulo a um assunto muito polêmico em Corinto, bem como em
toda a igreja primitiva: No que se refere às coisas sacrificadas a ídolos... (ton
eidolothuton). A problemática aqui discutida não é diretamente
relevante aos dias de hoje. Barclay explica:

O sacrifício aos deuses era uma parte integrante da vida antiga.


Havia dois tipos: particular e público. No sacrifício particular, o
animal era dividido em três partes. Uma parte simbólica era
queimada sobre o altar...; os sacerdotes recebiam a porção a que
tinham direito...; o próprio adorador recebia o restante da carne,
com o qual oferecia um banquete. As vezes essas festas eram
realizadas na casa dos ofertantes; em outras, eram realizadas no
templo do deus ao qual o sacrifício era oferecido... O problema
que os cristãos enfrentavam era o seguinte: "Podiam participar
dessas festas? Podiam colocar na boca uma carne que fora
oferecida a um ídolo, a um deus pagão?" Se não podiam, então
estariam se excluindo de quase todos os acontecimentos sociais...
No sacrifício público... depois que a porção simbólica era
queimada e os sacerdotes recebiam a sua parte, o restante da
carne era entregue aos magistrados e a outras autoridades. O que
eles não chegavam a aproveitar era vendido aos açougues e
mercados; conseqüentemente, mesmo a carne vendida nos
açougues poderia já ter sido oferecida a algum ídolo ou deus
pagão...
O que complicava ainda mais o problema era a velha crendice
e o forte temor em relação aos demônios... que estavam sempre
à espreita, aguardando uma brecha para entrar no corpo de um
ser humano e, se o conseguissem, prejudicavam esse corpo e
traziam distúrbios à sua mente... Os espíritos se alojavam na
carne que o homem comia e assim penetravam nele. Uma das
maneiras de evitar isso era dedicar a carne a algum deus bom...
Daí, dificilmente alguém podia comer carne que não fosse, de
algum modo, dedicada a um deus pagão. Será que o cristão podia
comer dessa carne? ... Para os cristãos de Corinto, ou de qualquer
outra grande cidade, este era um problema que afetava a vida
como um todo e que tinha de ser definitivamente resolvido.1

Constatamos, então, que a questão do ta eidolothuta possuía dois


aspectos: 1) Participar ou não da festa em homenagem a ídolos? 2)
Comer ou não a carne de origem duvidosa comprada nos açougues?
A situação inevitavelmente se agravava em virtude das estritas leis
dietéticas dos judeus e dos numerosos rigoristas pertencentes à igreja
de Corinto. Complicações maiores devem ter sido introduzidas pelo
famoso decreto de Jerusalém,2no qual os gentios que se convertiam
eram aconselhados insistentemente a se absterem dos alimentos
sacrificados a ídolos.
Embora Paulo jamais tivesse aplicado o decreto em Corinto (até
onde podemos julgar), provavelmente os membros do partido de
Pedro3 o usaram como forte argumento para apoiar o rigorismo deles.
Bruce4 faz a importante observação de que Paulo é a única
personalidade autorizada na igreja apostólica ou subapostólica que
não resolve a controvérsia da "carne oferecida aos ídolos" por meio
de um interdito absoluto. Isso reitera sua determinação de não
permitir que os legalistas vencessem essa disputa absolutamente
crucial. A controvérsia envolvia os hábitos cotidianos do povo, e ceder
aos rigoristas, por menos que fosse, poderia ter sido fatal.
Os rigoristas judeus da comunidade cristã de Corinto poderiam
apresentar três objeções fundamentais a favor da proibição de tal
alimento aos judeus: a) era manchado pela idolatria; b) os pagãos não
davam o dízimo sobre ele; c) provavelmente o animal não teria sido
morto de maneira adequada. Mas, e quanto à posição dos cristãos em
geral? Havia o grupo anti-rigor is ta que devia considerar todo esse
debate pueril e aviltante: qual a vantagem de os libertos em Jesus
Cristo desenvolverem escrúpulos meticulosos na questão dos
alimentos, especialmente quando isso os excluía virtualmente de todo
e qualquer relacionamento social com as demais pessoas de Corinto?
Além de se exporem ao ridículo, toda e qualquer evangelização eficaz
seria praticamente aniquilada. Paulo via-se novamente enfronhado
numa batalha de duas frentes: como manter os dois grupos satisfeitos,
defendendo, ao mesmo tempo, a verdade do evangelho? Já havia
divisões em excesso entre os cristãos de Corinto e ele não desejava
alimentar ainda mais esse fogo.
Uma análise global dos argumentos de Paulo em 8:1-11:1 evidencia
que ele é essencialmente a favor da liberdade (veja especialmente 8:8,
9:1-12,19a). Ele defende dois tipos de liberdade: a liberdade absoluta
em Cristo (8:8; 9:19 e 10:29) e a liberdade de limitar a própria liberdade
por amor a algum irmão cuja consciência é menos forte (8:13,9:12,15,
19). E significativo que Paulo realmente conclua a exposição de suas
convicções pessoais (9:24-27) admitindo que ele pratica essa limitação
voluntária de sua liberdade absoluta em Cristo também para o seu
próprio bem: "para que... não venha eu mesmo a ser desqualificado".
Após uma visão panorâmica dos três capítulos que compõem a
presente seção, examinemos agora, mais detalhadamente, o capítulo
8, onde Paulo expõe três valiosas perspectivas da controvérsia: o
princípio básico do amor, a verdade fundamental sobre Deus e a
consideração suprema a ser estabelecida em qualquer debate de cunho
ético.

1. O princípio básico: o amor edifica (8:1-3)

No que se refere às coisas sacrificadas a ídolos, reconhecemos que todos somos


senhores do saber. O saber ensoberbece, mas o amor edifica. 2Se alguém julga
saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como convém saber. 3Mas
se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.

Recordemos, inicialmente, os dois principais partidos de Corinto.


Enquanto os legalistas recomendavam: "Façam o que diz a lei"; os
libertinos retrucavam: "Nós sabemos o que é melhor; sejam livres". A
resposta essencial de Paulo é a seguinte: o que importa realmente é o
amor, não o conhecimento de um tipo (negativo ou legalista) ou de
outro (permissivo). Paulo não está aqui condenando totalmente o
"conhecimento". Ele está preocupado com que o verdadeiro amor
agape controle e caracterize a gnosis ("conhecimento"). O espírito com
que dizemos o que é certo faz parte da verdade assim como o
conhecim ento que enunciamos. Como Godet o expõe: "O
conhecimento desprovido do amor e do poder para edificar, quando
examinado mais detalhadamente, nem chega a ser verdadeiro
conhecimento."5
A palavra conhecimento (gnosis) ocorre seis vezes nos três versículos,
fomecendo-nos a visão nítida do que finalmente transformou-se em
um debate gnóstico aberto. Citam-se, por exemplo, alguns dos lemas
dos libertinos: todos somos senhores do saber (v. 1), com ênfase, sem
dúvida, no aspecto pessoal (todos). Podem-se discernir dois outros
lemas no versículo 4. Paulo está interessado em restituir o
conhecimento ao seu devido lugar, à sua expressão apropriada, ao seu
contexto, com o seu necessário contraponto. O conhecimento em si,
particularmente o do tipo alardeado por aqueles peritos coríntios,
apenas ensoberbece, deixando o seu possuidor parecido com um balão
inflado. Esta não é a primeira vez que Paulo tem de arremessar esta
advertência contra eles.6 O conhecimento é importante; todos nós o
possuímos em alguma medida; mas por si só ele é inflado e vazio. O
cristão precisa estar cheio de amor, porque o amor edifica (v. 1). Um
balão estoura com uma simples alfinetada, mas uma parede é capaz
de sustentar todo o nosso peso.
Paulo anseia que a igreja de Corinto seja forte e firme o bastante
para suportar grandes pesos; isso exige a base sólida do verdadeiro
amor cristão, que não ensoberbece.7 Quando o caráter de um cristão
é controlado pelo amor e cresce em verdadeiro conhecimento, já não
se preocupa tanto em saber o quanto conhece acerca de Deus,
importando-se mais em ser por ele conhecido. Eis aí a prova do
verdadeiro amor a Deus.8 Nenhum conhecimento verdadeiro gera
orgulho por aquilo que sabemos, mas humildade pelo que não
conhecemos.
Essa verdade atacou diretamente a perspectiva gnóstica da religião,
que era essencialmente gananciosa e egocêntrica, produzindo
perguntas como "Até onde posso ir?" e "O que lucro com isso?” Esse
enfoque ganancioso é o oposto exato do amor agape, que deseja dar,
ajudar, edificar os outros. Amar a Deus — que só pode ser uma
resposta ao amor dele por nós, revelado em seu Filho (especialmente
em sua morte por nós)9 — é entrar na aventura de sermos conhecidos
por ele. Todo conhecimento verdadeiro, portanto, penetra no
conhecimento perfeito que Deus tem de nós.
Agora, todo o nosso conhecimento é parcial10 e, portanto, é
extremamente arrogante supervalorizá-lo, sobretudo em se tratando
do tipo esotérico e exclusivo exibido pelos gnósticos,11 cuja versão de
"superioridade" espiritual corresponde à antítese do verdadeiro amor­
agape, demonstrado no auto-sacrifício de Cristo. Esse amor edifica o
corpo de Cristo.
Podemos agora aplicar esse princípio básico à questão específica do
alimento oferecido aos ídolos. Eis a prem issa de Paulo: o
conhecimento especializado sobre as origens rituais e religiosas de um
determinado pedaço de carne, colocado à venda no mercado ou
152
servido na mesa de jantar do anfitrião, em nada contribui para edificar
a fé dos outros cristãos. O mais importante é o impacto que a nossa
ação pode causar sobre um irmão ou irmã nessa situação delicada. O
conhecimento de sutilezas teológicas, ou mesmo dos fundamentos
cristãos, nada acrescentará, exceto a admiração dos outros diante do
nosso conhecimento.
Se, por outro lado, atentarmos cuidadosamente para a reação dos
companheiros cristãos ao nosso comportamento, e com base nisso
optarmos por este ou aquele procedimento, estaremos edificando o
corpo de Cristo. Portanto, cada um de nós tem o dever de lutar para
tornar construtivo todo o comportamento, perguntando a si mesmo:
"As pessoas estão sendo aproximadas de Deus? Os cristãos estão
sendo fortalecidos na fé? As pessoas gostam de me conhecer?"
Quando os conhecimentos de um cristão são irradiados e propagados
em amor, fica claramente demonstrado que ele conhece a Deus e que
Deus o conhece, ou seja, que há um relacionamento pessoal cada vez
mais íntimo entre eles.

2. A verdade fundamental: há um só Deus (8:4-6)

No tocante à comida sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo de si mesmo nada


é no mundo, e que não há senão um só Deus. sPorque, ainda que hã também
alguns que se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a terra, como há muitos
deuses e muitos senhores, 6todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem
são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo
qual são todas as coisas, e nós também por ele.

Dentro do "conhecimento" daqueles "entendidos" de Corinto, incluía-


se o fato óbvio (para eles) de que a idolatria local nada significava: o
ídolo de si mesmo nada é no mundo (v. 4). Paulo concorda prontamente
e também endossa as outras premissas do grupo: não há senão um só
Deus. É igualmente verdadeiro, diz Paulo, que há alguns que se chamem
deuses, mas "todos os deuses dos pagãos não passam de ídolos”.12 Isso
é fundamental, de modo que jamais devemos permitir que alguém nos
desvie dessa base.
Se, aceitássemos simplesmente o ditado dos gnósticos coríntios, não
há senão um só Deus, poderíamos argumentar que, na verdade, tanto
eles como nós estamos adorando o mesmo Deus, mas com outros
nom es e de m aneiras diferentes. No ambiente sincretista e
universalista, m uito comum na atualidade, o escândalo da
exclusividade na mensagem do cristianismo é rejeitado ou
gentilmente posto de lado.
Examinando, porém, o versículo 6 com mais cuidado, vemos Paulo
asseverando: todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as
coisas e para quem existimos; e um sd Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas
as coisas, e nós também por ele. E o apóstolo acrescenta que, embora
muitos se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a terra, como há muitos
deuses e muitos senhores (v. 5); ele está se referindo categoricamente a
Deus, o Pai (e precisamos observar nessa frase a riqueza da teologia
neotestamentária sobre a paternidade de Deus) e a Jesus Cristo,
atribuindo-lhes a mesma autoridade e posição. Eles têm funções
diferentes, claramente expressas nas preposições gregas: o Pai é aquele
de (ek, no grego) quem vêm todas as coisas; isto é, ele é a fonte e a
origem; ele é também o alvo (eis, no grego) e o propósito de nossa
existência. Jesus Cristo é o agente e o mediador; ou seja, aquele pelo
(dia, no grego) qual tudo e todos vieram a existir.
O substituto mais natural de "nós" nesta passagem é "os cristãos":
conseqüentemente, Jesus é a ponte para Deus, ele é o intermediário,
o mediador, o caminho até Deus.13Esta é a verdade fundamental da
qual Paulo não se afasta. Existem diferanças elementares e
inconciliáveis entre Deus, que é Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e as
divindades adoradas em todas as outras religiões, embora muitas
semelhanças periféricas possam ser citadas.
O que dizer, então, dos muitos que se chamam deuses e senhores no
céu e na terra? A perspectiva bíblica parece consistente e clara. Eles
são meras "cópias" (eidola), isto é, não têm nenhuma existência real.
Desse modo, a palavra "ídolo" tanto designa a imagem feita de
madeira ou pedra, como a divindade venerada nessa idolatria. Em
Isaías lemos: "Todos os artífices de imagens de escultura são nada, e
as suas coisas preferidas são de nenhum préstimo."14 Segue-se a esse
trecho uma extensa lista de artífices que se unem para formar um
ídolo: o ferreiro, o carpinteiro, o madeireiro, o padeiro, o cozinheiro
—todos trabalhando com o mesmo pedaço de madeira da floresta,
para depois se prostarem para adorar aquela matéria sem vida. Tudo
isso é manifestamente irreal e desprovido de verdade espiritual: é
nada.
E essa não é toda a história por trás da perspectiva do Antigo
Testamento acerca da idolatria. Há uma passagem interessante em
Deuteronômio, que relata o seguinte:
Mas, engordando-se o meu amado [isto é, Judá] deu coices;
engordou-se, engrossou-se, ficou nédio,
e abandonou a Deus, que o fez,
desprezou a Rocha da sua salvação.
Com deuses estranhos o provocaram a zelos,
com abominações o irritaram.
Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus;
a deuses que não conheceram,
novos deuses que vieram há pouco
dos quais não se estremeceram seus pais.15

Os deuses dos cultos pagãos não são deuses no sentido pleno da


palavra; são simplesmente ídolos, isto é, objetos de adoração feitos
pelo homem. Mas por trás dessas "cópias" (eidola) encontram-se forças
espirituais, chamadas "demônios" na citação acima.
De maneira nenhuma tal conceito pertence exclusivamente ao
Antigo Testamento. Em 1 Tessalonicenses 1:9, ele é, pelo menos,
sugerido; e, em Gálatas 4:8-9, é declarado expressamente quando
Paulo relembra aos cristãos: "Outrora, porém, não conhecendo a Deus,
servíeis a deuses que por natureza não o são; mas agora que conheceis
a Deus, ou antes sendo conhecidos por Deus, como estais voltando
outra vez aos rudimentos ("poderes espirituais" na BLH) fracos e
pobres, aos quais de novo quereis ainda escravizar-vos?" Eles podem
ser "fracos e pobres", mas ainda são "poderes espirituais".
É evidente que o culto aos ídolos é tanto irreal como muito real. O
próprio Paulo o afirma em 10:19-20: "Que digo, pois? que o sacrificado
ao ídolo é alguma coisa? ou que o próprio ídolo tem algum valor?
Antes digo que as coisas que eles sacrificam, é a demônios que as
sacrificam, e não a Deus; e eu não quero que vos tomeis associados aos
demônios." Esses "demônios" não são idênticos àquilo que os
adoradores pagãos acreditam serem seus "deuses”. Envolver-se com
qualquer tipo de idolatria é abrir a porta à influência dos demônios,
dos agentes de Satanás que desejam ardentemente a nossa adoração
e são grandes mestres da fraude e da destruição.16
Essa perspectiva tem uma aplicação pastoral significativa para os
dias de hoje. Os cristãos que já se envolveram em práticas não-cristãs
de adoração geralmente necessitam de uma ministração específica na
área de demonismo. O próprio Paulo não alimenta nenhuma ilusão:
existe uma grande possibilidade de membros maduros de uma
comunidade cristã ainda estar em contato com demônios.17Isso não
quer dizer que os cristãos podem ser possuídos por demônios, uma
possibilidade que, teológica e pastoralmente, parece letal. O ministério
para a libertação de tais forças demoníacas precisa ser, portanto,
assumido por cristãos sábios, experientes e informados. Ademais,
toda uma rede de forças espirituais parece estar operando
sorrateiramente sempre que homens e mulheres estão à procura de
satisfação, realização, identificação e (especialmente) contato com "o
divino", por mais vaga que seja sua definição de Deus. Se existe um
caso de confrontos com ideologias rivais que competem com o Senhor
Jesus Cristo pela a fidelidade de uma pessoa, precisamos estar prontos
para exercer um ministério direto para libertar essa pessoa de tal
escravidão. Os prováveis resultados do envolvimento demoníaco são
confusão, falta de objetividade e uma submissão passiva a outras
forças nas decisões pessoais. Tal ministério faz-se especialmente
importante onde houve participação em cultos ligados ao misticismo
oriental, ou associados a técnicas de lavagem cerebral, ou diretamente
envolvidos com práticas de ocultismo, ou misturados ao uso de
drogas.

3. A consideração suprema: o irmão pelo qual Cristo morreu


(8:7-13)

Entretanto, não há esse conhecimento em todos; porque alguns, por efeito da


familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas coisas como a ele
sacrificadas; e a consciência destes, por ser fraca, vem a contaminar-se. sNão
é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos se não
comermos, e nada ganharemos se comermos. 9Vede, porém, que esta vossa
liberdade não venha de algum modo a ser tropeço para os fraco s.10Porque, se
alguém te vir, a ti, que és dotado de saber, à mesa, em templo de ídolo, não será
a consciência do que é fraco induzida a participar de comidas sacrificadas a
ídolos? nE assim, por causa do teu saber, perece o irmão fraco, pelo qual Cristo
morreu. UE deste modo, pecando contra os irmãos, golpeando-lhes a
consciência fraca, é contra Cristo que pecais. 13E por isso, se a comida serve
de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a
escandalizá-lo.

Novamente retornando à questão dos alimentos oferecidos a ídolos,


Paulo comenta que há cristãos em Corinto que ainda não captaram a
verdade fundamental por ele explicada há pouco: porque alguns, por
efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas coisas como
a ele sacrificadas (v. 7). Tais pessoas pensam que os ídolos são reais e,
portanto, capazes de contaminar aquele que come. Eles mantiveram
por muito tempo um grande contato com a idolatria; por isso, Paulo
não discute o assunto, mas defende com muita força a necessidade de
o irmão "forte" (isto é, que tem conhecimento) não agradar a si mesmo,
mas considerar o irmão mais fraco. Tendo dito isto, Paulo expõe
inequivocamente o princípio espiritual: Não é a comida que nos
recomenda a Deus, pois nada perderemos se não comermos, e nada
ganharemos se comermos (v. 8).
O homem "fraco" nesta discussão é o irmão hipersensível a tais
assuntos; ele é um cristão superlegalista e rigorista, cuja tendência é
evitar tudo o que seja duvidoso, para não prejudicar seu
relacionamento com Deus. Paulo expressa claramente o desejo de que
essa pessoa "fraca" cresça, tomando-se "forte". Mas, nem por isso, tenta
persuadi-la a assumir tal posição. A carga recai sobre o homem "forte",
liberto de convenções humanas e preconceitos: "você deve limitar sua
própria liberdade voluntariamente." Assim, o forte é que deve
reajustar-se para ajudar o fraco, e não o contrário.
Os argumentos acumulados por Paulo nos versículos 9 a 13 são
muito fortes. Primeiro, a liberdade cristã, quando acentuada, pode
tomar-se uma'pedra de tropeço para o cristão fraco, causando o seu
enfraquecimento na fé, e não o seu desenvolvimento, podendo
também levá-lo a agir de forma totalmente contrária ao que a sua
consciência lhe permite, no estágio em que se encontra (v. 10). De fato,
o cristão é assim induzido a uma ação que não é baseada na fé, e, para
Paulo, tal ato é pecaminoso.18
Em segundo, lugar, devemos sempre fazer uma pausa para
contemplarmos cada companheiro cristão como o irmão ... pelo qual
Cristo morreu (v. 11), e não apenas como um bom irmão da igreja ou
até mesmo como um membro dedicado de nossa comunidade.
Quando nos disciplinarmos até esse ponto, tudo faremos, dentro do
nosso alcance, para evitar qualquer ação que venha a destruir o irmão
fraco.
Em terceiro lugar, quando pecamos contra um irmão dessa maneira
e ferimos a sua consciência fraca, estamos na realidade pecando contra
Cristo (v. 12).19É fácil ignorar a presença real de Jesus em nosso irmão.
A conclusão inevitável dos ensinamentos de Paulo neste capítulo
é que fazer "coisas duvidosas" apenas por exibicionismo nunca é uma
demonstração da verdadeira liberdade cristã. A proposta de Paulo no
versículo 13 resume perfeitamente o conteúdo do capítulo: E por isso,
se a comida serve de escândalo a meu irmão (no grego, literalmente, "faz
tropeçar"),20 nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-
lo. Meu irmão: esta é a ênfase que os defensores do conhecimento
precisavam assimilar.
Outro tema importante é a questão da consciência, três vezes
enunciada no texto (vs. 7, 10 e 12). Em todas as ocorrências essa
palavra chave vem acompanhada do adjetivo "fraca" (no grego,
astfienes), e refere-se obviamente ao cristão cuja vida em Cristo, depois
de salvo do paganismo, ainda era relativamente curta. Tal pessoa teria
experimentado uma mudança realmente dramática no estilo de vida.
O estilo de vida coríntio envolvia uma porção de atividades sociais,
tanto recebendo como dispensando hospitalidade. Bruce cita um
exemplo extraído de um papiro da época: "Chaeremon o convida a
jantar à mesa do Senhor Serápis no Serapeion (templo de Serápis)
amanhã, dia 15, às 9 horas."21
Devia haver um contraste enorme entre "agir como um coríntio" e
"ser um cristão". As decisões concernentes à hospitalidade e às
relações sociais em geral deviam ocupar um tempo considerável.
Quanto menos frágil a consciência cristã, mais amplo o campo do
testemunho cristão. Quanto mais sensível a consciência, maior a
tentação de se recolher no gueto cristão ou, pelo menos, na sua
mentalidade.
Havia, portanto, uma necessidade crucial de que as consciências
dos cristãos fossem devidamente instruídas sobre as coisas que
realmente tinham importância na sociedade contemporânea. Paulo
explora o mesmo tema em 10:23-30. Se a igreja cristã de Corinto
pretendia influenciar o paganismo desenfreado daquela cidade
portuária licenciosa, os cristãos precisavam ser menos sensíveis às
"coisas duvidosas". Paulo queria que a vida de fé estendesse suas
fronteiras até cada beco escuro e cada pocilga de Corinto. A
propagação do evangelho exigia consciências mais fortes do que as de
muitos cristãos, coríntios e romanos. Para tanto, cada um tinha de ser
paciente, não crítico., sensível e absolutamente comprometido com a
edificação da vida da comunidade cristã como um todo.
Se um cristão é guiado pelo exemplo de um outro, que ele considera
um irmão "forte" ou dotado de saber (v. 10), para tomar decisões ou
escolher determ inado procedimento sobre o qual não orou
pessoalmente e não entendeu a vontade do Senhor para si, então sua
conduta não envolve fé. O próprio julgameiito de Paulo condena esse
modo de agir como uma atitude pecaminosa: sua consciência foi
golpeada (v. 12) ou ferida (no grego, typtontes: desferir golpes sobre
a cabeça de alguém). O cristão inexperiente toma-se até menos capaz
de atingir a maturidade e tomar decisões centralizadas na pessoa de
Jesus Cristo.
Na concepção de Paulo, portanto, a pessoa "forte” é o cristão que
158
permite que apenas o Senhorio de Cristo dite ou determine seu
comportamento diário; para ela, a vida não tem barreiras. Mas para
inúmeros cristãos, essa força é tão distante que não passa de quimera.
O que devemos fazer? "Ora, nós que somos fortes, devemos suportar
(literalmente, "carregar", bastazein) as debilidades dos fracos, e não
agradar-nos a nós mesmos. Portanto cada um de nós agrade ao
próximo no que é bom para edificação."22
A chave está nesta frase pequena, mas incômoda: "não agradar-nos
a nós mesmos". Essa atitude vai diretamente contra a natureza,
sobretudo contra a natureza dos coríntios, que tanto nutriam os "meus
direitos". Toda a argumentação de Paulo neste capítulo é um exemplo
prático de obediência à lei do amor: o amor se restringe para o bem
dos outros. Fazer com que um único irmão tropece uma só vez é, para
Paulo, um perigo tão constemador, que ele prefere nunca mais tocar
em carne a fim de evitar tal desastre. Eis o verdadeiro amor cristão e
- Paulo afirma com igual fervor - a verdadeira liberdade cristã.

Notas:
1. Barclay, págs. 79ss.
2. A t 15:29.
3. Cf. 1 Co 1:12.
4. Bruce, pág. 79.
5. G odet, I, pág. 408.
6. Cf. 1 C o 4:6,18; 5:2.
7. Cf. 1 Co 13:4.
8. Cf. G 14:8-9.
9. Cf. I jo 4 :1 0 .
10. 1 Co 13:8.
11. Q uanto aos gnósticos, devem os nos lem brar de que, com o um a heresia
totalmente formada, o gnosticismo foi um fenômeno do segundo século. Paulo
se referiu apenas a um gnosticism o incipiente.
12. Cf. SI 96:5, versão do Livro de Orações.
13. Cf. ]o 14:6; Rm 11:26; Cl l:15ss.; 1 Tm 2:5-6.
14. Is44:9ss.
15. Dt 32:15-17.
16. N ão é isto o que se acha por trás da condenação intransigente de certos
elem entos nas igrejas de Pérgam o e Tiatira (Ap 2:14 e 20)?
17. Cf. 1 Co 10:19-22.
18. R m 14:23.
19. Cf. M t25:41ss.
20. Cf. M c 9:42.
21. Bruce, pág. 81.
22. R m 15:1-2.
1 Coríntios 9:1-27
9. Liberdade para Limitar
a Própria Liberdade

O grande clamor de Paulo pela liberdade cristã continua ainda neste


capítulo. Sua maior preocupação era usar a própria liberdade para
limitar a sua liberdade por amor ao evangelho. O apóstolo é franco no
que se refere aos seus direitos, evocando, se não parodiando, o lema
dos coríntios, mas ele conclui toda a sua argumentação com a
autodisciplina que tudo isso deve promover (vs. 24-27). De fato, o
verdadeiro clímax da argumentação de Paulo nesta seção está no
desafio de 11:1: "Sede meus imitadores, como também eu sou de
Cristo".

1. Sou livre em Cristo (9:1-6)

Não sou eu, porventura livre? não sou apóstolo? não vi a Jesus, nosso Senhor?
acaso não sois fruto do meu trabalho no Senhor? 2Se não sou apóstolo para
outrem, certamente o sou para vós outros; porque vós sois o selo do meu
apostolado no Senhor.3A minha defesa perante os que me interpelam é esta:
4Não temos nós o direito de comer e beber? 5e também o de fazer-nos
acompanhar de uma mulher irmã, como fazem os demais apóstolos, e os irmãos
do Senhor, e Cefas? 6Ou somente eu e Bamabé não ternos direito de deixar de
trabalhar?

Como já sabemos, certos irmãos de Corinto viviam questionando, a


autoridade de Paulo, especialmente o fato de ele afirmar ser um
apóstolo. Eles pensavam que tinham credenciais muito melhores do
que Paulo. Diziam serem apóstolos, fundamentados em bases muito
mais sólidas. Na opinião deles, um apóstolo era alguém com
autoridade tal, que fazia todos perceberem essa sua autoridade. E eles
impunham isso a todos; qualquer um que não agisse da mesma forma
não poderia ter a pretensão de arcar com alguma responsabilidade na
igreja. Eles entendiam a liderança cristã em termos de serem senhores,
e não servos. Eles criticavam Paulo porque ele não era assim: era
"fraco" demais, "tolerante" demais, sempre pronto a negar a sua
própria liberdade em Cristo por amor aos outros.1
Assim, Paulo explica com exatidão como ele encara sua liberdade
em Cristo, especialmente como prefere limitá-la de forma deliberada
e livre, em beneficio dos outros. Isso, diz ele, é um sinal de força, não
de fraqueza.
Ao longo de toda a passagem, Paulo discorre sobre seus direitos de
apóstolo, e não de um cristão comum. Ele viu ao Senhor Jesus,2 e a
sim ples existência da igreja em Corinto era uma prova da
autenticidade de sua atividade apostólica: os cristãos coríntios eram,
de fato, o selo do seu apostolado no Senhor (v. 2) —um selo impresso em
algum objeto indicava que aquilo pertencia a alguém de maneira
especial.3 Paulo, mais do que ninguém, tinha o direito especial de
alegar que a igreja de Corinto estava sob sua própria responsabilidade
e esfera de influência. Ele fora o primeiro a ir até eles com o evangelho,
embora com muito temor e tremor; ele enfrentara numerosas pressões
pessoais para implantar a igreja de Cristo ali; ele se entregara
ilimitadamente para o bem-éstar total daquela gente. Mas, ainda
assim, ele se recusava a reivindicar os direitos como apóstolo.
Quais eram exatamente esses direitos? Paulo alista três direitos
essenciais nos versículos 4 ,5 e 6: o direito de comer e beber, o direito
de levar consigo uma esposa no ministério itinerante e o direito de não
ter de trabalhar para viver. Não temos nós o direito de comer e beber?
pergunta ele (v. 4). Paulo parece estar se defendendo. Isso se deve ao
uso da palavra apologia (v. 3) para descrever o seu procedimento neste
capítulo: Paulo está respondendo às acusações contra a legitimidade
e eficácia do seu apostolado. Nunca é fácil ver todo o ministério
questionado, quanto mais anulado. Esta não foi a única oCasião em
que Paulo teve de explicar o seu ministério a pessoas que deViam saber
das coisas. O simples fato de ele estar pronto para despender tempo
e reflexão, apresentando uma defesa àqueles que examinariam suas
credenciais básicas como apóstolo de Jesus Cristo, evidencia a
humildade legítima desse homem.
O segundo direito apostólico é bastante interessante: Não temos nós
o direito de levar conosco uma mulher irmã, como também os demais
apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas? (v. 5, ERC). Os irmãos do Senhor
seriam filhos de um casamento anterior de José, ou (o que é mais
provável) filhos posteriores de José e Maria? Será que Pedro tinha o
hábito de viajar na companhia da esposa, e será que esse fato
contribuiu para o surgimento do "partido de Pedro"? As divisões na
igreja freqüentemente se originam dessas diferenças, mais pessoais do
que teológicas. Será que Paulo era, mesmo, um homem incomum, que
viajava sozinho e sem a ajuda prática de uma esposa para cuidar dele?
Será que Paulo tinha "uma irmã como esposa"? ou será que ele se
referia às mulheres cristãs que se empenhavam nesse ministério de
apoio como Susana, Joana, Maria Madalena e "muitas outras, as quais
prestavam assistência" a Jesus "com os seus bens"?4 Ou será que uma
irmã real de Paulo lhe dava esse apoio sacrificial ano após ano? Sejam
quais forem as respostas a essas perguntas, parece óbvio que um
verdadeiro apóstolo podia reivindicar legitimamente os devidos
cuidados e sustento para si mesmo e para a esposa —uma prática que
deveria ser seguida hoje, com mais sensibilidade, uma vez que as
igrejas locais são tão beneficiadas com o trabalho dos ministros
itinerantes.
Na terceira ocorrência da palavra exousia ("direito", v. 6), Paulo
destaca que é justo não precisar de um emprego secular para sustentar
o seu ministério de pregação. Mas, nesse sentido, ele se recusava a ser
pesado para a igreja (v. 6). Sabemos, especialmente a partir de Atos dos
Apóstolos, que muitas vezes Paulo trabalhava longas horas, em um
clima nada propício, para estabelecer uma congregação local. Isso
aconteceu particularmente em Éfeso, uma cidade de clima subtropical,
onde quase nada acontecia durante o período da siesta (das 11 às 16
horas) - costume que ainda hoje vigora em muitos lugares, nos países
latinos. Nessas horas "mortas", Paulo discursava diariamente na escola
de Tirano,5 no meio de um dia carregado de trabalho braçal como
fabricante de tendas. No final daqueles dois ou três anos exaustivos
em Éfeso, Paulo realmente podia declarar: "De ninguém cobicei prata,
nem ouro, nem vestes; vós mesmos sabeis que estas mãos serviram
para o que me era necessário a mim e aos que estavam comigo."6 Ele
fez a mesma declaração em Tessalônica,7 e foi de importância vital
para o testemunho do evangelho naquela cidade o fato de ele tomar
como modelo esse padrão de trabalho árduo e independência total.
Havia um excesso de "parasitas escatológicos" na Macedônia, pessoas
ociosas que ficavam à toa, esperando a volta de Cristo.
Direitos, direitos, direitos —Paulo tinha muitos, mas não reclamava
nenhum. A propósito, a menção de Bamabé no versículo 6 é intrigante,
não tanto por indicar uma reconciliação8 entre estes dois grandes
homens, depois do desentendimento (paroxysmos, "paroxismo") por
causa de João Marcos,9 mas porque sabemos que Barnabé era um
proprietário de terras muito rico.10 Suscetíveis como eram, é bem
possível que os coríntios julgassem ser muita presunção que um
homem de posses consideráveis se aproveitasse da hospitalidade
deles. Se ele pretendia ser pregador do evangelho, podem ter dito, no
mínimo deveria pagar suas próprias despesas.

2. Renunciei aos meus direitos (9:7-18)

Quem jamais vai à guerra à sua própria custa? Quem planta a vinha e não
come do seu fruto? Ou quem apascenta um rebanho e m o se alimenta do leite
do rebanho?
8Porventura falo isto como homem, ou não o diz também a lei? 9Porque na
lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que debulha. Acaso é de
bois que Deus se preocupa? MOu é seguramente por nós que ele o diz? Certo
que é por nós que está escrito; pois o que lavra, cumpre fazê-lo com esperança;
o que debulha, faça-o m esperança de receber a parte que lhe é devida. nSe nós
vos semeamos as coisas espirituais, será muito recolhermos de vós bens
materiais? uSe outros participam desse direito sobre vós, não o temos nós em
maior medida?
Entretanto não usamos desse direito; antes suportamos tudo, para não
criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. í3Não sabeis vós que os
que prestam serviços sagrados, do próprio templo se alimentam; e quem serve
ao altar, do altar tira o seu sustento? uAssim ordenou também o Senhor aos
que pregam o evangelho, que vivam do evangelho; lbeu, porém, não me tenho
servido de nenhuma destas coisas, e não escrevo isto para que assim se faça
comigo; porque melhor me fora morrer antes que alguém me anule esta glória.
,6Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa
essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! 17Se o faço de livre
vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é, então, a responsabilidade
de despenseiro que me está confiada. í8Nesse caso, qual é o meu galardão? É
que, evangelizando, proponha de graça o evangelho, para não me valer do
direito que ele me dá.

Os coríntios precisavam de alguns argumentos consistentes para


forçá-los a se livrarem de seus direitos e de sua atitude ambiciosa
baseada no fato de serem cristãos. Paulo apresenta, então, cinco
motivos sólidos, asseverando inicialmente que esses direitos são
totalmente legítimos dentro da esfera de ação dele: a prática comum,
o preceito bíblico, a justiça intrínseca, o costume judaico e a ordem de
Cristo.
a) A prática comum (7)

As três metáforas seguintes são comuns na Bíblia, em se tratando do


ministro cristão: a do soldado, a do lavrador e a do pastor. Uma
quarta, igualmente comum (a do atleta), aparece no final do capítulo
(vs. 24-25).11 Seja qual for a figura de ministro cristão que Paulo utiliza,
ele alega que toda pessoa tem o pleno direito de receber as devidas
"mordomias": o soldado recebe o equipamento e o uniforme, sem os
quais não pode lutar; o lavrador, particularmente o fruticultor, não vai
ao mercado para comprar algumas de suas próprias maçãs; o pastor,
por sua vez, tira a maior parte de sua refeição dos bens que produziu.
Nada mais justo, normal e coerente! Caso contrário, o trabalhador
seria tido por louco!

b) O preceito bíblico (8-10)

Esta não é uma simples questão de bom senso rural; o Senhor da seara
prescreveu as regras pessoalmente. Paulo pode tê-las exposto de uma
forma indireta, mas a mensagem é clara: Não atarás a boca ao boi que
debulhaP- Por que não? Porque aqueles que trabalham pesado
merecem a recompensa pelo seu labor. Deus não adicionou esta
cláusula à lei deuteronômica apenas para garantir que os bois fossem
devidamente alimentados. Ele introduziu ali um princípio: Certo que
é por nós que está escrito (v. 10). Tanto o segador como o debulhador
podiam esperar receber uma parcela dos lucros, sem dúvida em
espécie. Deus disse isso na sua lei; de modo que não se trata de meros
sentimentos naturais de bondade humana, mas, sim, o método divino
de partilha. Afinal, é "Deus que dá o crescimento".13

c) A justiça intrínseca (11-12)

O próximo argumento de Paulo é uma indagação aos coríntios sobre


o que eles lucraram com o evangelho: Para vocês, o que significa terem
passado das trevas para a luz? Qual é o significado de todas essas
"bênçãos espirituais"? Vocês têm alguma gratidão no coração por
causa da "graça que lhes foi dada em Cristo Jesus"?14Um dos hábitos
cristãos mais instintivos é o dom da hospitalidade e da generosidade:
se recebemos bênçãos espirituais, queremos demonstrar nossà
gratidão a Deus por meio de ações concretas.
Nas comunidades agrícolas, o pastor da região (e especialmente o
bispo, na África) não retorna de seu ministério itinerante sem trazer
164
algumas galinhas, uma ovelha e um suprimento generoso de frutas
e legumes. Será essa "colheita" tão irracional? interroga Paulo. No
íntimo ele sabe que os coríntios estão bem acostumados a fazer esse
tipo de "oferta de amor" (como chamamos atualmente), o que é
esclarecido na advertência não muito velada do versículo 12: Se outros
participam desse direito sobre vós, não o temos nós em maior medida?
Obviamente havia outras pessoas em Corinto que procediam dessa
maneira, com um bom grau de descaramento, exercendo este ou
aquele ministério e esperando uma recompensa razoável pelo seu
trabalho. Em termos de bênçãos do evangelho ministradas aos
coríntios, tais pessoas nem chegavam aos pés de Paulo; mas não havia
nenhuma indicação de que seus direitos (exousias, v. 12) estivessem
sendo questionados.
Ademais, o próprio Jesus havia endossado tal direito intrínseco em
sua declaração aos setenta: "Permanecei na mesma casa, comendo e
bebendo do que eles tiverem; porque digno é o trabalhador do seu
salário."15

d) O costume judaico (13)

Bastava os coríntios observar o templo judeu para verem o mesmo


princípio sendo aplicado diariamente. Na verdade, esse costume era
comum, adotado praticamente em todos os templos da cidade. Paulo,
contudo, provavelmente estava pensando especialmento no templo
de Jerusalém. O Senhor dissera a Arão: "Eis que eu te dei o que foi
separado das minhas ofertas... dei-as por direito perpétuo como
porção a ti e a teus filhos. Isto terás das coisas santíssimas, não dadas
ao fogo: todas as suas ofertas pela culpa... serão coisas santíssimas para
ti e para teus filhos... Todo o melhor do azeite, e do mosto e do grão,
as suas primícias que derem ao Senhor dei-as a ti. Os primeiros frutos
de tudo que houver na terra... serão teus."16 A lista prossegue extensa
e meticulosa, sendo seguida de uma injunção semelhante aos levitas:
"Aos filhos de Levi dei todos os dízimos em Israel por herança, pelo
serviço que prestam, serviço da tenda da congregação."17

e) A ordem de Cristo (14)

O argumento final é indiscutível, mesmo para os coríntios. O próprio


Senhor Jesus estabeleceu: aos que pregam o evangelho, que vivam do
evangelho. "De graça recebestes, de graça dai. Não vos provereis de
ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; nem de alforje
para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de
bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento."18 Pregar o
evangelho sem nada cobrar é totalmente diferente de aceitar algumas
ofertas para suprir as despesas necessárias. As instruções de Paulo a
Timóteo sobre esse mandamento do Senhor vão um pouco adiante:
"Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os
presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam
na palavra e no ensino. Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi,
quando pisa o grão. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário."19

f) Um desafio eterno

Com os cinco argumentos acima, Paulo detalha os motivos


extremamente fortes para reivindicar todos os seus direitos pessoais,
não apenas como cristão, mas como apóstolo. Os coríntios esperavam
que um apóstolo impressivo fosse muito firme em relação aos seus
direitos. Paulo, no entanto, defende uma posição totalmente oposta,
e encara a pregação do evangelho de um modo tal que é um desafio
eterno a todos os que são chamados para esse ministério. Examinemos
cada declaração em seqüência.
9:12,15. Entretanto não usamos desse direito... eu, porém, não me tenho
servido de nenhuma destas coisas, e não escrevo isto para que assim se faça
comigo. Quase podemos dizer que esta é a "senha de Paulo". Ele
simplesmente não está preocupado com os direitos: ele preferiu
renunciar a todos eles deliberadamente. Ele tinha a liberdade interior
para fazê-lo, algo que poucos cristãos conseguem alcançar de fato.
Assim, ignorando voluntariamente os seus direitos, na verdade, o
apóstolo celebrava sua liberdade. E se, por acaso, os coríntios estavam
começando a pensar que ele, sorrateiramente, estava solicitando
alguma provisão material para as suas necessidades diárias, também
podiam esquecer isso (v. 15). O envolvimento emocional de Paulo em
seu ministério poderia muito bem ser um objeto de estudo; sua
integridade era completamente manifesta.
9:12. Antes suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao
evangelho de Cristo. Toda a biografia de Paulo serviria de endosso para
tal declaração. Ele estava apaixonadamente preso a Jesus Cristo e faria
qualquer coisa para lhe garantir "em todas as coisas... a primazia".20
A atitude de Paulo para com o ministério cristão era de "suportar", e
não "desfrutar", sua vocação diária.
A inegável impressão que Paulo nos transmite é a de um homem
tão dedicado ao evangelho, que se preocupava constantemente com
este inconveniente ou aquele obstáculo. Barrett o expõe de maneira
vigorosa: "O evangelho, que girava em tomo do amor e do auto-
sacrifício de Jesus, não poderia ser devidamente apresentado por
pregadores que insistissem em seus direitos, se deleitassem no
exercício da autoridade e tivessem todo o proveito possível da obra
evangelístic."21 O vocábulo traduzido por obstáculo (enkopen) é "uma
palavra gráfica e um tanto incomum (somente aqui, no Novo
Testamento). Significa literalmente 'um corte' ou 'uma brecha', e era
usada com referência a uma vala aberta na estrada para impedir o
avanço do inimigo. Paulo evitara fazer qualquer coisa que pudesse
impedir uma estrada livre para o avanço do Evangelho."22
O fato de Paulo escrever sobre suportar tudo, a fim de evitar tal
irresponsabilidade, também prova o grande amor do apóstolo por
todos que estavam fora de Cristo (cf. 9:19-23). Suportar é um dos verbos
eloqüentes que ele usa na definição do amor-agape.23Este tipo de amor
"tudo suporta", e é saudável ouvir o coração de um evangelista
expressando-se dessa forma. Basta ler a lista dos sofrimentos de Paulo
na correspondência aos coríntios para termos idéia do preço que ele
pagou pessoalmente, para garantir que a estrada do evangelho ficasse
livre de obstáculos. Um homem que está pronto a suportar qualquer
coisa por amor ao evangelho não está interessado em seus direitos.
9:15-18. Porque melhor me fora morrer antes que alguém me anule esta
glória... Nesse caso, qual é o meu galardão? E que, evangelizando, proponha
de graça o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá. Se ainda
restava algum direito no coração apostólico de Paulo, este era o direito
de tomar o evangelho livre de qualquer ônus, e isso se enraizara de
tal forma em seu coração, que ele o considerava como o seu maior
motivo de orgulho. Sabemos, por outros trechos da correspondência
coríntia, que a vanglória de Paulo era uma grande fonte de conflito
interior.24 E o que o levou a isso foram as pressões sem igual geradas
pela situação coríntia. Barrett parece estar certo em identificar aqui
(9:15) o começo do paradoxo paulino de "gloriar-se na fraqueza... Além
de Paulo passar a se gloriar em circunstâncias que devem ter
significado fome e fraqueza, ele também viria a se gloriar em uma
situação que deve lhe ter trazido nada mais que zombarias e
insultos."25
A posição de Paulo era que a única razão adequada para a vanglória
é o próprio Senhor.26 Certamente, ele não se orgulhava de pregar o
evangelho: como poderia orgulhar-se de algo que se sentia íntima e
irresistivelmente compelido a fazer? Se, por qualquer motivo, viesse
a parar de pregar o evangelho, simplesmente seria consumido por
uma frustração insuportável . Paulo fora capturado por Jesus, não
tendo, assim, outra opção: pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai
de mim se não pregar o evangelho! (v. 16).
Obcecados ao extremo pelos seus direitos, os coríntios achavam
quase impossível crer que Paulo fosse impulsionado por uma força
interna, apenas por seu amor a Jesus Cristo e sua paixão pelo
evangelho. Para eles, seria a maior catástrofe se fossem privados de
todos os seus supostos direitos. Para Paulo, no entanto, a maior das
calamidades era ser compelido a deixar de pregar o evangelho; a
outra, um pouco menos grave, era ficar impossibilitado de fazê-lo "de
graça".
Paulo ainda postula uma situação hipotética em que ele estaria
gastando o seu tempo na pregação do evangelho, mas com o coração
e a alma em outro lugar: Se constrangido, é, então, a responsabilidade de
despenseiro que me está confiada (v. 17). Em outras palavras: "Porém, se
faço como um dever, é porque é um trabalho que Deus me deu" (BLH).
Esta seria a maneira mais baixa de Paulo encarar a pregação do
evangelho. Ele estava tão entusiasmado com o grandioso privilégio
de proclamar um evangelho como este, que realmente não conseguia
entender aqueles que o consideravam como uma simples tarefa a ser
executada. Ao mesmo tempo, ele reconhecia que, no seu aspecto mais
rotineiro e trivial, ele não passava de um homem que recebera uma
incumbência, uma mordomia sobre os recursos do Senhor (v. 17,
oikonomian).27 Um mordomo (um oikonomos) não tem direitos nem
recompensas, apenas responsabilidades; e este é exatamente o
principal aspecto da apologia (v. 3) de Paulo neste capítulo. Ele tinha
direitos, direitos apostólicos, direitos como fundador da igreja de
Corinto, direitos únicos e supremos. Mas ele estava totalmente
envolvido pelo privilégio de ser um evangelista, e causava-lhe repúdio
a simples idéia de que um ser humano pudesse prestar algum serviço,
favor ou gentileza a Deus.
Toda essa atitude de Paulo é rigorosamente paralela às instruções
do próprio Jesus Cristo: "Qual de vós, tendo um servo ocupado na
lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo:'
Vem já e põe-te à mesa? E que antes não lhe diga: Prepara-me a ceia,
cinge-te, e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois comerás tu e
beberás. Porventura terá de agradecer ao servo por ter este feito o que
lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito
quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos
168
apenas o que devíamos fazer."28

3. Preferi ser escravo de todos (9:19-23)

Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, afim de ganhar o maior
número possível. 2uProcedi, para com os judeus, como judeu, afim de ganhar
os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim
vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo
da lei.11Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, m o estando sem lei para com
Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime
da lei. 2ZFiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-
me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.
23Tudofaço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com
ele.

O restante do capítulo 9 detalha a posição de Paulo, tanto em termos


de seu relacionamento pessoal com todos os tipos de homens (vs. 19­
23), como em termos de sua disciplina pessoal (vs. 24-27). Nas duas
situações ele nos oferece um incentivo estimulante que leva a um
discipulado sincero como homens livres em Cristo. Paulo era
completamente livre (livre de todos, v. 19), mas não pretendia deixar que
essa liberdade justificasse qualquer indulgência, ainda que em favor
de um ou dois caprichos pessoais. Por quê? Tudo faço por causa do
evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele (v. 23). Como Barret
comenta: "O evangelho lhe fora confiado, mas não fora colocado sob
o seu controle."29 Cada luta, cada hábito pessoal, estava agora
manifestamente sob o controle de Jesus Cristo, o Senhor, porque o
evangelho dominava toda a sua vida. Ele vivia sua vida cotidiana sub
specie aeternitatis (isto é, à luz da eternidade), e isso significava
evangelização com integridade, relacionamentos com adaptabilidade
e santidade pessoal com sinceridade.
Tal qual o seu Mestre, Paulo desejava dar a própria vida. Ele
aprendera que "mais bem-aventurado é dar que receber".30 Nos
versículos 19-23, Paulo cita alguns exemplos do que significava para
ele, um judeu rico, culto e religioso, fazer-se escravo de todos. Ele havia
sacrificado questões de identidade racial, sensibilidade e consciência
religiosa, visando a um único alvo: ganhar o maior número possível
(v. 19).
O verbo ganhar (kerdaino) aparece cinco vezes neste parágrafo. Então
a conotação muda, passando de "ganhar" as pessoas para "salvá-las"
(v. 22). A palavra sozo ("salvar") afirma o que kerdaino ("ganhar")
apenas subentende: o que está em jogo não é só o fracasso ou o sucesso
da persuasão humana, mas o destino eterno do homem. Isto está
implícito no contraste sutil entre a fim de ganhar o maior número possível
(v. 19) e com o fim de... salvar alguns (v. 22). Com isso Paulo não está
excluindo nenhum "m eio" legítimo de ganhar as pessoas, mas
reconhecendo, pelo menos tacitamente, que os métodos mais
iluminados, mais abrangentes, imaginativos e produtivos não
salvarão ninguém.
Sua filosofia básica consistia em descobrir os métodos que
■combinassem o máximo de integridade com o máximo de impacto —
alguém diria "sucesso", cf. versículo 19: fiz-me escravo de todos, afim de
ganhar o maior número possível. Há uma mina preciosa de metodologia
evangelística nessa simples sentença, particularmente quando nos
lembramos do modo como o próprio Jesus expôs a vida de um servo-
escravo: "Quem quiser tomar-se grande entre vós, será esse o que vos
sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será servo de todos."31
Martinho Lutero resumiu esta verdade da seguinte forma: "O cristão
é o mais livre de todos os senhores; não está sujeito a ninguém. O
cristão é o mais obediente de todos os servos; está sujeito a todos".
Examinando melhor a condição de escravo de Paulo, constatamos,
por exemplo, que ele estava pronto a renunciar à força decisiva do seu
judaísmo (v. 20), caso isso abrisse uma porta para o evangelho. Ele
estava preocupado com os anseios, com as inclinações e com as
sensibilidades de seus ouvintes. "O judaísmo já não fazia parte do seu
ser, mas era uma máscara que ele podia adotar ou descartar à
vontade."32 Havia ocasiões, especialmente na circuncisão de Timóteo33
e no cumprimento do voto de nazireu no templo de Jerusalém,34 em
que ele até se dispunha a passar por rituais desnecessários para quem
está em Cristo; e outras em que, paradoxalmente, ele se recusava a
ceder às pressões dos judaizantes que, por exemplo, desejavam que
Tito fosse circuncidado.35 Bruce comenta: "Se Paulo já não sentia
necessidade alguma de cumprir os regulamentos e as cerimônias
judaicas como obrigações divinas, ele não caía no outro extremo,
considerando tais coisas proibidas ao cristão; dali para a frente, elas
não passavam de tradições indiferentes em termos morais e religiosos,
que podiam ou não ser observadas, conforme a ocasião."36
Não obstante, um detalhe de menos importância talvez tenha
influenciado diretamente as observações de Paulo neste ponto. Lucas
relata que, na véspera de sua partida de Corinto, no porto de Cencréia,
Paulo raspou a cabeça "porque tomara voto".37Pelo fato de os .coríntios
170
seram o que eram, talvez esse ato particular tivesse causado uma
espécie de impacto mais duradouro sobre a controvérsia entre
libertinos e legalistas.
Contudo, a implicação mais radical das palavras de Paulo estava
na área do racismo: Procedi, para com os judeus, como judeu (v. 20). Devia
ser difícil avaliar a plena liberdade que Cristo estava dando a
indivíduos e famílias que, por anos, gerações e até séculos, haviam
estado presos ao preconceito racial. É indescritível a liberdade de
aprender a relacionar-se com as pessoas como seres humanos. Em
Cristo, Paulo descobriu o que significa ser livre do orgulho e do
preconceito racial. Apesar disso, ele estava disposto a renunciar até aos
frutos dessa mesma liberdade, a fim de ganhar os judeus. Hoje, em
contextos semelhantes onde impera o racismo, são muitos os cristãos
que trilham esse árduo caminho a fim de ganhar os racistas para
Cristo.
Os dois exemplos seguintes (isto é, estar debaixo da lei e fora da lei,
vs. 20b-21), de como se tomar tudo para com todos, são exegeticamente
muito complexos, de modo que convém consultarmos mestres
com petentes, em vez de elaborarmos toda uma gama de
possibilidades. Barrett18 e Bruce39 são guias confiáveis. O âmago do
problema parece ser este: Paulo fora escravo das cerimônias e dos
rituais religiosos prescritos na lei judaica. Esta consistia em 613
preceitos escritos no Pentateuco, junto com (provavelmente) a tradição
oral (chamada por Jesus de "tradição dos anciãos"). Todo esse conjunto
era aceito como o caminho divinamente estipulado para a vida, mas
Paulo descobriu que era um instrumento de morte espiritual.40 Mas
em determinadas circunstâncias (excepcionais e pouco freqüentes),
Paulo realmente estava disposto a se submeter à lei, a fim de evitar que
um relacionamento começasse da maneira errada, impedindo que as
pessoas fossem ganhas para Cristo. Da mesma forma, ele se propunha
a ignorar todas as obrigações religiosas, a fim de ganhar as pessoas que
estivessem totalmente além dos limites da ortodoxia e do sistema
religioso.41
Em ambas as atitudes Paulo corria o risco de ofender os cristãos, o
que de fato aconteceu. Tais pessoas, sobretudo (mas não apenas) em
Corinto, preocupavam-se menos em ganhar os incrédulos para o
Senhor Jesus Cristo do que em manter a pureza imaculada da
comunidade. Mais uma vez, urgia que as "divisões" de Corinto
parassem de se preocupar com este ou aquele direito, com esta ou
aquela recompensa, propondo-se a assumir, com plena seriedade, a
responsabilidade de obedecer à comissão do Senhor ressurrecto,
pregando o evangelho e fazendo discípulos.
Naturalmente, havia perigos nos próprios métodos evangelísticos
de Paulo. Até neste breve parágrafo, ele teve de fazer duas ressalvas
importantes, a fim de evitar., que fosse acusado de heresia. Por
exem plo, os elementos libertinos de Corinto teriam ficado
horrorizados ao ouvir o apóstolo da liberdade declarar que se
dispunha a agir como se estivera debaixo da lei (v. 20, ERC), ainda que
com propósitos evangelísticos. Ele precisou, portanto, enfatizar que
não estava debaixo da lei. Da mesma forma, os legalistas poderiam ter
uma apoplexia ao ouvir Paulo mencionar que vivia como se estivesse
sem lei (v. 21). Diante disso, ele teve de acalmá-los com a declaração:
não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo (v. 21). Tudo
isso parece ser um triste comentário sobre a veracidade de 8:1: "O saber
ensoberbece, mas o amor edifica." Esperaríamos que a integridade e
a sinceridade de Paulo, afora sua sabedoria divina, o colocassem
acima de qualquer suspeita, mesmo em Corinto.
Identidade racial e sensibilidade religiosa foram os dois elementos
principais na dissertação de Paulo sobre a verdadeira libertade em
Cristo. O terceiro elemento envolve toda a questão da consciência e
nos remete à discussão geral anterior sobre os alimentos oferecidos aos
ídolos. Os "fortes" e os "fracos" eram os dois grupos em questão no
capítulo 8; aqui Paulo diz: Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de
ganhar os fracos (v. 22). Especialmente no contexto das oportunidades
evangelísticas, esta poderia ser uma aplicação mais ampla do princípio
fundamental de 8:9: "Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha
de algum modo a ser tropeço para os fracos". Paulo era uma pessoa
"forte", com uma consciência instruída e inabalável, bem preparada
para exercitar a sua liberdade em ciscunstâncias apropriadas, bem
como para restringi-la, se necessário. Cabe ressaltar que, antes de
conhecer a liberdade em Cristo, Paulo vivia completamente fustigado
por uma consciência culpada, especialmente devido à cobiça.42 Agora,
estava limpo e livre para atender ao Espírito Santo.
Paulo buscava claramente uma adaptabilidade criativa e sensível
nas relações com os incrédulos. Tudo fazia por causa do evangelho, para
partilhar o seu poder e a sua realidade do modo mais abrangente e
profundo possível. Paulo era o mais versátil dos homens, nunca se
limitando a uma só maneira de trabalhar e sempre ouvindo as idéias
de Deus em cada nova situação: Fiz-me tudo para com todos, com o fim
de, por todos os modos, salvar alguns (v. 22) - um verdadeiro camaleão
espiritual!
A versatilidade de Paulo em procurar ganhar homens de todos os
172 .
tipos de formação para levá-los a Cristo nos desafia a transpormos o
abismo cultural entre a subcultura cristã das reuniões aconchegantes
e conversas piedosas e a cultura pagã de nossa vizinhança. A tarefa
de identificar-se com toda a espécie de paganismo contemporâneo e
encarnar-se nele é um dos maiores desafios que confrontam a igreja.

4. Corro para vencer (9:24-27)

Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas
um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis. 2STodo atleta em
tudo se domina; aqueles para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a
incorruptível.26Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como
desferindo golpes ao ar. 27Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão,
para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado.

Paulo percebeu que os coríntios haviam se tornado espiritualmente


fracos. Eles queriam receber as recompensas sem nenhum esforço;
preocupavam-se mais com o ambiente agradável do que com as
condições para um treinamento adequado. Paulo tinha uma metáfora
pronta na mão. Corinto sediava os Jogos Istmicos, que aconteciam a
cada dois anos. As ruas da cidade e as encostas das colinas do
Acrocorinto deviam ser invadidas por atletas treinando para o
prestigioso evento. Sabia-se perfeitamente que todo atleta em tudo se
domina, e o "domínio próprio” é parte do fruto do Espírito.43 Se tal
autodisciplina era crucial para se ganhar uma “coroa" feita de louros,
então precisamos, todos, participar desta corrida cristã com total
dedicação: "Corram para vencer” (v. 24), é o lema de Paulo.
Ele não estava sugerindo que podemos perder o prêmio, porque "a
coroa da justiça" está reservada "a todos quantos amam a sua vinda",44
ou seja, a todos cujo alvo na vida é conhecer a Cristo e que estão
correndo em busca do prêmio da soberana vocação de Deus em
Cristo.45 Nas competições realizadas no estádio atlético de Corinto, só
uma pessoa recebia o prêmio. Na competição cristã, as recompensas
não são acrescentadas ao evangelho, elas fazem parte dele —embora
a participação na corrida não garanta automaticamente a vitória. Daí
serem imprescindíveis a perseverança e a autodisciplina.
É importante evitar o perigo de extrair falsas conclusões das
palavras de Paulo nesta passagem; ou seja, pensar que podemos
despender todas as nossas energias participando da corrida cristã e,
no final, sermos desqualificados (adokimos, v. 27). Se o próprio Paulo
pensava que isto podia lhe acontecer, que esperanças haveria para
qualquer um de nós? Todo o ensino do Novo Testamento deixa claro
que tal veredicto é impossível. Neste ponto Barrett comete um erro
muito perigoso. De acordo com ele, "Paulo vislumbra claramente a
possibilidade de, apesar de sua obra como pregador, cair da graça e
ser rejeitado... A conversão, o batismo, o chamado para o apostolado,
o serviço no evangelho - nada garantia a sua salvação eterna."46
Realmente, esses atos nada garantem; somente a obra consumada de
Jesus Cristo na cruz pode oferecer tal garantia, e é por isso que Paulo
começa a sua principal exposição teológica desta carta com esse
tema.47 Morris é mais exato quando escreve: "O temor de Paulo não
era que poderia perder a salvação, mas que poderia perder a sua coroa
por não satisfazer ao seu Senhor (cf. 3:15).”48
Há uma correlação verbal particularmente estreita entre 9:27 e 3:13,
que torna o significado do ensinamento de Paulo inequívoco. O
contexto de 3:11-15 é o modo como todo cristão, sobretudo aquele que
está envolvido na edificação da igreja, terá de enfrentar um exame
extremamente meticuloso acerca da qualidade de sua obra para o
Senhor. Ela será "testada" (dokimasei) pelo fogo, a ponto de expor os
materiais usados para construir o fundamento: o único fundamento
que pode ser usado é o próprio Jesus Cristo. A raiz das palavras
dokimazei (3:13) e adokimos (9:27) aparece cinco vezes em 2 Coríntios
13:5-7, num contexto em que se questiona a validade do próprio
apostolado de Paulo. Quem está em Cristo não pode perder a
salvação, mas pode descobrir que o serviço a ele prestado foi feito com
os próprios recursos humanos e para glória pessoal. Eis o que Paulo
mais temia.
Nos versículos 26 e 27 Paulo adverte os coríntios (e a si mesmo) da
necessidade de correr não sem meta. Da metáfora da corrida ele passa
para a da luta, explicando a necessidade de esmurrar o próprio corpo,
a fim de dominá-lo. Paulo não pensava que o seu corpo fosse mau,49
mas reconhecia que os nossos corpos podem ser oferecidos ao pecado
"como instrumentos de iniqüidade", ou a Deus, "como instrumentos
de justiça”.50
Paulo afirma que ele subjuga o seu corpo, literalmente: "Conduzo
o meu corpo como um escravo" (dulagogo). Ele passou a sua vida
pregando as boas novas de Jesus aos outros, usando cada faculdade
física disponível e sofrendo não poucos ferimentos e dores durante
esse processo. Ele é que não iria perder todas as recompensas
inerentes ao evangelho para ser salvo apenas "por um triz".51 Paulo
não tinha a intenção de fracassar na prova naquele dia, não o dia de
174
julgamento pelo pecado, mas o dia em que seu serviço seria avaliado.
Assim como os corredores dos Jogos Istmicos não podiam tomar
atalhos para chegar à aptidão física, também não existem opções fáceis
ou trilhas de auto-indulgência quando levamos a sério a liberdade
espiritual. "Assim como oferecestes os vossos membros para a
escravidão da impureza, e da maldade para a maldade, assim oferecei
agora vossos membros para servirem a justiça para a santificação."52
Coríntios, esqueçam-se de seus direitos. Prossigam com esforço, rumo
a recompensa imperecível. Cumpram no dia-a-dia suas responsabili­
dades para consigo mesmos, para com os outros e para com o próprio
Senhor.

Notas:
1. Se isto parece uma caricatura, basta ler 2 Co 10:7—11:15.
2. Cf. 1 Co 15:8-9.
3. Cf. 2 Co 12:12: "As credenciais do apostolado foram apresentadas no m eio de
vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes m iraculosos" —
provavelm ente um a descrição do próprio Paulo m ais detalhada do que a
m encionada em 1 Co 1:6, "o testem unho de Cristo tem sido confirm ado em
vós".
4. Lc 8:2-3.
5. A t 19:9.
6. A t 20:33-34.
7. 1 Ts 2:9; 2 Ts 3:7-9.
8. Cf. 2 Tm 4:11; Cl 4:10. '
9. A t 15:39.
10. A t 4:36-37.
11. Cf. 2 T m 2:1-7.
12. Dt 25:4.
13. 1 Co 3:7.
14. 1 Co 1:4.
15. Lc 10:7.
16. N m 18:8ss.
17. N m 18:21.
18. M t 10:8-10.
19. 1 Tm 5:17-18.
20. Cl 1:18.
21. B arrett, pág. 207.
22. M orris, pág. 109.
23. 1 Co 13:7.
24. Cf. 2 Co 1 0 -1 2 .
25. Barrett, pág. 209.
26. Cf. 1 Co 1:31.
27. Cf. 1 C o 4:1.
28. Lc 17:7-10.
29. Barrett, pág. 216.
30. Cf. A t 20:35.
31. Cf. M c 10:43-44.
32. Barrett, pág. 211.
33. A t 16:3.
34. A t21:23ss.
35. G 12:3.
36. Bruce, págs. 86s.
37. A t 18:18.
38. Barrett, págs. 211-215.
39. Bruce, págs. 87s.
40. Cf. Rm 7:7-13.
41. Cf. seus m ais im pressionantes serm ões em Listra (At 14:15ss.) e em A tenas
(A t 17:22ss.).
42. Cf. Rm 7:7-8.
43. G 15:23.
44. 2 T m 4:8.
45. Fp 3:14.
46. Barrett, pág. 218.
47. 1 Co 1 :1 7 -2 :5 .
48. M orris, pág. 113.
49. Cf. o ensino em 1 Co 6:9-20.
50. R m 6:13.
51. "Todavia, com o que através do fogo" (1 Co 3:15).
52. Rm 6:19.
1 Coríntios 10:1-11:1
10. A Liberdade e Seus Perigos

Discorrendo acerca do problema da comida oferecida a ídolos, até


aqui Paulo gastou a maior parte do seu tempo dirigindo-se àqueles
que tinham consciências hiperescrupulosas ou simplesmente
defendendo sua autolimitação voluntária na área da liberdade cristã.
Em 10:1-22 ele ataca os coríntios libertinos que, obviamente, julgavam
que sua própria maneira de encarar todo o assunto, e ao próprio Paulo,
seria a única maneira madura de pensar. Havia, na atitude deles, não
só grande evidência de uma arrogância presunçosa, mas também um
grave risco de realmente confundirem o verdadeiro culto ao Senhor
com o culto aos demônios. ,
Estas duas primeiras seções (10:1-13 e 14-22) contêm alguns dos
ensinamentos mais salutares de toda a carta, não tanto pelo conteúdo
(que é direto), mas porque Paulo não poupa golpes ao advertir os
cristãos de Corinto que, ao que tudo indica, consideravam serem os
"outros", mais do que "nós", o alvo das palavras do apóstolo.
O pensamento de Paulo parece seguir este curso. Entre os cristãos
de Corinto havia um grupo que confiava muito em sua própria
espiritualidade e maturidade; eles não tinham muito tempo para ouvi-
lo como apóstolo ou mestre. Paulo acabara de conscientizá-los da
possibilidade real (para ele) de falhar quando sua vida fosse
meticulosamente testada por Deus. Não há meio de sabermos que
reação esse ensinamento teria produzido nesse grupo autoconfiante
da igreja em Corinto. Talvez eles pensassem que Paulo estivesse
tentando aterrorizá-los com toda aquela conversa de ser
"desqualificado".
Em nenhum trecho encontramos a afirmação de que os cristãos
perdem sua salvação ou são deserdados da família de Deus.^Exisfem
advertências muito severas contra quem abandona a Deus ou abusa
de sua bondade. O fato de Paulo dirigir-se aos crentes coríntios (tanto
judeus como gentios) chamando-os novamente de "irmãos" (v. 1) e se
referir aos "nossos pais", indica a solidariedade existente entre o povo
de Deus sob ambas as alianças, antiga e nova.
No desenvolvimento de todo este capítulo Paulo destaca a verdade
cia liberdade cristã, advertindo os leitores dos perigos da presunção,
da transigência e do legalismo.

1. O perigo da presunção (10:1-13)

Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a
nuvem, e todos passaram pelo mar, Hendo sido todos batizados, assim na
nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. 3Todos eles comeram de um só
manjar espiritual, 4e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de
uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo. 5Entretanto, Deus
não se agradou da maioria deles, razão por que ficaram prostrados no deserto.
6Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, afim de que não cobicemos
as coisas más, como eles cobiçaram. 7Não vos façais, pois, idólatras, como
alguns deles; porquanto está escrito: O povo assentou-se para comer e beber,
e levantou-se para divertir-se. *E não pratiquemos imoralidade, como alguns
deles o fizeram, e caíram num só dia vinte e três mil. 9Não ponhamos o Senhor
à prova, como alguns deles já fizeram, e pereceram pelas mordeduras das
serpentes. wNem murmureis como alguns deles murmuraram, e foram
destruídos pelo exterminador. uEstas coisas lhes sobrevieram como exemplos,
e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos
séculos têm chegado.12Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que imo caia.
13Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus éfiel, e não
permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário,
juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais
suportar.

Paulo extrai suas lições da história de Israel, relembrando como Deus


lidou com o seu povo sob a velha aliança, durante o período da
peregrinação no deserto, sob a liderança de Moisés. O povo de Deus
recebeu muitas bênçãos, mas também foi culpado de muitos pecados,
pelos quais foi severamente punido.

a) As bênçãos (1-4)

O povo de Israel desfrutou muitas bênçãos do Senhor: proteção,


orientação, sustento, perdão. Todas elas ocorreram em uma série de
incidentes notáveis, nos quais Deus interveio para demonstrar o seu
controle soberano sobre a vida daquelas pessoas.1
Paulo resolveu concentrar-se em duas facetas específicas dessas
experiências vividas pelo povo de Deus no tempo de Moisés. Eles
estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, tendo sido todos
batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. Todos eles
comeram de um só manjar espiritual, e beberam da mesma fonte espiritual.
É enganoso traduzir pneumatikos por "espiritual"; é melhor
"sobrenatural", porque Paulo não pretende negar a natureza física do
manjar (ou maná) e da água. Ele parece querer indicar que, além de
esses dois elementos serem necessários ao sustento físico do povo,
também possuíam um valor espiritual, nutrindo todo o seu
relacionamento com Deus. Isto se confirma pela maneira como Paulo
iguala a rocha (que forneceu água)2 com o próprio Cristo (v. 4). Em
outras palavras, Paulo está enfatizando a origem divina da provisão
do povo. Em um incidente posterior, no final dos quarenta anos3 de
peregrinação no deserto, a água saiu da rocha, assim como ocorrera
no início. Na verdade, os dois acontecimentos (embora muito
semelhantes nos detalhes) são totalmente diferentes no significado
espiritual: na história original, Moisés agiu em obediência a uma
ordem clara de Deus, enquanto que no incidente posterior, ele agiu
com presunção. O Senhor censurou a presunção de Moisés com tanta
seriedade, que por causa desse pecado específico foi-lhe negado entrar
na Terra Prometida.
Antes de o povo de Israel receber esse sustento físico e espiritual
(“comida sobrenatural" e "bebida sobrenatural"), todos foram
batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés (v. 2). O
emprego da palavra batizados é, naturalmente, muito significativo. Ser
batizado com respeito a Moisés significava que eles estavam se
colocando sob a liderança de Moisés, de forma voluntária e
incondicional. A linguagem admirável, mas pouco usual, de Paulo
nesta passagem enfatiza o paralelo entre os privilégios do povo de
Deus sob a liderança de Moisés e os privilégios do povo de Deus sob
a liderança de Jesus. Nas dxtas épocas históricas havia dois
acontecim entos repletos de significado: ser batizado numa
demonstração de lealdade ao guia designado por Deus; e ser
regularmente nutrido com alimento e bebida "sobrenaturais".
Paulo compara a atitude presunçosa do povo de Deus sob a
liderança de Moisés com a arrogância de certos cristãos coríntios. Eles
também haviam passado pelas águas do batismo, cientes do profundo
significado desse ato, em submissão a Jesus como Senhor.4 Eles
também participavam regularmente de refeições coletivas,5 durante
as quais eram nutridos física e espiritualmente. Esses cristãos, tal qual
o povo de Deus sob a liderança de Moisés, estavam recebendo grandes
bênçãos; mas receber bênçãos não corresponde, de modo algum, a
receber os privilégios e as responsabilidades da bênção. Eles ficaram
tão obcecados pelos direitos, que estavam abusando da eficácia de seu
relacionamento com o Senhor.
Observamos que a importância espiritual do batismo é acentuada
pelo fato de os filhos de Israel jamais terem estado realmente na nuvem
ou no mar. Da mesma forma, o significado preeminente do batismo
é o que Paulo destaca em Romanos 6:lss., e não a experiência do
batismo propriamente dito. Os israelitas foram batizados "com
respeito a Moisés"; os cristãos de Corinto foram batizados com
respeito a Cristo. Os dois atos denotam fidelidade, mas os cristãos não
estavam vivenciando as implicações práticas dessa fidelidade. O que
levou Paulo a fazer tal acusação?

b) Os pecados (5-10)

Antes de enumerá-los, temos de observar a declaração crítica do


versículo 5: Entretanto, Deus não se agradou da maioria deles, razão por que
ficaram prostrados no deserto.6 De fato, da geração que partiu do Egito
com Moisés, sabemos que apenas dois chegaram a Canaã: Josué, filho
de Num, e Calebe, filho de Jefoné.7Eis aí a seriedade do desagrado de
Deus com uma geração presunçosa. Convém destacar, de passagem,
que tudo o que o texto declara é: ficaram prostrados no deserto. Nada se
diz em termos do destino eterno deles, porque não é esse o ponto
central dessas histórias. O ponto central é declarado em 10:6: Ora, estas
coisas se tornaram exemplos para nós.
Os pecados do povo de Deus sob a liderança de Moisés ecoam
estranhamente nos pecados semelhantes, cometidos pela comunidade
cristã de Corinto: cobiça, idolatria, imoralidade, abuso da paciência
do Senhor e murmuração. Determinados acontecimentos ocorridos
na peregrinação pelo deserto estavam, sem dúvida, na mente de
Paulo. Ele se lembrou especificamente do bezerro de ouro,8 do anseio
pelas comidas do Egito,9 da imoralidade geral com as filhas dos
moabitas e da história da serpente de bronze.10 A narrativa dos
episódios desse período não é uma leitura muito agradável.
Paulo recomendou incisivamente aos coríntios que não se
vangloriassem de sua suposta condição espiritual. Nós todos caímos
em uma cilada perigosa, diz o apóstolo, se nos permitimos pensar que
o pecado não tem importância. Eles pensavam que a combinação dos
sacramentos com as experiências espirituais era suficiente para
protegê-los da apostasia. Eles descansavam (de maneira quase
miraculosa) nos meios de graça (os sacramentos) e nas experiências
concedidas por Deus, e não no próprio Deus em Cristo. Paulo
m encionara há pouco sua própria necessidade de ser
autodisciplinado, para não deixar de receber tudo o que Deus lhe
reservara. Ele desejava que os coríntios desenvolvessem a mesma
determinação e disciplina.

c) O castigo (5-10)

As conseqüências do pecado de Israel são resumidas em três frases


dramáticas e trágicas: ficaram prostrados (v. 5); caíram (v. 8); foram
destruídos pelo exterminador (vs. 9-10). Esta última assemelha-se à
situação descrita em 5:5.” A destruição da carne, neste caso de
milhares de pessoas, não incluiu necessariamente a destruição eterna.
Aquelas pessoas não viram a Terra Prometida, mas, quanto ao seu
destino eterno, nada foi registrado. Paulo deseja que esses irmãos
amados, porém jactanciosos, dêem o melhor de si para o Senhor. Os
mesmos fatores que prejudicaram as vidas do povo de Deus no
passado, sob a liderança de Moisés, também acabam com as
comunidades cristãs de hoje. Eles foram registrados para nos
servirem como exemplos (v. 11). Essas tragédias aconteceram para nos
advertir da rampa escorregadia em que a rejeição a Deus nos lança.
Encontram-se na Bíblia para benefício nosso, para nos dar bom senso
(este é o significado básico de nouthesian, v. 11, literalmente: depositar
"razão" em nós).

d) A advertência (11-13)

Mas existem muitos outros aspectos atemporais na saga da Páscoa e


do Êxodo; ela não foi registrada apenas para nos acrescentar um pouco
mais de sabedoria. Os próprios contemporâneos de Paulo viviam
numa geração especialmente privilegiada, sobre quem os fins dos séculos
têm chegado (v. 11). Esses "séculos" poderiam ser uma combinação "da
era ou ordem mundial presente" com "a era vindoura" (anunciada na
primeira vinda e a ser consumada na segunda vinda de Cristo). Nesta
explicação, cada pessoa que está em Cristo vive dias cruciais "entre
duas eras" (o que os teólogos freqüentemente intitulam "viver no
tempo sobreposto"), em que cada dia a mais é um prêmio. Bruce
resume assim: "O padrão da revelação divina, da desobediência
humana e do julgamento divino manifestado na experiência dos
israelitas em sua peregrinação do Egito a Canaã é reproduzido na era
do Novo Testamento."12
Por outro lado, esta notável frase do versículo 11 pode estar dizendo
que a história do êxodo e as peregrinações no deserto foram
registradas para nosso benefício (isto é, para a edificação dos cristãos);
nós somos o povo que Deus, o Senhor da História, tinha em mente
quando esses eventos aconteceram e foram registrados.13 Obviamente
certos incidentes na "história da salvação" do povo de Deus sob a
antiga aliança desempenharam um papel mais central e destacado do
que outros. O êxodo é, indiscutivelmente, o acontecimento mais
importante de todos.
Alegar que a atividade de Deus no palco da história mundial está
totalmente centralizada na igreja cristã talvez pareça relativamente
inofensivo para a maioria dos cristãos ocidentais. Precisamos entender
que, aos olhos de alguns teólogos latino-americanos ou africanos,
comprometidos com o tema da libertação, tal exegese da história do
Antigo e do Novo Testamento (que interpreta o êxodo co m o ponto
central, tanto em sua ocorrência no Antigo Testamento como em sua
interpretação no Novo Testamento) é absolutamente fundamental. De
fato, a saúde da igreja mundial e a integridade de seu testemunho
acerca do reino de Deus podem muito bem depender de o êxodo ser
devidamente exposto e aplicado. O mínimo que podemos, e devemos,
asseverar é que o êxodo foi um acontecimento sui generis (porque os
judeus eram o povo da aliança), não podendo ser aplicado a toda e
qualquer libertação da opressão. De qualquer forma, estes versículos
acionam uma das bombas-relógio teológicas mais explosivas do
mundo de hoje.
A injunção de 10:1,2 Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não
caia, não é uma simples advertência contra a superespiritualidade
coríntia. Sem dúvida, ela também a inclui, mas haveria pouca
necessidade de Paulo usar a linguagem apelativa do versículo 11, se
tudo o que desejasse nos transmitir fosse o perigo espiritual de
pensarmos que já estamos livres de certas tentações. O sentido da raiz
de peirasmos não é tanto "tentação" (v. 13), mas antes "prova". Paulo
está advertindo os coríntios: "Vocês estão enfrentando muitas provas
difíceis por causa da fraqueza de seus recursos espirituais; porém, a
questão principal da provação/tentação não é a força atrativa do
pecado, e, sim, a natureza dela: é uma prova do tipo tudo ou nada.
Vocês vão sair delas com uma capacidade de recuperação maior e uma
fé mais ardente no Deus vivo? Ou será que a determinação de suportá-
las até o final foi sutilmente sugada?"14
Da mesma forma, hoje, aquele que deprecia o êxodo como um
determinante para o reino de Deus deve ter o cuidado de não ser
derrubado por acontecimentos violentos e irresistíveis; e quem se julga
entendido nas forças tempestuosas que operam neste mundo
reconsidere sua avaliação teológica em relação aos acontecimentos
deste século, como a ameaça nuclear. O cristão que se considera imune
a essas forças ainda não entendeu que, na turbulência da aldeia global
de hoje, ninguém pode alegar que encontrou uma posição de
estabilidade permanente (aí reside a força do verbo hestanai no tempo
perfeito: "estar em pé"). Só existe um lugar que garante tal segurança:

O Senhor é sublime, pois habita nas alturas;


encheu a Sião de direito e de justiça.
Haverá, ó Sião, estabilidade nos teus tempos,
abundância de salvação, sabedoria e conhecimento;
0 temor do Senhor será o teu tesouro.15

1 Coríntios 10:12 não é, portanto, apenas uma advertência pessoal


para que se leve mais a sério a vulnerabilidade de ser um discípulo
cristão; muito mais que isso, é uma perspectiva etema da atividade de
Deus na história, e em especial, na história da salvação. Se as pessoas
agraciadas com todas as bênçãos "sobrenaturais", derramadas sobre
os filhos de Israel no tempo de Moisés, caíram e continuaram caindo
de muitas maneiras, entãos os cristãos de Corinto certamente não
estavam imunes. E se, além disso, nós somos aqueles sobre quem os fins
dos séculos têm chegado, então estamos enfrentando tudo o que Paulo
quis dizer com a expressão: "angustiosa situação presente",16e muito
mais.
Se pensamos que tudo isso é demais para nós, Paulo prossegue, de
m aneira característica, oferecendo uma clássica palavra de
encorajamento: Deus é fiel (v. 13). Podemos nos apoiar nele, sem
reservas. Podemos pensar que as nossas provações pessoais são
grandes demais e que ninguém é capaz de entendê-las, quanto mais
nos aliviar delas. Mas não vos sobreveio tentação ("aprovação", "teste”)
que não fosse humana (v. 13). Deus mesmo já passou por esse caminho
em Jesus. Ele sabe o quanto podemos suportar. Ele também conhece
o caminho que está trilhando, o caminho pelo vale, a via de escape,
o dia do livramento, e a alegria da perseverança porque a vitória é
certa: tudo isso ele já experimentou pessoalmente.
Livramento (ekhasis) é quase um homônimo de "êxodo", e Lucas17
descreve a morte redentora de Jesus como o "êxodo" que ele estava para
cumprir em Jerusalém. Deus mesmo provê esse êxodo aos oprimidos e
aos que estão sendo duramente provados. Ele não é vingativo; não
está esperando para punir os presunçosos. Não estamos sozinhos
nesta situação, junto conosco seguem inúmeros outros, para quem o
período da provação está sendo igualmente, se não mais, exasperante.
É a consumação indubitável de um êxodo já realizado que nos
capacita a suportar: vemos a luz no final do túnel e prosseguimos com
vigor.

2. O perigo da transigência (10:14-22)

Portanto, meus amados, fugi da idolatria. l5Falo como a criteriosos, julgai vós
mesmos o que digo. uPorventura o cálice da bênção que abençoamos, não é
a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos, não é a comunhão do
corpo de Cristo? ,7Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão,
um só corpo; porque todos participamos do único pão. ^Considerai o Israel
segundo a carne; não é certo que aqueles que se alimentam dos sacrifícios são
participantes do altar? wQue digo, pois? que o sacrificado ao ídolo é alguma
coisa? ou que o próprio ídolo tem algum valor? 20Antes digo que as coisas que
eles sacrificam, é a demônios que as sacrificam, e não a Deus; e eu não quero
que vos torneis associados aos demônios. nNão podeis beber o cálice do Senhor
e o cálice dos demônios: não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da
mesa dos demônios. nOu provocaremos zelos no Senhor? somos acaso mais
fortes do que ele?

Depois da grave advertência aos cristãos complacentes, que corriam


o risco de basear sua segurança eterna em cumprir todas as práticas
"religiosas" corretas, Paulo insiste: fugi da idolatria (v. 14). A ordem é
a mesma de 6:18: "Fugi da impureza". O cristão que se deleita na
liberdade em Cristo recebida de Deus, como muitos coríntios, pode
facilmente comprometer a verdade. Tendo reafirmado a prioridade
da liberdade cristã, Paulo agora os admoesta a não assumirem uma
atitude descuidada e leviana para com a idolatria - o problema que
os coríntios enfrentavam, em especial, e que ele já investigou com
maiores detalhes no capítulo 8.
Paulo acabara de recordar (v. 7) a maneira como os filhos de Israel
deixaram que suas vidas fossem contaminadas pela idolatria. A
narrativa do bezerro de ouro em Êxodo 32 está repleta das
informações mais esclarecedoras e penetrantes acerca da degeneração
que a idolatria sempre produz. Paulo não se dispõe a acrescentar
algum se ou mas ã reprovação da idolatria. Ele reconhece que não está
falando a débeis mentais, mas a homens criteriosos (v. 15).18 Daí ele
apelar para que julguem por si mesmos aquilo que ele diz (v. 15: krinate
pode conter uma referência indireta ao prazer dos coríntios em julgar
isto e aquilo).
Paulo fundamenta o seu argumento no sacramento da Ceia do
Senhor. A cerimônia central do culto cristão, judaico ou pagão inclui
mais do que meras palavras e atos. Aqueles que participam dessas
cerimônias tornam-se verdadeiros "parceiros". A raiz grega koinonos
ocorre quatro vezes neste parágrafo, e há duas ocorrências da palavra
metecho ("participar", vs. 17, 21). A participação se dá de duas
maneiras: ims com os outros como co-adoradores e, por outro lado,
com o deus, os deuses ou o Deus a quem se adora. Os adoradores
participam juntos da realidade espiritual que está por trás de tudo o
que acontece. Barrett traduz a palavra koinonia por "participação
comum", isto é, a ênfase recai sobre aquilo que se partilha e sobre a
experiência partilhada por todos os participantes. Podemos comparar
esse termo com a famosa expressão "a comunhão do Espírito Santo".19
Todos nós partilhamos dele como cristãos, e é essa participação
comum que une todos nós como cristãos.
Analisemos as quatro aplicações de koinonia/koinonos nesta seção.
Primeira (v. 16), todos os que participam do cálice da bênção na
celebração da eucaristia, na festa do amor do povo de Deus,
participam do sangue de Cristo, ou seja, dos resultados da morte
expiatória de Cristo, de todos os seus efeitos.20 Quer seja em relação à
comunhão cristã, aos sacrifícios judaicos ou ao ritual pagão, os
participantes fazem muito mais do que uma mera participação "em
memória" de algum evento histórico do passado. Calvino escreveu:
"A alma tem uma comunhão tão verdadeira no sangue, quanto o
vinho em contato com a boca."
A expressão o cálice da bênção geralmente é usada em relação ao
terceiro cálice tomado na refeição da Páscoa, quando se fazia a
seguinte oração de graças: "Bendito és Tu, ó Senhor nosso Deus, que
nos dás o fruto da vide." Ao dizer que o cálice é bendito, Paulo está
abreviando a declaração de que Deus está.sendo louvado através do
cálice. Há pessoas que crêem que o uso da primeira pessoa do plural
em: "o cálice da bênção que (nós) abençoamos", indica que qualquer
cristão pode celebrar esta refeição eucarística, no sentido de presidi-
la; cf. Barrett: "há de se notar que Paulo não parece confinar a
enunciação da ação de graças a um grupo limitado de cristãos".21 O
mesmo raciocínio se aplica à comunhão do corpo de Cristo (v. 16). Outros
aspectos do significado de participar do corpo e do sangue de Cristo
surgirão quando examinarmos 11:17-34.
O segundo par de versos em que o companheirismo é central está
em 18 e 20. Em ambos os casos a palavra não se refere a uma
participação abstrata, mas a pessoas que participam ativamente.
Considerai o Israel segundo a carne, diz Paulo, não é certo que aqueles que
se alimentam dos sacrifícios são participantes do altar? Os sacerdotes
recebiam partes especiais de carne, que eram separadas para eles,
enquanto que, para os adoradores comuns, separavam-se outras
porções. Os adoradores não tinham nenhuma responsabilidade nas
cerimônias realizadas no altar; simplesmente recebiam alguns dos
benefícios da refeição ritual.22
Por analogia, fica explícita a direção dos argumentos de Paulo. Os
cristãos participam com o Senhor e uns com os outros do ato central
da comunhão, uma participação tão íntima e completa que ele diz:
Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque
todos participamos do único pão (v. 17). Qualquer homem "criterioso"
concluiria que as mesmas verdades se aplicam ao culto idólatra.
Morris descreve: "Os demônios fazem uso da inclinação dos homens
para cultuarem ídolos. Assim, quando os homens sacrificam aos
ídolos, não se pode dizer que estão praticando alguma atividade
neutra, destituída de sentido. Estão de fato sacrificando a espíritos
maus... Participar da comida é estabelecer comunhão. Deste modo
entram em "companheirismo" com os "demônios". Paulo não quer
que aconteça isso com os seus amigos coríntios."23 Ao afirmar que não
se pode beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios, Paulo está dizendo
que as duas experiências são mutuamente excludentes. Elas
simplesmente não se misturam: não podemos nos colocar numa
situação em que seja preciso fazer tal escolha.
Paulo não está invertendo sua negação original de que "a comida
sacrificada a ídolos não é nada" ou que "o ídolo de si mesmo nada é".24
Ele continua afirmando a inexistência, a irrealidade de tais ídolos; mas
também afirma que por trás de toda idolatria se esconde uma
atividade demoníaca: as coisas que eles sacrificam, é a demônios que as
sacrificam, e não a Deus (v. 20). Só existe um Deus único e verdadeiro,
e os idólatras não têm disposição, desejo ou aptidão para adorá-lo.
Mas todos eles são criaturas dotadas de capacidade e impulso interior
para adorar, tanto que dirigem essa adoração a "deuses que por
natureza não são".25Paulo está convencido de que a verdade espiritual
186
de tal procedimento consiste em que essas pessoas oferecem seus
sacrifícios a demônios (v. 20), estão associadas aos demônios (v. 20),
bebem o cálice dos demônios (v. 21) e participam da mesa dos
demônios (v. 21) —e, como resultado, participam dos "benefícios" de
tal comunhão.26
Portanto, se um cristão envolve-se em festas idólatras, está expondo
a si mesmo e a comunidade cristã aos demônios: Não podeis beber o
cálice do Senhor e o cálice dos demônios; m o podeis ser participantes da mesa
do Senhor e da mesa dos demônios (v. 21).
Esse contato com as forças demoníacas provoca zelos (v. 22) no
Senhor (ou "ira", Bíblia Viva) e desencadeia forças devastadoras de
desintegração. Paulo crê na existência de um mundo espiritual
invisível, que a idolatria não é uma prática sem significado, mas algo
totalmente maligno. É maligno porque rouba a glória devida ao
verdadeiro Deus, e porque não apenas leva as pessoas ao contato com
os poderes espirituais inferiores, mas, na realidade, à sujeição a eles.
Paulo é coerente quando considera que esses poderes são
subordinados ao Senhor Jesus, mas despidos, de uma vez por todas,
do seu impacto por causa do triunfo de Cristo sobre eles, na cruz.27
Explicando inequivocamente essa verdade, Paulo é inexorável
(especialmente para com os coríntios "fortes" no conhecimento) ao
declarar que os cristãos jamais devem se atrever a brincar com tais
forças demoníacas. Apesar dos sentimentos momentâneos de
impaciência e intolerância diante daqueles especialistas presunçosos
e hiperespirituais, a profunda preocupação de Paulo com seus irmãos
e irmãs amados em Cristo (v. 14) o compele a usar a linguagem mais
objetiva possível: "fugi da idolatria". O Senhor é um Deus zeloso, que
não tolera rivais, nem comparações, nem alternativas.28 A presunção
e a complacência encobrem perigos, especialmente o de nos tornar
vítimas do fracasso humilhante que, de maneira inevitável, segue-se
a todo o orgulho. Mas existe um perigo ainda maior na transigência,
porque através dela maculamos o assunto em questão e deixamos que
surjam todo tipo de imitações espirituais que adulteram a verdade
contida em Jesus, além de entrar em conflito direto com ela.

3. O perigo do legalismo (10:23-30)

Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem
todas edificam. 24Ninguém busque o seu próprio interesse; e, sim, o de outrem.
2SComei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por
motivo de consciência; 26porque do Senhor é a terra e a sua plenitude. 27Se
algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que
for posto diante de vós, sem nada perguntardes por motivo de consciência.
28Porém, se alguém vos disser: Isto é coisa sacrificada a ídolo, não comais, por
causa daquele que vos advertiu, e por causa da consciência;29consciência, digo,
não a tua propriamente, mas a do outro. Pois por que há de ser jidgada a minha
liberdade pela consciência alheia? 30Se eu participo com ações de graça, por
que hei de ser vituperado por causa daquilo de que dou graças?

Este parágrafo entrelaça os fios dos três últimos capítulos, salientando


a liberdade cristã. Paulo cita novamente o grande lema dos coríntios
libertinos: Todas as coisas são lícitas. Ele concorda, mas insiste em que
sempre levem em conta o bem geral da comunidade cristã e os
interesses de cada companheiro cristão. O apóstolo exige que esses
cristãos liberais perguntem a si mesmos: "Estou edificando o corpo de
Cristo com isso?" Paulo, então, volta a enfatizar a liberdade individual
(vs. 25-27) em todo o campo da alimentação relacionada com práticas
idólatras: "quando vocês forem ao mercado comprar carne (v. 25), não
façam todo tipo de perguntas sobre a origem do alimento; quando um
incrédulo os convidar para um bom jantar (v. 27), desfrutem sem ficar
discutindo com a sua consciência num canto da sala. E, de qualquer
forma, lembrem-se de que 'ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela
se contém'.29 Se vocês puderem fazer uma oração (silenciosa?) de ação
de graças pelo alimento, então está tudo bem."
Mesmo assim, no versículo 28, Paulo cita outro fundamento
possível para a abstenção: tendo reforçado a primazia da liberdade
cristã, ele também volta a enfatizar a liberdade para limitar a própria
liberdade por amor a um companheiro cristão, um "irmão mais fraco"
(vs. 28-29), "por mais implicante que seja",30 por mais meticuloso ou
até mesmo obtuso. O princípio básico de Paulo parece encontrar-se
no versículo 29: Pois por que há de ser julgada a minha liberdade pela
consciência alheia? Em outras palavras, o apóstolo diz: "Eu não tomo
decisões com base no que os outros pensam; mas eu me disponho a
fazer o que os outros julgam certo, se isso lhes garantir uma edificação
livre e desimpedida".

4. Conclusão (10:31-11:1)

Portanto, quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo
para a glória de Deus. 32Não vos torneis causa de tropeço nem para judeus,
nem para gentios, nem tão pouco para a igreja de Deus, 33assim como também
eu procuro em tudo ser agradável a todos, não buscando o meu próprio
interesse, mas o de muitos, para que sejam salvos. n iSede meus imitadores,
como também eu sou de Cristo.

Paulo encerra a seção com quatro versículos repletos de uma


orientação totalmente positiva para a vida da comunidade cristã, que
não é judia nem grega, mas pertence a "uma terceira raça": a igreja de
Deus (v. 32). Neste estágio, Paulo não está preocupado com barreiras
ou pedras de tropeço, com direitos ou responsabilidades.
Encontramos a liberdade cristã em sua verdadeira criatividade
quando seguimos as cinco regras fundamentais de Paulo para a
convivência entre os cristãos. Elas, na verdade, só precisam ser
apresentadas, apreciadas e obedecidas.

a) "Façam tudo para a glória de Deus" (v. 31) - não para determinar
a minha liberdade.
b) "Procurem em tudo ser agradáveis a todos" (v. 33) - sem
reclamar os meus direitos.
c) "Busquem o interesse de muitos" (v. 33) - não o meu bem-estar
ou a minha satisfação pessoal.
d) "Busquem a salvação de muitos" (v. 33) - sem ficar preocupado
com a minha salvação pessoal.
e) "Sejam imitadores de Cristo" (11:1) - sem promover a minha
reputação.

Isto é liberdade cristã: livrar-se de si mesmo para glorificar a Deus,


tornando-se semelhante a Cristo.

Notas:
1. Cf. Êx 13ss.
2. Êx 17:6.
3. Cf. N m 20:1-13.
4. Cf. 1 Co 6:11.
5. C onsiderad o m ais tarde em 10:14-22 e 11:17-34.
6. U m a citação de N m 14:16.
7. N m 14:30,38.
8. Êx 32.
9. Ê x 17 e em diversas outras ocasiões.
10. N m 25e21.
11. Cf. N m 16:41-49.
12. B ruce, pág. 93.
13. Cf. 1 Pe l:1 0 ss.; tam bém Lc 24:25-27; A t 2:16; 1 Pe 1:20.
14. Cf. l P e l :5 s s .
15. Is 33:5-6.
16. Cf. 1 Co 7:26.
17. Lc 9:31.
18. Ele, na verdade, não usa a palavra que se refere a em oções, sophoi, m as
phronim oi, "que tem bom senso".
19. 2 Co 13:14.
20. Cf. a oração no final do culto da Sagrada Comunhão do Livro de Orações de
1 6 6 2 ,"... que nós e toda a tua igreja possam os receber a rem issão de nossos
pecados, e todos os dem ais benefícios de sua paixão."
21. B arrett, pág. 232.
22. Cf. Lv 10:12-15, quanto ao cardápio dos sacerdotes, e 1 Sm 9:10-24, quanto
às refeições dos judeus comuns.
23. M orris, pág. 118.
24. Cf. 1 Co 8:4.
25. G 14:8.
26. Bruce (págs. 96s.): "Paulo está se referindo a festas explicitamente patrocinadas
por um a divindade pagã, envolvendo algum grau de reconhecim ento e até
m esm o adoração dessa divindade. A queles que participavam dessa festa...
eram considerados como tendo "perfeita comunhão sacrificial" com ela... Na
m anhã seguinte, um convidado cristão poderia perceber que participou de
palavras ou atitudes totalm ente incom patíveis com a sua confissão cristã...
foi vítim a de um a força dem oníaca associada à adoração do 'ídolo'."
27. Cf. Cl 2:15.
28. Cf. Dt 32:21; Is 42:8; Tg 4:4-5.
29. Cf. SI 24:1; 1 Tm 4:1-5; 6:17.
30. Barrett.
1 Coríntios 11:2-34
11. A Comunidade Cristã no Culto

Partimos, agora, para a próxima grande área de controvérsia entre os


diversos partidos em Corinto, a saber, o procedimento da comunidade
cristã nos cultos. O capítulo 11 destaca dois temas: o comportamento
das mulheres e as atitudes em relação à ceia do Senhor.

1. Introdução (11:2)

De fato eu vos louvo, porque em tudo vos lembrais de mim, e retendes as


tradições assim como vo-las entreguei.

Que surpresa agradável descobrir que Paulo podia elogiar os cristãos


de Corinto, porque em tudo vos lembrais de mim, e retendes as tradições
assim como vo-las entreguei. Paulo se refere a essas tradições de maneira
explícita em 11:23, lembrando a instituição da ceia do Senhor, e em 15:1
e 3, ao transmitir fundamentos do evangelho. A palavra denota o
processo duplo de ouvir e passar adiante, e é normalmente usado em
referência às verdades cristãs essenciais que constituem o centro do
evangelho.
Essas tradições (do latim traditione) foram transmitidas oralmente
pelos evangelistas e mestres aos n ovos crentes. O conjunto das
tradições passou a ser uma reprodução autorizada da verdade
apostólica. Elas são mencionadas largamente e muito valorizadas nas
Epístolas Pastorais, onde Paulo destaca a necessidade de seguir o
padrão da sã doutrina que os mais velhos transmitiram a sucessores
capazes.1
Numa cultura basicamente iletrada, a importância fundamental de
uma tradição oral confiável ganha ainda maior ênfase. De fato, pode-
se confiar na tradição oral, como indica o exemplo elementar das
cantigas de roda. Quando alguma coisa é implantada na cultura de
uma comunidade, passa a fazer parte dela. Ao pensar nos cultos de
adoração da igreja de Corinto, devemos nos lembrar de que Paulo
havia passado dezoito meses ensinando aquela congregação, e esses
ensinamentos tinham uma coerência interna muito forte. Por isso ele
falava de um padrão semelhante, se não idêntico, "em todas as
igrejas".2 Hoje se afirma com certa convicção que a igreja primitiva
possuía um conjunto de catecismo cristão, que abrangia o discipulado
comum e as doutrinas básicas; os mestres chamam esse conjunto de
doutrinas de "regras da casa", ou seja, regras básicas da fé cristã.3
Quanto à possibilidade de tais tradições afetarem o culto na igreja
cristã, Paulo pouco tinha com que se preocupar. Mas os versículos 3­
16 revelam que havia um elemento "contencioso" em Corinto, que
estava procurando uma briga, transformando em ponto principal a
questão particular de as mulheres cobrirem a cabeça nos cultos.

2. O comportamento das mulheres (11:3-16)

Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem
o cabeça da mulher, e Deus o cabeça de Cristo. uTodo homem que ora, ou
profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. 5Toda mulher,
porém, que ora, ou profetiza, com a cabeça sem véu, desonra a sua própria
cabeça, porque é como se a tivesse rapada. 6Portanto, se a mulher não usa véu,
nesse caso que rape o cabelo. Mas, se lhe é vergonhoso o tosquiar-se, ou rapar-
se, cumpre-lhe usar véu. 7Porque, na verdade, o homem não deve cobrir a
cabeça por ser ele imagem e glória de Deus, mas a mulher é glória do homem.
8Porque o homem não foi feito da mulher; e, sim, a mulher do homem. 9Porque
também o homem não foi criado por causa da mulher; e, sim, a mulher, por
causa do homem. wPortanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu
na cabeça, como sinal de autoridade. nNo Senhor, todavia, nem a mulher é
independente do homem, nem o homem, independente da mulher. ÍZPorque,
como provém a mulher do homem, assim também o homem é nascido da
mulher; tudo vem de Deus. Ujulgai entre vós mesmos: é próprio que a mulher
ore a Deus sem trazer o véu? HOu não vos ensina a própria natureza ser
desonroso para o homem usar cabelo comprido? 15E que, tratando-se da
mulher, é para ela uma glória? pois o cabelo lhe foi dado em lugar de mantilha.
16Contudo, se alguém quer ser contencioso, saiba que nós não temos tal
costume, nem as igrejas de Deus.

Na Grécia do primeiro século, as roupas dos homens e das mulheres


eram, à primeira vista, muito parecidas, exceto pela "cobertura da
cabeça" (aqui chamada de kalumma, ou "véu"). A propósito, isto não
equivale ao véu árabe, mas a uma cobertura apenas para o cabelo. A
roupa diária normal de todas as mulheres gregas incluía esse kalumma.
As únicas mulheres que não usavam tal peça eram as hetairai, as
192
amantes de "alta categoria" dos coríntios influentes. Os escravos
tinham suas cabeças rapadas e fazia-se o mesmo com as mulheres
adúlteras, como castigo. Já se sugeriu amplamente que as prostitutas
sagradas do templo local de Afrodite não usavam véus.
Não havia uma "roupa especial" para se assistir às reuniões de
comunhão da igreja para adoração: os homens vinham sem nenhuma
cobertura na cabeça; as mulheres usavam um véu, como era comum
no dia-a-dia. Ao que parece, na "excitação" do culto, certas mulheres
sentiam-se tentadas a retirar seus véus, deixando os cabelos (que
sempre eram longos) caírem soltos. Bruce4 acredita que Paulo sabia
que as profetisas pagãs do mundo greco-romano exerciam seu ofício
com as cabeças descobertas e desgrenhadas. Esse comportamento
naturalmente causava uma séria distração para os homens durante o
culto, além de representar uma negação da submissão no Senhor que
as mulheres casadas deviam aos maridos. No culto judaico realizado
no templo, as mulheres ficavam separadas dos homens, fora da vista
deles, ocultas por uma cortina; os homens sempre oravam com as
cabeças cobertas. Com esse discurso, Paulo estava ajudando os cristãos
judeus, homens e mulheres, a darem um passo significativo; ele dizia
aos homens que orassem com as cabeças descobertas (v. 4), e esperava
que as mulheres participassem ativamente da oração e da profecia
(mas com submissão, v. 5).
Há um fator que sustenta os argumentos de Paulo neste parágrafo:
ele parte da doutrina da criação, e não da doutrina da redenção. Esta
simples técnica retórica rebate imediatamente as objeções dos que
declaram que Paulo estava em conflito íntimo com seus próprios
ensinamentos em, por exemplo, Gálatas 3:28: "Dessarte não pode
haver ... nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em
Cristo Jesus". De fato, o versículo 11 deste capítulo enuncia
precisamente a mesma verdade: No Senhor, todavia, nem a mulher é
independente do homem, nem o homem, independente da mulher. Qualquer
que seja o sentido exato das últimas palavras de Paulo sobre a
subordinação (assunto que será examinado mais adiante), a frase no
Senhor (carregada de uma ênfase toda especial no grego) indica
claram ente que o homem e a m ulher são com pletam ente
interdependentes em Cristo - e só em Cristo. Os quatro temas de Paulo
neste parágrafo são: submissão, glória, interdependência e natureza.

a) Submissão (3-6)
Paulo destaca em primeiro lugar o padrão de relacionamento que
Deus estabeleceu na comunidade cristã: Quero, entretanto, que saibais
ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem o cabeça da mulher, e Deus o
cabeça de Cristo (v. 3). Em outras palavras, a hierarquia divina é: Deus...
Cristo... marido... mulher. A superioridade do marido em relação à
esposa não é maior do que a de Deus em relação a Cristo. Mas assim
como Cristo submeteu-se ao Pai, a mulher deve submeter-se ao
marido. O termo grego traduzido por "cabeça" é kephale, que em raras
ocasiões significa "governante de uma comunidade", transmitindo
normalmente o sentido de fonte ou origem, sendo usado em relação
à nascente de um rio. Deus é, portanto, a fonte de Cristo, Cristo (como
criador) é a fonte do homem, e o homem (cedendo "uma das suas
costelas", Gn 2:21ss.) é a fonte da mulher (também v. 8). Um terceiro
sentido de kephale (à parte do sentido literal) traz uma idéia de
determinação e direção, que é muito mais próximo daquilo que hoje
designamos por chefia ou liderança.
Essa hierarquia fundamental de relacionamentos, escreve Paulo,
deve refletir-se claramente no culto cristão. Aquilo que as pessoas
demonstram no culto público é importante. Não deve haver
distrações. No culto cristão estamos demonstrando abertamente a
essência do que Deus fez em Cristo: ele nos libertou para que o
sirvamos e o adoremos. Essa liberdade deve ser demonstrada de
forma visível; cf. 2 Coríntios 3:14-18, onde lemos que Moisés (em
contraste) teve de cobrir sua cabeça na presença de Deus. Os homens
cristãos não precisam cobrir suas cabeças; eles foram libertos, e a glória
de Cristo deve se tomar visível por meio do ministério da oração e da
profecia liderada por homens de cabeças descobertas: "E todos nós
com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória
do Senhor, somos transformados de glória em glória, na sua própria
imagem, como pelo Senhor, o Espírito."5
As mulheres cristãs de Corinto (que também exerciam um
ministério de oração e profecia) deviam manter suas cabeças cobertas,
pois, caso contrário, não haveria liberdade para adorar, mas, sim, uma
grande dose de distração. Era, portanto, um sinal de submissão a
mulher cobrir a cabeça. A submissão do homem era apenas a Cristo;
o "véu" da mulher indicava a sua submissão aos outros homens que
estavam presentes. Se isso acontecia na comunidade secular dentro
da cidade, não havia motivos, afirma Paulo, para se abandonar essa
convenção dentro da igreja. Se o fizessem, estariam se portando como
escravas ou adúlteras (v. 5).
Bruce tem uma boa observação sobre a questão da convenção: "Não
há nada de frívolo no fato de se apelar para as convenções públicas
194
de decoro. Ser discípulo do Jesus crucificado era, por si só, uma
característica suficientemente anticonvencional, mas as transgressões
desnecessárias das convenções vigentes deviam ser desencorajadas."6
Se uma mulher cristã perdesse a inibição no culto público, a ponto
de dispensar o símbolo externo de sua submissão, então (segundo a
lógica da insubmissão) convinha cortar todo o cabelo, removendo
assim, de um só golpe, o impacto perturbador de sua "coroa de glória".
Obviamente esse não era o modelo cristão de comportamento (que
teria, sem dúvida, insultado as normas da sociedade coríntia).
Convinha, então, que as mulheres aceitassem a disciplina de manter
o véu sobre a cabeça, especialmente quando, movidas pelo Espírito
na oração ou na profecia, se sentissem tentadas a abandonar quaisquer
inibições. A força do argumento paulino, extraído da criação, no
versículo 3, reside no fato de Deus não haver estabelecido um
princípio de ação em determinado ponto do tempo só para derrubá-
lo mais tarde. Ele é um Deus de ordem, coerência, nele não há
contradição: ele não pode negar-se a si mesmo.7

b) Glória (7-10)

O culto cristão deveria não somente refletir visivelmente o padrão de


relacionamentos ordenado por Deus, como também o fato de que
fomos criados para dar glória a Deus (cf. 10:31). O alvo de nosso culto
coletivo é dar a Deus a glória devida ao seu nome. O homem ("Adão",
no sentido genérico) foi criado diretamente por Deus para lhe
proporcionar prazer, alegria e glória. No mesmo sentido, a mulher foi
criada para ser a glória do homem, é um ser derivado dele, e se realiza
ao exercer o papel de sua ajudadora. Sob essa perspectiva, a mulher
é a "metade melhor" do homem, sendo, de fato, a sua glória (v. 7). Em
Gênesis lemos que Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem...
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou."8 A imagem de Deus, portanto, só pode ser
vista na complementaridade entre o homem e a mulher.
A glória de Deus é o tema que Paulo apresenta nesta passagem: o
homem (é )... imagem eglória de Deus, mas a mulher églória do homem. Se
só Deus deve ser adorado no culto da igreja, então é responsabilidade
conjunta, tanto do homem como da mulher, fazer tudo, dentro de suas
capacidades, para que isso aconteça. Desde que a m ulher
permanecesse com a cabeça devidamente coberta, estava livre para
anunciar uma profecia ou dirigir uma oração. Em si mesma, como ser
criado, a mulher é a glória do homem. Ao cobrir os cabelos (sua glória
suprem a, v. 15: doxa, a mesma palavra grega repetida no
desenvolvimento da discussão), ela reconhecia que só Deus devia ser
glorificado no culto cristão - não o seu marido. Daí o véu (ou kalumma)
simbolizar sua "autoridade" (v. 10: exousia) para orar ou profetizar
durante o culto —autoridade que lhe foi conferida dentro do culto
disciplinado da congregação, e em reconhecimento de que tal mulher
foi inegavelmente dotada pelo Senhor para exercer o ministério de
orar ou profetizar.
Bruce comenta que, "numa carta onde exousia ("autoridade”) é uma
palavra chave", sua ocorrência aqui é um sinal da autoridade da
mulher cristã. "Em Cristo ela recebeu posição igual à do homem: ela
podia orar ou profetizar nas reuniões da igrejas, e o seu véu era um
sinal dessa nova autoridade."9Barrett concorda: "O véu representa a
autoridade dada à mulher sob a nova dispensação para fazer coisas
que antes não lhe eram permitidas."10É bem possível, por outro lado,
que a referência de Paulo à mulher "trazer véu na cabeça, como sinal
de autoridade" (v. 10) aplique-se à sua submissão em Cristo, à
autoridade do marido. Apenas em tal espírito de submissão ela teria
liberdade de ministrar no culto da igreja. Não é de todo improvável
que Paulo estivesse pensando em ambos os aspectos da autoridade.
Morris sugere: "Ao cobrir sua cabeça, a mulher assegura o seu próprio
lugar de dignidade e autoridade. Ao mesmo tempo, ela reconhece a
sua subordinação."11
Dentro de todo esse labirinto exegético, o fio de ouro no coração de
Paulo parece ser o desejo de garantir que o culto na igreja de Corinto
fosse feito "com decência e ordem".12Havia todo o tipo de desordens
e, talvez, até mesmo indecência, embora alguns comentaristas
interpretem esses maus procedimentos de maneiras muito bizarras,
por exemplo, que o verdadeiro problema nos cultos de adoração em
Corinto eram os bispos (isto é, "os anjos") que os presidiam com olhos
cobiçosos e corações impuros. E impossível saber ao certo qual era a
intenção de Paulo ao declarar que a mulher deveria ter um símbolo
de autoridade sobre a cabeça por causa dos anjos (v. 10). Seria em
deferência à presença reconhecida dos anjos no culto da igreja? Se nós,
como povo de Deus, estivermos, assim como Paulo, esforçando-nos
para que a glória de Deus domine o nosso culto, o nosso desvio não
poderá ser muito grande.

c) Interdependência (11-12)
O parêntese que se abre aqui é um corretivo necessário ao
ensinamento vigoroso de Paulo sobre as diferenças entre o homem e
a mulher, quando criados à imagem de Deus. No Senhor, isto é, em
Cristo, o homem e a mulher (marido e esposa) são completamente
interdependentes. O apóstolo esteve pregando incisivamente que a
esposa devia ser submissa ao marido e que essa atitude fosse
demonstrada publicamente quando o povo de Deus se reunisse para
adorar. Agora, ele explica com igual força que os dois são um em
Cristo, totalmente ligados entre si, inseparáveis e interdependentes.
Esta é uma verdade no aspecto físico (v. 12), mas uma verdade ainda
maior no Senhor. Tanto o homem como a mulher devem a sua
existência a Deus: tudo vem de Deus. A adoração cristã é mais bem
expressa quando, juntos, os casais dão ao Senhor, de modo visível, a
glória de suas próprias vidas interdependentes.

d) Natureza (13-15)

Pauío encerra a discussão, um tanto complexa e às vezes remota (para


nós), com um argumento que não é extraído nem da diferença entre
homens e mulheres, nem da mutualidade entre eles; nem da
independência de cada um, nem da sua interdependência. Ele
simplesmente volta à questão da natureza: Ou não vos ensina a própria
natureza ser desonroso para o homem usar cabelo comprido? E que, tratando-
se da mulher, é para ela uma glória? pois o cabelo lhe foi dado em lugar de
mantilha (vs. 14-15). Talvez seja difícil determinar até que ponto isso
é culturalmente universal, mas o ponto que Paulo deseja destacar é
inegável: Deus fez o homem e a mulher diferentes; portanto: vive la
différencel
Sem dúvida, existem muitas convenções culturais quanto ao papel,
ao trabalho e aos direitos do homem e da mulher que precisam ser
aprimorados ou rejeitados. Como Criador, entretanto, o plano de Deus
é que homens e mulheres tenham funções diferentes, embora
complementares.
Cada ser humano deve dar glória a Deus sendo o que Deus
planejou que ele fosse. O homem deve ser verdadeiramente masculino
e a mulher verdadeiramente feminina, sem permitir que estereótipos
ditem nossas percepções, mas, antes, baseando nossa compreensão
sobre o que significa ser plenamente humano em Jesus Cristo, o
modelo perfeito. Esse princípio nos fará cuidadosos, evitando que
passemos do limite em relação à questão do unissex. Só se experimenta
a plenitude do culto cristão quando cada homem e mulher, criado e
remido por Deus, permite que sua humanidade seja expressa de
acordo com o padrão divino.

e) Conclusão (16)

Para que serve todo esse discurso? Paulo deseja que as mulheres se
vistam de modo normal e natural no culto cristão. Ele deseja que esse
culto dê glória a Deus e evidencie que os cristãos foram libertados para
adorar e glorificar a Deus. Por isso, Paulo insiste com os coríntios:
"Não ignorem os sinais óbvios da criação ou da natureza. Deus nos fez
assim. Não façam pouco caso de todas as regras do bom senso e da
decência em seus cultos. Que ele seja centralizado em Cristo e
glorifique a Deus." Sempre existirão cristãos que gostam de discutir,
e parece que havia muitos deles em Corinto (v. 16). Paulo conclui o
pensamento dizendo que todas as outras congregações cristãs
aceitavam essa orientação; por que os coríntios seriam diferentes?

3. Atitudes na Ceia do Senhor (11:17-34)

Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais, não
para melhor; e, sim, para pior. lsPorque, antes de tudo, estou informado haver
divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu em parte o creio. l9Porque
até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados
se tornem conhecidos em vosso meio. 20Quando, pois, vos reunis no mesmo
lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. 21Porque, ao comerdes, cada um toma
antecipadamente a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há
também quem se embriague. 2ZNão tendes, porventura, casas onde comer e
beber? Ou menosprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada têm?
Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto certamente não vos louvo.
23Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus,
na noite em que foi traído, tomou o pão; 24e, tendo dado graças, o partiu e disse:
Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Z5Por
semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este
cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes,
em memória de mim. 26Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes
o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha. 27Por isso, aquele que
comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e
do sangue do Senhor. 2SExamine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma
do pão e beba do cálice; 29pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come
e bebe juízo para si. 30Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes,
e não poucos que dormem. 31Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, não
seríamos jidgados. 32Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo Senhor,
para não sermos condemdos com o mundo.
33Assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos
outros. 34Se alguém tem fome, coma em casa, afim de não vos reunirdes para
juízo. Quanto às demais coisas, eu as ordenarei quando fo r ter convosco.

Vê-se claramente que o próximo aspecto do culto coletivo que chamou


a atenção de Paulo o incomodou muito. Os coríntios estavam
abusando da eucaristia e do ágape. Ele ficou tão enfurecido com essa
notícia, que escreveu rudemente: Quando, pois, vos reunis no mesmo
lugar, não é a ceia do Senhor que comeis (v. 20). Devemos investigar os
m otivos que o levaram a uma declaração tão direta, para
compreendermos a situação em Corinto, o significado da refeição
comunitária e a gravidade de qualquer abuso.

a) A situação em Corinto (17-22)

Embora tivesse tido liberdade para "elogiá-los" porque estavam


guardando determinadas tradições, acerca do culto público, que ele
lhes transmitira (11:2), Paulo não o podia fazer agora (vs. 17, 22). As
divisões (schismata) na igreja de Corinto haviam chegado a proporções
alarm antes: além dos cultos à personalidade em torno de
determinados líderes (1:12) e divergências acerca dos alimentos
oferecidos a ídolos, havia também indícios de uma espécie de
esnobismo, bastante odioso (v. 21), dos mais ricos para com os menos
ricos. A igreja estava gravemente dividida, e isso prejudicava os
momentos de culto e confraternização, de tal modo que os cristãos
voltavam para casa piores, em termos espirituais, do que quando ali
chegavam (v. 17).
Paulo não era ingênuo: ele sabia que todas as igrejas estavam cheias
de opiniões diferentes sobre este ou aquele assunto. Nesse sentido, não
estava surpreso com a situação em Corinto: Porque até mesmo importa
que haja partidos (haireseis) entre vós, para que também os aprovados se
tornem conhecidos em vosso meio (v. 19). E inevitável que haja tal
seletividade13 nas convicções cristãs entre os que se submetem ao
Senhorio de Jesus. Mas não há absolutamente nenhuma necessidade
de os cristãos perderem a comunhão devido a divergências, e isso nem
é certo. Quando esse tipo de divisão realmente penetra no culto
público da congregação, a situação torna-se escandalosa.
Paulo esperava que houvesse divisões, porque era realista, mas
deplorava-as e procurava acabar com elas. Um dos resultados
incidentais da heresia (seletividade) em uma comunidade cristã local
é que ela distingue entre o compromisso genuíno com Cristo e com
o corpo, e a intolerância religiosa ou o simples amor ao debate
teológico. Paulo precisava advertir constantemente os jovens líderes
Ar, t-,;o A ^ ^ ^

nominais.14 Quando os que se dizem cristãos amam, acima de tudo,


as discussões teológicas vazias e sem proveito, revelam a sua
verdadeira condição espiritual. Essas pessoas não são aprovadas
(dokimoi), não passaram no teste,15 e suas discussões calorosas sobre
“saúde" teológica não impressionarão o Senhor naquele dia crucial,
em que o nosso culto cristão será avaliado.
Não é de admirar que Paulo não pudesse chamar as reuniões da
igreja coríntia de "Ceia do Senhor": elas não eram submetidas à
autoridade do Senhor; mal havia consciência da presença dele, e muito
pouco se recordava da morte do Senhor. Como uma reunião dessas
poderia ser chamada de "Ceia do Senhor"? Cada um se preocupava
mais em matar a própria fome e sede (v. 21). Se o propósito da reunião
era satisfazer o apetite físico, por que não ficavam todos em casa? Não
tendes, porventura, casas onde comer e beber? (v. 22).
Devia haver uma insensibilidade especialmente desumana para
com as necessidades físicas dos que possuíam muito pouco, que quase
chegava à humilhação. Nas reuniões não havia aquele sentimento de
serem uma só família, no Senhor. Cada grupo ficava isolado. O
alimento trazido não era partilhado por todos, mas cada um
desfrutava suas próprias provisões. Alguns até chegavam a se
embriagar. Em suma, a disposição dos grupos evidenciava as divisões
que existiam na igreja de Corinto, e não a sua comunhão.

b) O significado da refeição (23-26)

Paulo lembrou então aos coríntios o significado original da eucaristia


e do ágape; recordando como o próprio Senhor Jesus os instituiu na
noite em que foi traído. A referência indireta de Paulo a Judas talvez fosse
um desafio casual aos coríntios em função do comportamento deles.
O apóstolo transmitiu aos coríntios o que ele mesmo recebera
pessoalmente do Senhor. Não podemos determinar com certeza o
modo como Paulo recebeu esta revelação. Sabemos que ele não
recebeu o evangelho "de homem algum, mas mediante revelação de
Jesus Cristo".17 Ele poderia estar alegando que as palavras usadas na
instituição da Ceia do Senhor também tinham sido reveladas
diretamente a ele. Contudo, a palavra traduzida por "receber”
(parelabon) é o termo técnico para designar a transmissão oral de
geração em geração e de um grupo para outro. Talvez os fatos tenham
chegado por meio de trasmissão oral, mas a interpretação e a aplicação
deles tenham sido reveladas diretamente pelo Senhor. Seja qual for a
natureza de sua fonte, estas palavras determinam todo o significado,
a atitude e o comportamento em qualquer celebração da Ceia do
Senhor. É a morte do Senhor que deve, de maneira preeminente,
dominar os atos, e obviamente, não era isso o que acontecia em
Corinto.
O chefe de qualquer família judaica realizava esse rito com o pão
e o vinho em qualquer refeição, e com especial solenidade na refeição
da Páscoa. Desse modo, são as palavras que dão aos atos o seu
significado único, como também a identidade da Pessoa que as
enuncia. Ele tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu
corpo, que é dado por vós (vs. 23-24). A seguir, Jesus acrescentou a
declaração / ordenança que abalou o mundo: Fazei isto em memória de
m im J8 Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: Este cálice
é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em
memória de mim (v. 25).
As palavras acerca do cálice evocam passagens importantes do
Antigo Testamento,w mas a ênfase pessoal de Paulo está no fato de
cada celebração ser uma proclamação pública da morte do Senhor, até
que ele venha (v. 26). Há um elemento da expectativa em cada
celebração da Ceia do Senhor.20 Atrás, aponta para a sua morte; à
frente, aponta para a sua volta.
A palavra chave que Paulo usa para descrever o que aconteceu é
aliança. Por meio do derramamento do sangue de Jesus, o cordeiro
pascal (5:7), judeus e gregos, ricos e pobres, libertinos e rigoristas,
homens e mulheres podem conhecer a gloriosa liberdade do perdão
e ter um conhecimento pessoal de Deus. Aqueles que participam deste
relacionamento pessoal, desta aliança com o Senhor, naturalmente
participam ao mesmo tempo de uma aliança uns com os outros.
Assim, estabelece-se a comunidade da aliança; e é exatamente isso que
os coríntios estavam minando com o seu comportamento. Para eles,
a morte de Cristo não era o ponto central; sua volta não era importante,
e o amor de Cristo não os controlava - enfim, aquele ato não era "a
Ceia do Senhor".
c) A seriedade do abuso (27-32)

Todo este parágrafo possui um tom especialmente solene. Paulo


insiste: os coríntios devem eliminar, do culto realizado ao redor da
mesa do Senhor, qualquer coisa que seja indigna. O privilégio e a
elevada vocação envolvidos na participação da Ceia do Senhor exigem
o mais severo auto-exame. Participar do sacramento "indignamente"
é tornar-se réu do corpo e do sangue do Senhor (v. 27).
A palavra grega para "réu” (enochos) tem uma aplicação jurídica, e
essa atmosfera se mantém por todo o parágrafo, com as cinco
ocorrências da raiz que designa "juízo” (krino) nos versículos 29-32.
Podemos estar às voltas com mais um dos jogos de palavras de Paulo,
por causa do amor pelo litígio e do espírito crítico dos coríntios.
Talvez ele estivesse dizendo explicitamente que aquela era uma área
na qual deviam verdadeiramente exercer um julgamento disciplinado
e severo. Quando Paulo fala de alguém que come o pão e bebe o cálice
indignamente, tornando-se réu do corpo e do sangue de Cristo, ele está
dizendo que nos tornamos culpados de derramar o sangue de Cristo;
isto é, nos colocamos, não do lado dos que estão participando dos
benefícios de sua paixão, mas do lado dos que foram culpados por sua
crucificação.
Como, então, devemos lidar com o inestimável privilégio de
participar da Ceia do Senhor? Este é, realmente, um dos dilemas
pastorais mais freqüentes na igreja local. São muitos os que evitam
participar da Santa Ceia porque não se sentem dignos. Também há
aqueles (provavelmente em número menor) que se consideram aptos
a participar, sem fazer nenhum tipo de auto-exame. As instruções de
Paulo aqui são adequadas e essenciais: Examine-se, pois, o homem a si
mesmo, e assim, coma do pão e beba do cálice (v. 28). Bruce interpreta o
versículo da seguinte maneira: "O contexto implica que o auto-exame
visa, especialmente, certificar-se de que ele está vivendo e agindo 'em
amor e caridade' para com os vizinhos."21
O processo de auto-exame relaciona-se de novo, etimologicamente,
com a raiz dokimos.22 Cada cristão tem a obrigação, não de atingir
algum padrão moral ou espiritual de perfeição (imaginária ou de
qualquer outra natureza), mas de buscar uma auto-avaliação rigorosa
e honesta.
O perigo está em comer e beber sem discernir o corpo (v. 29): tal pessoa
come e bebe juízo para si. O que, então, significa não discernir o corpo?
São duas as possibilidades. Primeira, não dar a devida importância
à igreja como o corpo de Cristo;23 era exatamente isso que os coríntios,
com todas as suas divisões, estavam fazendo, expondo-se a perigos
consideráveis. Segunda, deixamos de "discernir o corpo" quando não
reconhecemos a presença especial do Senhor ressurrecto no meio da
congregação em culto e, mais particularmente, nesse sacramento do
seu corpo e sangue. Para os coríntios havia o perigo adicional de
participar desta refeição particular como se não fosse diferente de
qualquer outra comum. Isso acontece muitas vezes conosco, quando
participamos da liturgia da Ceia do Senhor mecanicamente, sem que
estejamos, propriamente, nos alimentando "de Cristo pela fé com ação
de graças".
Paulo estava sendo suficientemente claro sobre a seriedade de tal
abuso, atribuindo enfermidades, fraquezas e até mesmo mortes na
comunidade cristã de Corinto a essa recepção indigita do pão e do
vinho nos cultos públicos. Tais incidentes, afirma ele, não teriam sido
nescessários, se eles tivessem julgado a si mesmos adequadamente (v.
31). Para os filhos de Deus não há julgamento pelo pecado, porque este
já foi pago uma vez por todas pelo próprio Jesus.24 Portanto, qualquer
meio que Deus usa para preservar a pureza de sua mesa faz parte da
disciplina paterna para com os filhos.25
Todos os cristãos deveriam fazer a si mesmos uma pergunta chave
sugerida pelos ensinamentos de Paulo nos versículos 30-31: "Quanta
fraqueza e enfermidade são, na verdade, parte da disciplina sábia,
amorosa e dolorosa, mas produtiva, de um Pai perfeito?" De acordo
com Paulo, trata-se mais de um gesto de amor do que de um castigo
divino: Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não
sermos condenados com o mundo (v. 32).

d) Conclusão (33-34)

Paulo conclui assim seu sincero apelo aos coríntios acerca de dois
aspectos da vida deles como adoradores do Senhor. Ele estava tão
preocupado com a maneira como eles estavam se expondo ao
julgamento de Deus ao participarem da Ceia do Senhor, que descreve
a natureza desse ato como uma festa de amor: esperai uns pelos outros
... Se alguém tem fome, coma em casa (vs. 33-34). De acordo com Schlatter,
isso pode ter marcado o começo de uma distinção entre a festa do
amor e a eucaristia. Ainda que seja uma suposição, é oportuno
observar que o culto cristão em Corinto era. mais informal em sua
natureza, acontecendo (com toda probabilidade) em casas
particulares, incorporando elementos tanto litúrgicos como
espontâneos, e não se limitando a um período devocional de uma
hora, em um prédio especialmente construído, que praticamente não
é usado no restante da semana. Alguns outros aspectos deste tipo de
culto são tratados por Paulo nos capítulos 12—14.

Notas:
1. Cf. 1 Tm 4:6; 2 Tm 1:13-14; 2:2; 3:14; 4:3-4; Tt 1:9; 2:1.
2. Cf. 1 Co 14:33.
3. Cf. M ichael Green, Evangelism — Nmv and Then (IVP, 1979), págs. 88s.
4. Bruce, pág. 105.
5. 2 C o 3:18.
6. Bruce, pág. 107.
7. Cf. 2 T m 2:13.
8. G n 1:26-27.
9. Bruce, pág. 106.
10. Barrett, pág. 255.
11. M orris, pág. 124.
12. Cf. 1 Co 14:40.
13. Veja com entário sobre l:10ss.
14. Por exem plo, 1 Tm 1:3-4; 6:3-5,20-21; 2 Tm 2 :14-18,23-26; T t 1:1-14; 3:9-11.
15. Contraste com A peles (Rm 16:10).
16. Cf. 1 Co 3:11-15; 9:27.
17. G 11:12.
18. Bruce escreve: "No sentido bíblico, 'memória' é m ais do que um exercício
mental; envolve uma compreensão do que está sendo lembrado. Na festa da
Páscoa os participantes se unem aos seus antepassados no Êxodo; na
Eucaristia, os cristãos experim entam a presença real do seu Senhor. A ssim
com o a refeição da Páscoa era 'um mem orial da saída do Egito', o partir do
pão devia ser um memorial de Jesus após 'sua partida (exodos) que aconteceria
em Jeru salém "1(pág. 111).
19. Por exem plo, Jr31:31ss.
20. Cf. os ensinam entos do Senhor em Lc 22:16,18.
21. Bruce, pág. 115.
22. Cf. 1 Co 3:13; 9:27; 11:19; Rm 16:10.
23. Cf. 1 Co 10:17.
24. Cf. Jo 5:24.
25. Cf. H b 12:5-11.
1 Coríntios 12:1-31
12. Os Dons Espirituais

1. Proclamando Jesus como Senhor (12:1-3)

A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes.
2Sabeis que, outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos
mudos, segundo éreis guiados. 3Por isso vos faço compreender que ninguém
quefala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema Jesus! por outro lado, ninguém
pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo.

Ao examinar o próximo assunto apresentado a Paulo pelos coríntios,


a respeito dos dons espirituais, precisamos nos lembrar do contexto
pagão, do qual a maioria dos cristãos de Corinto procedia. Convém
ressaltar, sobretudo, as religiões gregas de mistério, que tinham as
experiências espirituais como norma. Eles estavam acostumados a
serem guiados (v. 2) por algum tipo de força sobrenatural ou demoníaca
a um estado de transe, ou êxtase, ou a alguma atitude estranha. Tal
"inspiração" era considerada não apenas normal ou esperada, mas
como uma explícita autenticação da realidade da força divina
envolvida. Se não houvesse tal manifestação clara de inspiração,
podia-se suspeitar do poder de tal divindade.
Em harmonia com o seu duplo argumento acerca da carne oferecida
aos ídolos,1Paulo afirma a impotência (ídolos mudos) e a potência das
forças presentes nesses cultos de mistério (deixáveis conduzir-vos ... éreis
guiados —referindo-se a uma força definida em operação, guiando as
pessoas). Essas forças não eram, de modo algum, o que os seus
intérpretes diziam ser; na verdade, comparados à verdade em Jesus,
esses ídolos eram mudos.2 Mas Paulo teria muita dificuldade em
persuadir os coríntios de que nada havia de real neles. Eles sabiam
muito bem que havia.
No mundo ocidental, nos fins do século XX, quando a desilusão
com a tecnologia e o materialismo consome cada vez mais as pessoas,
e certamente também em todas as civilizações não ocidentais, há uma
superabundância de religiões e uma grande variedade de experiências
espirituais que são reais, mas que, por causa de sua grande
diversidade e popularidade, precisam ser devidamente avaliadas sob
um critério adequado. O que vem de Deus? Qual é o resultado de uma
personalidade perturbada ou um trauma psicológico? O que acontece
em determinados estados produzidos por drogas, quer sob
supervisão médica, quer em certas subculturas em que não há limites?
Como ocorre a inspiração direta das forças satânicas?
A luz das experiências freqüentes e normais desse gênero, a que os
coríntios estavam sujeitos, não nos surpreende que Paulo não quisesse
que permanecessem "ignorantes a respeito dos dons espirituais". A
palavra dons aparece gratuitamente na tradução; e Paulo, com certeza,
está se referindo ao que hoje chamamos, num sentido mais amplo, de
"espiritualidade", ou seja, todas as diversas formas pelas quais
experimentamos a realidade espiritual. Embora, mais adiante, a
discussão seja limitada aos charismata, em particular, e mais adiante
ainda (capítulo 14) a dois dons específicos, é mais provável que Paulo
esteja fazendo uma referência geral. Os coríntios estavam totalmente
obcecados pelas coisas sobrenaturais e precisavam de um conselho
firme, sábio, corretivo, mas encorajador de Paulo. A propósito, embora
seja pouco provável que ton pneumatikon (v. 1) esteja no masculino (isto
é, referindo-se a "pessoas espirituais", como em 3:lss.), aquela sua
descrição dos cristãos coríntios como "não espirituais" não devia estar
muito longe de sua mente. Essa é a provável ênfase de sua frase: "não
quero que sejais ignorantes" a respeito desses assuntos - eles
pensavam que já sabiam tudo o que havia para saber. Paulo lhes
ensina que nem tinham começado a "engatinhar" nessa área; eis aí a
primeira lição para os ignorantes.
Paulo, portanto, continua ferindo o orgulho dos coríntios, desta vez
no que se refere à suposta superespiritualidade deles. A primeira lição
é realmente elementar, mas crucial: Por isso vos faço compreender que
ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema Jesus! Por outro
lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo (v. 3).
Quaisquer que fossem os outros espíritos, divindades ou demônios
que eles tivessem conhecido anteriormente, o Espírito de Deus, o
Espírito Santo, estava encarregado de proclamar que Jesus é Senhor.
Existe, nos comentários, uma discussão meticulosa sobre a aparente
impossibilidade de qualquer cristão, mesmo na igreja de Corinto, ser
falsamente inspirado a ponto de gritar: Anátema Jesus! Será que Faulo
o está colocando em oposição à confissão cristã verdadeira, Senhor
Jesus, a fim de lembrar aos coríntios o tipo de expressão que eles
poderiam muito bem ter ouvido quando eram pagãos e assistiam a
cultos locais ("Maldito Jesus")? Nesse caso, ele estaria dizendo que, em
206
contraste, o Espírito (pneuma) do Deus único e verdadeiro exalta Jesus
como Senhor.3 É quase certo que esse era o credo cristão mais antigo,
e temos provas de que, nas reuniões cristãs, os de fora e até mesmo
os candidatos ao batismo eram convidados a abandonar o recinto
antes que esta confissão de fé fosse enunciada.
Para Paulo, este ardente desejo que o Espírito Santo tem de
glorificar Jesus4 é o critério geral de autenticidade na questão da
espiritualidade. De forma indireta, mas fundamental, isso permeia
todos os três capítulos. Desse modo, o capítulo 12 concentra-se na
igreja como o corpo de Jesus Cristo; o capítulo 13 revela a essência do
caráter de Jesus Cristo; o capítulo 14 destaca dois dons em particular
(línguas e profecia) e demonstra como qualquer dom exercido com o
verdadeiro espírito de Cristo serve para edificar o seu corpo, a igreja
- em Corinto ou em qualquer outro lugar. À medida que a igreja assim
se consolida e começa a operar com eficiência, Jesus de Nazaré passa
a ser visto como o Senhor do universo.
Esse amadurecimento da igreja local também completa o potencial
não desenvolvido de cada cristão, mas é importante perceber que esta
perspectiva da individualidade faz parte do crescimento de todo o
corpo; não sendo nunca considerada por Paulo de um modo isolado.
A igreja —como o seu corpo - tem de demonstrar o supremo senhorio
de Jesus. Não se faz nenhum apelo ao desejo de realização pessoal de
algum indivíduo, que sempre tem sido uma atração para os grupos
não-cristãos ou subcristãos, desde os cultos gregos de mistério até
hoje. Atentando para a igreja de Corinto como o corpo de Cristo, Paulo
está novamente contrastando a falsa espiritualidade das religiões
contemporâneas com a genuína obra do Espírito Santo.
A frase Senhor Jesus (v. 3) é tão familiar e fundamental que
precisamos redescobrir sua singularidade especial. Em 8:5 Paulo
menciona a multidão de deuses e senhores no mundo daquele tempo.
Cada cultura tinha as suas próprias divindades, que exigiam a
lealdade e a fidelidade dos seus devotos. Os cristãos ficavam de fora,
acima desses "senhores" e contra eles, e proclamavam juntos, com
ousadia: "Jesus é Senhor", idêntico ao Javé do Antigo Testamento,
supremo sobre o imperador romano, o vencedor ressurecto sobre
qualquer principado e poder cósmico ou demoníaco.5 Entrar nas
águas do batismo e declarar que "Jesus é Senhor" com sinceridade,
apegando-se a isso em qualquer circunstância, até a morte, exige a
inspiração do próprio Espírito de Deus.
Obviamente Paulo hão está querendo dizer que ele nem pode
pronunciar as palavras "Jesus é Senhor" sem o Espírito; ele está falando
de uma profissão pública de fé pessoal em um Salvador vivo, diante
de um mundo hostil. Ninguém poderia manter uma confissão dessas,
senão pelo Espírito Santo; e isso independe de século ou cultura.
A verdadeira "espiritualidade” não conduz a pessoa a um êxtase,
ao individualismo ou a um outro mundo, mas para dentro da vida da
igreja local, numa expressão do compromisso pessoal com Jesus como
Senhor e com o seu corpo aqui na terra. É ali que vão ser exercitadas
as implicações do que é ser "espiritual", homens e mulheres do
Espírito. Em períodos de perseguição e martírio, tais como muitos dos
contemporâneos de Paulo tiveram de enfrentar nos tempos de Nero
e Domiciano, o significado e a inspiração de pertencer ao corpo de
Cristo começam a fazer sentido. O cristão que se distancia dos outros
cristãos vacila em sua lealdade a Jesus como Senhor: este é, sem
dúvida, o ponto central daquilo que Paulo começa a revelar nos três
capítulos seguintes.

2. Para o bem comum (12:4-7)

Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. 5E também há


diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. 6E há diversidade nas
realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos.7A manifestação
do Espírito é concedida a cada um, visando a umfim proveitoso.

Como, então, o Espírito de Deus assegura e explica o fato fundamental


de Jesus ser Senhor? Capacitando a igreja a personificar a sua presença
no mundo de várias maneiras, por intermédio de cada membro
individualmente, mas sempre apontando para Jesus como Senhor.
Paulo espera que a igreja, até uma arrogante e dividida como a de
Corinto, transforme-se gradualmente em um modelo de comunidade
cristã. A igreja é o meio pelo qual Jesus Cristo se faz presente e se
expressa de maneira única e distinta no mundo. Há uma rica
diversidade de pessoas (vs. 13,28) e de dons (vs. 4-11) na igreja. Há
muitos membros nesse corpo, e cada um é diferente. Nenhuma
pessoa, nenhum dom é réplica de outro. Deus jamais imita; isso faz
parte da natureza de Satanás, que tenta imitar todos os dons de Deus,
que são bons, com suas próprias falsificações. Na verdade, os nove
dons mencionados de maneira específica nos versículos 8-10 são
imitados com exatidão em práticas espiritualistas.6 Qualquer desejo,
qualquer tentativa de extinguir ou diminuir essa rica diversidade não
são inspirados pelo Espírito Santo. Justamente como a própria graça
de Deus é "multiforme",7 assim também ele distribui os seus dons e
nos faz indivíduos.
Paulo explica agora essa diversidade. A palavra que foi traduzida
por diversidade (diaireseis) pode também significar "atribuição". O verbo
foi obviamente usado com este último significado no versículo
11: "... o mesmo Espírito... distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um,
individualmente". É bem possível que Paulo tivesse a intenção de dar
uma dupla nuance, para destacar a diversidade na igreja de Deus e
para manter em destaque, ao longo de todo o capítulo, a ação soberana
de Deus em sua igreja. No texto, temos quatro verbos chaves que
ilustram essa soberania: no versículo 11, Deus "distribui"; no versículo
18, Deus "dispõe"; no versículo 24, Deus "coordena"; no versículo 28,
Deus "estabelece". Do começo ao fim, do detalhe mais ínfimo até a vida
da igreja como um todo: Deus está no controle. Isso garante a
variedade, porque ele é infinitamente rico em misericórdia e graça,
sempre criando novas maneiras de demonstrar o seu amor e a sua
verdade.
Em primeiro lugar, existe uma variedade de dons (charismata), isto é,
graça (charis) concreta ou real. Paulo insistiu com Timóteo para que
ele reavivasse o charisma de Deus que havia nele.8 Pedro insiste com
seus leitores: "servi uns aos outros, cada um conforme o charisma que
recebeu."9 Hoje, na Grécia, a palavra significa "presente de
aniversário", mantendo a importante conotação de presente de amor,
embora também sugira uma propriedade pessoal, para o deleite de
quem recebe. Paulo quer que os seus leitores entendam que toda a
variedade da graça de Deus não depende de ganhar o seu favor ou a
sua atenção: Deus dá a todos da igreja por causa do seu amor.
Segundo, também há diversidade nos serviços, na diakonai, isto é, na
maneira de sermos diáconos, de servirmos uns aos outros, de sermos
servos de nossos próximos e de Deus.10 Aqui, Paulo está enfatizando
a atitude mental para com as coisas do Espírito que ele deseja que os
cristãos de Corinto desenvolvam. É provável que eles estivessem
inclinados a ver a igreja como uma arena para demonstração de seus
próprios talentos e habilidades, quase como um palco para suas
apresentações. A tentação ainda continua entre nós, mas Paulo nos
lembra a essência da nossa vocação, que é servirmos uns aos outros.
Essa atitude mental aponta especialmente para Jesus como o Senhor.11
São vários e infinitos os meios pelos quais o Espírito inspira os cristãos
de boa vontade para esse tipo de diaconato. Como diz Bittlenger: "Não
se trata de ficar esperando até que alguma coisa aconteça comigo e me
force, mas de uma disposição de dar o que Deus colocou em mim."12
Terceiro, há diversidade nas realizações, de energenata, ou seja, energia
de Deus operando nos cristãos e transbordando para a vida da
comunidade. Aqui Paulo está destacando o poder absoluto e a energia
inerente que existe em cada cristão. A atuação do Espírito Santo de
Deus não é uma teoria, e não devemos reduzi-la a um tema para
debates teóricos. O Espírito produz resultados, resultados variados
e perceptíveis: vidas e relacionamentos transformados, congregações
crescentes, testemunhos eficazes, talentos revelados. Quando cada
item desses é energizado pelo Espírito, o Senhorio de Jesus é
demonstrado de tantas maneiras diferentes quantas são as pessoas
que possuem essa energia. Samuel Chadwick escreveu num tom
evocativo sobre como ele mesmo descobriu essa energia divina: "Cada
parte do meu ser despertou. Eu não recebi um cérebro novo, mas
ganhei uma nova mentalidade. Não recebi uma nova capacidade
discursiva, mas meu discurso ganhou uma nova eficiência. Eu não
recebi um novo dicioxiário, mas uma nova Bíblia. Imediatamente, era
uma nova criatura, com a mesma base de qualidades naturais,
energizadas, avivadas e reforçadas com vitalidade e eficácia muito
maiores, de uma forma que ninguém sonharia ser possível. Isso é o
que acontece àqueles sobre os quais repousa o Espírito."13
O versículo 7 traz uma quarta frase que também ilumina esta faceta
da diversidade na igreja, e todo o versículo põe em evidência o tema
geral, a comunidade: a manifestação do Espírito é concedida a cada um,
visando a um fim proveitoso. Várias vezes, Paulo leva os coríntios de
volta aos benefícios da vida em comum, e não dos caprichos pessoais
dos indivíduos. Mas a verdade mais relevante aqui enfatizada neste
ponto é que os cristãos, como indivíduos, devem demonstrar que
possuem o Espírito de Deus dentro de si. Tom Smail escreveu o
seguinte: "O Espírito não deve ser 'espiritualizado'. Ele opera no corpo
com o intuito de produzir ali uma glória visível, para que todos os que
têm olhos abertos para a realidade possam ver.”14A intenção dele é se
fazer sentir e conhecer através de seus dons, como também de seu
fruto.15 Muitas vezes a causa da falta de credibilidade da igreja como
a comunidade do Espírito Santo está precisamente neste ponto.
Muitos cristãos não manifestam, ou não estão aptos para manifestar,
seus respectivos dons na vida da igreja local. A rica variedade de dons
da comunidade cristã fica assim oculta e, para os de fora, a sua vida
corporativa parece pacata e conformista, em vez de diversificada e
viva.
É importante compreender que a rica variedade de tal operação do
Espírito Santo no corpo de Cristo não tem nenhuma relação com a
maturidade cristã ou com os méritos pessoais. Paulo é firme ao dizer
que "a manifestação do Espírito é concedida a cada um". Esse refrão
percorre todo o capítulo como o tema de uma sinfonia. A comunidade
cristã é a comunidade do Espírito Santo, do Deus vivo. Ele é um Deus
ricamente diversificado e cada membro, individualmente, contribui
para essa diversidade viva.

3. A graça de Deus em ação (12:8-11)

Porque a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro,


segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; 9a outro, no mesmo
Espírito, fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; wa outro, operações
de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um
variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las. nMas um só
e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz,
a cada um, individualmente.

Paulo apresenta agora nove exemplos dessa rica variedade. Em


Romanos 12:6-8, Efésios 4:7-11 e 1 Pedro 4:7-11 temos três outras listas
que se sobrepõem, delineando mais de vinte dons do Espírito. O
pentecostalismo clássico costumava ensinar firmemente que estes
nove dons dos versículos 8-10 eram especiais, dons "sobrenaturais"
(sic) de Deus para a igreja. Essa diferenciação entre dons naturais e
dons sobrenaturais exige, na verdade, um exame mais detalhado.16
Tanto seria um erro limitar os dons do Espírito às habilidades
naturais utilizadas e liberadas por Deus, como, por outro lado, afirmar
que os verdadeiros dons do Espírito são apenas os manifestamente
sobrenaturais.
Também é importante destacar que, em certos casos, o talento
natural de uma pessoa "não vem a se traduzir em um dom espiritual,
porque o indivíduo sente que utilizou o talento tão mal no passado
que só consegue associá-lo a más recordações. Uma outra explicação
para isso é que o Senhor não motiva o convertido a usar esse talento
no seu serviço por causa da imaturidade da pessoa. Neste caso, o
Senhor sabe que o dom seria mais uma pedra de tropeço do que um
serviço. O resultado seria o orgulho e a auto-suficiência por causa de
uma confiança nos dons, e não na capacitação do Espírito Santo."17Por
exemplo, uma bailarina altamente capacitada e conhecida nos Estados
Unidos não se sentiu pronta ou livre para usar seus talentos
profissionais na vida de sua igreja local por diversos anos, até que foi
libertada da ambição que a impulsionava a buscar reconhecimento
pessoal e aclamação pública.
Como Criador de nossas capacidades naturais e Redentor de todo
o nosso ser para que possamos receber novas habilidades, Deus opera
de várias maneiras para produzir muitos exemplos distintos de sua
graça operando na comunidade cristã. Isso se tornará mais claro
quando analisarmos os diferentes dons mencionados, mas também
está implícito no tempo do verbo no versículo 7 ("é concedida"),
indicando muito bem que tal capacitação não é necessariamente, nem
normalmente, um dom concedido de uma vez por todas, mas uma
nova provisão constante do que possa estar sendo necessário nas
várias circunstâncias enfrentadas pela comunidade cristã.
Vamos examinar agora a lista dos dons descritos nos versículos 8­
10. Embora a lista tenha sido desmembrada de várias maneiras (como,
por exemplo, em "dons de ação, dons de palavra e dons de
conhecimento"18), isso parece ser um procedimento arbitrário.
Examinaremos cada um conforme aparece no texto bíblico.

a) A palavra da sabedoria (8)

O termo grego é logos sophias ("uma palavra de sabedoria"), e


necessário relacioná-lo à maneira como os coríntios lidavam com
sabedoria, e também observar a natureza específica do logos. Tal dom
poderia ser revelado em um cristão muito sábio (um pastor ou um
mestre, por exemplo) que aprendeu a temer firmemente o Senhor,19
e que não confia em seu próprio entendimento, sendo, portanto, uma
pessoa visivelm ente sábia, tanto nos conselhos como no
comportamento. Tal pessoa às vezes manifesta um dom específico em
uma ocasião específica, e a sabedoria de Deus é comunicada com
clareza sucinta e precisa, de modo que essa "palavra" reflete, sem
dúvida, a sabedoria divina. Tal "palavra da sabedoria" lança luz numa
situação confusa, dá uma perspectiva em uma outra e fornece um
irrefutável sistema de coordenadas em uma terceira situação.
Salomão recebeu esse tipo de charisma quando foi confrontado com
as duas mulheres que reivindicavam a posse do mesmo bebê,20 e as
palavras que encerravam a sabedoria de Deus eram estas: "Dividi em
duas partes o menino vivo, e dai metade a uma, e metade a outra."
O próprio Jesus revelava constantemente tal graça capacitadora em
seu ministério. Podemos ver exemplos disso na maneira como se
conduziu quando seus adversários tentaram induzi-lo a dizer uma
falsidade ou a se contradizer, ou a falar contra o significado manifesto
da lei de Deus. O modo como ele usava as contra-respostas é
fascinante e freqüentemente sugeriam ou continham "palavra de
sabedoria".21
Destacada a natureza específica desse dom para uma determinada
ocasião, devemos também salientar que qualquer cristão que esteja
crescendo de maneira constante em Cristo, que é a sabedoria de Deus22
e a quem Deus tomou a nossa sabedoria,23 pode por isso ser
regularmente usado para proferir a palavra de sabedoria. O tempo do
verbo —é dada (didotai) —indica que não se trata necessariamente de
um dom de posse permanente, para ser manifestado regularmente por
um determinado cristão. Poderia indicar tal coisa, mas é muito mais
provável que seu foco esteja sobre o fato de Deus atender a uma
necessidade específica, equipando um membro do corpo com esse
dom. Numa próxima ocasião, pode, muito bem, usar outra pessoa de
modo semelhante. Isso é importante para os pastores, porque temos
uma forte tendência de falar do "meu dom" de modo bastante
possessivo e egoísta; quando as Escrituras nos ensinam, aqui e em
outras passagens, que se tratam de dons de Deus para o corpo, com o
propósito de estabelecer Jesus como o Senhor.
Também é relevante lembrar que são dons da graça de Deus, isto é,
não são prêmios nem indicadores de maturidade espiritual. Por essa
razão, mesmo o cristão mais jovem pode ser usado em qualquer tipo
de dom, inclusive proferindo uma palavra de sabedoria.
Deus, porém, concede à sua igreja tanto os dons como as pessoas.24
Pode parecer que, em certas áreas do ministério (que veremos mais
tarde), uma pessoa é solidamente dotada de maneira tão óbvia e
freqüente que a igreja então reconhece nessa pessoa, assim
regularmente dotada, um dom de Deus para o seu corpo, talvez como
evangelista, mestre ou pastor. Contudo, não é bom considerar
necessário ou normal que esses dons estejam localizados no mesmo
indivíduo: faz parte da sabedoria divina garantir que cada membro
continue alimentando uma firme expectativa de poder ser usado por
Deus na edificação de sua igreja. Isso também elimina a "mentalidade
de guru", que faz com que muitos cristãos não recebam muito de
Deus, a não ser através de certos indivíduos dotados que passaram a
ser considerados experts em determinado ministério.
Se um cristão cai na armadilha de se apropriar de algum dom ou
ministério, o Senhor pode muito bem afastá-lo de uma situação em
que ele (ou os que o cercam) presuma qué os seus dons e o seu
ministério sejam cruciais para o corpo de Cristo naquela localidade.
Tal sentimento de importância, até indispensabilidade, sutilmente tira
do foco o senhorio de Jesus, e a sensibilidade do Espírito Santo nessa
área ("Ele me glorificará"25) afasta a pessoa dessa situação ou a leva a
uma outra área de ministério. Essa é uma experiência dolorosa, e
deveríamos nos lembrar de que Deus preza muito a soberania do
Espírito na igreja.26 O Espírito, por sua vez, preza a proeminência de
Jesus como "o cabeça de todas as coisas".27 Esta é a ênfase de 12:11:
"Mas um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas,
distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individualmente."
Qualquer tendência atual de se falar: "minha igreja ... meus dons ...
meu ministério", pode ter um tom coríntio.

b) A palavra do conhecimento (8)


Em grego, logos gnoseos, significa literalmente "uma palavra de
conhecimento". Outra preocupação coríntia se destaca novamente:
gnosis, ou "conhecimento". O Espírito Santo se preocupa em equipar
o corpo de Cristo com o conhecimento da "verdade em Jesus",28 tanto
no extenso campo da verdade, como no conhecimento específico de
fatos específicos. Desse modo, o Espírito possibilita o tipo de
ministério que faz com que Jesus seja o Senhor da vida das pessoas
e das diferentes situações. O próprio Jesus demonstrou claramente tal
conhecimento em seus ensinamentos gerais. Taníbém houve ocasiões
específicas em que ele falou diretamente para (determinada situação,
como, por exemplo, estabelecendo sua identidade e sua salvação à
mulher samaritana,21’ ou autenticando o seu ministério ao homem
paralítico,30 ou fazendo uma pergunta aparentemente cruel, mas de
importância crucial a um inválido de nascença.31
Parece que Pedro foi equipado de modo similar quando lidou com
a hipocrisia que começou a brotar nos primeiros dias da igreja.32 A
história de Ananias e Safira ilustra como o Espírito Santo equipou um
determinado cristão (Pedro) com um dom específico (palavra de
conhecimento) para resolver um problema que nunca teria sido
revelado, muito menos solucionado, a não ser pela manifestação do
Espírito.33 Sem esta capacitação especial do Espírito, a igreja teria
gradualmente perdido a sua marca característica de integridade e
transparência. A hipocrisia teria se tornado normal na comunidade
do Espírito. Convém indagarmos até que ponto a comunidade cristã
da atualidade já perdeu sua marca característica por causa da ausência
de tal manifestação do Espírito. Em decorrência de este dom específico
ter sido exercido com firmeza em uma situação extraordinariamente
difícil, "sobreveio grande temor a toda a igreja e a todos quantos
ouviram a notícia destes acontecimentos. Muitos sinais e prodígios
eram feitos entre o povo, pelas mãos dos apóstolos... E crescia mais
e mais a multidão de crentes... agregados ao Senhor... E todos os dias,
no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar, e de pregar
Jesus, o Cristo."34 Em outras palavras, o senhorio de Jesus foi
confirmado.
Existem aplicações óbvias e, igualmente, perigos óbvios em
qualquer exercício específico deste dom hoje. Ele é tão manifestamente
relevante e poderoso, que seria muito perigoso se caísse em mãos
erradas (ou várias vezes nas mesmas mãos), ou fosse usado com um
espírito errado, isto é, sem o amor ao qual Paulo se refere no capítulo
13.
Nem todos os comentaristas aceitam a interpretação destes dois
primeiros dons, que enfatiza tal manifestação específica e exata de
sabedoria e conhecimento. Em geral, parece que podemos dizer que
os comentaristas dão menos ênfase ao "pronunciamento" específico
do que à sabedoria e ao conhecimento propriamente ditos. Por
exemplo, Godet, Bruce, Hodge e Morris discutem a possível diferença
entre sophia e gnosís, mas não chegam a uma conclusão definida,
apenas entendem que Paulo está falando, em termos gerais, acerca da
verbalização de ambos, de um modo ou de outro. Seria razoável
admitir ambos: o campo de ação mais amplo possível para a sabedoria
e para o conhecimento, conforme existiam no próprio Jesus;35 e ao
mesmo tempo esperar uma articulação muito específica, em palavras
exatas, do que Deus deseja que a igreja local saiba em determinado
estágio de sua vida em comum.

c) Fé (9)
Provavelmente é melhor dizer o que este dom específico não é, antes
de descrever o que ele é. Evidentemente não se trata da "fé salvadora"
pela qual cada cristão é capacitado a receber a salvação de Deus,36 nem
da fidelidade que vem como fruto da obra do Espírito Santo no caráter
do cristão.37 Igualmente, não é a tendência otimista de ser positivo em
tudo, resumida nas palavras de J. B. Cabell: "O otimista proclama que
vivemos no melhor de todos os mundos; e o pessimista teme que seja
verdade." Nesse sentido, a fé como dom do Espírito também não deve
ser equiparada à afirmativa dogmática, quase desafiante, de que "a dor
vai passar" ou que "ela não vai morrer", qué pode se degenerar na
afirmação de que a dor já passou, quando há muitos sinais claros e
dolorosos de que ela não passou.
Fé também não é crueldade, nem ingenuidade, nem otimismo, nem
"crendice"; a fé olha para o caráter de Deus e permanece firme nas suas
promessas. Como toda fé verdadeira de qualquer tipo, este dom da
fé que existe em certos membros do corpo vê além da situação
imediata "como quem vê o que é invisível"38 e produz a confiança de
que Deus vai agir em situações aparentemente impossíveis. Na
prática, este dom geralmente parece vir ligado aos milagres e ao dom
de cura. Vemos isso na vida de Jesus em diversas ocasiões, mas
notavelmente na morte de Lázaro.39
A galeria dos heróis da fé em Hebreus 11 certamente empresta
realidade a este dom, visto de forma paupável na vida de homens e
mulheres de Deus que, pela fé, receberam a certeza de coisas que eles
não poderiam ver nem provar e, conseqüentemente, continuaram
avançando com Deus através das mais difíceis circunstâncias. Sempre
houve exemplos desse tipo, como George Muller, Hudson Taylor,
William Wilberforce, os mártires da Reforma, como também muitas
pessoas nos dias de hoje que não têm nomes tão famosos, mas que
manifestam igual fé e são um constante encorajamento. Em face disso,
uma dieta regular de biografias cristãs favorece grandemente o nosso
crescimento pessoal no Senhor.
Todos esses indivíduos demonstraram o dom da fé. Mas seria uma
pena se permitíssemos que tais monumentos de fé em ação
colocassem este dom fora da experiência de alguma igreja local ou
algum cristão. O palco pode ser São Paulo, e não a China; o drama
pode envolver o orçamento da igreja, e não a abolição da escravatura;
a trama pode se desenvolver a partir do desânimo na união de jovens,
em vez do estabelecimento de uma rede de orfanatos em Bristol. Mas
cada roteiro em cada igreja local exige o dom da fé, distribuído pelo
Espírito, segundo lhe apraz, para dar novo impulso ao seu povo de
moral abatido. A firme perseverança da igreja local na busca da
vocação superior de Deus, na vida em geral ou em alguma questão
particular, verdadeiramente subscreve a nossa obediência a Jesus
como o Senhor. O mais insignificante dos m embros pode
perfeitamente ser usado para transmitir essa fé a todo o corpo, no
momento crucial de tomar decisões. Há um ditado oriental que diz:
"A fé é uma ave que sente o amanhecer e canta enquanto ainda é
escuro."

d) Dons de curar (9)


A tradução literal do grego parece ter um significado incomum nesta
216
passagem: dons de curas, charismata iamaion, isto é, as duas palavras
estão no plural. Paulo não está falando acerca do "dom de curar" ou
do "ministério da cura". Ele está incentivando os coríntios a esperar
que Deus aja de muitos modos diferentes, em sua graça absoluta,
curando todos os tipos de pessoas, relacionamentos e até mesmo
situações. Escrevendo a respeito da enfermidade que não é
simplesmente física, Hans Bürki comenta: "A enfermidade está
sempre relacionada com o conflito. Nós ficamos doentes quando um
conflito se torna insuportável: o conflito entre o corpo e a mente...;
entre o consciente e o inconsciente...; entre a necessidade individual
e a integração social; e entre as nossas lutas temporais e o nosso
destino eterno. Quando as tensões em uma ou em todas estas áreas
ultrapassam a nossa capacidade de suportar, ficamos doentes e
precisamos de cura: cura em todas estas áreas."40
Esses charismata são mencionados nos mesmos termos no final do
capítulo (vs. 28 e 30), embora haja versões que apresentem
erroneamente o termo "curadores" no versículo 28. Por muitas razões,
já que assim se remove a única referência do Novo Testamento a
"curadores" com tal conotação, este é um fato lingüístico muito
importante. Imediatamente retira-se o foco dos indivíduos que
possam exercer tal ministério, e a ênfase volta a cair naquilo que é o
ensinamento deste capítulo, ou seja, que os dons são distribuídos ao
corpo para demonstrar que Jesus é Senhor. Ficamos, então, mais livres
para ouvir a Deus, que diz: "Eu sou o Senhor que te sara",41 sempre que
surgir algum tipo de enfermidade.
Tiago insiste com todos os membros da igreja que estão doentes
para que mandem chamar os anciãos, a fim de que estes possam orar
com fé.42 É o Senhor que cura. Os meios, o método, o momento, o
mistério, tudo isso pertence a ele.
Tanto no Antigo como no Novo Testamento está claro que o Senhor
produz a cura por intermédio de seus instrumentos escolhidos dentre
todos os tipos de pessoas, em todo tipo de necessidade. Muitas vezes
essa cura se efetua sem a atuação humana. Tal cura continuou na igreja
primitiva. Sempre havia aqueles que não eram curados. As vezes isso
é mencionado, e, ocasionalmente, o motivo para a falta de cura
também é declarado. Podemos deduzir que houve muitos que não
receberam a cura - assim como, por exemplo, houve muitos que não
foram curados quando Jesus esteve cumprindo o seu ministério
naqueles breves três anos.
Também podemos dizer que curas semelhantes se repetiram
(embora esporadicamente, em termos de registro escrito) ao longo de
toda a história da igreja. Certamente é verdade, em termos estatísticos,
que as manifestações desses dons de cura são muito mais freqüentes
em partes do mundo em que as pessoas não têm acesso imediato aos
tratamentos médicos sofisticados. Este fato não deve provocar
sentimentos de culpa nos cristãos ocidentais modernos que recorrem
aos médicos, nem, por outro lado, confirmar a alguém que tais dons
de cura já foram superados pelo progresso da medicina. Ainda existe
uma grande quantidade de doenças na sociedade moderna; na
verdade, há enfermidades que parecem ser peculiares ao nosso século
e à nossa civilização. É evidente que muitas delas estão além da
capacidade dos médicos. Se o Senhor é quem nos sara, certamente
existem dons de curas para todos os tipos de enfermidades, tanto pelo
treinamento e habilidade de pessoas qualificadas em medicina, como
pela fé e disponibilidade de cristãos comuns.
Isto obviamente não quer dizeV que o Senhor sempre opera a cura
física. A cura física não é a integridade total. Para o cristão, isso vem
por meio da morte (ou da volta de Jesus em glória). O Senhor é quem
nos sara; e ele distribui os dons de curas aos membros do corpo de
Cristo, em favor dos que estão doentes. Os dons são para os doentes,
não para aqueles que foram escolhidos para receber os dons. A
variedade destes dons e a variedade das curas às quais são dirigidos
nos estimulam a não excluir enfermidade alguma desse ministério. Há
um dom de cura adequado para cada área de enfermidade,
desintegração, trauma ou dor.
Resumindo, tanto o ensinamento de Paulo, aqui, como as instruções
de Tiago para chamar os anciãos nos incentivam a repensar nossas
atitudes e reações sempre que há alguma enfermidade no corpo de
Cristo. Quando ficamos doentes, procuramos primeiro o Senhor
(ainda que isso seja momentâneo ou rápido)? Essa oração só precisa
de alguns poucos segundos, e nos liberta para buscar o médico e o
ministério dos anciãos, ou o corpo de cristãos como um todo, para a
provisão da cura. Em uma determinada enfermidade, os recursos
médicos podem ser o único recurso, ou, talvez, um dos recursos, ou,
ainda, um recurso que deve ser desconsiderado.
Naturalmente surge, a esta altura, uma porção de perguntas sobre
as estruturas básicas de nossas igrejas locais. Se tal ministério deve
estar à disposição de alguma forma realista, devemos ter unidades
básicas de cuidado pastoral que sejam suficientemente pequenas para
que cada membro tenha acesso aos dons de curas, através dos anciãos
ou do corpo como um todo. Esse ministério não precisa necessariamente
ser levado à pessoa doente, em sua casa ou no hospital. Muitas
218
enfermidades podem ser carregadas por aí em nossas rotinas diárias,
ao trabalho e ao culto. Nós as levamos conosco quando nos reunimos
com os outros para prestar culto. Por que não chamar "os anciãos" ali,
naquele momento? Por que "os anciãos" não deveriam colocar esse
ministério à disposição, em todas as reuniões da igreja, nos lares ou
nos cultos mais formais? Desse modo, os dons de curas se tomariam
tão normais como qualquer outro aspecto do ministério cristão.
Ocasionalmente haveria curas de natureza mais notável, incomum,
mas seria mantido um ministério contínuo de curas que abrangeria
toda a gama de enfermidades humanas. Uma comunidade cristã desse
tipo inevitavelmente se tomaria uma comunidade de cura no sentido
pleno da palavra. E assim os dons de curas glorificariam Jesus como
o Senhor.

e) Operações de milagres (10)

Literalmente, "operações poderosas", energemata dynameon. A tradução


de Moffatt é "poderes milagrosos". A primeira palavra é a mesma do
versículo 6, referindo-se à energia de Deus manifestada de maneiras
poderosas. Godet escreve: "Paulo tem em vista o poder de operar todo
o tipo de milagres além de simples curas, em resposta às necessidades
de diferentes situações nas quais o servo de Cristo pode ser colocado:
ressurreição de mortos, expulsão de demônios, castigos aplicados a
cristãos infiéis, libertações como as de Paulo em Malta."43
É aqui, inegavelmente, que encontramos um dom impressionante
e fora do comum. O ministério de Jesus impressionou as pessoas com
um poder surpreendente e extraordinário. Um ministério semelhante
foi exercido pelos apóstolos.'44Paulo lembra aos coríntios mais tarde:4D
"as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós,
com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos".
Paulo também se refere a tais milagres como provas de que Deus
derramou o Espírito sobre os gálatas, quando eles se desviaram para
o formalismo e o legalismo.46 O fato de Paulo descrever tais milagres
como indicadores do seu próprio apostolado é visto, por muitos
comentaristas,47 como uma indicação de que a principal função deles
(embora não exclusiva) fosse a autenticação de um estágio inicial da
revelação (por exemplo, a lei, os profetas, a encarnação, a pregação
apostólica do evangelho). A atitude de uma pessoa para com tais dons
milagrosos vai depender da maneira pela qual ela entende a doutrina
bíblica dos milagres e o propósito deles.
Alguns estudiosos entendem que Paulo está falando aqui
especificamente de exorcismo ou da libertação de pessoas das garras
das forças demoníacas.48 Como já vimos,49 tais forças espirituais eram
corriqueiras na vida pagã dos coríntios que, na sua maioria, haviam
se encontrado com espíritos malignos ou até tinham sido por eles
controlados.
Parece razoável pelo menos incluir esse ministério sob o título de
"operação de milagres". Sempre que a prática do ocultismo aumenta
em uma sociedade, a necessidade dessa manifestação do Espírito
toma-se muito grande. Nesse sentido, podemos chamá-la de comum
e usual, especialmente por causa do que tem acontecido na sociedade
ocidental contemporânea nos últimos vinte e cinco anos. Os
problemas causados pelo envolvimento com o ocultismo são um fator
relevante em qualquer ministério cristão hoje. As questões são
complexas; mas a natureza do cdhflito é muito simples, especialmente
porque a maneira como a Bíblia vê o mundo endossa a realidade
desses acontecimentos. Aqueles que se encontram engajados nesse
ministério concordam em afirmar que ele realmente estabelece o
Senhorio de Jesus sobre as forças malignas das trevas. Os dons
específicos que visam capacitar a igreja a operar de maneira eficaz
nesta área estão à disposição do corpo de Cristo, diz o apóstolo: as
"operações de milagres" ou o poder interior para expressar a vitória
soberana de Cristo é esse dom.
Nesta área ministerial, é preciso destacar com todo o cuidado que
este dom, como todos os outros neste parágrafo, deve ser exercido nos
cultos da comunidade cristã. Quando os chamados "curadores" e
"exorcistas" embarcam em ministérios itinerantes como se fossem
especialistas, operando geralmente por conta própria, à parte de
alguma igreja local, isso é um sinal seguro de que há algo muito errado
no indivíduo e, provavelmente, na igreja local. Localizando
firmemente este dom dentro do corpo de Cristo, Paulo resguarda este
ministério tanto da supervalorização do dom, como da existência de
especialistas em tal ministério. Sem dúvida, nenhum cristão deve se
permitir ser atraído para esse ministério por conta própria; Paulo
certamente jamais imaginou uma situação em que não houvesse a
presença orientadora dos "anciãos". Por outro lado, devemos ter o
cuidado de não ter uma reação contrária exagerada: qualquer cristão
no corpo pode ser usado neste dom como em qualquer outro.

f) Discernimento de espíritos (10)50

A expressão grega é mais enigmática, diakriseis pneumaton


220
("discernimentos de espíritos"). No contexto da discussão acima, ela
poderia se referir de maneira muito específica à capacidade de
discernir a presença e a natureza de espíritos malignos em uma
pessoa, um lugar ou uma situação. De maneira mais ampla, o termo
provavelmente denota a capacidade de reconhecer a fonte de onde
procede determinada manifestação espiritual. A Bíblia parece
identificar três dessas fontes: o Espírito Santo, o espírito humano e os
espíritos malignos. Na área da espiritualidade em geral, portanto, e
na área específica dos diversos tipos de dons espirituais, o Espírito
fornece o dom de discernir qual dessas três fontes espirituais está em
operação em um determinado caso.
A natureza altamente complexa da personalidade humana,
especialmente quando em estado de perturbação, leva-nos a pensar
nos extremos (do bem e do mal) a que o espírito humano pode ser
conduzido. Geralmente é essencial distinguir até que ponto
determinado fenômeno foi produzido pelo espírito humano, e quanta
influência também está sendo exercida, de um lado, pelo Espírito
Santo, e de outro, pelos espíritos malignos. Este discernimento
também demonstra a importância de os psiquiatras e ministros
cristãos procurarem mais formas de se aliarem no tratamento de tais
casos.
É difícil determinar se este dom é uma simples intuição
sobrenatural ou se está ligado, de alguma forma, ao processo de testar
as manifestações espirituais.51 Temos um exemplo claro do primeiro
caso na maneira como Paulo se aproximou da jovem escrava de
Filipos, que o perturbava gritando: "Estes homens são servos do Deus
Altíssimo, e vos anunciam o caminho da salvação." Embora aquelas
palavras fossem boas e verdadeiras, Paulo viu claramente a operação
de um espírito maligno.52
Novamente vemos como é importante que esses dons sejam
exercidos dentro da vida comunitária do corpo de Cristo. E muito fácil
alguém outrora usado neste ministério de discernimento escorregar
para o hábito de ver espíritos malignos em quaisquer situações ou
comportamentos diferentes. Essa tendência pode ser amenizada
destacando-se, novamente, que todos estes dons estão disponíveis a
qualquer membro do corpo e que são distribuídos pelo Espírito à
comunidade durante os cultos, em resposta a alguma necessidade
específica. Este trecho não se refere necessariamente a alguma prática
regular de algum dom por uma só pessoa.
O ponto mais crucial, embora óbvio, a ser destacado em toda essa
questão do ministério é a necessidade de conformar não apenas o
nosso pensamento, mas também os nossos atos ao ensinamento das
Escrituras. O ministério de Jesus no campo demoníaco fornece um
modelo de certeza incisiva, autorizada e tranqüila. Ele viu a realidade
das forças demoníacas onde nós talvez não a víssemos, e os seus
próprios contemporâneos muitas vezes não viam. Mas ele também
discerniu entre enfermidades causadas por demônios e enfermidades
causadas por fatores puramente fisiológicos. Um estudo do Evangelho
de Marcos, com atenção especial para a maneira como Jesus operava,
pode ser muito compensador. Aqueles que permitem que o Espírito
de Jesus reproduza essa qualidade em seus próprios ministérios vão
realmente comprovar o Senhorio de Jesus nos dias atuais.
Essa é a rica variedade de um tipo específico de dons espirituais que
o Espírito de Deus oferece gratuitamente a qualquer igreja local. Junto
com essa variedade, harmonizando-a e organizando-a para que
produza o máximo efeito, temos a unidade do próprio Deus. Há um
eco trinitariano implícito e espontâneo nos versículos 4-6:"... o Espírito
é o mesmo... o Senhor é o mesmo... o mesmo Deus", com uma ênfase
aparentemente natural na graciosa dádiva da parte do Espírito, no
serviço sacrificial da parte do Filho e no poder cheio de determinação
da parte do Pai. Por mais diversos que sejam os dons, por mais
diferentes que sejam as pessoas em sua formação (v. 13) e habilidades
(vs. 8-10), tudo é obra de um único Deus: Pai, Filho e Espírito Santo.
O Espírito, particularmente, deleita-se nessa diversidade, e Paulo
endossa a idéia com a frase o mesmo Espírito, que se repete nos
versículos 4, 8, 9 e 11. Assim, também é verdade que o Espírito nunca
se repete nem se contradiz. Só Deus pode manter tal variedade em
unidade. Só Deus sabe o que é melhor para que o corpo de Cristo seja
edificado e cresça rumo à maturidade: ele inspira essa variedade e
realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um,
individualmente (v. 11).
Os três verbos no versículo 11 são de importância vital para uma
compreensão adequada desses dons: ele se apraz, ele realiza, ele
distribui. Há um plano, um propósito divino, no qual devemos nos
encaixar de maneira sensata, sem nenhuma tentativa de manipular a
Deus ou aos outros no corpo. O desejo de dispor esses dons para
prestar serviços aos outros procede apenas do próprio Deus; não pode
ser produzido por simples exortação ou pressão humana. Pode haver
lugar tanto para o chicote como para as cenouras, mas muitas igrejas
locais têm sofrido devido àqueles que forçam o passo ou pintam um
quadro muito cor-de-rosa sobre o que significa envolver-se com a vida
do corpo. No que se refere à distribuição dos dons, ela também está
firme nas mãos do Espírito: ele não exclui nenhum membro das suas
dádivas, mas a decisão sobre o dom que será concedido, a pessoa que
vai recebê-lo, e o momento adequado, está totalmente guardada sob
a sua discrição. Nada é acidental ou discriminatório nessa distribuição
de dons.

4. Unidade na diversidade (12:12-13)

Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros,
sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo.
uPois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer
judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós fo i dado beber
de um só Espírito.

A palavra corpo, no início do versículo 12, é um exemplo perfeito


desses dois temas: diversidade e unidade. Muitos membros... um só
corpo é o resumo que Paulo faz do assunto. A maneira como o apóstolo
conclui o versículo 12 é altamente significativa. Esperava-se que ele
dissesse: "Exatamente como o corpo é um e tem muitos membros... o
mesmo acontece com a igreja." Na verdade, ele diz: assim também com
respeito a Cristo. E importante que não identifiquemos Cristo com a
igreja a ponto de perdermos de vista sua preem inência e
transcendência. Não obstante, aqui, Paulo está se referindo claramente
à maneira como Cristo se manifesta ao mundo hoje pelo Espírito
através de sua igreja. Bittlenger comenta: "Para realizar sua obra na
terra,Jesus teve um corpo feito de carne e sangue. Para realizar sua
obra hoje, lesus tem um corpo que consiste em seres humanos vivos."53
Paulo confirma, portanto, a rica variedade e a profunda unidade no
próprio Cristo. Em tudo isto os cristãos participam como membros
deste um só corpo (v. 12), por meio deste um só Espírito (v. 13).
O versículo 13, em especial, já foi o ponto central das mais diversas
e contraditórias interpretações. O contexto esclarece que não pode
haver uma exegese legítima que divida os cristãos em dois (ou mais)
grupos, muito menos em cristãos de primeira e segunda categorias.
Isso, por si mesmo, impossibilita a interpretação que afirma estar
Paulo descrevendo aqui uma iniciação em Cristo composta de dois
estágios: regeneração (a primeira parte do versículo), seguida pelo
"batismo do Espírito" (a segunda parte). John Stott argumenta de
maneira convincente54 contra essa posição, destacando que a
experiência descrita neste versículo é partilhada por todos os cristãos.
A preposição grega en, traduzida por "em um só Espírito" no começo
do versículo, também poderia ser traduzida por "com" um só Espírito.
Tal possibilidade coloca, portanto, o versículo em alinhamento com
as seis outras passagens nos evangelhos e em Atos onde ser batizado
com /em o Espírito é apresentado como obra distinta de Jesus. Jesus
é o batizador; o Espírito Santo é o "elemento" no qual todos os cristãos
são batizados.
Ha uma outra faceta na discussão levantada pelo versículo 13. John
Stott, por exemplo, diz que as duas partes do versículo referem-se ao
mesmo evento e experiência. "Ser batizado e beber são expressões
claramente equivalentes."55 Se é verdade que Paulo está falando aqui
de ser batizado por Jesus com /em o Espírito Santo, convém
analisarmos o significado da palavra "batizado" em tal contexto. E
provável que a palavra tenha uma dupla conotação de "ser iniciado
em" e "ser tomado por". Por exemplo, documentos gregos seculares
daquela época falavam de um navio submerso como estando
"batizado". Tal navio não foi simplesmente "iniciado na água"; ele foi
totalmente "tomado pela água". Na verdade, podemos ir além,
dizendo que ele foi levado a "beber da água", isto é, a água estava
dentro do navio como também o navio estava debaixo dela. Paulo
parece, então, estar dizendo as duas coisas: que os cristãos estão no
Espírito Santo, e que o Espírito Santo está nos cristãos, assim como nós
estamos em Cristo e Cristo está em nós. Usando uma outra metáfora
para descrever o Espírito Santo: o vento, o ar, ou a respiração,
podemos perceber a mesma verdade: o corpo fica rodeado pelo ar,
mas deve também inspirá-lo para poder continuar vivendo e
crescendo.
Se todos os cristãos foram iniciados e tomados pelo Espírito por
intermédio da obra de Jesus, o batizador, e se Jesus fez todos os cristãos
beberem do Espírito, toma-se legítimo perguntar hoje se a igreja como
um todo, ou determinada igreja local, ou um membro, está
genuinamente experimentando o que Paulo descreve nesta passagem.
Certamente não seria sensato, por parte do pastor, assumir que isto
esteja acontecendo, muito menos "dizer a crentes que sabem que são
espiritualmente deficiente que rios de água viva estão jorrando deles,
ou dizer àqueles que se sentem fúteis e estéreis em seu serviço cristão
que a energia derramada pelo Espírito Santo está operando livremente
neles".56 "Isto seria sair totalmente da realidade", diz Smail, e ele
prossegue mostrando que os coríntios tanto receberam a pregação da
cruz em fé (2:lss.), como também experimentaram os poderosos
resultados dessa pregação tendo vidas totalmente transformadas:
"mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados,
em o nome do Senhor Jesus Cristo e 110 Espírito do nosso Deus" (6:9­
11).
No versículo 13, Paulo apela não a um simples acontecimento, mas
a uma experiência na vida de cada cristão coríntio. Tal evento, tal
experiência, transformou pagãos em cristãos, introduziu-os na
com unidade dos cristãos e deu início a "uma participação
experimental na presença e no poder do Espírito".57Precisamos hoje
lembrar, uns aos outros, de esperar em Jesus, o batizador, como a
pessoa que anseia por nos introduzir cada vez mais profundamente
na realidade do poder e da presença do Espírito. Não se trata de uma
experiência especial que deve ser imposta a todos; mas de uma
realidade que deve ser experimentada, e essa experiência pode ser
contínua e diária. Este desejo de experimentar o Espírito mais e mais,
por parte de cada cristão, une o corpo numa sincera dependência de
Jesus. Não devemos permitir que o medo de experiências erradas ou
superficiais impeça que tomemos posse daquilo que pertence, por
direito, à igreja desde o Pentecoste até hoje: "todos foram cheios com
o Espírito Santo".
Vale a pena destacar que os povos de culturas menos dominadas
pela ênfase cerebral e analítica da educação ocidental parecem muito
mais livres para se aprofundar em tal experiência do Espírito. Os
africanos e os latino-americanos, em particular, estão muito menos
inclinados a separar a mente do resto da personalidade: eles reagem
como pessoas integrais. Os coríntios tendiam a dar grande
importância ao não-cerebral ou não-racional (veja o capítulo 14), e
precisavam que lhes ensinassem a importância do uso adequado da
mente (nous): um lembrete oportuno de que a experiência de serem
batizados no Espírito por Jesus não lhes garantia integridade ou
maturidade espiritual.
É provável que a interpretação africana e latino-americana (por
mais instintiva que seja) se aproxime muito mais da perspectiva
judaico-cristã da Bíblia.58
A referência a judeus e gregos, escravos e livres, no versículo 13 nos
faz lembrar da rica diversidade do corpo de Cristo. Corinto era um
porto marítimo cosmopolita cheio de pessoas vindas de muitas
culturas diferentes. Isso trazia dificuldades, mas oferecia um imenso
potencial para um testemunho vigoroso dé Cristo. Hoje em dia,
quanto mais recorrermos às riquezas da comunidade cristã mundial,
mais pungente e atraente será o nosso testemunho.

5. Somos de Cristo e uns dos outros (12:14-27)

Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos. l5Se disser o pé:
Porque não sou mão, não sou do corpo; nem por isso deixa de ser do corpo.
16Se o ouvido disser: Porque não sou olho, não sou do corpo; nem por isso deixa
de o ser. 17Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse
ouvido, onde o olfato? 18Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um
deles no corpo, como lhe aprouve. 19Se todos, porém, fossem um só membro,
onde estaria o corpo? 20O certo é que há muitos membros, mas um só corpo.
21Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti; nem ainda a cabeça,
aos pés; Não preciso de vós. 22Pelo contrário, os membros do corpo que
parecem ser mais fracos, são necessários; 23e os que nos parecem menos dignos
no corpo, a estes damos muito maior honra; também os que em nós não são
decorosos, revestimos de especial honra. 2iMas os nossos membros nobres não
têm necessidade disso. Contudo Deus coordenou o corpo, concedendo muito
mais honra àquilo que menos tinha, 25para que não haja divisão no corpo; pelo
contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros.
26De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles
é honrado, com ele todos se regozijam. 17Ora, vós sois corpo de Cristo; e,
individualmente, membros desse corpo.

Paulo usa agora o corpo humano para ilustrar as verdades acerca da


vida no corpo de Cristo. Não é um paralelo exato, e sua linguagem
divaga além de uma comparação lógica: por exemplo, os membros do
corpo, na realidade, não sofrem nem regozijam (v. 26). Nesta seção,
vemos com destaque os dois temas da comunidade e da
individualidade, especialmente no versículo 27: "Ora, vós sois o corpo
de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo." A passagem
similar de Romanos traz a seguinte perspectiva: "Assim também nós,
conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos
outros."59 Com base nisso, pelo menos três fatos são apresentados:
precisamos uns dos outros, diferimos uns dos outros e precisamos
cuidar uns dos outros.

a) Precisamos uns dos outros (15-16,21)

São dois os lados desta moeda. A ênfase dos versículos 15 e 16 está em


um tipo errado de independência, baseado no sentimento de que não
se é necessário nem importante, ou no ressentimento por não ter sido
feito ou dotado de maneira diferente. O outro aspecto (versículo 21)
é uma atitude de superioridade da parte de alguns membros para com
os outros. Tanto um espírito independente como uma atitude de
superioridade trazem atrofia e paralisia para o corpo como um todo,
pois este fica privado de certas contribuições, sem as quais degenera.
Se, juntos, somos o corpo de Cristo, precisamos uns dos outros, não
apenas para garantir a saúde do corpo como um todo, mas também
para permitir que cada indivíduo possa atuar com todo o seu
potencial. Qualquer cristão que opere independentemente dos outros
reduz a sua própria eficiência e a de todo o corpo. A aplicação prática
dessa verdade em uma situação local certamente é óbvia: no mínimo,
significa um esforço genuíno dos que exercem supervisão pastoral,
para reconhecer, treinar e dar liberdade aos dons de cada indivíduo
para que sejam eficientes no serviço. Significa reconhecer o talento
escondido, cruzando fronteiras denominacionais e outras fronteiras,
afastando-se do monopólio clerical e desenvolvendo um
companheirismo no ministério fora da localidade imediata, com uma
verdadeira perspectiva global. Precisamos uns dos outros; e vivemos
em um mundo onde todos os tipos de comunicação permitem que isso
se realize na prática.

b) Diferimos uns dos outros (17-20)

Muitos membros, mas um só corpo é a conclusão de Paulo. Um corpo que


fosse todo formado de olhos e orelhas não seria um corpo. Cada
membro é único, distinto, insubstituível, inimitável. Como já vimos
anteriormente, esta é a glória da igreja como corpo de Cristo. Em vez
de permitir que sejamos fundidos em um único molde, devemos nos
deleitar nas diferenças e aprender a capitalizá-las. É verdade que, na
maioria das igrejas, há parafusos quadrados colocados em burados
redondos: eles ficam emperrados. Da mesma forma, há muitos
parafusos redondos em buracos quadrados: são grandes demais para
caber ou pequenos demais para atender à necessidade. Também há
vários parafusos tentando preencher diversos buracos ao mesmo
tempo. Isso deixa muitos outros jogados ao léu, sem uso. Outra
variação do mesmo tema acontece quando parafusos novos são
forçados a se encaixar em buracos já existentes, impedidos de
descobrir o seu próprio buraco, de um estilo totalmente novo.
" Diferimos uns dos outros, porque Deus quer que essas diferenças
formem uma unidade especial que seja reconhecida como uma obra
de suas próprias mãos.
Em vez de criarmos uma comunidade a partir da diversidade,
freqüentemente nos inclinamos a permitir que cada subgrupo forme
a sua própria unidade e cresça isolado de outros agrupamentos
naturais. Mas a comunidade que é sensível ao Espírito fica sujeita,
pelas Escrituras, a enfrentar a penosa luta de vivenciar a reconciliação
de todos os homens uns com os outros e com Deus, unindo pretos e
brancos, intelectuais e pragmatistas, crentes novos e discípulos
maduros, judeus e gentios, jovens e velhos, homens e mulheres,
solteiros e casados.
Existem muitas outras diferenças mais sutis que podemos sufocar
facilmente, sem perceber, a ponto de o corpo efetivamente perder
vários membros por causa de uma amputação social, cultural ou
intelectual. Por exemplo, uma igreja local precisa do tradicional e do
inovador; dos que, na política, defendem a direita, a esquerda e o
centro; daqueles que encaram de diferentes maneiras o "reavivamento
carismático". Mais especificamente, as diferentes opiniões e
prioridades de evangelistas, profetas, pastores e mestres, devem ser
mantidas, e não reduzidas a um mínimo denominador comum. Nós
diferimos mis dos outros, e somente Deus, que nos fez diferentes,
pode nos manter unidos.

c) Temos de cuidar uns dos outros (22-26)

Este cuidado mútuo, diz Paulo, também é intrínseco ao corpo; é a


maneira pela qual Deus coordenou (ajustou) o corpo (v. 24). A palavra
grega, synekerasen, tem o significado básico de misturar diferentes
partes tendo em mente um propósito específico, isto é, gerar mútuo
apoio e interdependência. "A palavra pode ser empregada com
referência ao ato de misturar cores."60 Deus quer que os membros de
uma igreja local reconheçam o quanto dependem uns dos outros,
porque isto é um incentivo para remover a divisão (v. 25, shisma)61 e
aprofundar o verdadeiro interesse.
Paulo sublinha isso de duas maneiras. Primeira, nós dispensamos
atenção especial às partes menos apresentáveis de nossos corpos
físicos. Da mesma forma, devíamos estar dispostos a dar atenção
especial aos irmãos e irmãs "mais fracos", aqueles que talvez logo se
sintam dispensáveis, mas que na verdade são vitais para a saúde do
corpo. Segunda, esse cuidado deve ser expresso tanto "alegrando-se
com os que se alegram" como "chorando com os que choram".62
Alguns cristãos consideram mais difícil a primeira do que a segunda:
é necessário ter a graça da verdadeira humildade para alegrar-se
genuinamente quando uma outra pessoa está sendo abençoada, usada
e engrandecida. Quando um membro está sofrendo, é essencial que
o corpo sinta a dor junto com ele. "Se a dor nos leva a nos recolhermos
em nós mesmos, já não há comunicação com o mundo exterior; se ela
nos leva a nos expressarmos com atos de vingança, perdemos a
mensagem que carregamos... Se ela nos leva a avançar, então não
estamos suportando a dor, mas usando-a.”63
A maneira como a comunidade cristã enfrenta e usa o sofrimento
é de importância crucial para a integridade do seu testemunho ao
mundo de hoje. No Ocidente ficamos tão acostumados a descobrir
caminhos para escapar da dor que podemos aprender lições
profundas de nossos irmãos de outras partes do mundo, para quem
o sofrimento é algo normal e inevitável. Aprendemos isso na
com unidade relativam ente controlável de uma igreja local,
especialmente em um microcosmo menor da igreja que se reúne
regularmente em uma casa. Existe aí o cuidado de participar das
alegrias e das tristezas dos outros membros do corpo. Isso é
automático no que se refere aos nossos corpos físicos, como uma dor
de dente ou um dedo inflamado logo indicam. Quando não existem
tais sensações, alguma coisa está muito errada. Será que nos
conhecemos suficientemente bem em nossas igrejas locais para nos
regozijarmos ou sofrermos nas devidas ocasiões?

d) Nossa individualidade (27)

Quando o corpo de Cristo opera dessa forma, as necessidades reais


dos membros são atendidas. A necessidade de segurança se satisfaz
na certeza de que "eu pertenço ao corpo”. A necessidade de identidade
é preenchida no reconhecimento e na prática do fato de que "eu trago
uma contribuição distinta para o corpo". A necessidade de um
sentimento adequado de responsabilidade, por sua vez, é suprida
quando nos interessamos pelos outros membros do corpo: "Eu preciso
de você; eu sinto com você; eu me alegro com você". Assim, o
desenvolvimento de um indivíduo como pessoa e como cristão está
diretamente relacionado com a descoberta do seu lugar como membro
do corpo. A Bíblia apóia a individualidade, não o individualismo. Este
último fenômeno é uma perversão da vocação em Cristo. É uma praga
na igreja de Deus, prejudicando o seu testemunho e atrofiando os
indivíduos.
Tal descoberta da individualidade dentro da comunidade cristã
continua sendo tão revolucionária no mundo de hoje como foi na
época de Paulo e seus leitores coríntios. É uma alternativa radical para
a tirania do totalitarismo e para os sonhos vazios de realização pessoal
por meio do individualismo.
Ainda há uma outra perspectiva neste capítulo, uma perspectiva
que evita que tal comunidade se volte para si mesma, transformando-
se em um gueto piedoso de fanáticos religiosos. O corpo de Cristo foi
colocado no mundo para servir. O ministério é sua vocação diária.
Quando a comunidade é mobilizada pelo Espírito Santo dentro do
mundo real, sua vitalidade pulsante é mantida. Os dons devem ser
usados em serviço prático, valioso e geralmente muito comum (cf.
12:5). O ministério de Jesus por intermédio do seu corpo físico na terra
continua no ministério do seu corpo, a igreja. E o mesmo ministério:
ele "não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos."64 Este é o propósito do corpo de Cristo agora:
"Assim como o Pai me enviou, èu também vos envio."65

6. Deus estabeleceu (12:28-30)

A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar


profetas, em terceiro lugar mestres, depois operadores de milagres, depois dons
de curar, socorros, governos, variedades de línguas. 29Porventura são todos
apóstolos? ou todos profetas? são todos mestres? ou operadores de milagres?
30Têm todos dons de curar? falam todos em outras línguas? interpretam-nas
todos?

Para ser eficiente nesse ministério, a igreja deve trabalhar com os


métodos, as motivações e as pessoas estabelecidas por Deus. Esta
parece ser a ênfase deste parágrafo e dos capítulos 13 e 14. A lista no
versículo 28 inclui alguns itens dos versículos 8-10, omite outros e
acrescenta quatro. Dessa maneira, Paulo está resumindo tudo o que
já disse no capítulo 12. Ele menciona de novo a variedade, a
necessidade de haver unidade, e a vocação para o ministério. Há
diferenças mínimas, mas importantes, na apresentação. Em vez de se
concentrar no que o Espírito dá a cada indivíduo para o bem comum,
Paulo escreve dizendo que Deus estabeleceu pessoas na igreja como
apóstolos... profetas... mestres. As expressões primeiramente, em segundo
lugar e depois... podem se referir à prioridade cronológica mais do que
à importância.66 Certamente os apóstolos foram os fundadores das
igrejas locais; os profetas proclamaram a palavra de Deus em cada
situação; e os m estres a edificaram firmemente sobre esse
fundamento.67 Por outro lado, Paulo declara firmemente que a igreja
foi "edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas" e,
nesse sentido, ambos os ministérios tiveram precedência tanto no
tempo como na importância.68 Deixemos novamente os profetas e as
variedades de línguas para serem analisados no capítulo 14, e
examinemos agora as quatro adições: apóstolos, mestres, socorros e
governos.

a) Apóstolos

Cristo estabeleceu os seus apóstolos (lit., "aqueles que foram


enviados"), para organizarem igrejas e lhes darem a doutrina
autorizada. No começo da organização da igreja, no Pentecoste e
depois dele, esse ministério estava nas mãos dos Onze, mais Matias.69
A esses doze foram acrescentados Tiago, Paulo e talvez Bamabé.70
Percebemos claramente que esses homens tinham uma missão
especial e uma autoridade sem igual. Eles foram, de maneira única,
as testemunhas da ressurreição de Jesus e foram especialmente
escolhidos por Jesus "para estarem com ele e para os enviar a pregar"71
com a mesma autoridade dele. Bittlenger72 divide os apóstolos em
duas categorias: os apóstolos em Jerusalém (os doze, mais Tiago) e os
apóstolos de Antioquia (acrescentando Silvano, ou Silas, a Paulo e
Barnabé). Muitas outras pessoas, especialmente em Corinto,
reivindicavam ser apóstolos;73 e muitos, desde então, têm alegado
serem iguais a Paulo (por exemplo, na Antiga e Nova Igreja
Apostólica). Em ambos os casos, as alegações são ilusórias.
Embora seja verdade que ninguém mais foi revestido com a mesma
autoridade dos primeiros apóstolos, convém observar que um
ingrediente essencial do seu ministério, a saber, a implantação de
igrejas em território virgem, é de importância primordial em qualquer
época. Uma igreja é organizada quando indivíduos de uma
congregação já existente são comissionados e enviados (no mínimo em
duplas) para uma região, a fim de implantarem ali uma igreja que seja
fundamentada na doutrina dos primeiros apóstolos. Este "ministério
apostólico", embora diferente do trabalho único daqueles primeiros
apóstolos, é um trabalho essencial para que vastas regiões do mundo
de hoje não permaneçam sem serem evangelizadas. Parece ser este o
ministério que Paulo tinha em mente.74 Esses apóstolos parecem ter
uma grande gama de dons: na evangelização, na profecia, no ensino
e no pastorado. Eles usam tais dons para estabelecer uma igreja e,
então, seguem adiante, obedecendo ao próprio padrão ministerial de
Paulo,75 que deixava uma equipe de "anciãos" em cada cidade para dar
continuidade ao trabalho e desenvolver o que ele havia começado. Na
Carta aos Efésios, Paulo explica que entre esses anciãos se incluem
quatro ministérios: profetas, evangelistas, pastores e mestres.76 Eles
têm a responsabilidade de equipar o corpo de Cristo "para o
desempenho do seu serviço". Nesse sentido mais geral, portanto, Deus
esjtabelece "apóstolos eclesiásticos" (como poderíamos chamá-los), a
fim de organizarem novas congregações.77 Talvez seja por isso que
Paulo escreve: "primeiramente apóstolos”.
Outro aspecto desse ministério apostólico em nossos dias, segundo
muitos, é a sua natureza itinerante.78 Pois tais pessoas estão sempre
se mudando e, nesse sentido, participam da própria natureza de Deus,
que enviou o seu Filho ao mundo com uma comissão apostólica
semelhante.79 O Espírito Santo é quem mantém tais servos nessa
mudança constante. Eles são os pioneiros e, em virtude de sua
mobilidade, podem encorajar as igrejas com sua sabedoria e
experiência. No mundo de hoje, esse ministério itinerante é comum,
e um dos planos curiosos de Deus nos últimos anos tem sido separar
determinadas pessoas para esse amplo trabalho itinerante, diferente
do ministério confinado a um único local e do ministério itinerante
necessariamente mais restrito realizado pelos missionários e
evangelistas anteriores à era da aviação. O exemplo de Paulo e
Bamabé, que eram sustentados e totalmente envolvidos pela vida da
igreja que os enviava, o corpo de Cristo em Antioquia,80 destaca a
importância de enraizar esses ministérios itinerantes na vida de uma
congregação local. Isto ajuda a congregação local a ter uma visão
verdadeiramente missionária81 e evita que aqueles que estão viajando
fiquem isolados, solitários ou percam o contato com a realidade diária
de suas igrejas locais; ademais, tal visão dá substância para o caráter
internacional da igreja.

b) Mestres

A igreja em Antioquia82 tinha profetas e mestres, entre os quais


estavam Barnabé e Paulo. O texto de Atos não esclarece se todos os
cinco homens eram profetas e mestres, ou se alguns eram profetas e
outros, mestres. Howard Marshall acredita que, naquela fase, "a
probabilidade é que não era muito nítida a linha divisória, sendo que
os dois grupos se dedicavam à exposição do significado das Escrituras
proféticas e à exortação."83 Ele contrasta a atividade didática de
Barnabé e Paulo em Antioquia84 com as mensagens inspiradas dos
profetas como Ágabo.85
Sabemos que o ministério do ensino logo se tornou altamente
valorizado e respeitado na igreja. Tiago tinha uma consideração tal por
esse ministério, que chegava ao ponto de desencorajar seus leitores a
se tornarem mestres, pois "havemos de receber maior juízo".86 Apoio
era um mestre,87 e Paulo entende que o ministério de Apoio em
Corinto era necessário para complementar a evangelização e
solidificar as igrejas recém-formadas: "Eu plantei, Apoio regou".88 Os
mestres, então, capacitam os cristãos a crescerem em direção à
maturidade. Sem tal ministério de ensino, vidas novas simplesmente
murcham. Aqueles que são chamados e dotados nesta área precisam
concentrar-se totalmente, porque ela exige dedicação exclusiva.89 A
lista de Efésios 4:11 coloca pastores e mestres juntos, como se fosse um
ministério combinado, mas esta não é a única interpretação possível.
Para alimentar as ovelhas, os pastores precisam providenciar o ensino
da palavra de Deus; mas pastorear é mais do que ensinar. Muitos
mestres não são realmente bons pastores; muitos pastores não têm o
dom de ensinar. Uma simples observação nos leva a pensar nos dois
elementos separadamente. Mas o ponto principal é que todos esses
ministérios são necessários à igreja local.
Convém lembrar que os membros da igreja primitiva não tinham
livros ao seu dispor, que os cristãos judeus tinham um conhecimento
prático do Antigo Testamento (mas extremamente sobrecarregado de
adições e interpretações rabínicas) e que a escrita e a educação de um
modo geral eram restritas a uma minoria privilegiada. Todos esses
fatores enfatizavam o valor do mestre. A facilidade com que chegamos
a esses conhecimentos atualmente não diminui a importância dos
mestres na igreja local, mas inevitavelmente deve afetar os métodos
usados. Muitos ensinamentos hoje seriam muito mais eficazes com o
uso imaginativo de audio-visuais e do tipo de diálogo empregado por
Paulo na escola de Tirano, em Éfeso.90 Também se faz necessário, na
atmosfera intelectual que permeia grande parte do cristianismo
ocidental, garantir que todo o ensino ministrado seja genuinamente
aplicado às vidas diárias das pessoas. O instinto pastoral não se
satisfaz com o ensinamento que atinge apenas a mente, buscando
estruturas de cuidado pastoral que capacitem a congregação a
encorajar-se mutuamente na obediência prática.

c) Socorros

Se a essência do ministério cristão é "socorrer aos necessitados" (de


acordo com a citação que Paulo faz das palavras de Jesus, em seu
discurso de despedida aos anciãos da igreja de Éfeso),91 a igreja local
precisa de muitas pessoas que prestem socorro. Este é provavelmente
o dom do Espírito mais comum, exercido pela grande maioria dos
cristãos. A palavra grega, antilempseis, refere-se mais ao dom do que
à pessoa, sugerindo novamente que qualquer cristão deve estar pronto
a prestar essa assistência na comunidade cristã. Certamente nenhum
cristão deve considerar-se muito superior, para exercer um serviço tão
comum, até mesmo enfadonho e geralmente não reconhecido.
Bittlenger acredita que o vocábulo original tem um sentido mais
limitado e especializado, estando intimamente relacionado com o
m anejo do dinheiro: "de acordo com papiros recentem ente
descobertos, a palavra grega para administração era um termo técnico
no campo bancário e referia-se ao contador chefe".92Esta possibilidade
seria sem dúvida fortemente favorecida por muitos clérigos que, como
o autor, percebem que as suas mentes quase entram em pane quando
se discutem assuntos financeiros. O ministério facilitador de pessoas
dotadas em todas as áreas financeiras é de importância crucial numa
igreja e é, sem dúvida, um dom do Espírito Santo.
A interpretação mais comum desta palavra, entretanto, aplica-se ao
amplo ministério da prática assistencial de todos os tipos. Poderia
referir-se a serviços como cozinhar e prover mantimentos, lavar e
limpar o prédio, mudar as cadeiras de lugar e providenciar transporte,
fazer arranjos florais e ajudar na secretaria, atender ao telefone e levar
recados, cuidar do jardim, da pintura, dos consertos e da decoração.
Esse ministério vital é necessário na visitação aos doentes e às pessoas
que não podem sair de casa, na recepção dos que chegam aos cultos,
na distribuição e recolhimento dos hinários; enfim, nos mil e um
pequenos serviços que qualquer cristão é capaz de prestar "como ao
Senhor, e não como a homens".93 A raiz da palavra denota o ato de
"assumir um fardo de outrem", e isso indica a atitude mental de quem
executa esse ministério na congregação: quando vemos as tarefas que
precisam ser feitas, somos motivados a retirá-las dos outros,
especialmente aquelas que são difíceis, colocando-as sobre os nossos
próprios ombros. Em muitas igrejas, o fardo recai sobre um número
234
muito pequeno de pessoas que estão dispostas a ajudar e que acabam
virtualmente fazendo tudo.

d) Governos

A tradução literal do grego kyberneseis é "pilotagem". Refere-se ao


timoneiro de um navio, à pessoa que tem a responsabilidade de dirigir
o barco, manter o curso, evitar os perigos, reconhecer as mudanças
climáticas e ajustar tudo de acordo com isso. O timoneiro conhece bem
a capacidade de sua embarcação e tripulação. Ele sabe, por
experiência, o que deve exigir a cada momento. O timoneiro mais
eficiente confia nos seus homens e mantém uma comunicação direta
com eles. Não entra em pânico nem relaxa na vigilância. Ele mantém
os olhos fixos no destino, e sua maior preocupação é que o seu navio
e a sua tripulação cheguem ao fim da viagem sãos e salvos.
É interessante descobrir que o grego modemo usa a mesma palavra
para o piloto de avião. Cruzando recentemente o Atlântico, eu e minha
esposa fomos convidados a entrar na cabine de um DC-10, quando o
avião estava se aproximando do litoral americano. Os que estavam
dirigindo a nave recebiam constantes mensagens de dois ou três
aeroportos e iam reajustando a rota do avião de acordo com as
instruções. Mas, ao mesmo tempo, o capitão ainda atendeu ao nosso
pedido muito simples: queríamos levar uma lembrança daquela visita
à cabine, para os nossos dois filhos na Inglaterra. Ele chamou o chefe
dos comissários e, cerca de uma hora mais tarde, um elemento da
tripulação nos entregou o que havíamos pedido. O piloto ou
timoneiro, conhecendo cada elemento de sua tripulação, sabia a quem
encaminhar o nosso pedido.
Tal ministério é indispensável na igreja local. Aqui se enquadram
aqueles que têm a capacidade de orientar um trabalho, uma reunião,,
uma conferência, ou até toda a igreja, mantendo-a no seu curso, rumo
ao seu destino; chamando as pessoas certas com os dons certos, no
momento certo; atendendo a pedidos triviais, que são importantes
para os indivíduos que os fazem, sem ficarem impacientes nem
tirarem os olhos dos assuntos mais importantes e do alvo principal.
O timoneiro deve ser uma pessoa de visão e responsabilidade.
Hoje, as igrejas estão buscando, cada vez mais, a implantação de um
ministério em equipe. Infelizmente os velhos hábitos desaparecem
com lentidão e muitas equipes são grandemente influenciadas por
alguma personalidade mais forte. Fala-se muito sobre a ausência de
hierarquia e sobre a importância vital de cada pessoa da equipe.
Preocupa-se genuinamente em manter a liderança de Cristo, como a
cabeça do corpo. Mas os estilos seculares ou tradicionais de liderança
continuam predominando. Daí as racionalizações, envoltas em
aforismos, tais como: "alguém tem de assumir a responsabilidade". Se
o dom de timoneiro, segundo as linhas que expusemos acima, é
fundamental para o corpo de Cristo, então ele surge quando uma
igreja procura genuinamente carregar as responsabilidades em
equipe. O timoneiro é aquele que mantém a equipe unida, em ação;
o relacionamento dele com cada membro da equipe é tal que a pessoa
certa é chamada para exercer os dons certos, na hora certa. É pouco
provável que um servo envolvido num ministério na "linha de frente"
(evangelização, ensino, profecia, por exemplo) tenha este dom de
pilotar; certamente ele será encontrado em outra pessoa. Muitas igrejas
seriam substancialmente beneficiadas se identificassem esse timoneiro
e dessem a ele liberdade para agir dentro de sua vida devocional,
administrativa e organizacional.
A definição do que seja a cibernética (a palavra deriva da mesma
raiz grega) nos dá uma visão fascinante desse assunto: "estudo do
sistema de controle e comunicação em animais e aparelhos operados
eletricamente, como máquinas de calcular". Colocando em uma
linguagem mais simples: fazer as pessoas trabalharem e pôr as coisas
em funcionamento. Em outras palavras, este é o ministério cuja função
essencial é capacitar o corpo de Cristo. Ele requer grande
responsabilidade e é absolutamente insubstituível. Podemos chamá-
lo de "administração". Neste caso, deve-se livrar de qualquer
interpretação mais restrita e colocá-lo bem no coração de cada igreja
local.

7. Um caminho sobremodo excelente (12:31)

Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons. E eu passo a mostrar-vos


ainda um caminho sobremodo excelente.

Variedade... unidade... ministério. Esses são os três temas abordados


por Paulo neste capítulo. Cada um deles mina o orgulho e a
complacência dos coríntios. As perguntas retóricas dos versículos 29
e 30 também ferem a auto-suficiência deles. O último versículo do
capítulo (v. 31) pode muito bem forçá-los ainda mais, como prelúdio
da mensagem devastadora do capítulo 13. Muitas versões apresentam
o verbo grego, zeloute, no modo imperativo: procurai, com zelo, os
melhores dons. Observe-se, porém , que o indicativo caberia
perfeitamente nesta frase, afirmando o fato de que os coríntios
desejavam os melhores dons. Paulo já lhes recriminara por seu espírito
ambicioso.94 O final do capítulo 12 é uma tentativa imperiosa de
destacar a igualdade de todas as pessoas e todos os dons no corpo de
Cristo. Os coríntios sempre tiveram uma tendência de estipular uma
escala de dons, valorizando os mais dramáticos em detrimento dos
mais comuns. Por isso parece melhor aceitar a interpretação que
Bittlenger faz deste versículo:95 "Há, em outras palavras, duas
maneiras de receber e manifestar os dons: lutando por eles ou obtendo-
os por meio do amor."
A competitividade dos cristãos de Corinto muitas vezes se repete
nos dias de hoje. Os dons do Espírito são descobertos e usados, mas
tais igrejas tornam-se severas e cheias de críticas. Os que possuem
certos dons desenvolvem um sentimento de orgulho para com os
demais irmãos. E aqueles que desejam esses dons ficam deprimidos
porque se sentem incapazes de recebê-los. Se, por outro lado, é o amor
que domina e prevalece em uma igreja, então cada membro sente-se
livre para receber seu dom particular e pedir a Deus outros dons, não
para seu próprio proveito, mas para o benefício de todos. Este é o
desejo daqueles que são controlados pelo amor de Deus. O caminho
do amor, portanto, não é uma opção alternativa para se obter os dons
espirituais. Os dons espirituais são absolutamente essenciais à igreja,
mas o caminho sobremodo excelente para descobri-los é o amor. O
caminho menos excelente, que seria um desejo nada sadio de ter uma
igreja viva e cheia de sucesso (mais viva e mais bem sucedida do que
a outra congregação, do outro lado da cidade), gera orgulho, dureza
de coração, egocentrismo e rivalidade.

Notas:
1. 1 Co 8:4-5.
2. A palavra "mudo" ou "sem fala" (aphona) não significa que tais práticas pagãs
fossem realizadas em silêncio; acontecia exatam ente o oposto. Com o
Conzelmarm destaca, o termo "aponta apenas para o fato de o culto pagão ser
vazio... colocando os seus devotos sob o poder dos demônios" (pág. 206). Cf.
SI 115:4-8; H c 2:18. Temos um exem plo de Luciano (Dialogi M ortuorum 19:1):
"U m a espécie de deus (daenion) leva-nos para onde deseja, e é im possível
resistir a ele."
3. Para outra interpretação possível veja Bittlenger, Gífts and Graces, págs.
16-18.
4. Cf. Jo 16:14.
5. Cf. Cl 2:15.
6. Raphael Gasson, The Challenging Counterfeit.
7. 1 P e4:10.
8. 2 T m 1:6.
9. 1 Pe 4:10.
10. Cf. 1 Co 4:1.
11. Cf. F p 2:4ss.
12. Bittlenger, pág. 21.
13. Sam uel C hadw ick, The Way to Pentecost, (H odder, 1966), pág. 32.
14. T. A. Sm ail, Reflected Glory (Hodder, 1975), pág. 29.
15. Cf. G 15:22-23. '
16. Veja observação adicional sobre os dons espirituais nc> final do capítulo 14.
17. E dd ie G ibbs, Body-Building Exercises (Falcon, 1979), pâg- 60.
\ 18. M ichael G reen, I Believe in the Holy Spirit (H odder, 1975), págs. 161ss.
m Cf. Pv 3:5-6.
20. I R s 3:16-28.
21. Cf. Lc 2:40-52; 13:17; 14:6; 20:19-26.
22. Cl 2:3.
23. 1 Co 1:30.
24. Cf. 1 Co 12:28; E f 4:7-11.
25. Jo 16:14.
26. Cf. T g 4:5.
27. E f 1:22.
28. Cf. E f 4:21.
29. Jo 4:18.
30. Me 2:8-12.
31. Jo 5:6.
32. A t 5:1-11.
33. Esta é a interpretação, por exem plo, de E. H. Plum ptre (Acts, Cassell, 1893,
pág. 81), E. H aencheii (The Acts o f the Apostles, Blackw ell, 1971, pág. 241) e I.
H. M arshall (Atos, Série Cultura Bíblica, M undo C ristão /V id a N ova, 1980,
págs. 108-112).
34. A t 5 :lls s .,4 2 .
35. Cl 2:3, "em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecim ento estão
ocultos".
36. Por exem plo, R m 10:8-10.
37. G 15:22.
38. Hb 11:27.
39. Veja especialm ente Jo 11:41-42, em sua oração de fé, e cf. Tg 5:13-15, com o
m inistério dos anciãos junto a qualquer pessoa enferrfia.
40. H ans Bürki, falando na A ssem bléia da Liderança Cristã Pan-A fricana,
N airobi, em 1976.
41. Êx 15:26.
42. T g 5:14.
43. G odet, 2, pág. 197.
44. Cf. A t 19:11.
45. 2 Co 12:12.
46. G 13:5.
47. Por exem plo, H odge.
48. V eja, por exem plo, Conzelm aim , pág. 209, nota de rodapé.
49. 1 Co 10:20; 12:2.
50. Os três outros dons nesta passagem (profecia, falar em línguas e interpretação
de línguas) serão exam inados detalhadam ente no estudo do capítulo 14.
Qualquer exame superficial neste ponto seria inútil e levaria a mal-entendidos.
51. Cf. M t 7:15-20; 1 Ts 5:20-21; 1 Jo 4 :lss.
52. A t 16:16-18.
53. Bittlenger, pág. 55.
54. Veja John Stott, Batism o e Plenitude do Espírito Santo (Vida N ova, 1986) págs.
28-31.
55. /Wd.,pág. 31.
56. T. A. Sm ail, Reflected Glory, pág. 33.
57. Ibid., pág. 142.
58. Veja: O Evangelho e a Cultura, Série Lausanne, vol. 3 (A BU , 1983), pág. 21:
"A lgum as culturas terceiro-m undistas têm uma afinidade natural com a
cultura bíblica."
59. R k\12-.5.
60. M orris, pág. 142.
61. Cf. 1 Co 1:10; 11:18.
62. Cf. Rm 12:15.
63. Dr. Sam uel Kam aleson, falando à A ssem bléia da Liderança C ristã Pan-
A fricana em N airóbi, em dezem bro de 1976.
64. M c 10:45, AV.
65. Jo 20:21.
66. M orris fala de "primeiro... segundo... terceiro", dizendo que eles "classificam
estes vários dons para a igreja em ordem de honra" (pág. 143). Contudo, a lista
de Efésios é diferente e qualquer idéia de dons superiores não se encaixa muito
facilm ente no contexto de Paulo nestes capítulos.
67. Cf. E f 2:19-20.
68. Veja Jo h n Stott, A M ensagem de Efésios (A BU , 1986), pág. 115.
69. Cf. A tl:1 5 s s .
70. A inclusão de Barnabé baseia-se nas referências de A t 14:4 e 14 que
denom inam Paulo e Barnabé de "apóstolos". Não temos realm ente nenhum a
evidência explícita de que Barnabé tenha recebido uma visão da ressurreição
ou que ele estivesse em igualdade com Paulo, quando foi incluído no grupo
original. Talvez, em Atos 13 e 14, Paulo e Barnabé sejam considerados como
apóstolos da igreja em Antioquia (em paralelo com os "apóstolos das igrejas"
em 2 Co 8:23 e Fp 2:25), enquanto som ente Paulo é considerado apóstolo de
Cristo.
71. M c 3:14.
72. B ittlenger, pág. 67.
73. V eja 2 Co 11 e 12. •
74. Cf. E f 4:11.
75. Por exem plo, em D erbe, Listra e Icônio, A t 14:20-23.
76. E f 4:7-14.
77. De fato, há menção de tais "apóstolos das igrejas" em 2 Co 8:23, Rm 16:7 e
tam bém Fp 2:25.
78. Cf. M ichael H arper, Let M y People Groio (H odder, 1977), págs. 49ss., 61ss.,
186ss.
79. Cf. Hb 3:1.
80. Cf. A t 1 3 -1 5 .
81. A palavra "m issionário" em português tem exatam ente a m esm a raiz
etim ológica (através do latim) que "apóstolo".
82. A t 13:1.
83. I. H. M arshall, Atos (M undo C ristão /V id a N ova, 1(^80), pág. 205.
84. A t 11:26: "E por todo um ano se reuniram naqiiela igreja, e ensinaram
num erosa m ultidão."
85. A t ll:2 7 s .
86. Tg 3:1.
87. A t 18:24ss.
'8 8 . 1 Co 3:6.
89. Cf. A t 6:4; Rm 12:7.
90. A t 19:9.
91. At 20:35.
92. Bittlenger, pág. 70.
93. Ef 6:7.
94. Cf. 1 Co 3:3.
95. Cf. Bittlenger, págs. 73-75.
1 Coríntios 13:1-13
13. Se Eu Não Tiver Amor..

Esta magnífica canção do amor cristão1 só revela o seu significado


pleno e desafiador quando é cuidadosamente aplicada à vida
comunitária de uma igreja local, tal como a de Corinto. Com
freqüência, este capítulo é lido em cerimônicas de casamento e
funerais; geralmente em ocasiões que requerem sentimentos sublimes
e uma literatura de alta qualidade, mas não uma declaração cristã
explícita.
Thomas Merton fomece um exemplo pungente de tal abuso da
vttíraàtira mensagem óo capíWio. Y_\e àescieve o capeYão àe sexi
internato da seguinte maneira:

Ele era um homem alto, forte e bonito, com cabelos levemente


grisalhos nas têmporas, e um enorme queixo inglês. A testa era
ampla e sem rugas, com frases do tipo: "Eu defendo o jogo limpo
e o espírito esportivo", gravadas nela.
Seu maior sermão era sobre o capítulo treze de Primeira
Coríntios, um capítulo realmente maravilhoso. Mas a sua exegese
era um tanto estranha... A interpretação que "Buggy" faria da
palavra "caridade" nesta passagem (e em toda a Bíblia) era que éla
simplesmente significava "tudo o que queremos dizer quando
chamamos um camarada de 'cavalheiro'". Em outras palavras,
caridade significava um espírito esportivo, jogo limpo, atitudes
decentes, vestir roupas adequadas, usar a colher certa, não ser
grosseiro nem mal-educado.
Lá ficava ele, no púlpito simples, e levantava o queixo acima
das cabeças de todas as fileiras de rapazes vestidos de preto, para
dizer: "Basta ler este capítulo de São Paulo, simplesmente
substituindo a palavra "caridade" por "cavalheiro", sempre que
ela aparecer. 'Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos,
se não for um cavalheiro, serei como o bronze que soa, ou como
o címbalo que retine... O cavalheiro é paciente, é benigno, o
cavalheiro não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece,
não se conduz inconvenientemente... O cavalheiro jamais
acaba'..."
... Os apóstolos teriam ficado surpreendidos diante do conceito
de que Cristo foi açoitado e espancado pelos soldados,
amaldiçoado e coroado com uma coroa de espinhos, submetido
a um tratamento indizível e, finalmente, pregado numa cruz,
onde sangrou até morrer, para que todos nós pudéssemos nos
tornar cavalheiros.2

É evidente, portanto, que o capítulo 13 deve ser estudado no


contexto do restante desta carta de Paulo à igreja de Corinto. Caso
contrário, a bela canção não passará de um conjunto de palavras -
nobres, até mesmo enobrecedoras, mas apenas palavras. Contudo, ao
serem aplicadas a uma igreja local, transformam-se em dinamite. Elas
^desvendam todas as fraquezas, falhas, fracassos e pecados em
qualquer comunidade cristã. E isto é especialmente desafiador para
uma igreja que tenha experimentado um visível sucesso em seu
ministério. Essas palavras nos colocam no devido lugar; elas nos
humilham, porque começamos a enxergar o que realmente é
importante para Deus. Elas nos redirecionam, como corpo de Cristo,
para a nossa verdadeira vocação. Provavelmente seria bom que cada
congregação avaliasse a sua vida comunitária, de vez em quando,
espelhando-se neste capítulo.
Devido à grandeza ^de sua linguagem, e por ser reconhecido como
"grande literatura", este capítulo precisa ser diretamente ligado à
discussão de Paulo acerca dos dons, no capítulo 12. Em síntese, Paulo
está dizendo que todos os dons mais dramáticos e mais maravilhosos
que podemos imaginar são inúteis, se não há amor. Como diz Bruce:
"O exercício mais generoso dos dons espirituais não pode compensar
a falta de amor".3 Antes de examinarmos o que Paulo tem a dizer
acerca do amor, precisamos de alguns comentários preliminares.
Sabemos muito bem que a palavra grega para "amor" no Novo
Testamento, agape, não costumava ser usada. Ela foi introduzida no
grego neotestamentário especificamente porque o amor de Deus, visto
em Jesus de Nazaré, exigia uma nova palavra. O amor de Deus
transcende completamente todas as idéias ou expressões humanas de
amor. "É amor pelos totalmente indignos, amor que procede de um
Deus que é amor. Amor prodigalizado a outros sem que se pense se
eles são dignos de recebê-lo ou não. Provém antes da natureza daquele
que ama, que de qualquer mérito do ser amado."4Este é o amor que,
segundo Jesus, tem de caracterizar e controlar a comunidade, para que
esta seja, de alguma forma, reconhecida como cristã5 e para que Jesus
seja reconhecido como o Filho de Deus e o Salvador do mundo.
Esses são os motivos básicos que levam Paulo a explicar por que a
vida comunitária cristã sem o amor não é nada, é pior que nada (vs.
1-3). A seguir ele descreve o que é amor, o que não é amor e o que o
amor faz (vs. 4-7). Finalmente, o apóstolo descreve vividamente a
natureza duradoura e eterna do amor (vs. 8-13), que ultrapassa o
conhecimento e os dons espirituais: as duas grandes prioridades dos
cristãos em Corinto.

1. A ausência do amor (13:1-3)

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei
como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.1Ainda que eu tenha o
dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu
tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada
serei. 3E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres, e ainda
que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada
disso me aproveitará.

Paulo faz três declarações duras acerca do cristão que não tem amor.

a) Sem amor, eu ofendo os outros (1)

Em 8:1 ele já estabeleceu o princípio primordial de que "o amor


edifica". Quando os dons espirituais são exercidos em amor, não com
espírito de competição, o corpo de cristãos é edificado. Este é o
constante apelo de Paulo, ao longo de toda a sua disciissão sobre
profecia e línguas no capítulo 14. Quando os dons espirituais não são
usados em amor, a conseqüência inevitável é que magoamos os
outros.
Paulo expõe este assunto por meio de uma referência indireta aos
devotos dos cultos de mistério gregos em Corinto, que adoravam
Dionísio (deus da natureza) e Cibele (deusa dos animais selvagens).
Dionísio, o deus das energias reprodutoras da natureza, da Trácia e
Frigia, era adorado com rituais orgíacos, em que se despedaçavam e
devoravam sacrifícios de animais e, possivelmente, de homens. Os
adoradores, especialmente as mulheres, perdiam sua própria
personalidade, identificando-se com o deus. Este foi se tomando mais
conhecido como o deus do vinho. Cibele, a deusa da natureza
selvagem, era geralmente retratada com leões e outras feras. A Frigia
parece ter sido o centro do seu culto, de onde foi levado a Roma,
atingindo grande popularidade durante o começo do Império
Romano (isto é, no primeiro século d.C.), sobretudo entre as mulheres.
Sem dúvida, nas ruas de Corinto, ecoavam por toda parte o toque
dos gongos barulhentos e dos címbalos estridentes, instrumentos que
caracterizavam esses adoradores. O chalkos (gongo) era uma peça de
cobre; o kymbalon (címbalo) era um instrumento de uma única nota,
incapaz de produzir uma melodia. Ambos eram usados nas religiões
de mistério para invocar a deidade, afastar os demônios ou despertar
os adoradores. Não eram melodiosos, nem produziam harmonia.
Emitiam um som pesado e monótono, incomodando tanto quanto o
latido constante de um cão.
Igualmente desagradável, afirma Paulo, são aqueles que usam o
dom de falar em línguas sem a motivação controladora do amor. Não
importa se as línguas são humanas (como às vezes acontece), ou até
m esm o "línguas d os anjos" (com o algumas pessoas pretenciosam ente
assumem): se não houver amor, tornam-se desagradáveis e rudes.6
Alguns cristãos que têm este dom impõem-no insensivelmente aos
outros irmãos na congregação. Movidas por uma considerável auto-
indulgência, em vez de um profundo desejo de edificar a igreja, tais
pessoas ignoram os sentimentos dos que não estão acostumados ou
não simpatizam com este som.

b) Sem amor, eu nada jou (2)

Se a falta de amor afasta as pessoas da igrqa e do evangelho, tomando-


se o maior obstáculo para um testemunho eficaz dentro de uma
comunidade ou uma nação, também faz com que o cristão perca o seu
significado diante de Deus. Ele se transforma em uma nulidade, num
zero. Deus não pode usar, para sua glória, um cristão sem amor,
mesmo que ele tenha o dom de profetizar, mesmo que seja capaz de
entender e explicar os mistérios profundos referentes a Deus, ao
homem e a Satanás;7 mesmo que seja muito versado no campo da
verdade e da experiência; mesmo que tenha a fé mais incisiva e
ousada, como a do próprio Jesus: a fé que remove montanhas.8
Seria tentador pensar que Paulo está usando uma hipérbole retórica
nesta passagem, isto é, que o impacto total e o valor desses
importantes dons (profecia, revelação, conhecimento) diminuem
quando o amor não se manifesta. Não é isso o que Paulo escreve. Se
não houver amor, declara ele, não há nenhum valor real em meu
244
ministério. Eu posso ter sucesso; posso obter bons resultados; posso
ser admirado, apreciado e aplaudido, mas, sob o ponto de vista de
Deus e da eternidade, nada sou sem amor. "Evidentemente os
coríntios achavam que os possuidores de certos dons eram pessoas
extremamente importantes ... não só são eles insignificantes, mas na
verdade não são nada."9

c) Sem amor, eu não ganho nada (3).

Paulo menciona agora dois atos de sacrifício pessoal que se


aproximam muito do amor prático mais puro e altruísta. E, se, "num
grande e amplo gesto" (Morris), alguém distribuísse todos os bens? E
se entregasse o corpo para ser queimado?10 Será que tais atos não são
inerentemente valiosos aos olhos de Deus? Será que não colaboram
de alguma forma para o reino de Deus? Não são meritórios? Não, ele
responde, de maneira alguma, porque tais atos podem ser motivados
por interesse próprio, e não pelos outros. E, então, nada se ganha: o
esforço, o sacrifício, se perde.

2. A natureza do amor (13:4-7)”

O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não
se ensoberbece, snão se conduz inconvenientemente, não procura os seus
interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; 6não se alegra com a
injustiça, mas regozija-se com a verdade; 7tudo sofre, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.

Se o amor é tão fundamental, insubstituível e determinante para a vida


coletiva dos cristãos, devemos saber mais precisamente o que ele é.
Os quatro versículos acima nos fornecem um retrato preciso.
É importante notar que Paulo usa verbos para descrever esse amor:
a pessoa que ama comporta-se de certo modo; faz, ou não faz,
determinadas coisas por causa da transformação que está acontecento
em si, por causa do amor de Deus derramado em seu coração pelo
Espírito Santo. Essas qualidades, essas atitudes são de máxima
prioridade para cada cristão de uma igreja local. Se estiverem
ausentes, a igreja acaba definhando e fracassando — se não se
desintegrar —por maior que seja a sua atividade, o seu sucesso e o seu
tamanho.
Os verbos que Paulo usa estão todos no presente contínuo,
indicando ações e atitudes que se tomam habituais, gradualmente
incorporadas através de constante repetição. Elas parecem comuns,
óbvias, quase banais; mas provavelmente são os hábitos mais difíceis
de cultivar. Não é por coincidência que estes quatro versículos
descrevem perfeitamente o caráter de Tesus. e de ninguém mais. Isto
se toma claro quando substituímos "amor" por "Jesus" nesta passagem
e, então, para contrastar, inserimos nosso próprio nome.
Diversos autores12 usam os cabeçalhos de Karl Barth para esta
passagem; e, sendo muito difícil melhorá-los ainda mais, nós também
vamos usá-los.13 As duas primeiras frases, entretanto, parecem
introduzir o tema: "O amor tem um coração grande e pratica uma
bondade pura" traduz o grego com fidelidade. Tal amor, que é
portanto paciente e benigno, pode enfrentar as trevas que existem
’ ntro de nós e ao nosso redor, em três direções.

a) O amor e as trevas em nós mesmos (4b-5a)

Com o uso de cinco negativas, cada uma precedendo um verbo, Paulo


enfatiza que uma parte essencial do verdadeiro amor cristão é
reconhecer tais realidades estranhas pelo que são, e renunciar a elas
de modo categórico e decisivo. O amor simplesmente não faz essas
coisas: ele não se entrega ao ciúme, ao ufanismo ou à arrogância;
resiste à tentação de reagir com rudeza ou egoísmo. Todas essas
atitudes são comuns no homem, mas Jesus nunca foi indulgente para
com elas, mesmo sob pressão ou provocação. Este é o caminho do
amor e é o caminho para todos os discípulos de Jesus.
No contexto dos capítulos 12-14, Paulo está se referindo (pelo
menos indiretamente) à inveja, ao orgulho e ao egoísmo na igreja de
Corinto. Várias e várias vezes, os mesmos pecados vêm a tona: as
pessoas se ressentem com o sucesso, as bênçãos ou os dons dos outros;
insatisfeitos com o seu lugar e as suas oportunidades, competem para
conquistar mais espaço, honra ou reconhecimento. Jesus, em
contraste, executou com tranqüilidade o trabalho para o qual foi
chamado; ele se regozijava com o crescimento e o sucesso dos outros,
encorajando-os a prosseguirem com sabedoria e sensibilidade, sem
jamais desprezar ou desconsiderar uma pessoa. Ele nunca precisou
alardear o seu ministério nem se gabar dele. Na verdade, descrições
exageradas, quando não sensacionalistas, de como Deus está nos
usando evidenciam que confiamos pouco na sua aceitação. O amor
não se vangloria. Pelo contrário, Jesus nunca demonstrou nenhum
interesse em receber reconhecimento, muito menos em exigir os seus
direitos. Ele deixou a sua reputação e os resultados do seu ministério
completamente entregues nas mãos de Deus. Jesus se sentiu livre para
não insistir em sua própria vontade, mas confiar naquele "que julga
com justiça",14 sobretudo quando enfrentava rejeição e humilhação.
Em poucos e hábeis traços, Paulo retrata a pessoa que se orienta
pelo amor de Deus e está cheio dele. Ao fazê-lo, o apóstolo também
destaca o egocentrismo da igreja coríntia —bem como das igrejas da
atualidade. Apenas o amor de Deus, mantendo-nos dentro da
profunda experiência de que fomos completamente aceitos por Deus
tal como somos, pode capacitar-nos a enfrentar o egocentrismo,
renunciar a ele e a buscar a luz que ilumine nossas trevas internas. No
amor de Deus, não há lugar para afirmar os direitos pessoais,
desprezar os nossos dons, invejar nossos irmãos, ou tratá-los de
maneira insensível ou grosseira. Esse amor, de alguma forma, faz-nos
olhar para fora, identificando as necessidades e os interesses dos
outros: quando percebemos que o nosso comportamento ou as nossas
atitudes estão prejudicando ou magoando alguém, o amor nos impele
a eliminar essas trevas internas através da graça no Senhor. Não existe
igreja local alguma que não precise de mais amor para cumprir este
propósito tão básico.

b) O amor e as trevas áos outros (5b-6)

Paulo menciona três maneiras pelas quais podemos facilmente


permitir que as fraquezas, os pecados e os fracassos de outras pessoas
nos levem à falta de amor. Primeiro, há pessoas que simplesmente nos
provocam, talvez isso não seja deliberado ou consciente, mas fazem
isso constantémente, de maneira desenfreada. E muito fácil acusar tais
pessoas pelo impacto que causam em nós, em vez de enfrentar
honestamente a realidade de nossa própria suscetibilidade. Mais uma
vez, Jesus nos mostra o caminho, com a sua paciente longanimidade
para com os doze discípulos, a quem ele "amou até o fim".15 Se
realmente amarmos alguém com o amor do Senhor, veremos muito
mais a sua força e o seu potencial, em lugar de seus cacoetes e
fraquezas. Quando ele fizer ou disser alguma coisa, irritando-nos,
seremos capazes de tratá-lo dentro do contexto do que ele é em Cristo,
em vez de aumentar o que aconteceu, a ponto de monopoilizar a nossa
atenção.
Em segundo lugar, Paulo fala do verdadeiro "mal” que há nos
outros. Assim como nós mesmos, os outros cristãos também pecam
e transgridem a palavra de Deus. Talvez estejamos entre aqueles que
sofrem em resultado disso, direta ou indiretamente. É crucial
reconhecer o perigo de perseguir esse tipo de comportamento,
regozijar com o fracasso dos outros e, particularmente, manter uma
lista dos erros cometidos. A palavra do versículo 5, logizetai (ressentir-
se), significa manter sob registro: o amor, além de perdoar, esquece;
e não mantém um registro das coisas ditas ou feitas contra nós.
Finalizando, Paulo chama a atenção para a atitude em relação ao
pecado e à maldade de um modo geral. Há um traço de perversidade
na natureza humana, atiçado e explorado pela maioria dos
comunicadores, que de fato se deleita com o mal, especialmente nos
outros. Podemos cair na armadilha de nos regozijarmos não com o que
é bom e verdadeiro, mas com o que é obscuro e sórdido. Encontramos
\um falso alívio quando vemos os outros fracassando e caindo,
provavelmente porque imaginamos que isso nos dá mais liberdade
' para brincarmos com o pecado. Este é o inverso do amor, que anseia
por ver os outros em pé, crescendo, que se entristece e se ressente
quando outra pessoa é derrotada, que se alegra com os que se alegram
e chora com os que choram. Um perigo específico, apontado diversas
vezes por Paulo nas Epístolas Pastorais como digno de condenação,
é a fofoca. O amor não se entrega a fofocas, sobretudo sob o disfarce
de compartilhar um motivo de oração. O amor "cobre multidão de
pecados”.16

c) O amor e as aparentes trevas em Deus (7)

A palavra tudo, repetida quatro vezes neste versículo, toma claro que
o amor não é uma qualidade humana, mas um dom do próprio Deus.
Nas diversas circunstâncias e nos diversos relacionamentos de nosso
dia-a-dia, é apenas o amor divino em Jesus que nos capacita a sofrer,
crer, esperar e suportar.
Freqüentemente Deus pede aos cristãos que assumam fardos
(muitas vezes os fardos de outros, mas, sempre, fardos que ele mesmo
já assumiu) que nos desgastam, fazendo-nos indagar: "Por que,
Senhor?" "O amor sacrifica o direito de se rebelar contra Deus”,17 por
mais que derramemos o nosso coração diante dele. Especialmente
quando quase nada nos encoraja à fé, o amor nos fortalece, fazendo-
nos confiar mesmo no escuro, andar até chegar ao outro lado, apesar
da montanha de dúvidas, sabendo que nosso Deus Pai está no
controle e finalmente demonstrará a sua vitória. Mais do que isso, o
amor nos capacita a exercer uma forte confiança de que, por mais
escuras que sejam as trevas, Deus não se perdeu pelo caminho e
reserva para nós "pensamentos de paz, e não de mal".18
Aconteça o que acontecer, suportamos firmes porque em tudo há
um propósito. Deus está esculpindo em nós a imagem do seu Filho,
Jesus. Oswald Chambers escreveu: "Deus sempre nos golpeia com
coisas comuns, usando pessoas comuns."19Somente o nosso amor por
Deus, despertado pelo seu amor por nós, pode manter essa fé e
esperança vivas, no controle de nossas vidas no dia-a-dia. Quando
percebemos, mais uma vez, que Jesus nos ama dessa maneira -
suportando tudo o que lançamos contra ele, acreditando e confiando
em nós calmamente, tendo suportado até mesmo a cruz em nosso
lugar - então nos reanimamos, cientes de que só o seu amor pode nos
suster e nos transformar nas pessoas e nas igrejas locais que ele quer
que nos tomemos.

3. A eternidade do amor (13:8-13)

O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo


línguas, cessarão; havendo ciência, passará; 9porque em parte conhecemos, e
em parte profetizamos. J0Quando, porém, vier o que é perfeito, então o que é
em parte será aniquilado. 11Quando eu era memino, falava como menino,
sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem,
desisti das coisas próprias de menino. nPorque agora vemos como em espelho,
obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então
conhecerei como também sou conhecido. 13Agora, pois, permanecem a fé, a
esperança e o amor, estes três: porém o maior destes é o amor.

Se em nossas mentes ainda persiste alguma idéia, sugerindo que tal


amor pode ser reproduzido pelos seres humanos, por sua própria
vontade, as primeiras palavras do versículo 8 eliminam isso: O amor
jamais acaba. O verbo grego piptei significa literalmente "falhar" ou
"entrar em colapso". O amor nunca cede às pressões, por mais intensas
e contínuas que sejam. Ele ultrapassa a morte, chegando à eternidade.
Este é o amor de Deus. Com o intuito de realçar a preeminência do
amor para todos os cristãos de Corinto, e de qualquer outro lugar,
Paulo menciona os três dons que ocupam o alto da lista de prioridade
deles: línguas, profecia e conhecimento. Cada um deles passará a ser
irrelevante ou será absorvido na perfeição da eternidade: pois quando
vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado (v. 10).
Paulo ilustra esta verdade geral de duas maneiras diferentes:
primeiro, ele menciona o crescimento desde a infância até a
maturidade; segundo, ele contrasta o reflexo de uma pessoa no
espelho com a visão dela mesma, face a face. O melhor dos espelhos,
que naquele tempo eram feitos de metal e inevitavelmente davam
apenas uma imagem distorcida e imperfeita, em nada se compara com
esse encontro pleno. João nos informa que, quando virmos Jesus face
a face, "seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele
é".20 Assim, só teremos pleno conhecimento de nós mesmos quando
virmos a Jesus e o conhecermos com a mesma plenitude e perfeição
com que ele nos conhece (v. 12).
Enquanto não virmos a Jesus como ele é, teremos pouca
maturidade, estaremos longe de sermos considerados adultos. Mas,
pela sua graça, recebemos muitos dons e por meio deles podemos ver
mais da sua glória e da sua vontade, mesmo nas limitações desta vida
moxtal. Todos esses dons são meios de revelação da natureza e dos
propósitos de Deus. Cada dom é valioso para o crescimento rumo à
maturidade, mas o que impulsiona o nosso relacionamento com Deus
é o fato de que ele nos conhece, não vice-versa (v. 12).21 Um dia, nós
também o conheceremos.
Se os coríntios se especializavam em línguas, profecia e
conhecimento, Paulo concentra sua atenção na fé, na esperança e no
amor. Estas são as três qualidades que vão "permanecer".

Notas:
1. Alguns comentaristas pensam que este capítulo foi escrito em alguma ocasião
anterior, tendo sido incorporado ao texto de 1 Coríntios nesse ponto.
2. Thom as M erton;T h e Seven Storey M ountaín (Sheldon Press, 1978), págs. 73­
74.
3. Bruce, pág. 124.
4. M orris, pág. 145.
5. Cf. Jo 13:35.
6. E um ponto controvertido se o dom de línguas poderia realm ente ser, sob
algum aspecto, " a língua do céu ". Em Ap 14:2ss., João descreve "u m a voz...
como de harpistas quando tangem as suas harpas" como um dos aspectos do
culto do "M onte Sião". Parece forçado dizer que essa passagem (de tal livro)
explica a referência de Paulo às "líng u as dos an jo s" em 13:1.
7. Cf. 1 Co 2:7-11; Ap 2:24.
8. Cf. M t 17:20.
9. M orris, pág. 147.
10. "P a ra ser queim ad o" é a tradução m ais provável. Uma alternativa seria a
seguinte: "S e eu entregasse o meu corpo para que pudesse me vangloriar (isto
é, sobre isso )..." M as, como Barrett destaca, tal ação seria obviam ente
desprovida de amor, se fosse feita para promoção de sua própria glória, e isto
torna tautológica a frase-chave: " s e não tiver am or". Paulo certam ente não
foi tautológico, especialm ente nesse capítulo.
11. Sobre o todo desta seção, veja Bittlenger, págs. 82-89.
12. Por exem plo, Bittlenger, págs. 82ss.; G oldingay, págs. 13ss.
13. Cf. K. Barth, Church Dogmatics IV, 2, pág. 825.
14. Cf. lP e 2 :2 3 .
15. Jo 13:1.
16. 1 Pe 4:8.
17. Bittlenger, pág. 88.
18. Jr 29:11.
19. O sw ald C ham bers, Tlido Para Ele (Editora Betânia), pág. 278.
20. 1 Jo 3 :lss..
21. Veja a atitude do próprio Paulo ao descrever esta verdade em G 14:9.
1 Coríntios 14:1-40
14. Profecia e Línguas

1 . 0 que são?

Tendo estabelecido o amor de Deus como a única prioridade para


qualquer igreja local, especialmente para uma igreja tão dividida e
imatura como a de Corinto, Paulo retoma à questão da espiritualidade
e, especificamente, a dois dons: línguas e profecia. Ele insiste em que
os cristãos coríntios busquem o amor e, nessa atmosfera, desejem
sinceramente os dons espirituais. Em 14:1 ele usa uma expressão mais
geral, igual à usada em 12:1, que significa "espiritualidade", diferente
da que foi usada em 12:31, onde descrevia os coríntios competindo
pelos chamados "melhores dons". No quadro de honra daqueles
irmãos, o falar em línguas ocupava o topo. Paulo, então, incentiva
todos a profetizarem (1 e 5,31 e 39).
Logo de início devemos destacar que, assim como os primeiros
apóstolos, também os profetas que, juntamente com eles, tornaram-
se o fundamento da igreja, têm uma autoridade única e sem igual.
Qualquer que fosse a intenção de Paulo ao incentivar o dom da
profecia, ele não estava sugerindo que algum cristão pode se igualar
àqueles primeiros profetas, como instrumentos da revelação divina.
Qualquer manifestação subseqüente deste dom deve ser submetida
à doutrina autorizada dos apóstolos e profetas originais,1 conforme
consta do Cânon das Escrituras.
Existiria, então,"úm dom e ministério profético secundário em
nossos dias? Neste caso, como defini-lo? Muitas vezes, ele tem sido
comparado à pregação, ou ao tipo de pregação que expõe a verdade
bíblica, especialmente a pregação expositiva. "O dom da profecia é
basicamente a explicação do presente à luz da revelação de Deus. O
equivalente mais próximo a ser usado é 'pregação expositiva', que
revela a mente de Deus e a aplica às lutas diárias da vida".2 Conforme
veremos, a pregação expositiva pode muito bem conter palavras
especiais de profecia, mas tal comparação não pode ser biblicamente
sustentada. O Novo Testamento faz uma clara distinção entre
pregação, ensino e profecia.
Um princípio importante a ser seguido foi esboçado pelo próprio
Paulo, ao destacar tanto o valor especial da profecia quanto o seu
desejo de que cada cristão de Corinto fizesse uso dela. Em outras
palavras, devemos buscar (e esperar encontrar) uma compreensão
neotestamenfária do dom da profecia, que não é algo banal nem
esotérico. Provavelmente, este é um dom que, ao mesmo tempo,
fortalece a igreja de maneira única e é acessível a todos os membros.
Não podemos trivializá-lo na tentativa de entendê-lo, nem tomá-lo tão
especial que fique fora do alcance da maioria dos cristãos. Equipará-
lo à pregação expositiva é cair neste último extremo. Uma igreja na
qual todos são pregadores expositivos ou (peritos em qualquer outro
tipo de pregação) seria um pesadelo e, evidentemente, não é isso que
Paulo quer para os coríntios. Da mesma forma, é muito fácil esvaziar
o dom da profecia de seu conteúdo único, imediato e distintivo,
tornando-o então nada mais que bom senso santificado. A Bíblia e a
história da igreja (primitiva e atual) apresentam provas que invalidam
essa conclusão.
A esta altura, talvez seja útil usar o resumo de Michael Green como
definição funcional de profecia: "uma palavra do Senhor dada por
intermédio de um membro do seu corpo, inspirada pelo seu Espírito
e concedida para a edificação do restante do corpo".3 Tal ministério
está à disposição de cada cristão, à medida que o Espírito Santo as
distribui "como lhe apraz, a cada um, individualmente" (12:11). Este
dom deve, portanto, ser desejado por todos os cristãos, quer o Senhor
decida ou não distribuí-lo a todos. Se levarmos em conta as perguntas
retóricas no final de 1 Coríntios 12, chegaremos à conclusão de que
todos os cristãos podem ser usados para profetizar, mas que apenas
alguns são usados com regularidade suficiente para serem
reconhecidos como profetas dados por Deus para a igreja; isto é, o
dom da profecia deve ser diferenciado do cargo e do ministério de um
profeta. Mesmo assim, tais profetas não estão em pé de igualdade com
os antigos profetas (do Antigo e do Novo Testamento) e devem se
colocar totalmente sob a autoridade das Escrituras, tanto na sua
conduta como no conteúdo de seus pronunciamentos.
São muitas, naturalmente, as perguntas acerca deste assunto. Mas
talvez seja mais construtivo examinarmos uma passagem de um dos
grandes profetas do Antigo Testamento para entendermos a natureza,
o conteúdo e o impaco do dom da profecià. Em Isaías 50:4-6 lemos o
seguinte:
O Senhor Deus me deu língua de eruditos, para que eu saiba
dizer boa palavra ao cansado. Ele me desperta todas as manhãs,
desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos. O
Senhor. Deus me abriu os ouvidos, e eu não fui rebelde, não me
retra. Ofereci as costas aos que me feriam, e as faces aos que me
arrancavam os cabelos; não escondi o meu rosto dos que me
afrontavam e me cuspiam.

Embora seja um erro supor que qualquer cristão de hoje, chamado


a um ministério profético, tenha a mesma autoridade do homem que
falou as palavras acima, essa passagem é importante por diversos
motivos. Primeiro, ela contém uma clara ênfase messiânica, e Jesus é
visto em toda a revelação do Novo Testamento como o Profeta por
excelência, cumprindo a promessa de Moisés de que tal pessoa
haveria de surgir.4 Os evangelhos apresentam Jesus cumprindo esse
paj>el.5 O testemunho de Jesus é "o espírito de profecia":6 um
testemunho que é previsto no Antigo Testamento e confirmado no
Novo.
Segundo, o tipo de vida ao qual Deus inspira uma pessoa com o
dom da profecia é claramente exposto na passagem de Isaías. A
disciplina diária de passar um período com Deus, para ouvi-lo e ouvir
a sua palavra, é fundamental para qualquer dom profético autêntico.
Considerando que cada cristão tem a obrigação de descobrir e buscar
essa disciplina de manter um contato pessoal efetivo com o Senhor,
os frutos dessa vida devocional (em termos de receber uma palavra
de Deus para revelá-la a outros) está à disposição de todo cristão.
Terceiro, a ênfase em Isaías 50 está na força e no apoio que tal
ministério dá "ao cansado", uma perspectiva que Paulo também
enfatiza neste capítulo (v. 3).
Quarto, a última parte do trecho destaca a necessidade de um
coração aberto e um corpo resistente: aberto para Deus e indiferente
à oposição. Está claro, sob todos os aspectos, que aqueles que recebem
genuinamente um dom profético precisam de grande coragem e
resistência para exercê-lo fielmente na igreja, mesmo em face de
hostilidade, e até rejeição.
Esta passagem de Isaías nos incentiva, portanto, a esperar que cada
crente sensível e obediente receba uma visão especial de Deus: uma
visão da vontade divina em relação a uma situação específica, ou uma
aplicação da sua palavra ao tempo em que vivemos. Tal visão profética
não tem a autoridade inerente e permanente daqueles profetas que,
com os apóstolos de Cristo, estabeleceram os fundamentos da igreja.7
Mas um ministério profético contínuo é essencial nos dias de hoje,
para que a igreja não se acomode confortavelmente à civilização
contemporânea. .
Quando o Espírito caiu sobre os setenta anciãos fora da tenda da
congregação no deserto, Josué não se entusiasmou. Mas Moisés
respondeu com palavras que se cumpriram no dia de Pentecoste:
"Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse
o seu Espírito!”.8
Semelhantemente, quanto Pedro explicou o fenômeno pentecostal
à multidão perplexa, ele disse que o dom do Espírito era cumprimento
das palavras do profeta Joel: "E acontecerá nos últimos dias, diz o
Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos
filhos e vossas filhas profetizarão... até sobre os meus servos e sobre
as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e
profetizarão".9 A repetição da frase "e profetizarão", em Atos 2, não se
encontra na passagem de Joel; essa adição provavelmente reflete a
expectativa da igreja cristã primitiva e uma ênfase sobre tal
manifestação do Espírito.
Também é importante tentar entender o que significam, para Paulo,
o dom de falar em línguas e o de interpretá-las. Se nos atermos ao
significado declarado do texto de 1 Coríntios 14, o falar em línguas não
envolve a mente (v. 14), dirige-se apenas a Deus e não a outros seres
humanos (v. 2), reconhecendo-se que é para a "edificação” do próprio
indivíduo (v. 4), sendo também ininteligível, porque tal pessoa "em
espírito fala mistérios” (v. 2).
A palavra grega glossa (além de referir-se à língua como o órgão da
fala) pode ser traduzida por "língua" ou "linguagem". Isso implica
duas interpretações diferentes do dom. A tradução "linguagem" é
preferida por aqueles que consideram que a descrição do Pentecoste
feita por Lucas seja determinativa para 1 Coríntios 12 e 14, como
também para outras passagens relevantes de Atos (10:46 e 19:6) e
Marcos (16:17).10Atos 2 é a única passagem em que o dom é explicado,
isto é, como um poder milagroso de falar línguas estrangeiras,
compreensíveis. Com base nisso, argumenta-se que devemos aceitar
que Paulo usa glossa da mesma forma, referindo-se, portanto, ao
mesmo fenômeno.
Aqueles que pensam que este dom consiste na capacidade de falar
uma língua estrangeira diferem quanto à interpretação de sua
natureza: alguns pensam que se trata de um poder milagroso de falar
dessa forma; outros, que não é nada mais que ter a capacidade de falar
em uma ou mais línguas diferentes, que não sejam a língua materna
ou alguma outra, falada por aqueles que estão ouvindo.
Como um princípio exegético, é melhor interpretar uma passagem
bíblica por outra. Entretanto, temos um problema neste caso, porque
o contexto e o conteúdo de 1 Coríntios 14 são diferentes dos de Atos
2.n A situação, em Corinto, focalizada por Paulo é a da vida de
adoração comunitária da igreja local; as experiências do Pentecoste
aconteceram na presença de uma grande multidão de estranhos. Todo
uso de línguas (glossai) na igreja de Corinto exigia interpretação; no
Pentecoste alguns ouvintes entenderam diretamente o que estava
sendo dito, porque "cada um os ouvia falar na sua própria língua".12
O próprio Paulo dá graças a Deus (v. 18) porque ele falava em glossai
mais do que todos os coríntios. Parece difícil crer que ele esteja aqui
fazendo uma "avaliação quantitativa", no que se refere à sua facilidade
como lingüista, em comparação com todos os cristãos coríntios, quer
\fosse por uma capacitação milagrosa ou por experiência e educação.
(D versículo 18 em grego realmente proíbe tal interpretação; se Paulo
estivesse dando a entender que falava mais línguas do que os cristãos
coríntios, ele teria usado um adjetivo comparativo (isto é, "em mais
glossai..."). Na realidade, o que ele usa é um advérbio que enfatiza o
fenômeno propriamente dito, não a quantidade de línguas.
Continua sendo impossível afirmar com certeza se o dom de glossai
no Pentecoste e o dom descrito por Paulo em 1 Coríntios são idênticos;
semelhantes, mas distintos; ou completamente diferentes. Em 12:28
Paulo menciona "variedades (no grego, genos, raiz da palavra
'genérico') de línguas". Isto dá lugar para muitas formas e tipos
diferentes, além de não esclarecer se o conteúdo de tal glossai é,
invariavèhnente, uma linguagem distinguível. Há diversos exemplos
registrados de línguas que foram reconhecidas, em circunstâncias
incomuns, como uma linguagem específica,13 mas o próprio Paulo
parece dar lugar à possibilidade de uma grande variação, quando se
refere às "glossai dos homens e dos anjos" (13:1), embora em 14:10-11
ele pareça admitir que podem se tratar de línguas humanas. O que está
claro é que o falar em glossai é um dom do Espírito de Deus, devendo,
portanto, ser apreciado e usado. Além disso é bastante valioso, já que
Paulo deseja que todos os cristãos de Corinto desfrutem dele para o
seu benefício pessoal.14 Quando algum cristão é edificado, toda a
comunidade é inevitavelmente fortalecida, ainda que de forma
indireta.
Alguns comentaristas entendem que as observações de Paulo neste
capítulo são um tanto céticas em relação a qualquer noção de auto-
256
edificação. Como, pergunta-se, poderia um dom espiritual (como
Paulo os descreve e os aplica nos capítulos 12 e 14) ser voltado para
o próprio indivíduo? Contudo, Paulo diz explicitamente que "o
mesmo se edifica" (14:4); o que ele condena é qualquer uso auto­
indulgente deste dom no culto público, em vez de um uso
disciplinado em amor que, quando acompanhado pelo dom da
interpretação, serve para edificar a igreja.
Em termos relativos, não é tão importante determinar o conteúdo
exato de glossai. Isso pode ser verificado quando examinamos mais de
perto o dom de interpretação de glossai. Invariavelmente, entende-se
que significa "tradução".
A palavra grega traduzida por interpretação (her meneia) não
transmite necessária ou exclusivamente esse significado: por exemplo,
na estrada de Emaús, Jesus "expunha-lhes o que a seu respeito
constava em todas as Escrituras".15 No grego clássico, havia três
sentidos para esse verbo: explicar ou interpretar, articular ou expressar
claramente, traduzir. Colin Brown diz o seguinte: "Pode parecer que
Paulo não estivesse pensando em interpretação no sentido de traduzir
uma língua para outra, o que daria a entender que as línguas teriam
um esquema coerente de gramática, sintaxe e vocabulário. Antes,
interpretação aqui parece referir-se mais ao discernimento daquilo que
o Espírito está dizendo por intermédio da pessoa que está falando em
línguas".16
Além da perspectiva lingüística que acabamos de expor, a
substância das interpretações mais modernas de uma glossa é uma
mensagem de Deus para as pessoas reunidas, não o contrário. Paulo
diz claramente que o falar em glossai é orientado pelo Espírito, do
crente para o Senhor (14:2). Com base nisso, a interpretação não é uma
tradução. Antes, é a resposta de Deus Pai por meio do Espírito, à
oração (também por intermédio do Espírito) de seu filho.17
Se isso for correto, estamos experimentando nesta época a
interpretação da mente e do coração de Deus, dada pelo Espírito, em
resposta à oração do seu povo. Os membros do corpo são usados
como canais dessa comunicação íntima entre o Pai e seus filhos; um,
pelo dom de falar em línguas, e o outro, pelo dom de interpretá-las.
À parte do despropósito de falar publicamente em glossai porque é
ininteligível, esta perspectiva sobre o dom de interpretação soma mais
um ponto ao fator edificação, tão importante no pensamento de Paulo
contido neste capítulo. À primeira vista, não há tanta edificação em
ouvir a tradução de uma oração feita em glossa por outra pessoa, como
quando recebemos uma comunicação direta, uma resposta vinda do
coração e da mente de Deus.
Esta perspectiva tem, incidentalmente, dois outros méritos.
Primeiro, explica a razão de a interpretação de uma glossa ser,
invariavelmente, mais longa ou curta do que a glossa original. Se a
interpretação não é uma tradução, remove-se esta objeção - e precisa
ser removida, porque geralmente ouvimos comentários totalmente
céticos e negativos acerca de todo o fenômeno nessa área. Segundo,
podemos ver a razão pela qual Paulo trata o dom de profecia e o de
falar e interpretar glossai como se fossem equivalentes 14:5) - todos são
veículos que Deus usa para comunicar seus pensamentos ao seu povo.
Assim como em todos os fenômenos espirituais no contexto de
Corinto, devemos ter o cuidado de não aceitar credulamente qualquer
aparente falar-em-línguas como se fosse dom de Deus. Tal fenômeno
era comum nas religiões de mistério da Grécia, ainda hoje é
encontrado com freqüência em diversas culturas e cultos de caráter
pagão, e deve sempre ser avaliado pelos critérios que Paulo
mencionou nos capítulos 12-14. Alguns comentaristas chegam a dizer
que a "glossolalia" moderna nada tem a ver com o que Paulo diz nos
capítulos 12 e 14, atribuindo o fenômeno a causas puramente
psicológicas ou a alguma imitação satânica do verdadeiro dom bíblico.
O restante de nossa exposição deste capítulo baseia-se na convicção
de que este dom está à nossa disposição hoje e está sendo
experimentado de madeira construtiva em muitas igrejas de diferentes
países. Diante disso, traduziremos glossai por "línguas". Hodge
apresenta uma exposição completa do capítulo, usando como base a
palavra "linguagens" em analogia com a narrativa de Atos 2.
A preocupação mais íntima de Paulo em todo este capítulo é a
edificação da igreja de Corinto: a palavra ocorre sete vezes (vs. 3, 4,
duas vezes, 5 ,1 2 ,1 7 e 26). Anteriormente, o apóstolo insistira em que
os coríntios usassem os materiais certos para edificar de modo
adequado sobre o fundamento da igreja, Jesus Cristo, seu Senhor.18Ele
tam bém destacou o poder insubstituível do amor, que é
singularm ente útil para essa edificação, muito mais que o
conhecimento ao qual os coríntios davam tanta ênfase. Agora, Paulo
está convicto de que o culto coletivo deve fortalecer, e não rachar ou
abalar o edifício. O culto de uma igreja local exerce papel
indispensável na edificação da fé e do discipulado dos seus membros.
Quando é vigoroso, participativo, promissor e atraente (o significado
da raiz grega, no v. 40, traduzido por "decentemente"), toda a
congregação se fortalece no Senhor. Ao examinarmos alguns dos
ensinamentos de Paulo neste capítulo, talvez perguntemos se o culto
258
coletivo de nossas próprias igrejas contém os ingredientes que Paulo
discute aqui.
Nos versículos 1-25, Paulo compara e contrasta línguas e profecia
em relação à edificação da igreja. Nos versículos 26-36, ele estabelece
algumas linhas de orientação para o devido uso desses dons na igreja.
Nos versículos 37-49, ele conclui o assunto fornecendo algumas
instruções essenciais. Observe que, em parte alguma, o escritor
deprecia ou rejeita o dom de línguas. Ele censura o desequilíbrio na
espiritualidade coríntia e reprova a confusão no culto público. Ele
deseja que as línguas sejam colocadas no seu devido lugar na vida da
igreja, sem serem consideradas como o dom mais importante, nem
usadas em culto público sem interpretação. Paulo aceita prontamente
a importância das línguas para a edificação pessoal dos crentes, mas
ele confia nos dons de profecia (v. 5) e de ensino (v. 19) para a
edificação da igreja como um todo, juntamente com quaisquer outras
contribuições trazidas pelos membros do corpo em suas reuniões (v.
26). Seria útil identificar alguns dos princípios que Paulo elucida
enquando examinamos o capítulo.

2. O efeito da profecia (14:1-5)

Segiii o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente que
profetizeis. 2Pois quem fala em outra língua, não fala a homens, senão a Deus,
visto que ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. 3Mas o que profetiza,
fala aos homens, edificando, exortando e consolando. 40 que fala em outra
língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza edifica a igreja. 5Eu quisera
que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que
profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas,
salvo se as interpretar para que a igreja receba edificação.

Dentro dos vários pontos de vista acerca do dom da profecia, já


esboçada anteriormente, encontramos três palavras muito úteis (v. 3)
que indicam os resultados que este dom proporciona para a igreja
local, quando devidamente usado: edificação, exortação e consolação.
Considerando a preocupação de Paulo com a edificação da igreja do
Senhor, não nos surpreende que ele mencione esta função em primeiro
lugar; qualquer palavra de profecia que mine ou abale a fé dos outros
deve ser rejeitada. Esta é a razão principal por que a profecia deve
sempre ser recebida na comunhão do povo de Deus, não em conversa
particular. Há uma grande quantidade de falsas profecias que nada
mais são do que outro meio, bastante espiritualizado, de uma pessoa
manipular ou exercer influência sobre outra. Tais tendências só
podem ser detectadas quando há um incentivo para que o dom da
profecia seja exercido dentro vida conjunta do povo de Deus. De
qualquer forma, este dom visa a edificação de toda a igreja, não de um
cristão, individualmente. O que muitas pessoas, hoje, denominam de
"profecia pessoal" é altamente suspeito por esse e outros motivos.
A segunda palavra é exortação (paraklesis), a mesma raiz da palavra
usada em João20 para descrever o Espírito Santo como Parácleto,
Advogado, Conselheiro. Significa literalmente "ser chamado para ficar
ao lado", para ajudar e sustentar. O ministério de profecia tem esta
função, quando o Espírito Santo inspira um cristão a dizer palavras
que dão força à vida e ao testemunho da igreja local, talvez, em
especial, para o seu testemunho, porque o deleite do Espírito é
capacitar a igreja a dar testemunho sólido e convicente de que Jesus
é o Senhor.
A terceira palavra escolhida por Paulo para descrever como uma
verdadeira mensagem profética ajuda a igreja é consolação (paramythia).
Significa sussurrar no ouvido da igreja,21 provavelmente com o fim
de apaziguar o^eísior e capacitar o povo de Deus a permanecer calmo,
mesmo sob pressões. "A consolação... acalma as tempestades de
medo, ansiedade e desespero. Ajuda-nos a descansar na presença de
Jesus... Leva-nos para longe da agitação febril dos afazeres diários,
afasta-nos da inquietação desta vida, introduzindo-nos na grande paz
de Deus."22 Uma frase usada regularmente pelos profetas do Antigo
Testamento e por Jesus, o grande Profeta, era "não temais..."
Se isso faz parte do impacto que a profecia deve exercer sobre a
igreja, entendemos por que Paulo desejava que todo cristão buscasse
esse dom.

A imperfeição das línguas (14:6-25)

Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras línguas, em


que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou
de profecia, ou de doutrina? 7É assim que instrumentos inanimados, como a
flauta, ou a cítara, quando emitem sons, se não os derem bem distintos, como
se reconhecerá o que se toca na flauta, ou cítara? sPois também se a trombeta
der som incerto, quem se preparará para a batalha? 9Assim vós, se, com a
língua, não disserdes palavra compreensível, como se entenderá o que dizeis?
porque estareis como se falásseis ao ar. wHá sem dúvida, miütos tipos de vozes
no mundo, nenhum deles, contudo, sem sentido. nSe eu, pois, ignorar a
significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro
para mim. 12Assim também vós, visto que desejais dons espirituais, procurai
progredir, para a edificação da igreja.
nPelo que, o que fala em outra língua, ore para que a possa interpretar.
uPorque, se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha
mente fica infrutífera. 15Quefarei, pois? Orarei com o espírito, mas também
orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a
mente. 16E se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém
depois da tua ação de graças? visto que não entende o que dizes; 17porque tu
de fato dás bem as graças, mas o outro não é edificado. nDou graças a Deus,
porque falo em outras línguas mais do que todos vós. 19Contudo, prefiro falar
na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instnár outros, a falar
dez mil palavras em outra língua.
20Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sêde crianças; quanto
ao juízo, sedê homens amadurecidos.
21Na lei está escrito:
Falarei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos,
e nem assim me ouvirão, diz o Senhor.
22De sorte que as línguas constituem um sinal, não para os crentes, mas para
os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, e, sim, para os que
crêem. 23Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem
a falar em outras línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédidos, não
dirão porventura, que estais loucos? 24Porém, se todos profetizarem, e entrar
algum incrédulo, ou indouto, é ele por todos convencido, e por todos julgado:
2Stornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com
a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está de fato no meio
de vós. .

Paulo mostra que, dentro da economia soberana do Senhor, que


distribui os dons como lhe apraz, ele (Paulo) gostaria que cada cristão
de Corinto falasse em línguas (para edificação pessoal) e profetizasse
(para edificação da igreja) (v. 5). Neste ponto, de qualquer maneira, ele
está muito mais preocupado com o grupo todo do que com os
indivíduos, e por isso prossegue destacando as limitações do falar em
línguas no que tange à edificação da igreja. Paulo apresenta as três
m aiores lim itações do falar em línguas, que se referem à
inteligibilidade, à integridade pessoal e ao impacto sobre os de fora.
a) Limitações na inteligibilidade (6-11, 16-17, 23). Naturalmente,
qualquer pessoa que ouve, acha que o falar em línguas é uma
algaravia. Na verdade, não há nenhum conteúdo inteligível para
quem fala. No versículo 11, Paulo fala da reação daqueles que estão
presentes, comparando-a com o relacionamento entre os gregos e os
bárbaros (ERAB estrangeiro; barbaros). Os gregos se orgulhavam muito
da beleza de sua língua e consideravam todas as outras línguas
grosseiras e inferiores. Para eles, essas línguas soavam como se fossem
um "bar-bar-bar" sem sentido; daí a palavra "bárbaro".
Quando alguém fala em línguas, muitas vezes as palavras têm um
som agradável, mas nem sempre isso é verdade. Em relação à vida de
uma igreja local, o critério central de Paulo consiste no seguinte: o
conteúdo pode ser entendido pelos demais crentes, pelos
"interessados" e pelos de fora? Se for ininteligível, sua prática deve ser
restringida. O ministério do Espírito produz harmonia (v. 7) e equipa
o povo de Deus para a batalha espiritual (v. 8). Essas duas questões
não podem ser "camufladas", sendo, portanto, crucial canalizar o
entusiasmo pelos dons espirituais para alvos construtivos: que o zelo
inato dos cristãos seja utilizado para a edificação da igreja (v. 12).
O procedimento correto de quem fala em línguas e deseja que esse
dom seja usaao para a edificação da igreja, é orar para que as possa
interpretar (v. 13).23 Paulo não demonstra nenhum constrangimento ao
dizer que a mesma pessoa dotada pelo Espírito primeiro fale em uma
língua e, então, imediatamente traga uma interpretação como resposta
de Deus. Quando isso acontece em uma reunião de cristãos, podemos
instintivamente nos sentir embaraçados, como se alguma brincadeira
ou artificialidade estivesse nos sendo impingida. A posição de Paulo
é uma correção sadia para o ceticismo.
Ao mesmo tempo, Paulo insiste na necessidade de evitar uma
situação em que algum participante do culto se sinta excluído ou
perdido. Ele parece incluir os que não estão iniciados nos segredos das
línguas (v. 16) e aqueles que estão sendo instruídos ou estão avaliando
o compromisso cristão (v. 23). Por essa razão é que Paulo tomou a
firme decisão de esperar que o Espírito o usasse no ministério às
igrejas, de modo a contribuir com algo mais sólido e mais fácil de
entender, por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina
(v. 6). E por um desses meios que ele vai beneficiar genuinamente a
igreja, independentemente de quantas línguas fale (v. 18) (em orações
particulares).
b) Limitações na integridade pessoal (13-17,19-20). Paulo destacou os
benefícios pessoais para o cristão que fala em línguas em sua vida de
oração individual (v. 4). Alguém já sugeriu que tais benefícios têm a
ver com "a edificação construtiva da personalidade".24 Morton Kelsey,
que, na qualidade de teólogo e psicoterapeuta, já escreveu
extensamente sobre o assunto, diz: "Há pessoas que sem esta
experiência jamais teriam chegado à maturidade psicológica. A
experiência de falar em línguas abriu-lhes o inconsciente para uma
vida mais plena, embora mais difícil." Kelsey cita um lingüista com
treinamento em psicologia, que escreveu: "Falar em línguas é uma
prova de que o Espírito de Deus está operando no inconsciente e
levando a pessoa a uma nova inteireza, a uma nova integração de todo
o psiquê, a um processo que a igreja tradicionalmente chama de
santificação."25
No ambiente altamente emotivo e eufórico da igreja em Corinto,
que ainda recebia fortes influências de experiências vivenciadas nas
religiões de mistério, o tema da integridade precisava ser atacado de
um ângulo diferente. A tendência dos coríntios não era a de serem
super cerebrais, mas de desvalorizar a importância da mente. Paulo
está, portanto, preocupado em acentuar as manifestações do Espírito
que não depreciam a mente. Falar em línguas realmente beneficia o
indivíduo, mas sua mente fica infrutífera (v. 14). Paulo deseja, que_os
cristãos de Corinto sejam homens amadurecidos quanto ao juízo (v. 20);
isto exige que a mente seja exercitada por meio do Espírito, até o limite
de sua capacidade. Ele menciona cinco áreas da vida cristã onde isto
precisa ser feito: na oração (v. 15), nos cânticos (v. 15), na ação de
graças (vs. 16-17), na instrução (v. 19) e no juízo (v. 20).
O cristão que não permite que o Espírito alargue e renove a sua
mente nessas cinco áreas está resistindo à obra divina da santificação,
em integridade. Havia muitos crentes em Corinto cuja experiência no
Espírito se limitava a manifestações que excluíam a mente por
completo. Paulo expressa sua própria firme resolução de orar, cantar
e dar graças com o espírito, mas também... com a mente (v. 15).26 Tal é sua
preocupação em edificar a igreja, que ele prefere dizer algumas poucas
palavras sábias e, inteligíveis, para instruir os cristãos na fé, afalar dez
mil em outra língua (v. 19).
Por outro lado, o desequilíbrio dos cristãos coríntios levou Paulo
a enfatizar o equilíbrio entre o racional e o não-racional, sem colocar
um contra o outro. O apelo para que se busque a maturidade, no
versículo 20, parece remontar às fortes observações sobre a
imaturidade de Corinto feitas no início da carta.
c) Limitações no impacto sobre os de fora (16-17, 21-25). Paulo está
sempre preocupado com a maneira como o culto cristão afeta o indouto
(v. 16). Com certeza, ele não só espera que tais pessoas estejam
presentes nessas ocasiões, mas que elas se arrependam por causa da
presença manifesta do Espírito. Ambas as expectativas constituem um
desafio para a nossa vida na igreja, hoje. Os indoutos estão presentes?
Será que eles se encontram com o Senhor?
E difícil identificar com exatidão quem são esses indoutos. São
usadas duas palavras gregas: idiotes e apistos (v. 23). O primeiro
vocábulo, que originou nossa palavra "idiota", refere-se a alguém que
não faz parte do grupo em questão: por exemplo, "os leigos em relação
aos sacerdotes, os civis em relação aos homens de vida pública..., os
soldados rasos em relação aos oficiais".28Alguns comentaristas crêem
que Paulo esteja usando a palavra para descrever aqueles que não
estão acostumados ao fenômeno do falar em línguas, tanto nos cultos
pagãos como na igreja cristã. A explicação mais provável de idiotes é
a que foi dada por Morris. Paulo usa uma expressão muito incisiva no
versículo 16: "aquele que preenche o lugar dos idiotes", "o que indica
que (tais pessoas) tinham o seu lugar na assembléia cristã. Seriam
'inquiridores', gente que não se havia comprometido com o
cristianismo,\mas estava interessada. Tinham deixado de ser simples
estranhos, mas ainda não eram cristão s.Q u alq u er igreja que tenha
uma frente evangelística na comunidade local tem pessoas deste tipo
em seus cultos de adoração. Elas ainda não são crentes; na verdade,
ainda são "incrédulas", mas estão no limiar do compromisso. Não se
devia fazer nada, especialmente algo que brotasse do espírito de auto-
indulgência de alguns cristãos entusiasmados, que pudesse levá-las
de volta a uma incredulidade, da qual seria muito mais difícil arrancá-
las.
Isso lança luz sobre as aparentes contradições dos versículos 21-25,
em que Paulo parece incapaz de decidir se o falar em línguas é para
os crentes ou para os incrédulos. Tudo o que ele descreveu até aqui
afirma que as línguas são apenas para os cristãos, mas para os cristãos
em seus momentos devocionais em particular; não devendo ser
usadas no culto público, a não ser que haja interpretação. No versículo
22, ele declara que as línguas constituem um sinal, não para os crentes, mas
para os incrédulos. A citação de Isaías 28:11-12 (e o contexto mais amplo
de Isaías 28 como um todo) indica o tipo de "sinal" a que Paulo está
se referindo (v. 21). Tanto aqui como no versículo 23, ele está
mostrando que o impacto do falar em línguas ininteligíveis confirma
a incredulidade daqueles que não têm uma fé viva em Deus. A própria
ininteligibilidade alimenta suas mentes não regeneradas e suas
vontades insubmissas; eles concluem que os cristãos são loucos e não
têm nada de novo ou verdadeiro para oferecer.
As palavras gregas que foram traduzidas por estais loucos (v. 23)
não significam "qualificados para o asilo”, mas "sob a influência de
alguma força espiritual igual àquelas que agiam nos cultos de
mistério". No contexto coríntio, Paulo quer dizer que o resultado
líquido de os crentes todos falarem em línguas no período do culto é
que aquelas mesmas pessoas que eles estava querendo conquistar
ficariam convencidas de que o cristianismo é igual a qualquer outra
religião de mistério, na qual precisam ser iniciadas se quiserem
participar. Não tendo sido iniciadas no vocabulário e nas práticas
secretas, elas se afastam. Ficamos imaginando quantas pessoas
interessadas descobrem hábitos sem elhantes, igualm ente
desalentadoras em nossas próprias igrejas hoje.
Esta tragédia torna-se ainda mais comovente quando estudamos a
alternativa positiva. Paulo descreve o que pode acontecer, e de fato
acontece, quando os crentes são sensíveis em relação ao Espírito de
Deus, e também aos irmãos, à doutrina apostólica, aos observadores
interessados e até mesmo aos que são totalmente incrédulos. O dom
da profecia que, para todos os crentes (v. 27), é um sinal inegável do
compromisso pessoal do Senhor com a sua igreja, toma claro a todos
os presentes que o Senhor éstá no meio do seu povo. O impacto
inevitável da realidade da presença divina sobre os de fora e sobre os
incrédulos é que a consciência deles é despertada30 e o seu verdadeiro
estado espiritual, desnudado: "A palavra de Deus é viva e eficaz, e
mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até
ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para
discernir os pensamentos e propósitos do coração. E não há criatura
que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas
estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de
prestar contas".31 Quando Deus fala com a proximidade das palavras
proféticas, então "todas as coisas são descobertas e colocadas a nu": os
crentes, os de fora e os incrédulos. Por isso Paulo espera que cada um
seja usado como veículo de Deus, profetizando.
A citação de Zacarias no versículo 25, testemunhando que Deus está
de fato no meio de uós,32 enfatiza a convicção de Paulo de que o dom da
profecia é um dos principais sinais da nova aliança, porque essa
passagem fala do tempo quando "dez homens, de todas as línguas das
nações, pregarão, sim, na orla da veste de um judeu e lhe dirão: Ire­
mos convosco, porque temos ouvido que Deus está convosco". Na
cidade cosmopolita de Corinto, judeus e gentios haviam formado uma
nova congregação do povo de Deus, que se tornou possível com a
morte e ressureição de Jesus, o Messias. Quando o dom da profecia
se fez plenamente ativo na congregação, a visão de Zacarias tornou-
se uma realidade.

4. A necessidade de ordem congregacional (14:26-36)

Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina,
este traz revelação, aquele outra língua, e ainda outro interpretação. Seja tudo
feito para edificação. 27No caso de alguém falar em outra língua, que não sejam
mais do que dois ou quando muito três, e isto sucessivamente, e haja quem
interprete. 2SMas, não havendo intérprete, fique calado na igreja, falando
consigo mesmo e com Deus. 29Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou
três, e os outros julguem. 30Se, porém, vier revelação a outrem que esteja
assentado, cale-se o primeiro. 31Porque todos podereis profetizar, um após
outro, para todos aprenderem e serem consolados. 32Os espíritos dos profetas
estão sujeitos aos próprios profetas; 33porque Deus não é de confusão; e, sim,
de paz. Como em todas as igrejas dos santos,34conservem-se as mulheres
caladas na$ igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas
como tambéma lei o determina. 35Se, porém, querem aprender alguma coisa,
interroguem, em casa, a seus próprios maridos; porque para a mulher é
vergonhoso falar na igreja. 36Porventura a palavra de Deus se originou no
meio de vós, ou veio ela exclusivamente para vós outros ?

Paulo acabou de se referir a ocasiões em que "toda a igreja" se reúne


(v. 23). AgoríLele fala do que acontece em tais ocasiões, ou o que
deveria acontecer, porque em Corinto havia uma evidente tendência
para a desordem, se não o caos. Embora fosse diferente da desordem
que censurou no capítulo 11, era algo similar: indivíduos que agiam
segundo suas preferências pessoais, em vez de pensarem nas
necessidades e na sensibilidade dos outros.
Quando o apóstolo escreve sobre "toda a igreja" (v. 23) se reunindo,
provavelmente ele está pensando em todas as diferentes igrejas
"domiciliares" de Corinto reunidas numa grande casa, pertencente a
algum cristão rico da cidade. Tais ocasiões, que provavelmente não
eram tão freqüentes como as reuniões regulares da igreja nos lares,
eram o contexto em que Paulo esperava que os interessados e outras
pessoas "de fora" estivessem presentes. No versículo 26, por outro
lado, provavelmente ele tem mais em mente as reuniões regulares nas
diversas casas da cidade - que em outras passagens ele chama de "a
igreja na casa" de Aqüila e Priscila (por exemplo). Ele vislumbra cada
membro da igreja trazendo uma contribuição distinta ao culto: um tem
salino, outro doutrina, este traz revelação, aquele outra língua, e ainda outro
interpretação (v. 26). O fator predominante não é o prazer pessoal, mas
a edificação geral. Paulo vê a necessidade de ordem, tanto no contexto
maior da igreja em toda a cidade como no microcosmo da igreja nas
casas.
— a) Controle dos que possuem o dom de línguas (27-28). Tendo esclarecido
que, na reunião da igreja, o falar em línguas deve sempre vir
acompanhado da interpretação, Paulo limita agora o número dessas
línguas seguidas de interpretação em cada reunião: que não sejam mais
de dois ou quando muito três. Sem dúvida isso pode ter soado como um
castigo severo para os coríntios entusiasmados. Caso contrário, outro
ministério importante seria menosprezado, dando-se, novamente,
uma ênfase desmedida a um dom específico e, inevitavelmente, para
as pessoas que o exerciam.
Além disso, Paulo limita o uso de línguas, proibindo o seu exercício
caso não haja a respectiva interpretação. Na prática, isso significa que,
se a primeira língua falada não for interpretada, outros que têm o dom
devem "manter-se em silêncio". Silêncio significa ausência de barulho.
Falar alto, consigo mesmo, em línguas, perturbando os outros, é
desobedecer à orientação apostólica prescrita neste capítulo (v. 37).
Paulo sabe muito bem (por experiência própria?) que o portador deste
dom pode falar consigo mesmo e com Deus silenciosamente, para não
perturbar nem distrair os outros. Não havendo interpretação,
podemos entender que, com certeza, Deus pretende ministrar ao
corpo de alguma outra maneira.
—► Há uma verdade fundamental implícita aqui no ensino de Paulo.
Falar em línguas (e, também profetizar, v. 30) não é um fenômeno
incontrolável. Quem possui o dom pode escolher usá-lo em particular
ou em público; pode mantê-lo para si em silêncio, mesmo estando em
público. Por essa razão, é muito enganoso usarmos a palavra "êxtase"
(como em algumas traduções) para descrever qualquer dom do
Espírito, sobretudo o falar em línguas. Essa terminologia reintroduz
conceitos e experiências pagãs no campo da operação divina. O
Espírito não anula a vontade e a mente dos seres humanos. Pelo
contrário, em seu amor ele obtém a nossa cooperação expontânea, sem
jamais nos obrigar a fazer alguma coisa. Em qualquer análise dos dons
espirituais, é essencial verificar este princípio de auto-controle. Os
responsáveis pela adoração na igreja precisam salientar firmemente
esse princípio.
— b) Controle dos que possuem o dom da profecia (29-33). Paulo estabelece
as mesmas limitações para o uso da profecia em qualquer reunião da
igreja, provavelmente pelos mesmos motivos. Ele reitera que todo
cristão deve esperar ser usado neste ministério (v. 31) que faz com que
todo o corpo seja ensinado e encorajado. Este princípio indica uma
outra perspectiva: qualquer membro do corpo pode ser usado em
qualquer reunião como portador de qualquer dom. Freqüentemente,
limitamos o Espírito, esperando que certos dons venham por meio de
determ inadas pessoas que já foram usadas dessa forma
anteriormente.
No que tange à profecia, ela sempre deve ser pesada, testada,
avaliada. Quando a profecia é rara, a tendência é omitir esse controle,
e o preço é que, muitas vezes, as vidas acabam sendo manipuladas.
Em 1 Tessalonicenses34 e 1 João35 tal avaliação é considerada
responsabilidade de toda a igreja. Há uma tentação de deixá-la a cargo
da liderança. Existe também a tentação de os outros profetas
assumirem o direito de avaliá-las. Alguns dos critérios para a devida
avaliação são: Glorifica a Deus? Está de acordo com as Escrituras?
Edifica a igreja? E proferida em amor? O profeta submete-se ao
julgamento\dos outros? O profeta está no controle de si mesmo? O
profeta fala demais? O profeta está demonstrando o fruto do Espírito
em sua vida?36
Novamente, Paulo reforça a questão do auto-controle (vs. 30,32) em
todas as manifestações genuínas do Espírito. "Um profeta não pode
alegar, como alguns em Corinto talvez fizessem, que ele deve
continuar falando porque o Espírito o compele a isso; havendo motivo
para que silencie, ele pode silenciar." O apóstolo, então, fundamenta
sua declaração no próprio caráter de Deus" Deus não é de confusão; e,
sim, de paz (v. 33). Quando o Espírito está realmente no controle, ele
produz paz, não confusão. Este é o maior incentivo para que a
congregação siga em frente, descobrindo e usando todos os dons do
Espírito.
c) Controle das mulheres casadas na congregação (34-36). Qualquer que
seja o ensinamento desta seção, não está dizendo que as mulheres
devam manter-se caladas na igreja. Em 11:5, Paulo já se referiu à
mulher que ora e profetiza. Quando se diz: em casa, a seus próprios
maridos (v. 35), isso indica imediatamente que o apóstolo está
pensando no comportamento de algumas mulheres casadas de
Corinto, comportamento este que precisava do mesmo controle firme
que se tinha mostrado evidentemente necessário em todas as igrejas dos
santos (v. 33). Embora não nos seja possível descobrir os detalhes do
que estava acontecendo, podemos discernir algumas das atitudes
predominantes naquela cidade. Parece que o princípio da submissão
268
estava sendo ignorado (estejam submissas, v. 34), que um espírito de
rebeldia imperava (é vergonhoso... v. 35), e que uma tendência
isolacionista estava fazendo com que essas esposas arbitrassem
ordem, e até mesmo a doutrina, de sua própria igreja (Porventura a
palavra de Deus se originou no meio de vós? v. 36). Em outras palavras,
essas mulheres casadas eram a fonte de parte da arrogância da igreja
coríntia, que Paulo já havia condenado.
Segundo alguns comentaristas, Paulo está confrontando a tagarelice
dessas mulheres nas reuniões da igreja. Talvez algo fascinante
estivesse sendo ensinado ou transmitido, e elas começavam a
comentar a respeito, durante o culto. A palavra grega traduzida no
versículo 34 por falar (lalein) pode ter a conotação de tagarelice, mas
Paulo não a usou com este sentido em outras ocasiões. O comentário
de Barrett é preciso: "Não é impossível que Paulo usasse agora a
palavra com um novo sentido, mas é pouco provável". Seja qual for
a explicação correta, este parágrafo ilustra um exemplo bem colocado
do que pode, muito bem, ter sido uma tendência generalizada entre
as esposas cristãs na igreja primitiva. Elas haviam descoberto uma
liberdade sem igual na vida da comunidade cristã, e é possível que tal
liberdade lhes subisse à cabeça, ou, mais exatamente, à língua. Esta
falta de autodisciplina estava provocando confusão e desordem no
culto da igreja. Pelo fato de Paulo insistir tanto na prioridade da
edificação, é com certa firmeza e um tanto de sarcasmo que ele
discorre acerca da necessidade de controle e ordem.

Conclusão (14:37-40)

Se alguém se considera profeta, ou espiritual, reconheça ser mandamento do


Senhor o que vos escrevo. 3SE se alguém o ignorar, será ignorado. 39Portanto,
meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar, e não proibais o falar em
outras línguas. 40Tudo, porém, seja feito com decência e ordem.

Paulo conclui o comentário geral sobre a espiritualidade (capítulos 12­


14) e o ensinamento específico sobre a profecia (capítulo 14) com uma
declaração enfática acerca de sua autoridade como apóstolo: Reconheça
ser mandamento do Senhor o que vos escrevo. Obviamente havia muitos
cristãos em Corinto que alegavam ser realmente espirituais: a resposta
de Paulo a tais alegações demonstra que a verdadeira espiritualidade
não é arrogante nem fica defendendo os seus próprios direitos, mas
aceita a autoridade daqueles que são colocados acima, no Senhor. Aos
coríntios que se orgulhavam de serem profetas — atitude que
freqüentemente parece caracterizar os servos usados nesse ministério
- Paulo também enfatiza que devem reconhecer a autoridade divina
por trás de suas observações. Qualquer tendência de pensarmos que
estamos certos, enquanto o restante da igreja universal está errada, é
algo arrogante e perigoso.
Mas, sejam quais forem os perigos e as tentações enfrentados por
aqueles que têm o dom da profecia, Paulo conclui exortando os
coríntios a buscarem esse dom com disposição. Ele parecia temer que,
dada a sua forte preocupação em atenuar a importância do falar em
línguas em público, a liderança passasse a ser severa demais nessa
questão. Por isso ele ainda insiste para que não dificultem, não
perturbem, não impeçam nem restrinjam o falar em línguas; qualquer
um desses verbos traduz melhor o grego kolyo do que a palavra proibir
(v. 39). Esta é outra instrução firmada em um mandamento específico
do Senhor (v. 37), a que a igreja de hoje precisa obedecer.
As palavras finais do apóstolo sobre o assunto estão diretamente
relacionadas com a prioridade número um, a edificação: Tudo, porém,
seja feito com decência e ordem (v. 40). A primeira palavra focaliza a
aparência do culto cristão para os õbservadores, a segunda focaliza a
capacidade de cada indivíduo cristão servir adequadamente em seu
próprio lugar. Considerando que este último aspecto é estimulado em
uma atmosfera de verdadeiro amor, o resultado final será uma vida
comunitária que atrai os de fora, por sua harmonia e beleza.

Nota adicional sobre os dons espirituais.

Alguns mestres e comentaristas crêem que determinados dons do


Espírito não estão à disposição, de um modo geral, para a igreja em
todas as gerações. Eles destacam acertadamente a autoridade
excepcional e única dos apóstolos e dos profetas na época da fundação
da igreja e concluem que, desde então, não temos mais apóstolos nem
profetas com autoridade comparável. Os milagres e as curas, também
argumentam, apareciam em períodos específicos de revelação divina
(como, por exemplo, no Êxodo, na concessão da lei, nos dias de Elias
e Eliseu, no ministério de Jesus e seus apóstolos) e serviam apenas
para autenticá-la. Por isso não se deve esperá-los nos dias de hoje com
a mesma freqüência. Alguns autores também incluem o falar em
línguas e interpretação delas entre os fenômenos do Novo Testamento
que já não se manifestam hoje, e consideram "a palavra da sabedoria"
e "a palavra do conhecimento" como palavras não-milagrosas de
sabedoria e conhecimento.
Outros escritores vão além e declaram categoricamente que
nenhum milagre de nenhuma espécie aconteceu desde a era
apostólica. Nesse caso, a maioria dos nove dons específicos de 12:8­
10 é confinada à história passada da igreja ou explicada como um
"bom senso santificado". O pentecostalismo clássico, numa reação
contrária ou numa redescoberta, tem enfatizado a natureza
sobrenatural de todos esses nove dons, excluindo (de um modo geral)
qualquer manifestação ordinária de tais dons da graça de Deus na vida
diária do cristão.
A presente exposição dos capítulos 12 e 14 procurou fugir dos dois
extremos. A base desta exposição não é um desejo de acomodação,
mas a convicção essencial de que Deus é transcendente e imanente.
Desde que ele transcende este mundo, a igreja, nossas mentes e nossa
experiência, podemos esperar que ele se manifeste de maneira
coerente com a sua própria natureza revelada, por mais imprevisíveis
que sejam em relação às nossas próprias limitações humanas.
Considerando também que ele preserva o mundo e a igreja, e sustenta
"todas as coisas pela palavra do seu poder",40 vamos encontrá-lo em
operação constante, remindo e renovando todos os recursos inerentes
em nós, porque fomos criados à sua imagem.
Por isso achamos inútil introduzir nesta análise dos dons espirituais
quaisquer noções de "natural" e "sobrenatural", "normal" e "anormal",
"comum" e "incomum". Essa terminologia não foi usada por Paulo
nem por qualquer outro escritor bíblico; parece-nos, portanto,
ilegítimo incorporar isso a um texto, para ajudar na exegese, muito
menos de forma determinativa.
Dada a inexistência de garantia bíblica para alegarmos que certos
dons acabaram totalmente (com exceção dos ministérios especiais
exercidos pelos primeiros apóstolos e profetas), acreditamos ser válido
voltar os olhos para o Senhor Jesus Cristo, que subiu aos céus e que
permanece o mesmo hoje e para sempre, e que deseja ver a sua igreja
crescendo até a maturidade, tanto no fruto como nos dons do Espírito
Santo. Isso implica que sempre há mais para sabermos e partilharmos.
Tanto no conteúdo como no impacto, as respectivas passagens bíblicas
(inclusive 1 Coríntios 12-14) abrem nossos horizontes, aumentam
nossa expectativa e ampliam nossa visão de tudo o que Deus deseja
realizar no corpo de Cristo por intermédio do seu Espírito.
Esta incerteza acerca do que Deus pode operar em nós como igreja
não deve nos levar, em face dos diversos tipos de fenômenos
espirituais, a uma credulidade infantil ou a um racionalismo cético.
Não prestamos serviço algum ao Deus Todo-Poderoso, se estamos
constantemente buscando o que alguns consideram como excepcional
e extraordinário. Nem é honroso para ele obstruir alguma
manifestação do seu poder e glória que nos pareça difícil de explicar
ou controlar. Os coríntios se concentraram de maneira errada no que
eles julgavam ser o mais dramático dos dons; e Paulo os repreendeu
por estarem vivendo em desordem, heresia, imoralidade e divisão.
Qual nós não adotemos, em contra-partida, uma opinião sobre os
dons espirituais que efetivamente exclua um Deus que transcende
nossas mentes finitas e que, em seu amor, se revela de maneiras
inesperadas em nossa existência mortal. Se cremos que um milagre
supremo acontece na conversão e na regeneração, por que não crer em
outros?

Notas:
1. Cf. E f 2:20; 3:5.
2. R. Stedm an.
3. M ichael G reen, T oC orinth with Love (H odder, 1982), pág. 74.
4. Cf. D t 18:15.
5. Cf. M t 16:14; Mc 6:4; Lc 7:16; 9:7-8; 13:33; 24:19; Jo 4:19.
6. A p 19:10.
7. Cf. E f 2:20.
8. N m 11:25-29.
9. A t 2:16-18; cf/Jl 2:28-29.
10. Por exem plo, H odge, págs. 248-250.
11. M orris escreve: "Alguns com entadores acham que é este dom de falar em
outras línguas que se fala aqui. Esta é uma solução atraente, m as ninguém ,
ao ler 1 Coríntios, pensaria que é isso que Paulo tinha em m ente" (pág. 138).
12. A t 2:6.
13. Por exem plo, John Sherrill, They Speak with Other Tongues (H odder, 1967),
especialm ente págs. 108-111.
14. D entre os benefícios edificantes de se falar em línguas desse m odo íntim o,
encontram-se um senso especial da presença de Deus, relaxamento da tensão,
força para enfrentar a dor, poder na oração para resistir aos assaltos
dem oníacos, liberdade de intercessão quando a oração verbal é inadequada
ou im possível, e liberdade para adorar a Deus quando "perplexo de
adm iração, am or e louvor".
15. Lc 24:27.
16. No Dictionary ofN eio Testament Theology, Vol III (Zondervan, 1982), pág. 1080.
Cf. D. B. Burke na International Standard Bible Encyclopaedia. Vol II (Eerdmans,
1982): "Este tipo de interpretação naturalm ente não deve ser entend ido no
sentido de uma "tradução"... O dom da interpretação torna inteligível o êxtase
espiritual de quem fala em línguas."
17. Este relacionam ento duplo entre o Pai e os seus filhos na oração, através da
inspiração do Espírito Santo, é descrito evocativam ente em R m 8:26-27.
18. Cf. 1 Co 3:10-16.
19. 1 Co 8:1.
20. Jo 14:16, etc.
21. Veja M ichael Green, To Corinth with Love, pág. 76.
22. Bittlenger, pág. 106.
23. Morris destaca que o versículo 13 indica que "não havia nada de estático acerca
da posse dos dons. Era preciso que o hom em que tivesse o dom de 'línguas'
não tomasse isso como sua condição final. Podia receber ainda outros dons...
D evia orar com este fim em vista" (pág. 156).
24. B ittlenger, pág. 99.
25. M orton T. Kelsey, Speaking with Tongues (H odder, 1965), pág. 222.
26. O uso da expressão "meu espírito", no versículo 14, indica que Paulo não está
contrastando o uso da mente com a inspiração do Espírito Santo nos versículos
14-16. A palavra "espírito" deve ter a inicial minúscula em todas as ocorrências.
27. Cf. 1 Co 3:1-4.
28. M orris, pág. 157.
29. Ibid., págs 157s.
30. Cf. Jo 16:7-11.
31. H b 4:12-13.
32. Cf. Zc 8:23.
33. 1 Co 16:19.
34. 1 Ts 5:21.
35. l J o 4 : l s s .
36. Para uma ampliação desse critério, veja Michael Green, To Corinth with Love,
págs. 77-78.
37. Barrett, pág. 329.
38. 1 Co 4:7ss.; 5:2ss.; 8:1; 13:<n>5.
39. Barrett, pág. 332.
40. H b 1:3.
1 Coríntios 15:1-58
15. Ressurreição: Passado, Presente e Futuro

É somente no versículo 12 que descobrimos os motivos que levaram


Paulo a escrever este notável capítulo. Em Corinto, havia cristãos que
afirmavam não haver ressureição dos mortos. Para o apóstolo dos
gentios, que havia proclamado Jesus e a ressurreição de maneira tão
destemida e incisiva a ponto de alguns dos seus ouvintes (em Atenas)
se convencerem de que ele estava pregando acerca de dois deuses
diferentes (Jesus e Anastasis - a palavra grega para ressurreição),1 tal
dúvida sobre o âmago do evangelho era motivo de espanto. É verdade
que ele havia decidido não pregar nada "senão a Jesus Cristo, e este
crucificado" em Corinto; contudo, por mais que tenha enfatizado o
significado da cruz em detrimento do fato da ressurreição, os dois
eventos eram inseparáveis, em seu pensamento e ensino. Ele pregava
a Jesus, crucificado e ressurrecto. Como algum cristão, mesmo de
Corinto poderia rejeitar a ressurreição dos mortos? O que teria dado
lugar a tamanho ceticismo? Em que, então, eles criam?
Diversas respostas têm sido apresentadas. Primeira: os gregos em
geral acreditavam na imortalidade da alma (idéia originalmente
expressa com supremo brilhantismo por Platão, cerca de quinhentos
anos antes). O corpo era visto como uma prisão, e a morte marcava a
libertação da alma, até então impedida de se elevar para o mundo real,
do qual todas as coisas deste mundo não passam de sombra. Os
cristãos gregos que foram criados sob esta filosofia achavam difícil
descartá-la. Havia muitas tendências gnósticas nos círculos cristãos
daquela época, capazes de afastar os cristãos da verdade apostólica,
fazendo-os cair em uma concepção superespiritualizada da vida, antes
e depois da morte.
A segunda possibilidade é que os coríntios viam, com o mesmo
ceticismo de hoje, as alegações de que o túmulo de Jesus estava vazio
no primeiro domingo da Páscoa. "Mortos não ressuscitam", pode ter
sido o lema que sintetizava essa atitude. Quando Paulo apresentou a
sua defesa diante do Rei Agripa em Cesaréia, ele lançou este desafio
a todos os que ouviam: "Por que se julga incrível entre vós que Deus
ressuscite os mortos?”2 Da mesma forma, diante do Sinédrio e, mais
tarde, diante de Félix, o governador romano da Judéia, Paulo declarou
a sua própria posição de maneira inequívoca, dizendo: "Hoje sou eu
julgado por vós acerca da ressurreição dos mortos."3 Desde o
momento em que se espalhou a notícia de que o túmulo de Jesus
estava vazio, houve várias vozes, especialmente (supomos) daqueles
que eram influenciados pelos saduceus,4 proclamando todo tipo de
explicação, exceto a ressurreição.
Tais vozes sempre serão insistentes, principalmente porque a
ressurreição de Jesus (quando investigada de maneira autêntica) acaba
com os argumentos e as teorias atrás das quais os homens sempre
procuraram se esconder de Deus. A afirmação de Paulo aos atenienses
apresenta as implicações da ressurreição de Jesus com uma precisão
insuperável: "Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância;
agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se
arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o
mundo com justiça por meio de um varão que destinou e acreditou
diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos."5
A terceira maneira de entender a hesitação dos coríntios em relação
à ressurreição dos mortos tem o mérito de se fundamentar em uma
atitude que Paulo já enfrentou antes nesta carta. Em síntese, eles
entendiam que os cristãos entravam na plenitude da herança em
Cristo desde o momento da sua incorporação em Cristo, ou seja, no
batismo. Em 4:8, Paulo declarava: "Já estais fartos, já estais ricos:
chegastes a reinar sem nós; sim, oxalá reinásseis para que também nós
viéssemos a reinar convosco." Vimos que este triunfalismo não era
coerente com o paradoxo do "já" e do "ainda não” presente na
escatologia bíblica. Os coríntios queriam tudo agora, e entendiam que
ter vitória constante sobre a enfermidade, o pecado, o sofrimento e
Satanás, era um direito de fé de todo cristão devidamente orientado.
A conclusão lógica de tal conceito de discipulado cristão era defender,
como Himeneu e Fileto, que "a ressurreição já se realizou."6Tal posição
não nega necessariamente a ressurreição de Jesus, mas nega ao cristão
qualquer esperança de uma ressurreição futura: tudo o que podemos
esperar é o que temos agora. Não nos surpreende que Paulo acuse
Himeneu e Fileto de "perverterem a fé de alguns" por meio de tais
ensinamentos.
Esse ensino triunfalista tem o seu correspondente moderno nas
"igrejas da prosperidade" ("confie em Deus e você vai prosperar, ter
saúde e sucesso”), que estão brotanto em muitos países. Em tais
círculos, a teologia do sofrimento não tem nenhuma ligação, mesmo
que remota, com o Novo Testamento. Sua doutrina atrai aqueles que
desejam uma vida confortável e uma consciência limpa; escraviza
muitos que, convencidos de que a teoria nunca se encaixa nos fatos
de sua experiência, sentem-se culpados porque não têm "fé suficiente";
e entristece aqueles cujas circunstâncias tornam-lhes virtualmente
impossível prosperar e ter sucesso (e é provável que neste grupo se
enquadrem setenta e cinco por cento das pessoas do mundo).
É provável que a situação em Corinto não se enquadrasse
exatamente em nenhuma dessas três categorias. Não obstante, Paulo
sentiu-se obrigado a retomar aos fundamentos absolutos, a fim de
tratar dos perigos inerentes de modo adequado. Por todo este capítulo
ele expõe o princípio e o fato da ressurreição como sendo o ponto
central do evangelho. O cristianismo se preocupa, não com a simples
im ortalidade, nem com a mera sobrevivência, nem com a
transmigração 4 a alma, nem com a reencarnação, mas com a
ressurreição dos mortos. Para Paulo, e para todos os autores do Novo
Testamento, isso significava, necessariamente, a ressurreição da
pessoa toda, não apenas de sua alma ou do seu corpo ou mesmo de
sua personalidade. Em todo o Novo Testamento, a ressurreição é vista
como uma demonstração do poder de Deus sobre a morte. Quase
invariavelmente é Deus quem ressuscita Jesus dos mortos; Jesus não
ressuscita por sua livre vontade (15:16). Se foi Deus quem ressuscitou
Jesus dos mortos, ele também ressuscitará aqueles que estão em Jesus.
As implicações mais amplas desta verdade fundamental são
desenvolvidas por Paulo neste capítulo.

1. Os fatos da ressurreição de Jesus (15:1-11)

Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes


e no qual ainda perseverais; ^or ele também sois salvos, se retiverdes a palavra
tal como vô-la preguei, a menos que tenhais crido em vão.
3Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras, 4e que foi sepultado, e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras. SE apareceu a Cefas, e, depois, aos doze.
6Depoisfoi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a
maioria sobrevive até agora, porém alguns já dormem. 7Depoisfoi visto por
Tiago, mais tarde por todos os apóstolos, 8e, afinal, depois de todos, fo i visto
também por mim, como por um nascido fora de tempo. 9Porque eu sou o menor
dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo, pois
persegui a igreja de Deus. wMas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua
graça, que me fo i concedida, não se tornou vã, antes trabalhei muito mais do
que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus comigo. ”Portando, seja
eu, ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes.

Nestes versículos Paulo reitera o conteúdo básico do evangelho que


ele havia proclamado aos coríntios desde o começo. Por mais que ele
apresente novas percepções, ao desenvolver o tema da ressurreição,
é importante notar que, aqui, ele repete os fatos, sem acrescentar
outros. Quando há dúvidas na mente das pessoas acerca de
determinadas questões teológicas, é fácil concluir que estes fatos
fundamentais não são suficientes ou fidedignos. Paulo pensa assim:
ele faz os coríntios se lembrarem do evangelho que não ouviram e
receberam (v. 1) dele.
A palavra recebestes (paralambano) refere-se a uma tradição
estabelecida, transmitida pessoalmente, quase sempre por via oral,
pelas testemunhas oculares originais dos fatos relativos à morte e
ressurreição de Jesus. Paulo usou o mesmo vocabulário para registrar
a instituição da Ceia do Senhor.7Quando nos lembramos de que 1 Co­
ríntios foi escrita no começo dos anos ciiiqüenta, podemos ver que
esses fatos fundamentais da mensagem do evangelho referentes à
ressurreição de Jesus haviam acontecido cerca de vinte anos antes.
Estamos, portanto, o mais próximo possível das testemunhas oculares
dos acontecimentos que ocorreram em Jerusalém naqueles dias. Paulo
não hesita em responder às dúvidas dos coríntios acerca da
ressurreição, usando tais provas históricas. Os fatos referentes ao
evangelho que proclamava eram os que ele mesmo havia recebido das
testemunhas, provavelmente quando visitou Jerusalém a fim de
consultar Pedro e Tiago.8Quanto ao significado desses fatos, ele dizia
ter recebido "por revelação".9
Ele afirma que tal evangelho proporciona-lhes salvação (v. 2, por ele
também sois salvos). Sua única restrição era a instabilidade da fé que eles
tinham em Cristo. "Se a adesão dos homens ao evangelho é tal que eles
não estão confiando realmente em Cristo, a crença deles é infundada
e vazia. Não têm a fé salvadora."10É compreensível que Paulo censure
qualquer atitude ou idéias que minem a fé desse modo. Precisamos
reiterar constantemente o ponto central do evangelho, e isso envolve
uma compreensão firme dos fatos históricos (v. 2, se retiverdes).
Quais são esses fatos? "Cristo morreu ... foi sepultado ... ressuscitou
ao terceiro d ia ... apareceu a Cefas, e, depois, aos doze. Depois foi visto
por mais de quinhentos irmãos de uma só vez... Depois foi visto por
Tiago, mais tarde por todos os apóstolos" (vs. 3-7).
Antes de examinarmos a narrativa de Paulo acerca das aparições
após a ressurreição, convém observarmos sua referência ao fato de
Cristo ter sido sepultado (v. 4). "Muitos mestres vêem aqui uma
referência indireta ao túmulo vazio."11 É provável que a frase foi
sepultado tenha sido incluída, não apenas como um estágio necessário
e real em todo o drama, mas como uma confirmação da realidade da
morte e da ressurreição. "Se ele foi sepultado, devia estar realmente
morto; se foi sepultado, a ressurreição deve ter sido a reanimação de
um cadáver... Se foi sepultado, e, subseqüentemente, visto fora do
túmulo, este deve ter ficado vazio, e deve ter sido visto vazio."12
Paulo inclui entre os acontecimentos do evangelho a declaração:
Cristo morreu pelos nossos pecados (v. 3). Não existe uma verdadeira
proclam ação .d o evangelho que não explique, em term os
neo tes tamen tá ri os, a relação entre o pecado humano e a morte de
Cristo. De fato, simplesmente não há evangelho nenhum, a não ser
que a morte de Cristo possa ser vista como a solução única e definitiva
para o problema do pecado. A ressurreição, em si, fala pouco sobre
o âmago do evangelho, a não ser que se possa demonstrar que "o
aguilhão da morte é o pecado" (15:56) e que a ressurreição de Cristo,
portanto, arrancou esse aguilhão.13
Outro fator importante acerca dos acontecimentos do evangelho,
apresentado pelo apóstolo, é que a morte e a ressurreição de Cristo
ocorierarn segundo as Escrituras (vs. 3 e 4). Lembramo-nos de que, na
noite da Páscoa, andando pela estrada de Emaús, junto com dois
discípulos, Jesus "expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas
as Escrituras".14 Da mesma maneira, quando lemos as Escrituras do
Antigo Testamento15à luz da morte e da ressurreição de Jesus, elas nos
falam com eloqüência acerca dele.
O Antigo Testamento, na verdade, fala em termos muito obscuros
sobre algo que se parece remotamente com a ressurreição. Por outro
lado, a esperança dos salmistas de que não ficariam no Sheol (cujo
significado básico é vazio, esquecimento) fundamentava-se na firme
confiança de que Deus tem poder sobre a morte.16 Esta confiança
continha as sementes de uma verdadeira esperança na ressurreição.
Da mesma forma, a salvação prometida por Deus aos patriarcas e seus
descendentes continha implicitamente a certeza da ressurreição,
especialmente pelo fato de a promessa estar enraizada em uma aliança
irreversível. E é exatamente isso que está no centro da confrontação
de Jesus com os saduceus (que negavam qualquer possibilidade de
ressurreição), quando ele concluiu: "Não tendes lido no livro de
278
Moisés... como Deus lhe falou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, e, sim, de
vivos. Laborais em grande erro."17Nestes dois exemplos, dos salmistas
e dos patriarcas, Jesus mostrou a mesma verdade declarada por Paulo:
a sua morte e ressurreição haviam ocorrido "segundo as Escrituras".
As aparições do Jesus ressurrecto resgistradas por Paulo,
transmitindo o que lhe fora entregue por testemunhas oculares
originais, diferem em diversos aspectos das narrativas dos quatro
evangelhos. G. E. Ladd examinou essas diferenças de maneira
iluminadora e construtiva,18 e não precisamos repetir o seu
comentário. A referência de Paulo a uma única aparição para mais de
quinhentos irmãos reunidos é obviamente um elemento muito forte
em seu argumento sobre a verdade da ressurreição de Jesus,
especialmente porque a maioria deles ainda vivia, podendo ser
consultados pessoalmente.
Talvez a frase mais significativa desta narrativa dos acontecimentos
do evangelho esteja no versículo 8: E, afinal ...foi visto também por mim.
Com esta terminologia Paulo está dizendo pelo menos duas coisas:
primeiro, seu próprio encontro com Jesus ressurrecto (depois da
ascensão) tem a mesma validade e é de natureza idêntica à dos outros
que ele acabava de registrar;19 segundo, depois que Jesus apareceu a
Paulo, não houve mais outras aparições dessa natureza (afinal). Essa
é uma correção necessária para pessoas de hoje que alegam terem visto
Jesus. Tal experiência pode ter acontecido, mas de forma alguma é
igual à experiência que Paulo teve na estrada de Damasco.
A aparição a Paulo foi tão fora do comum que o apóstolo intitula-
se nascido fora do tempo (ektroma). A palavra refere-se a aborto e não
deve, com certeza, ser tomada muito literalmente. Ao que tudo indica
o termo foi usado como uma forma de exagero. "Talvez tivesse sido
arremessada a Paulo por seus opositores. Ele não era um homem
formoso (2 Co 10:10), e eles podem ter combinado um insulto à sua
aparência pessoal com uma crítica à sua doutrina da livre graça."20
Podemos imaginar tais oponentes declarando que, longe de ter
nascido de novo, Paulo fora abortado.
Constantemente, ele ficava maravilhado com a graça absoluta de
Deus para perdoar, e até chamar de apóstolo, a alguém que tão
maldosamente perseguira a igreja (vs. 9-10). Nesse sentido, para ele,
não era natural que pudesse encontrar a Jesus ressuscitado, da mesma
forma que pessoas como Pedro e João. Provavelmente também há
uma referência ao fator tempo: ele entrou em cena muito tarde para
ser qualificado como um dos apóstolos originais, mas Deus também
venceu esse obstáculo.
Não nos surpreende, à luz dos antecedentes de Paulo, que ele se
considerasse o menor dos apóstolos ... n ão... digno de ser chamado apóstolo
(v. 9). Apenas a graça de Deus poderia vencer tais deméritos; mas, se
a graça dele fora generosamente derramada sobre uma pessoa tão
indigna, Paulo não permitiria que alguém lhe roubasse sua posição
ou vocação. Permitir tal coisa seria tratar levianamente a graça de
Deus. A única resposta adequada à graça é um compromisso total,
envolvendo cada célula do nosso ser (v. 10). Se a graça de Deus não
produz tal sinceridade vigorosa, falta algo importantíssimo em nossa
fé.21 Contudo, em última análise, a identidade do pregador é
irrelevante: a fé vem com a pregação deste evangelho. Não há outro.

1. A centralidade da ressurreição de Jesus (15:12-19)

Ora, se é correnteyregar-se que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como,


pois, afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? 13E, se
não há ressurreição de mortos, então Cristo não ressuscitou. UE, se Cristo não
ressuscitou, é v ã a nossa pregação e v ã a vossafé;15e somos tidos por falsas
testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que ele
ressuscitou a Cristo, ao qual ele não ressuscitou, se é certo que os mortos não
ressuscitam. uPorque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não
ressuscitouJfE, se Cristo m o ressuscitou, é v ã a vossa fé, e ainda permaneceis
nos vossos pecados. Í8E ainda mais: os que dormiram em Cristo, pereceram.
19Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais
infelizes de todos os homens.

Se o evangelho proclamado aos coríntios girava em tomo desses fatos


cruciais, culminando na ressurreição de Jesus, e se por intermédio
deste evangelho suas vidas tinham sido com pletam ente
redirecionadas e transformadas, era inconcebível afirmar que não há
ressurreição de mortos (v. 12). Se não existe nenhum tipo de ressurreição,
então as conseqüências para a fé cristã e o seu discipulado são
devastadoras. É importante levar as pessoas a perceberem a lógica de
sua crença, seja ela ortodoxa, ou herética. Muitos cristãos nunca
aplicaram sua fé aos seus pensamentos corriqueiros ou ao seu
comportamento diário. Da mesma forma, aqueles que se desviam da
verdade bíblica devem enfrentar as implicações daquilo que afirmam
e negam. Isso é o que Paulo faz nos versículos 13-19. Negar a
ressurreição é despir a mensagem cristã de sete pontos essenciais.
a) "Cristo não ressuscitou " (13,16)

Se não existe algo que possa ser chamado de ressurreição, então Jesus
não triunfou sobre a morte. Se os mortos não ressuscitam, então Jesus
continua morto. Presume-se que os hereges de Corinto nunca
pretenderam sugerir que Jesus ainda estivesse morto; Paulo, no
entanto, enfatiza a falta de lógica da posição deles, a fim de revelar seu
perigo. "A verdade que está em Jesus" é coerente; está solidamente
estruturada; sejam quais forem os paradoxos inerentes à veredade, ela
não se contradiz. Negar um ponto desta verdade é desmoronar toda
a estrutura. Naturalmente, a verdade em si não está em perigo, porque
ela perm anece para sempre, eternam ente, inabalável e
incontrovertível. Mas se os homens, como os de Corinto, decidirem
escolher quais aspectos da verdade vão aceitar, acabarão ficando sem
nenhuma verdade, ou seja, com a falsidade. Tal realidade torna-se
muito mais óbvia na questão da ressurreição. Essa atitude revela, de
um modo geral, o perigo de se aproximar da pessoa e da obra de Jesus
com alguma idéia preconcebida sobre o que pode e o que não pode
ser verdade, ou o que pode e o que não pode acontecer: ”os mortos não
ressuscitam", "milagres não acontecem", "não há vida depois da
morte", "não se pode mudar a natureza humana".

b) "É vã a nossa pregação" (14)

Paulo considera-se, acima de tudo, um pregador do evangelho. Ele


está, portanto, declarando que toda a sua vida seria uma completa
perda de tempo, se não houvesse ressurreição. Todas aquelas
perseguições, todos os sofrimentos e tribulações teriam sido inúteis.22
A implicação óbvia seria que, não só a sua própria vida e ministério
teriam sido fundamentados numa fraude e num logro, como também
a de cada apóstolo - e, na verdade, cada crente. A palavra traduzida
por vã (kenos) significa literalmente "vazia”, isto é, sem a ressurreição
de Jesus, nada resta para a proclamação cristã. Como Paulo demonstra
no restante do capítulo, todo o ímpeto da salvação, no presente e na
eternidade, está fundamentado, não simplesmente sobre o princípio
da ressurreição, mas sobre a realidade da ressurreição de Jesus.

c) "E vã a vossa fé" (14)

Pelo fato de a fé daqueles cristãos se fundamentar totalmente na


pregação de Paulo (15:1-2), o colapso da base dessa pregação resultava
281
necessariamente no colapso da fé deles. Retirando a ressurreição de
Jesus, não há onde colocar a fé - somente o cadáver putrefato de um
carpinteiro judeu que havia se transformado em rabino itinerante.
Aqui, como em outras passagens, Paulo destaca que a fé nasce quando
se olha para Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. A fé não é criada,
mantida ou desenvolvida pela observação de nós mesmos ou de
outros, mas somente pala absorção da realidade e das implicações da
ressurreição de Jesus.

d) "Somos tidos por falsas testemunhas de Deus" (15)

A reputação e até mesmo o caráter de Deus seriam destruídos se a


ressurreição não existisse. A vocação e o ministério de Paulo sempre
foram apresentados como algo que Deus havia lhe dado, e não como
algo assumido por ele mesmo. O evangelho que ele proclamava não
era uma invenção sua, mas dada por Deus mediante revelação.23
Especificamente), Paulo alegava (segundo as tradições apostólicas
anteriores a ele) que Deus ... ressuscitou a Cristo. Se ele não fez nada
disso, se Jesus não passava de um guru qualquer, na verdade, um
impostor, seria nada mais que blasfêmia relacionar o nome do Deus
todo-poderoso a tal pessoa. O único motivo convincente para
relacionar a pessoa e a obra de Jesus a Deus é a realidade da
ressurreição. Somente Deus tem poder sobre a morte; se Jesus
ressuscitou dos mortos, foi Deus quem o ressuscitou.

e) "Permaneceis nos vossos pecados” (17)

No versículo 14 Paulo referiu-se à fé vazia, desprovida de conteúdo.


Aqui ele escreve que tal fé é incapaz de garantir algum resultado, ou
seja, é fraca e ineficiente. É claro que, se ela não tem conteúdo, nada
pode realizar. Mas o ponto principal deste versículo reside no fato de
que se Jesus não ressuscitou dos mortos, o problema do pecado
permanece sem solução. Toda a história de Cristo morrendo pelos
nossos pecados segundo as Escrituras perde o significado, se, na
verdade, ele permaneceu morto. O testemunho unânime das
Escrituras é que "o salário do pecado é a morte"24: a morte marca a
conseqüência final da separação de Deus, que o pecado produz
inevitavelmente. Se Jesus permaneceu morto, temos apenas duas
conclusões possíveis: ou ele não foi a pessoa sem pecado que todos
pensaram que fosse e sua morte marcou sua separação filial de Deus;
ou ele poderia não ter nenhum pecado pessoal, mas sua tentativa de
expiar o pecado do mundo com a própria morte não encontrou a
aprovação divina. De qualquer forma, permaneceríamos ainda em
nossos pecados, separados de Deus, tendo de enfrentar o seu juízo,
como todos os demais.

f) "Os que dormiram em Cristo, pereceram " (18)

Outra conseqüência horrível, se não houvesse ressurreição, é que a


morte continuaria sendo não apenas "o último inimigo" (v. 26), mas
um terror invencível. Morrer não seria dormir em Cristo e despertar
para vê-lo sorrindo, dando as boas-vindas na casa do Pai;25 seria a dura
confirmação da perdição de todos os homens, de que estamos todos
destinados a perecer sem esperança e sem Deus. Não foi por
coincidência que Paulo introduziu neste ponto, quase casualmente, se
não inconscientemente, a significativa frase em Cristo. Conforme
veremos, este é o âmago de seu ensino sobre as implicações da
ressurreição de Jesus; mas ele se transformaria em palavras vazias, se
Cristo não passasse de um guru morto.

g) "Somos os mais infelizes de todos os homens" (19)

Se Cristo não ressuscitou dos mortos, qualquer expectativa de vida


após a morte evapora com ele. Ficamos então entregues a um pseudo-
evangelho que pretende pelo menos dar algum significado à vida aqui
na terra. Provavelmente, isso significaria fazer o melhor possível para
seguir o exemplo de Jesus Cristo, pelo fato de o termos escolhido por
mentor dentre inúmeros outros mestres, sábios e líderes. Paulo
considera que essa atitude para com Jesus é lamentável e patética: se
não há ressurreição, muitos dos ensinamentos de Jesus caem por terra
e ele se revela um mentiroso. Mas os cristãos coríntios firmaram a
esperança em Cristo, tomando-o como o Senhor da vida, da morte e
da eternidade. Se ele não ressuscitou dos mortos, ele não é Senhor de
nada. Se tudo o que temos é a vida aqui na terra, não faz sentido
colocar nossas esperanças em promessas sem fundamento de alguém
que fez afirmações vazias sobre a eternidade. Se a fé cristã está
fundamentada em um evangelho vazio e um salvador fraudulento,
"ninguém está mais alienado do que o cristão".26
Nesta altura, seria bom fazer certas perguntas sobre aqueles que
negam a ressurreição dos mortos e, principalmente, rejeitam a
realidade histórica da ressurreição de Jesus. Com que premissas eles
chegaram a essa conclusão? Qual é o conteúdo real da pregação deles?
Será que seus ensinos conduzem as pessoas à fé salvadora? Que tipo
de Deus estão apresentando? Eles crêem na certeza do perdão dos
pecados? Pregam essa certeza? Existe alguma expectativa de vida após
a morte? Podem dizer como Tertuliano: "Nossa gente morre bem"?
Certa senhora idosa, que freqüentava a igreja, concluiu, após ouvir um
desses céticos modernos falar no rádio, que tudo em que havia crido
até então, por intermédio do cristianismo ortodoxo, era indigno de
confiança, se não uma mentira - e cometeu suicídio.

3. As conseqüências da ressurreição de Jesus (15:20-34)

Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos
que dormem. 21Visto que a morte veio por um homem, também por um homem
veio a ressurreição dos mortos. 22Porque assim como em Adão todos morrem,
assim também todos serão vivificados em Cristo. 23Cada um, porém, por sua
própria ordem: Cristo, as primícias; depois os que são de Cristo, na sua vinda.
24E então virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver
destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. 25Porque convém
que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. 260
último inimigo a ser destruído é a morte. 27Porque todas as coisas sujeitou
debaixo dosjseus pés. E quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas,
certamente exclui aquele que tudo lhe subordinou. 2SQuando, porém, todas
as coisas lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho também se sujeitará
àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
29Doutra maneira, que farão os que se batizam por causa dos mortos? Se
absolutamente os mortos não ressuscitam, por que se batizam por causa deles?
30E por que também nós nos expomos a perigos a toda hora? 3lDia após dia
morro! Eu o protesto, irmãos, pela glória que tenho em vós outros, em Cristo
Jesus nosso Senhor. 32Se, como homem, lutei em Éfeso coníferas, que me
aproveita isso? Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que
amanhã morreremos. 33Não vos enganeis: as más conversações corrompem
os bons costumes. 34Tornai-vos à sobriedade, como é justo, e não pequeis;
porque alguns ainda não têm conhecimento de Deus; isto digo para vergonha
vossa. '

a) As conseqüências para o futuro (20-28)

Quase podemos ouvir o suspiro de alívio como também a exclamação


de confiança com que Paulo declara: Mas de fato Cristo ressuscitou dentre
os mortos (v. 20). Este mas coloca-se entre os grandas "mas" da Bíblia.27
Paulo está dizendo que toda uma nova era despontou com a
ressurreição de Jesus Cristo: ele é as primícias de uma colheita i mensa,
que engloba todos os que estão em Cristo (v. 22) e que são de Cristo (v.
23). A palavra que foi traduzida por primícias (aparche) ecoa na
linguagem de Colossenses: "Ele é o princípio (arche), o primogênito de
entre os mortos".28 Se Cristo ressuscitou dentre os mortos, está claro
que todos aqueles que, pela graça de Deus, estão agora em Cristo,
também ressuscitarão dos mortos.
De fato, em outras passagens, Paulo mostra que essa união é tão
completa e real que, em termos espirituais, aqueles que estão em
Cristo já foram ressuscitados.29 Mas esta realidade ainda possui as
limitações inerentes à mortalidade de nossos corpos físicos atuais, que
não podem de maneira alguma "herdar o reino de Deus" (15:50). Esta
também é a perspectiva interina e equilibrada apresentada em
Romanos.30
Paulo está sendo assim completamente coerente quando destaca
tanto a união dos crentes com Cristo em sua morte e ressurreição, como
a ordem definida (v. 23; tagma é um termo militar) em que isto será
realizado. Ele parece estar pensando em três grupos: Cristo, aqueles
que dormiram em Cristo (v. 18,20) e aqueles que ainda estiverem vivos
na sua vinda (v. 23, parousia). As duas últimas categorias formam
aqueles que, estando em Cristo e pertencendo a ele, estão sob sua
responsabilidade e cuidados. Neste ponto Paulo estabelece que a
ressurreição é um evento futuro, mas certo, porque é uma continuação
de um evento passado, a ressurreição do próprio Cristo. Esta é a ênfase
dos versículos 21-22, que destacam a humanidade de Jesus (tão real
como a humanidade de Adão): ele nasceu, viveu, morreu e foi
ressuscitado como homem; Jesus abriu o caminho para que a
humanidade possa ser ressuscitada dos mortos.
A ênfase na humanidade de Jesus, com a necessária referência a
Adão como aquele cujo pecado marcou a entrada histórica da morte
no mundo, apresenta a doutrina paulina da solidariedade da raça
humana no pecado.31 O pecado de Adão fez com que toda a
humanidade se tomasse pecadora, porque introduziu os homens em
uma sociedade que é, como um todo, alienada de Deus. Como
membros da raça humana, que se afastou de sua vocação original
dentro dos propósitos divinos, todos os homens herdaram a morte por
destino. Não há exceções a este padrão: todos pecaram e, em Adão,
todos morrem.
A linguagem de Paulo nos versículos 21-22 sugere à primeira vista
que, da mesma forma, todos os homens serão vivificados com Cristo
e por intermédio de Cristo. Mas até mesmo neste pequeno trecho o
"todos" no final do versículo 22 está limitado pelas duas frases "os que
dormiram em Cristo" (v. 18) e "os que são de Cristo" (v. 23). Há,
portanto, exceções explícitas a este segundo padrão, isto é, aqueles que
não pertencem a Cristo e aqueles que não dormiram em Cristo. Além
disso, em diversas passagens de 1 Coríntios, Paulo refere-se àqueles
que estão "perecendo".32Concluímos, portanto, que o ponto principal
do paralelismo entre Adão e Cristo (como em Romanos 5) é que, como
Adão, Cristo é o progenitor de uma raça, de uma nova humanidade.
A ressurreição marca o começo dessa nova criação: Jesus é "o
primogênito entre muitos irmãos".33 "E assim, se alguém está em
Cristo, é nova criatura."34
Nos versículos 24-28, Paulo utiliza a sugestiva idéia da parousia, isto
é, a segunda vinda de Cristo, para mostrar o rumo da História e do
tempo. Haverá um fim (v. 24, telos) claramente demarcado. Nos
versículos 25-26 ele fala de um tempo em que Cristo está reinando,
mas também trazendo gradualmente mais e mais inimigos para baixo
de seu controle: isso naturalmente se refere ao período entre a
primeira e a segunda vinda. A segunda vinda marca a destruição final
de tudo o que se colocou contra Deus: cada governo, autoridade e
poder (v. 24). Só então a morte perderá a sua eficácia (v. 26). Se a morte
é o último inimigo, podemos entender que as forças espirituais que
agora se levantam contra Cristo e sua igreja ainda encontram campo
de ação para exercerem uma oposição efetiva em questões
relacionadas com a morte: por meio de práticas ocultas, nos momentos
de luto, criando o temor da morte, com doutrinas que questionam a
veracidade e as implicações da ressurreição de Cristo.
Quando Cristo tiver vencido cada inimigo de Deus e do homem,
ele voluntariamente transferirá a soberania (v. 24, basileia: "reino") ao
Deus e Pai. Como Barrett bem comenta, "isto não im plica
necessariamente numa diferença de posição, mas numa diferença de
desempenho e operação".35 O sentido no qual Cristo assim se submete
a Deus é vividamente ilustrado nos versículos 27-28. Paulo cita aqui
o Salmo 8, que descreve a pequenez e a grandeza dos homens: finito
e pequenino em comparação com o cosmos, mas poderoso em sua
capacidade de subjugar e controlar o cosmos, sendo apenas um pouco
"menos do que Deus".36 O Deus Criador colocou tudo sob seus pés, e
Jesus veio a ser o segundo Adão (cf. vs. 22,45), o homem perfeito em
carne humana, para recolocar tudo em submissão ao homem e
finalmente a Deus —recolocar, porque, sob o primeiro Adão, o mundo
entrou em rebelião contra Deus, prejudicando assim também o
controle que devia ser do homem. Quando isto for finalmente
alcançado por Jesus, pelo exercício do poder soberano sobre todos os
inimigos de Deus (inclusive a morte), em virtude de sua ressurreição,
ele se submeterá a Deus Pai em obediente humanidade. Assim Deus,
na eterna perfeição da Trindade, será tudo em todos (v. 28).
Esse alvo final (de Deus ser tudo em todos) incluirá a submissão de
todos os inimigos de Deus a Jesus como Senhor. Àqueles que
rejeitarem a Jesus, de forma firme e deliberada, Deus vai se revelar,
então, irrevogavelmente como Juiz. Então a Deus pertencerá a última
palavra e, nesse sentido, será tudo para os seus inimigos, ou seja, para
aqueles que se recusaram a aceitar o ministério reconciliatório de
Cristo.
Antes de deixar as conseqüências da ressurreição de Jesus para o
futuro e passar adiante, precisamos fazer uma pausa para relembrar
o longo percurso que Paulo percorreu, desde que começou a recordar
aos coríntios os fatos básicos do evangelho. Podemos agora perceber
por que ele os condenou pela doutrina instável sobre a ressurreição
dos mortos, considerando tal atitude tão perigosa. Para a mente
remida, renovada e excepcionalmente inspirada de Paulo, havia uma
linha ininterrupta, ligando a sepultura vazia e a perfeição do céu. Se
removermos o fato da ressurreição; arrancaremos o próprio princípio
de vida do reino de Deus.
Se as maiores conseqüências da ressurreição de Cristo dizem
respeito ao futuro e à eternidade, Paulo não ficou tão entusiasmado
a ponto de desprezar o presente. Por isso ele fala do presente nos
próximos seis versículos.

b) As conseqüências para o presente (29-34)

Três conseqüências muito diferentes aglomeravam-se na mente de


Paulo: a primeira, altamente esotérica e quase não identificável; a
segunda, ligada às duas realidades do seu próprio ministério; a
terceira, relacionada com o comportamento diário dos cristãos de
Corinto.
Parece que, em pelo menos uma ocasião, os coríntios haviam
realizado um batismo por causa dos mortos (v. 29). Barrett descreve isto
como "uma prática sem dúvida tão familiar para eles quanto estranha
para nós".37 Morris afirma que "entre trinta e quarenta explicações têm
sido sugeridas";38 e crê que a explicação mais natural é que alguns
crentes se batizaram em nome de amigos ou parentes que morreram
sem o batismo. Ao citar tal prática, Paulo não estava expressando
aprovação, mas simplesmente usando-a como um argumento contra
a afirmação de que "não há ressurreição de mortos". Se não há
ressurreição, para que serve a prática? Barrett sugere que talvez tenha
havido uma epidemia ou um acidente de larga escala em Corinto,
fazendo com que muitos cristãos morressem sem o batismo. O
batism o era uma proclamação visual poderosa da m orte e
/ ressurreição: "em tal situação não é de todo impossível conceber um
ritual desses, praticado talvez uma única vez".39
Das muitas interpretações possíveis dessa prática, G. W. Bromiley
apresentou as duas seguintes como "talvez as mais proveitosas":
primeira, freqüentemente as pessoas eram batizadas porque viam os
cristãos "morrer bem" ou viver como cristãos, de modo coerente, antes
de morrerem. Segunda, o batismo era feito tendo em vista os mortos,
isto é, a ressurreição deles. Os dois casos não fazem sentido, se não há
ressurreição.40
Muito mais adequado e inteligível é a indignação de Paulo acerca
do valor dos seus próprios sofrimentos. Dia após dia morro (v. 31), é a
sua experiência. Virtualmente, a cada hora do dia, ele enfrentava
perigos de todos os tipos: "em perigos de rios... salteadores...
patrícios... gentios... na cidade... no deserto... no mar... falsos irmãos;
em trabalhos e fatigas, em vigílias muitas vezes; em fome e sede, em
jejuns muitas vezes; em frio e nudez".41 Ele continuava nessa vida tão
perigosa, porque estava convencido de que alguma coisa
infinitamente melhor o aguardava na vida ressurrecta 110 céu. Ele
estava preparado para perseverar nesse ministério, porque, enquanto
levava em seu corpo a morte de Jesus, a vida estava sendo concedida
aos coríntios42 - e isso o fazia muito orgulhoso deles (v. 31). Ele já fora
socorrido, pelo poder da ressurreição de Jesus, nas experiências mais
assustadoras,43 até mesmo diante do horror de lutar em Éfeso com feras
(v.32). ^
A descrição que Lucas faz de Paulo em Éfeso44 deixa muito claro
que o apóstolo está se referindo a um confronto direto com forças
ocultas e a iminência de ser linchado pela multidão influenciada pela
devoção frenética à deusa local, Diana. O teatro de Éfeso é
especificamente mencionado, com a cena das lutas de vida-e-morte
com feras: a memória de Paulo provavelmente revivia esses
acontecimentos, enquanto ditava esta carta ao seu amanuense em
Éfeso. Se não há ressurreição, para que sujeitar-se a um tal estilo de
288
vida? pergunta o apóstolo. Só um masoquista escolheria viver desse
modo: Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhã
morreremos (v. 32). Assim Paulo arremata a sua argumentação citando
um aforismo45 que estava em voga na sociedade grega.
A conseqüência final da ressurreição mencionada por Paulo é muito
pragmática: se os coríntios estavam perdendo a fé na ressurreição,
estavam abrindo caminho para um comportamento moral displicente.
Eles acabariam seguindo os padrões dos que os cercavam, porque "as
más conversações corrompem os bons costumes" (v. 33), palavras de
Menander, um poeta grego. Na afirmação de Paulo de que alguns (de
vós) ainda não têm conhecimento de Deus (v. 34), podemos detectar outro
ataque velado ao falso conhecimento dos coríntios.46 Certos cristãos,
que diziam ter um conhecimento especial de Deus, estavam perdendo
o controle de si, caindo novamente no paganismo. Eles precisavam da
ordem incisiva de Paulo: "Parem de pecar!" Paulo via essa volta ao
pecado como resultado da falta de um pensamento sóbrio (Tomai-vos
à sobriedade ... e não pequeis). Um pensamento errado acerca da
ressurreição, ou qualquer outro artigo fundamental da fé, leva
inevitavelmente a um comportamento errado. Paulo não vacilou em
assustar os cristãos, para que sentissem vergonha pelo seu
comportamento (v. 34); eles haviam permitido que fossem desviados,
assimilando um erro.

4. A natureza do corpo da ressurreição (15:35-50)

Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? e em que corpo vêm?


36Insensatos! o que semeais não nasce, se primeiro não m orrer;37e quando
semeais, não semeais o corpo que há de ser, mas o simples grão, como de trigo,
ou de qualquer outra semente. 38Mas Deus lhe dá corpo como lhe aprouve dar,
e a cada uma das sementes o seu corpo apropriado. 39Nem toda carne é a
mesma; porém uma é a carne dos homens, outra a dos animais, outra a das
aves e outra a dos peixes. 40Também há corpos celestiais e corpos terrestres;
e, sem dúvida, uma ê a glória dos celestiais e outra a dos terrestres. 4:Uma é
a glória do sol, outra a glória da lua, e outra a das estrelas; porque até entre
estrela e estrela há diferenças de esplendor. 42Pois assim também é a
ressurreição dos mortos. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. 43Semeia-
se em fraqueza, ressuscita em poder. 44Semeia-se corpo natural, ressuscita
corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. 45Pois assim
está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão,
porém, é espírito vivificante. 46Mas não é primeiro o espiritual, e, sim, o
natural; depois o espiritual. 47O primeiro homem, formado da terra, é terreno;
o segundo homem é do céu. 4SComofoi o primeiro homem, o terreno, tais são
também os demais homens terrenos; e como é o homem celestial, tais também
os celestiais. 49E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos
trazerfambém a imagem do celestial. S0Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue
não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção.

O futuro glorioso ao qual Paulo esteve se referindo no começo do


capítulo ultrapassa virtualmente todo o entendimento humano,
quanto mais qualquer descrição. Diante de tão grandiosa esperança,
os homens mortais só podem lançar perguntas muito básicas: "Como
ressuscitam os mortos? e em que corpo vêm?" (v. 35). Paulo responde a esta
pergunta muito compreensível nos versículos seguintes; e por eles
perpassa um único princípio fundamental: carne e sangue não podem
herdar o reino de Deus (v. 50). Os nossos corpos físicos simplesmente não
conseguem conviver com a glória de Deus. Se vamos ressuscitar em
Cristo, também precisamos ser transformados à sua semelhança. Só
pessoas semelhantes a Cristo estarão aptas para essa qualidade de
vida. Mas, por mais que essa transformação seja inevitavelmente
radical e total, devido à vulnerabilidade de nossos corpos atuais, há,
não obstante, uma clara continuidade entre os cristãos de agora e os
cristãos de depois: "nós ressuscitaremos", não seremos destruídos e
reencarnados em uma existência totalmente diferente. Essa
continuidade garante o cumprimento de desejos naturais, tais como
sermos capazes de reconhecer aqueles com quem convivemos aqui
nesta vida e nos alegrar com eles, quando partilharmos a vida do
mundo futuro.
Paulo ilustra essa continuidade-e-transformação com exemplos da
natureza (vs. 36-41). Jesus usou um quadro semelhante para descrever
a necessidade absoluta de sua própria morte, para que pudesse haver
a ressurreição e esta pudesse tornar-se realidade: "Em verdade, em
verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica
ele só; mas se morrer, produz muito fruto."47 Assim, o Criador
escreveu na natureza o princípio da ressurreição: sem morte e
sepultamento não há nova vida. Agora, toda a criação está presa a um
ciclo que parece não ter fim: nascimento-vida-envelhecimento-morte-
nascimento, etc. (Paulo chama de "corrupção”48). A ressurreição de
Lázaro49 é uma ilustração dessa vida: ele foi ressuscitado dos mortos,
apenas para morrer de novo. Por intermédio de sua ressurreição para
uma vida indestrutível,50 Jesus quebrou a corrente da corrupção e
trouxe à luz a vida e a imortalidade através do evangelho.51 Ele
morreu, ressuscitou dos mortos e nunca mais morrerá. "Muito fruto"
resultará de sua morte e ressurreição: ele é "as primícias" dessa colheita
abundante. Desse modo, deve haver morte antes da vida, até mesmo
na natureza. O que for semeado no solo, entretanto, vai reaparecer em
uma forma totalmente diferente. Citando exemplos de diferentes
aspectos da ordem criada (vs. 39-41), Paulo mostra que o Deus Criador
está acostumado a produzir muitos tipos de corpos. Ele assim garante
que cada criatura seja especialmente adaptada ao seu próprio meio
ambiente: uma estrela não funciona na água, nem uma baleia no céu.
Cada um é perfeitamente moldado para o seu próprio lugar. Da
mesma forma, os nossos corpos físicos, ideais para esta existência
terrena, apesar de sua mortalidade, serão inúteis na perfeição do reino
de Deus. Precisam, portanto, ser sepultados quando completam seu
trabalho, para que, dessa matéria tosca, Deus possa produzir um corpo
espiritual (v. 44), perfeitamente adequado para herdar o reino de Deus.
O contraste entre o corpo físico e o corpo espiritual é destacado nos
versículos 42-49, particularmente na sucessão de frases dos versículos
42-43. Todo o contraste é indicado pelo uso de epítetos opostos. Paulo
não quer dizer que não há honra ou poder em nossos corpos físicos,
mas que a honra e o poder inerente a estes corpos seriam incapazes
de enfrentar a vida no reino de Deus em toda a sua plenitude. O
motivo fundamental disso é o fato de os nossos corpos estarem
escravizados à corrupção (v. 42).52 Não existe um meio de deter essa
corrupção; ela só pode ser sepultada. A escolha das palavras glória
(doxa) e poder (dynamis) no versículo 43 para descrever a vida no reino
de Deus evoca a confissão no final da oração do Pai-Nosso: "Teu é o
reino, o poder e a glória, para sempre." Essas duas palavras resumem
toda a visão que Paulo tinha da consumação do reino de Deus.53
Paulo, então, volta para o contraste entre Jesus e Adão (vs. 45-59).
Novamente a perspectiva é de duas humanidades, cada uma sob um
cabeça. Todos os seres humanos partilham das características de Adão.
"Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou
nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente."54
Adão - e cada criatura humana - é formado da terra, é terreno (v. 47).
Todos nós trouxemos a imagem do que é terreno (v. 49). É importante
reconhecer que tudo isso aconteceu por causa do comando e do
propósito expresso de Deus, como esclarece a narrativa de Gênesis.
Jesus, o último Adão, participou também da carne e do sangue, sendo
finalmente condenado à morte e sepultado.
Tudo o que aconteceu desse ponto em diante revela a ressurreição.
A partir desse ponto sem retorno ele se tomou um espírito vivificante
(v. 45); ressuscitado dos mortos, ele revelou sua verdadeira origem
coiW homem ...do céu (v. 47) - verdadeiramente homem e totalmente
hojnem, não condenado a ficar no pó, mas destinado a reassumir o seu
lugar à direita de Deus Pai. Todos aqueles que lhe pertencem terão a
sua imagem (v. 49), no sentido de serem feitos iguais a ele e no sentido
de partilharem do seu corpo ressurrecto. Na verdade, é provável que
a descrição que Paulo faz de Jesus nestes versículos nos forneça a única
categoria inteligível para apreciarmos a natureza de seus
aparecimentos depois da ressurreição, antes da ascensão. Ele foi
reconhecido como o Crucificado, isto é, havia uma continuidade com
sua existência passada; mas ele foi libertado para uma qualidade de
vida imune à mortalidade e às limitações do tempo e do espaço, ou
seja, nesse sentido houve descontinuidade. O Jesus ressurrecto, cheio
do Espírito de Deus, pôde assim conceder vida, em uma nova
dimensão, a todos os que confiaram nele. O que aconteceu a Jesus
depois de sua morte e ressurreição acontecerá também a todos aqueles
que estiverem em Jesus, quando todos forem ressuscitados no último
dia (cf. vs. 51-53).
Em toda esta seção, somos particularmente prejudicados pela
dificuldade de traduzir as palavras-chave gregas e pelo conceito
popular de homem, que divide a sua natureza em partes (por
exemplo: corpo, mente e espírito). A palavra grega psyche, geralmente
traduzida por "alma", é usada por Paulo para descrever a nossa
existência física natural como seres humanos.55 Paulo contrasta aqui
o corpo que expressa essa vida humana natural (v. 44, soma psychikori)
com o corpo que finalmente expressará a vida sobrenatural do Espírito
de Deus na plenitude do seu reino (soma pneumatikon). Já agora o
Espírito de Deus habita em nossos corpos mortais;56 entretanto quanto
mais o Espírito nos torna semelhantes a Jesus, mais estes corpos
mortais padecem sob o peso de antever a sua própria morte e a
liberdade futura em corpos totalmente novos, planejados para a glória
e o poder. Infelizmente, os termos usados em nossa tradução
produzem mais confusão do que clareza. Talvez a única sugestão mais
útil seja observar o contraste que Paulo faz entre os corpos que temos
agora, para nossa existência humana natural, e os corpos que vamos
receber quando entrarmos em plena posse de nossa herança no céu.
O primeiro corpo possui todas as limitações de nossa vida terrena; o
segundo, porém, tem toda a capacidade do Espírito de Deus. A partir
dessa perspectiva, toma-se óbvio que o primeiro corpo (carne e sangue)
não pode herdar o reino de Deus, porque se corrompe, e a corrupção
292
não pode participar do que é eternamente incorruptível (v. 50).
Em resumo, precisamos reconhecer que, em toda esta discussão,
Paulo se esforça para descrever o indescritível. Como Ladd diz:
"Quem pode imaginar um corpo sem fraquezas? ou sem infecções? ou
sem cansaço? ou sem enfermidades? ou sem a morte? Esse corpo é
totalmente desconhecido na experiência terrena e histórica... é um tipo
de existência em que as leis da natureza... nada significam. Na
verdade, quando alguém começa a pensar nisso, reconhece tratar-se
de algo totalmente inimaginável."57

5. O momento da ressurreição do corpo (15:51-57)

Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados
seremos todos, 52num momento, num abrir e fechar dolhos, ao ressoar da
última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis,
e nós seremos transformados. S3Porque é necessário que este corpo corruptível
se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da
imortalidade. 54E quando este corpo corruptível se revestir de
incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, então se
cumprirá a palavra que está escrita:
Tragada fo i a morte pela vitória.
55Onde está, ó morte, a tua vitória?
Onde está, ó morte, o teu aguilhão?
560 aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei.57Graças a Deus
que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo.

Neste ponto Paulo explica que está revelando um mistério (v. 51).
Anteriormente58 ele já usou essa palavra para descrever o segredo do
evangelho, revelado pelo Espírito aos apóstolos e aos profetas. Aqui
ele mostra de maneira incisiva que está falando de algo revelado a ele
de modo especial. Será que o conteúdo desse mistério faz parte do que
ele mencionou indiretamente em 2 Coríntios 12:1-4? Por mais que os
seus lábios escondessem o conteúdo total dessa revelação, o apóstolo
sentia-se agora constrangido a divulgar um pouco do que irá acontecer
no último dia.59
Ele usa novamente a figura do sono para descrever a condição
daqueles que morrem como cristãos (v. 51). A palavra sono parece ser
a descrição mais natural de um estado de inconsciência: ou seja,
quando os cristãos morrem, eles adormecem em Cristo e a sua
próxima experiência consciente se dará ao serem acordados para ver
Jesus "na ressurreição geral, no último dia". O momento da morte
marca a transição da pessoa do presente para a eternidade. "O último
dia" marca a consumação final das "coisas temporais" e a revelação
total das "coisas eternas". Paulo, então, imagina aqueles que morreram
antes da Parousia sendo despertados pela última trombeta e unidos aos
cristãos ainda vivos nessa ocasião, toda a igreja reunida, sendo
transformada num momento, num abrir e fechar dolhos (v. 52), quando
cada cristão receberá o seu corpo da ressurreição, imperecível e
imortal (v. 53). De acordo com as evidências desta passagem, não é
possível afirmar se Paulo esperava, ou não, estar vivo na volta de
Cristo. Quer mortos ou vivos na vinda de Cristo, transformados seremos
todos (vs. 51-52).
As três frases expressivas do versículo 52, usadas para descrever
este clímax histórico, possuem, cada uma, uma nuance particular: num
momento significa o menor lapso de tempo (no grego, atomos, de onde
vem a palavra "átomo"); num abrir e fechar dolhos refere-se ao tempo que
levamos para piscar; ao ressoar da última trombeta remete para certas
ocasiões no Antigo Testamento, nos ensinamentos de Jesus e no
judaísmo daquela época, em que o som da trombeta indicava
celebração e triunfo. Essa será a vitória plena e final sobre a morte, o
"último inimigo", que estará, então, consumada. Então, e só então, as
profecias de Isaías e Oséias serão totalmente cumpridas: "Tragará a
morte para sempre, e assim enxugará o Senhor teu Deus as lágrimas
de todos os rostos."60 "Onde estão ó morte, as tuas pragas? Onde está,
ó inferno, a tua destruição?"61
Apesar da confiante expectativa de Paulo em relação à vitória e
vindicação final de Cristo, não há nenhum triunfalismo superficial em
sua atitude para com a morte. Ele não somente se recusa a considerar
esse inimigo como realmente vencido antes da volta de Cristo, mas
também reconhece a dureza de seu aguilhão ("a palavra refere-se
principalmente ao ferrão das abelhas, à picada das serpentes, e a coisas
semelhantes").62 A morte não é um simples fenômeno natural e
desagradável, mas um castigo de Deus; sendo, portanto, um mal que
existe apenas por causa da rebelião do homem contra Deus. Nesse
sentido, ela é completamente alheia, e podemos perceber a
importância crucial de fundamentar o significado da morte de Cristo
na necessidade de resolver o problema do pecado de modo
adequado.63
Paulo acrescenta ainda a declaração: a força do pecado é a lei (v. 56).
O melhor comentário sobre esta frase está na exegese que o próprio
Paulo faz da lei em Romanos 7, onde ele explica que, apesar de ser
294
"santa, justa e boa", ela condena todos os homens por causa de suas
exigências estritas. Ela até coloca a realidade e a seriedade do pecado
em grande destaque, ao defini-lo com exatidão como transgressão dos
mandamentos de Deus. De fato, a propensão interna do homem para
a rebelião e a desobediência leva-o a desejar o oposto do que a lei de
Deus requer: basta vermos o sinal "proibido", para termos o desejo de
desobedecer. É dessa forma que o pecado exerce o seu inexorável
controle sobre nós, e a lei serve apenas para revelar a seriedade e a
força desse controle.
A morte... o pecado... a lei: tudo foi despedaçado com a morte e
ressurreição de Jesus. Mesmo agora podemos experimentar a vitória
sobre esse trio, mas os frutos plenos da vitória de Deus mediante nosso
Senhor Jesus Cristo só serão colhidos no último dia. Como tudo o mais
que Deus fez por nós em Cristo, essa vitória é um dom da sua graça:
graças a Deus que nos dá a vitória, agora e sempre.

6. Conclusão (15:58)

Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes


na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão.

Por causa desta gloriosa esperança apresentada ao cristão, Paulo


insiste com os coríntios (usando uma forma de tratam ento
particularmente carinhosa: meus amados irmãos) para que sejam firmes
e constantes na caminhada com o Senhor. Quase não temos dúvida de
que "a esperança da glória”64 é o maior incentivo para sermos
abundantes na obra do Senhor, sobretudo quando a vida é difícil ou
simplesmente monótona. Um dos resultados inevitáveis e comuns de
um falso triunfalismo - em oposição à vitória autêntica em Cristo em
todas as circunstâncias - é a desilusão posterior, e até mesmo o
afastamento da comunidade cristã.
No ambiente atual da sociedade moderna há muitos cristãos
desviados que, tendo sido levados a crer que deveriam esperar uma
vitória completa em Cristo agora, e não mais tarde, desenvolveram
um cinismo em relação a qualquer experiência autêntica do Cristo
ressurrecto. Precisamos de um realismo sóbrio (como o próprio Jesus
apresenta na parábola do semeador),65 imbuído de uma esperança
fervorosa na ressurreição. Tal combinação há de enfrentar a obra do
Senhor com uma dedicação perseverante, reconhecendo que isso
significa trabalhar de verdade (kopos): a palavra se refere à "fadiga
ligado ao trabalho duro".66 Os cristãos modernos precisam desse tipo
de firmeza e Paulo lança um incentivo com uma declaração
característica: no Senhor, o vosso trabalho não é vão.
A cláusula final é, de fato, um resumo de todo o capítulo e contém
duas expressões específicas que relembram argumentos chaves a
favor da ressurreição: em vão e no Senhor. Se a ressurreição está
totalmente excluída, a pregação cristã e até mesmo a fé em Cristo são
vãs, isto é, vazias (vs. 15:14). Mas se a ressurreição é real e certa, toda
a vida e obra cristãs estão repletas de propósito e esperança. A
segunda expressão, no Senhor, recapitula o tema central deste capítulo:
aqueles que estão em Cristo ressuscitarão da mesma forma que o
próprio Cristo e com o mesmo corpo com que ele foi levantado dos
mortos. Na verdade, o texto grego termina com a expressão no Senhor,
enfatizando ainda mais o significado de estar em Cristo.

Notas:
1.Cf. A t 17:18.
2.A t 26:8.
3. A t 23:26; 24:21.
4. Cf. A t 23:8; tam bém M t 27:62-66.
5. A t 17:30-31.
6. 2 T m 2:18.
7. 1 Co ll:2 3 s s .
8. Cf. G 11:18-19.
9. Cf. G1 l : l l s s . ; E f3 :ls s .
10. M orris, pág. 164.
11. Por exem plo, F. F. Bruce, pág. 139.
12. Barrett, págs. 339-340.
13. Por exem plo, Rm 4:25; G 11:1-4.
14. Lc 24:26-27.
15. Especialm ente Is 52:14-53:12.
16. Por exem plo, SI 16; 49; 73; 88,
17. M c 12:18-27.
18. G. E. Ladd, I Belieue in lhe Resurrection o f Jesus (Hodder, 1975), págs. 105-106.
19. Cf. 1 Co 9:1: "não vi a Jesus, nosso Senhor?" N .B.: Ter sido um a testem unha
ocular da ressurreição era um requisito necessário para ser apóstolo (cf. A t
1 : 22 ).
20. M orris, pág. 166.
21. Cf. R m 12 :lss.; Cl 1:27-29.
22. Cf. 1 Co 4:11-13; 2 Co 6:4-10.
23. Cf. G 11:11-13; tam bém Rm 1:16-17; 1 Co 1:18; 2:1,5; 4:1; 9:1-2.
24. R m 6:23.
25. Cf. Jo 14:lss.
26. M orris, pág. 170.
27. Por exem plo, R m 3:21; 1 Co 6:11; Ef 2:4.
28. Cl 1:18.
29. Cf. E f 2:4-7; Cl 2:12-13; 3:1-4.
30. Rm 6:3,5,11-13; 8:10-11.
31. Cf. Rm 5:12-21.
32. Cf. 1 Co 1:18; 3:17; 5:13; 6:9ss.; 9:27; 15:18.
33. Rm 8:29.
34. Cf. 2 Co 5:17.
35. Barrett, pág. 357.
36. SI 8:5.
37. Barrett, pág. 362.
38. M orris, pág. 176.
39. Barrett, pág. 364.
40. Veja International Standard Bible Encyclopaedia, Vol. I (Eerdm ans, 1979), pág.
426.
41. 2 Co 11:26-27.
42. Cf. 2 Co 4:8-12.
43. Cf. Fp 3:10.
44. A t 19.
45. T am bém m encionado em Is 22:13.
46. Cf. 1 Co 8:1.
47. Jo 12:24.
48. Rm 8:21.
49. Jo 11.
50. Cf. H b 7:16.
51. 2 Tm 1:10.
52. A palavra traduzida por corrupção faz eco à linguagem de Paulo em Rm 8:21
e significa literalm ente "em decadência".
53. Cf. 2 Co 3:18 - 4:18; Fp 3:20-21.
54. G n 2 :7 .
55. Cf. 1 Co 2:14, onde o psychikos está em contraste com o pneum atikos, ou seja,
o hom em que tem o Espírito de D eus, que nasceu de novo pelo Espírito.
56. Cf. 1 Co 6:19.
57. G. E. Ladd, I Believe in the Resurrection o f Jesus, págs. 115,117.
58. 1 Co 4:1; cf. Cl 1:26-27.
59. O que Paulo descreve nesta passagem precisa ser lido junto com 1 T s 4:13ss.,
onde se apresenta um panoram a sem elhante.
60. Is 25:8.
61. O s 13:14.
62. M orris, pág. 188.
63. Cf. 1 Co 15:3.
64. Cf. Cl 1:27.
65. M c4:13ss.
66. M orris, pág. 189.
1 Coríntios 16:1-24
16. Uma Igreja Internacional

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da
Galácia. 2No primeiro dia da semana cada um de vós ponha de parte, em casa,
conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas
quando eu for. 3E, quando tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem
a vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes. 4Se convier que eu
também vá, eles irão comigo.
sIrei ter convosco por ocasião da minha passagem pela Macedônia, porque
devo percorrer a Macedônia. 6E bem pode ser que convosco me demore, ou
mesmo passe o inverno, para que me encaminheis nas viagens que eu tenha
de fazer. 7Porque não quero agora ver-vos apenas de passagem, pois espero
permanecer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir. 8Ficarei, porém,
em Éfeso até ao Pentecoste; 9porque uma porta grande e oportuna para o
trabalho se me abriu; e há muitos adversários.
WE, se Timóteo for, vede que esteja sem receio entre v6s, porque trabalha na
obra do Senhor, como também eu; ninguém, pois, o despreze. Mas encaminhai-
o em paz, para que venha ter comigo, visto que o espero com os irmãos.
12Acerca do irmão Apoio, muito lhe tenho recomendado que fosse ter convosco
em companhia dos irmãos, mas de modo algum era a vontade dele ir agora;
irá, porém, quando se lhe deparar boa oportunidade.
:3Sede vigilantes, permanecei firmes na fé, portai-vos varonilmente, fortalecei-
vos. uTodos os vossos atos sejam feitos com amor.
ÍSE agora, irmãos, eu vos peço o seguinte (sabeis que a casa de Estéfanas é as
primícias da Acaia, e que se consagraram ao serviço dos santos): 16Que
também vos sujeitais a esses tais, como também a todo aquele que é cooperador
e obreiro. 17Alegro-me com a vinda de Estéfanas, e de Vortunato e de Acaico;
porque estes supriram o que da vossa parte faltava. wPorque trouxeram
refrigério ao meu espírito e ao vosso. Reconhecei, pois, a homens como estes.
19As igrejas da Ásia vos saúdam. No Senhor minto vos saúdam Áqiiila e
Priscila e, bem assim, a igreja que está na casa deles. 20Todos os irmãos vos
saúdam. Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo.
21A saudação, escrevo-a eu, Paido, de próprio punho. 22Se alguém não ama ao
Senhor, seja anátema. M aranata!23A graça do Senhor Jesus seja convosco.
240 meu amor seja com todos vós em Cristo Jesus.

Depois da grandiosidade do capítulo 15, todo o restante da carta está


fadado a não passar de um anticlímax. O conteúdo deste capítulo é
essencialmente prático e, portanto, prosaico. Um exame mais
detalhado proporciona visões fascinantes da vida da igreja
neotestamentária. Essas visões podem ser mais bem resumidas num
estudo mais panorâmico do capítulo como um todo, e não em uma
exposição seqüencial do texto. Descobrimos, então:

1. Uma igreja que é internacional, mas também interdependente

Embora Paulo tenha muitos comentários pessoais a fazer, o contexto


é notavelmente internacional. São mencionadas pelo menos cinco
províncias romanas: Galácia (v. 1), Judéia (v. 3), Macedônia (v. 5),
Acaia (v. 15) e Ásia (v. 19). Essas áreas do Império Romano refletem
culturas e condições muito diferentes: européia e oriental, judaica e
árabe, grega e romana, urbana e rural. Vemos uma igreja que penetrou
em todas essas situações, em decorrência do poder do evangelho
cristão. É fascinante notar como esta igreja internacional era versátil,
dentro do mundo mediterrâneo do primeiro século. Essa versatilidade
foi imensamente ampliada pela eficiência do Império Romano. As
estradas romanas atravessavam todas as províncias. As legiões
romanas garantiam viagens razoavelmente seguras; na verdade, a pax
romana (paz de Roma) tomou-se um provérbio. Os romanos também
tinham um sistema postal muito eficiente, e diversas estalagens
pontilhavam as principais estradas. Por toda a região, o grego era a
lingua franca. A visão e a dedicação dos homens e das mulheres, das
famílias, dos negociantes e dos missionários ali instalados produziram
uma igreja internacional que soube aproveitar ao máximo a situação.
A interdependência dessa ampla igreja foi expressa de diversas
maneiras. Neste capítulo vemos uma generosa partilha de dinheiro e
ministério. O início do trecho revela a peocupação sincera de Paulo
com a igreja em Jerusalém (vs. 1-4). Ele estava sentindo o peso das
necessidades da igreja-mãe, que vinha enfrentando circunstâncias
muito difíceis por um longo tempo, em virtude de uma fome severa
(que fora predita por Ágabo, em uma palavra de profecia),1 um
desastre natural que teria afetado com mais rigor os arredores de
Jerusalém, na Judéia, por não ser uma região muito rica. Em todas as
igrejas sob sua responsabilidade, Paulo destacou a oportunidade, o
privilégio e a responsabilidade de atender às necessidades dos santos
(v. 1) de Jerusalém.2Não havia um meio melhor ou mais tangível de
cimentar o relacionamento entre cristãos judeus e gentios.
A fim de regularizar e organizar essa coleta (v. 1), Paulo insistiu que
os coríntios se habituassem a separar uma quantia regular todas as
semanas. A referência ao primeiro dia da semana (v. 2) indica que ele
co n s'1 ra ie r "aziap ‘ i... .i. •_ j.
Corinto. A quantia deveria ser determinada de acordo com o que cada
cristão recebesse das mãos de Deus. Mas o fato de Paulo instruir cada
um a participar indica que uma pobreza relativa não poderia impedir
uma contribuição planejada e sistemática. Na verdade, Paulo parece
ver essa contribuição como uma combinação do sistemático com o
espontâneo: a espontaneidade controlando a quantia doada e o
sistema garantindo a regularidade. Paulo deixou claro (v. 3-4) que
tudo o que fosse assim recolhido deveria ser escrupulosamente
enviado —um modelo que precisa ser sempre imitado.
Compartilhar a nossa prosperidade material é apenas uma das
maneiras pelas quais podemos demonstrar nossa interdependência
no corpo de Cristo. Este capítulo também revela o modo generoso de
a igreja primitiva repartir seus recursos humanos. O próprio
ministério itinerante de Paulo evidencia tal generosidade (vs. 5-7), mas
lemos sobre uma visita iminente de Timóteo, saindo de Efeso para
Corinto (vs. 10-11). Essa visita obviamente implicaria uma despesa
considerável para Timóteo; ele era um ministro sensível, nervoso e
tímido, que precisava de constante apoio moral. Uma vez que Paulo
acreditava que Timóteo tinha um importante ministério para levar à
igreja de Corihto, ele incentiva os coríntios a lhe proporcionarem um
ambiente agradável, para que, concluído o trabalho, pudesse seguir
o seu caminho com alegria.
Paulo também refere-se a Apoio (v. 12), que já proporcionara grande
fortalecimento no início da igreja de Corinto.3 Ele queria que Apoio
fizesse outra visita a Corinto, em companhia dos irmãos (os mesmos
companheiros de viagem mencionados em conexão com a visita de
Timóteo; cf. versículo 11). Apoio não estava pronto a ir a Corinto
naquele exato momento, iria porém, quando se lhe deparasse boa
oportunidade.
Observamos também que as viagens não eram feitas num único
sentido: Paulo tinha recebido muito refrigério em Efeso, com a visita
de Estéfanas, Fortumto e Acaico (vs. 17-18), vindos de Corinto, mesmo
que outras notícias de Corinto lhe proporcionassem grande tristeza.
Uma outra referência destaca a importância dessa interdependência
nas igrejas do Mediterrâneo: Áqiiila e Priscila (v. 19). Este casal fora de
imensa ajuda no crescimento da igreja, em pelo menos três centros:
Roma, Éfeso e Corinto. As evidências neotestamentárias indicam que
eles tinham um negócio familiar4 que exigia muitas viagens. Onde
quer que se estabelecessem, transformavam-se no ponto de encontro
da igreja que passava a se reunir na casa deles.
Esse intercâm bio de m inistérios entre igrejas de culturas
completamente diferentes é igualmente construtivo nos dias de hoje.
A igreja do Ocidente, em especial, que por quase dois séculos se
limitou a enviar obreiros, está agora precisando urgentemente
aprender a ser ministrada pelas igrejas do Terceiro Mundo. Ainda
existe uma atitude protecionista entre muitos cristãos ocidentais para
com os irmãos da África, Ásia e América Latina. Até que se
arrependam disso e renunciem a tal erro, as riquezas espirituais desses
continentes permanecerão distantes.

2. Uma igreja que tem oportunidades, mas também enfrenta


oposição

Uma porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu; e há muitos


adversários (v. 9). Paulo descreve aqui a sua situação durante os dois
anos e meio em Éfeso, registrada em Atos 19. Ele passou mais tempo
lá do que em qualquer outro lugar. Um dos motivos principais para
a sua longa estada foi a grande abertura para o evangelho. Ele
"dialogava" diariamente em uma sala de reuniões, a escola de Tirano,
durante o período da sesta (das 11 às 16 h). Como resultado desse
ministério públlico, toda a província da Ásia ouviu a palavra do
Senhor5 - realmente, uma grande porta. Parece que Epafras, um
morador de Colossos, no interior da Ásia, converteu-se a Cristo
durante o seu horário de almoço estando na cidade a negócios.
Voltando para casa, fundou igrejas, não apenas em sua cidade, mas
nas cidades vizinhas de Laodicéia e Hierápolis.
Não lios surpreende que Lucas tenha escrito que "a palavra do
Senhor crescia e prevalecia poderosamente" em Éfeso.6 Paulo falou
com eloqüência do ministério completo, sacrificial e custoso que ele
exerceu em Éfeso: essa narrativa encontra-se em seu discurso de
despedida aos anciãos da igreja de Éfeso, em Mileto.7
Se Paulo teve grandes oportunidades em Éfeso, também enfrentou
oposição dura e planejada. Ele também dá testemunho disso no
mesmo discurso: "Vós bem sabeis como foi que me conduzi entre vós
em todo o tempo desde o primeiro dia em que entrei na Ásia, servindo
ao Senhor com toda a humildade, lágrimas e provações que, pelas
ciladas dos judeus, me sobrevieram."8A narrativa de Lucas em Atos
19 concorda com as palavras do próprio Paulo,9 que dizia ter lutado
com feras em Éfeso. Essa oposição maldosa concentrou-se em três
experiências específicas. Primeira, o confronto de Paulo com os
poderes do mal em muitos efésios levou-o a algumas experiências
muito dramáticas, que culminaram em uma fogueira pública, onde
foram queimados os livros de artes mágicas, tão abundantes em Éfeso.
Qualquer pessoa que no ministério cristão tenha enfrentado, face a
face, as forças ocultas pode dar testemunho do imenso preço
envolvido: oportunidades, realmente, mas também imensa oposição.
O segundo foco de oposição que Paulo e o evangelho enfrentaram
foi a associação de ourives, liderada por Demétrio. A pregação do
evangelho foi tão poderosa que o seu negócio lucrativo de fazer
estátuas de prata para adoração de Diana diminuiu drasticamente. Os
efésios estavam simplesmente abandonando a idolatria para servir ao
Deus vivo, e não desejavam mais ter estátuas de prata da deusa local
em casa. Demétrio e os seus colegas ficaram furiosos com Paulo e
levantaram um protesto público contra os evangelistas, arrastando
Paulo e os seus companheiros até o anfiteatro, onde quase foram
«-^linchados. Sempre que o evangelho é pregado fielmente, ele entra em
choque com os interesses econômicos e deixa muitas pessoas ricas e
influentes nervosas. A verdadeira igreja sempre sofreu oposição, não
dos pobres, mas dos ricos.10
A terceira fonte de oposição em Éfeso era a hierarquia judaica, que
represantava o sistema religioso daquele tempo. Desde os primórdios
a história da igreja tem demonstrado claramente que todos os
períodos de oportunidades estratégicas para o evangelho foram
acompanhados (e às vezes realmente causados) pela oposição da
liderança oficial em questões religiosas.
Há uma lição simples, acima de qualquer outra, que podemos
aprender da experiência de Paulo: a presença da oposição não indica
que nos desviamos da vontade de Deus. Havia muitos cristãos em
Corinto, como ainda há muitos hoje, que, pelo menos, insinuavam que
tudo corre bem quando temos um bom relacionamento com o Senhor.
O Novo Testamento não ensina isso.

3. Uma igreja que tem recursos, mas também responsabilidades


Já vimos a insistência de Paulo em relação à responsabilidade de os
302
coríntios compartilharem seus recursos financeiros. Também já
notamos como Áqüila e Priscila colocavam a casa à disposição da
comunidade dos crentes. O comentário mais penetrante acerca dessa
responsabilidade de partilhar aparece na descrição que Paulo faz da
’’casa de Estéfanas" (vs. 15-16): (sabeis que a casa de Estéfanas é as primícias
da Acaia, e que se consagraram ao serviço dos santos): Que também vos
sujeiteis a esses tais, como também a todo aquele que é cooperador e obreiro.
Barrett pensa que essas frases, aparentemente inócuas, marcam o
começo do que hoje conhecemos como ministério cristão.11 A grande
família de Estéfanas (a palavra casa, naquela época, incluía parentes
e servos) percebeu a prioridade de simplesmente ficar à disposição da
comunidade cristã, exercendo o dom da hospitalidade, para servir às
necessidades dos santos. Assim eles se consagraram (a palavra indica
um estilo de vida dedicado e disciplinado) para servir aos outros.
Quando eles começaram a atender as necessidades de seus
companheiros cristãos, as pessoas começaram a reconhecer neles os
sinais da verdadeira liderança cristã. Paulo se viu inclinado a insistir
com os coríntios: ...vos sujeiteis a esses tais, ou seja: respeitem seus dons
de liderança.
Esta visão é um desafio às nossas noções de liderança, e, mais
especificamente, à nossa prática de liderança. Temos a tendência de
conceder liderança àqueles que receberam determinado tipo de
educação, que têm alguma facilidade de expressão e uma capacidade
geral de pensar e falar por si mesmos, ou seja, àqueles que se encaixam
no critério secular de liderança. Será que alguma vez já pensamos com
seriedade na perspectiva paulina de liderança como serviço? Jesus
ensinou a mesma verdade: "Quem quiser tomar-se grande entre vós,
será esse o que vos sirva".12 Isto indica que a liderança autêntica e
sólida de uma igreja local vem de pessoas que se entregam ao serviço
dos santos. Essa liderança não depende de cultura, qualificações,
títulos ou algum carisma natural. Ela procede da graça de Deus, que
equipa seus filhos com dons que os toma capazes de servir aos outros
dentro da comunidade cristã.13 Toda a casa de Estéfanas vivia assim:
servindo aos outros como família - adultos, adolescentes e crianças;
o dono da casa e os empregados; os velhos e os jovens. Na verdade
deve-se rejeitar a conclusão de Barrett, que afirma: "Considerando que
a casa de Estéfanas assumiu o serviço prestado aos santos, ela devia
ser composta de adultos".14As crianças são muito boas para servir aos
outros; elas geralmente apreciam tal oportunidade e não se esquivam,
quando solicitadas. Um dos testemunhos mais eficazes da realidade
da ressurreição de Cristo é o modo como uma família cristã faz, do
serviço, seu estilo de vida.
Tais recursos para o ministério cristão estão presentes em cada
igreja local. Cada lar, cada pessoa é um recurso, e, portanto, é sua
responsabilidade usar esses recursos para a glória de Deus. Este
capítulo fala da responsabilidade do corpo que é ministrar aos seus
ministros, como também da responsabilidade dos ministros para com
o corpo. Os dois são vitais, se a igreja de Deus quiser crescer até a
maturidade.
Esse crescimento era uma preocupação sempre presente no coração
de Paulo, e suas instruções aos coríntios nos versículos 13-14 resumem
a responsabilidade de cada cristão: Sede vigilantes, permanecei firmes na
fé, portai-vos varonilmente, fortalecei-vos. Todos os vossos atos sejam feitos
com amor. No decorrer desta carta, o apóstolo destacou muitas áreas
do discipulado em que os coríntios estavam cochilando, ou
começando a vacilar, ou desanimando. Paulo, então, os desafia a
agirem com firmeza, endireitando o que está errado. Acima de tudo,
ele frisa a prioridade absoluta do amor, em tudo o que fizessem como
igreja. Essas palavras são, portanto, o tema central das instruções de
Paulo para uma igreja viva e dividida, exuberante e precária. Elas
expõem com precisão aquilo que estava no coração de Paulo.

4. Epílogo (16:21-24)

Agora, Paulo toma a pena da mão de seu amanuense e registra seu


adeus pessoal de próprio punho. Seus últimos tiros visam certos
causadores de problemas em Corinto: Se alguém não ama ao Senhor, seja
anátema (v. 22). Paulo naturalmente não está se referindo aos
incrédulos, mas àqueles que de dentro da igreja de Corinto estavam
provocando tanta perturbação nos crentes e sofrimentos no apóstolo.
"Se o coração de um homem não está inflamado de amor pelo Senhor,
falta-lhe o que há de fundamental."15 O uso da palavra anátema,
relembrando a estranha referência a alguém que sob a inspiração do
Espírito dizia que Jesus é anátema (v. 12:3), pode indicar que Paulo
conhecia alguém em Corinto que tinha feito essa declaração ultrajante
acerca de Jesus, referindo-se agora, indiretamente, a essa pessoa,
nessas observações finais de próprio punho.
A palavra maranata!, uma expressão aramaica que se traduz por
Vem, nosso Senhor! remonta ao começo da igreja na Palestina,16 e
expressa com muita concisão uma das convicções mais profundas da
igreja primitiva desde os seus primeiros dias. O termo assume um
significado ainda mais profundo na esteira do magnífico desempenho
de Paulo no capítulo 15. "Expressa a ansiosa esperança que a igreja
daqueles primeiros tempos tinha do rápido retomo do Senhor."17 Será
que nossa expectativa e anseio continuam tão fervorosos?
A seguir, Paulo conclui com uma mensagem de graça e amor. Ele
deseja a graça de Deus para todos os coríntios, até mesmo, ou
especialmente, para aqueles que lhe causaram os maiores problemas
e criaram a mais acirrada oposição. Acima de tudo, nada poderia
extinguir o amor de Paulo por todos eles em Cristo Jesus (v. 24). Os
melhores manuscritos omitem o Amém final. Isto significa que a última
palavra de Paulo aos coríntios foi uma reafirmação dessa convicção
central: "em Cristo". Este foi o ponto central de sua mensagem em toda
a carta, e com esta verdade ele encerra as questões que lhe foram
trazidas pela igreja de Corinto, "os santificados em Cristo Jesus".18

Notas:
1. Cf. A t 11:27-30.
2. Cf. A t 24:17; Rm 15:26; 2 Co 8-9.
3. Cf. A t 18:24ss.
4. iVTanufatura de tendas, cf. A t 18:3.
5. A t 19:10.
6. A t 19:20.
7. A t 20:17ss.
8. A t 20:18-19.
9. 1 Co 15:32.
10. Cf. Tg 2:6-7.
11. Barrett, pág. 394.
12. M t 20:26.
13. Cf. 1 Co 12:5.
14. Barrett, pág. 394.
15. M orris, pág. 198.
16. M orris, pág. 198.
17. M orris, pág. 199.
18. 1 Co 1:2.

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