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Capoeiras e a Revolta da Vacina

FABIO SAMU DA CUNHA*

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Resumo
Os capoeiras eram um problema para a República, antes mesmo de ela ser
consolidada. Rodrigues Alves, que governou o Brasil no período de 1902-1906,
enfrentou uma grande greve no ano de 1903. No ano de 1904 eclodiu a revolta
da vacina. Para combater a epidemia da varíola era necessário tornar
obrigatório a vacina de Jenner. O texto faz uma análise sobre os reais motivos
que levaram a revolta da vacina e a adesão, com grande destaque, dos capoeiras
na revolta.
Palavras-Chave: Rio de Janeiro; Violência; República; Urbanização.

Abstract
Capoeira practitioners were a problem to the Republic, even before it had been
consolidated. Rodrigues Alves, who ruled Brazil from 1902 to 1906, faced an
important strike in 1903. In the year 1904, the vaccine upheaval broke out. To
fight the smallpox epidemic it was necessary to make Dr. Jenner’s vaccine
mandatory. This text studies the real motivations that led to the vaccine revolt
and to the enrollment, with great importance, of capoeira practitioners in the
upheaval.
Key words: Rio de Janeiro; Violence; Republic; Urbanization.

*
FABIO SAMU DA CUNHA é Mestre em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor Substituto
da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ. Professor da Faculdade Internacional
Signorelli.
30

Revolta da Vacina
Introdução com muita naturalidade. Todos sentiam-
O objetivo desse texto é fazer uma se a vontade para fazer suas colocações.
análise sobre os dois maiores problemas O Governo tinha interesse em aprovar
que o Governo Republicano teve no uma nova lei para combater a epidemia
início do século XX: os capoeiras e a de varíola e, com isso, a vacina de
Revolta da Vacina. Os capoeiras são Jenner tornar-se-ia obrigatória. A
adversários da República antes mesmo oposição considerava uma interferência
dela ser consolidada. Dados históricos no corpo do cidadão. A partir desse
mostram que os capoeiras criaram a momento desabrocharam, então, várias
Guarda Negra que tinha duas funções revoltas dentro da revolta. Caminhou a
estratégicas: defender a monarquia e conspiração militar - Centro das Classes
combater a propaganda republicana. Os Operárias, que buscava derrubar o
soldados da Guarda Negra procuravam governo (CARVALHO, 1996). Grupos
sempre estar presente nos comícios e rivais aproveitaram-se desse clima
reuniões organizadas pelos republicanos bélico para promover acertos. Os
com o objetivo claro de criar tumulto, consumidores dos serviços públicos não
impedindo, assim, o sucesso das toleram mais os desleixos das
mesmas. No mês de dezembro, depois companhias. Produtores entraram em
da proclamação da República, os jornais atrito com as fábricas: “E todos os
começavam a noticiar que o chefe do cidadãos desrespeitados acertaram as
Corpo de Polícia determinou o fim da contas com o governo...Era a revolta
capoeiragem (BRETAS, 1991). fragmentada de uma sociedade
fragmentada” CARVALHO, 1996,
A revolta da vacina ocorreu por p.138). Um dado que devemos ressaltar:
desavença de grupos políticos que, a quando a revolta militar foi contida, os
princípio, debatiam sobre a defesa dos
direitos civis. No início tudo foi tratado
capoeiras assumiram um papel de codificação que esquadrinha ao
destaque no enfrentamento ao governo. máximo o tempo, o espaço, os
movimentos. Esses métodos que
Os capoeiras permitem o controle minucioso das
Para compreendermos a natureza dos operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e
capoeiras precisamos entender quatro
lhes impõem uma relação de
fatores: corpo, música, roupa e código docilidade-utilidade, são o que
de comportamento. O corpo do capoeira podemos chamar as disciplinas
é sinônimo de plenitude que "livra-se do (FOUCAULT, 1987, p.118).
condicionamento e do
esquadrinhamento que buscam As palavras de Foucault nos servem 31
neutralizá-lo, adestrá-lo e pacificá-lo, para demonstrar que o corpo do
readquirindo autonomia. Era através capoeira funciona como um instrumento
dele, por seus movimentos, que o de autonomia e resistência. Sendo
capoeira se fazia identificar" assim, o capoeira significa a ineficácia
(SALVADORI, 1990, p.116). Vejamos do aparelho disciplinador. Por isso, o
o que Foucault nos diz sobre o controle seu corpo deixa transparecer o tom de
do corpo: ameaça. E o que pensar das maltas?
Nesse caso podemos afirmar que
O corpo é objeto de investimentos
evidenciam o fracasso total das
tão imperiosos e urgentes; em
qualquer sociedade, o corpo está
estratégias de disciplinarização.
preso no interior de poderes muito Vários estudos apontam que a gênese da
apertados, que lhe impõem autonomia da liberdade de movimento
limitações, proibições ou
do capoeira está na ginga. Sem a ginga,
obrigações. Muitas coisas
entretanto são novas nessas não existiria o balanço do corpo e a sua
técnicas. A escala, em primeiro mobilidade. "A ginga é, portanto, um
lugar do controle: não se trata de jeito de andar que se aproxima da dança
cuidar do corpo, em massa, grosso e que se afasta do gesto condicionado e
modo, como se fosse uma unidade mecânico do trabalhador"
indissociável mas de trabalhá-lo (SALVADORI, 1990, p.118). Podemos
detalhadamente; de exercer sobre entender o balanço como uma surpresa
ele uma coerção sem folga, de no movimento. Essa surpresa de
mantê-lo ao nível mesmo da movimento que gera o medo e garante o
mecânica – movimentos, gestos, caráter assustador do capoeira.
atitude, rapidez: poder infinitesimal
sobre o corpo ativo. O objeto, em Além da ginga, um outro elemento de
seguida, do controle: não, ou não movimento do corpo que devemos
mais, os elementos significativos do destacar é o olhar. O olhar do capoeira é
comportamento ou a linguagem do
desafiador e impositivo. “O
corpo, mas a economia, a eficácia
do movimento, sua organização direcionamento do olhar, direto e
interna; a coação se faz mais sobre decisivo para o outro, apaga a noção de
as forças que sobre os sinais; a medo imposta pelo controle e vigilância
única cerimônia que realmente que a polícia e os grupos dominantes
importa é a do exercício. A pretendiam impor” (SALVADORI,
modalidade enfim: implica numa 1990, p.119).
coerção ininterrupta, constante, que
vela sobre os processos da atividade É impossível pensar num capoeira e não
mais que sobre o resultado e se ter em mente instrumentos como o
exerce de acordo com uma berimbau e o pandeiro. Sem a música
não existiria a ginga e sem a ginga não com que regras fossem estabelecidas
existiria o capoeira. A musica era para a convivência entre eles. O não
responsável por manter a identidade do cumprimento das regras poderia gerar
capoeira com ele mesmo e com sua punições estabelecidas pela malta. Por
malta. Quando havia conflitos com a exemplo, o respeito ao pedaço do outro
polícia, o que unificava as maltas era o era fundamental. Quando maltas
cantar de seus hinos. Esse canto criava entravam em conflitos umas com as
um vigor coletivo para enfrentar o outras, mesmo assim, não havia
inimigo. Esse canto servia também para rompimento das normas de convivência
enaltecer os feitos do passado e garantir estabelecida anteriormente. E caso
a sua memória. A música também ocorresse que, num desses momentos de 32
garantia o lado lúdico e isso remete ao conflito, a polícia tentasse invadir os
não-trabalho. espaços das maltas, o conflito seria
deixado de lado e elas se uniriam para
A maneira de se vestir também era uma
enfrentá-la.
característica essencial dos capoeiras. A
roupa garantia notoriedade e A liderança era outro importante
popularidade, além de diferenciá-lo de atributo na vida dos capoeiras. Sua
outros elementos. Desta forma, ele não conquista estava ligada a soma de dois
tinha a aparência de um operário. Isso quesitos: "destreza e coragem, numa
evidencia, claramente, a utilização aliança entre a agilidade do corpo e a
política do corpo. Para Salvadori, “a determinação nos momentos de
roupa marca uma crítica indireta ao conflito" (SALVADORI, 1990, p.131).
trabalho, em sua função disciplinar de As façanhas do líder faziam parte do
adestramento, tornando os capoeiras folclore de malta e eram transmitidos
sujeitos singulares e amplamente via oral, dos membros mais antigos para
conhecidos” SALVADORI, 1990, os membros mais novos, de modo que,
p.126). a história fosse preservada.
Uma informação relevante: muitos A religiosidade também era algo
capoeiras usavam lenços de seda ao importante na vida do capoeira. Ela era
redor do pescoço. Esse utensílio servia expressada no corpo, através das
para protegê-los das navalhas, pois tatuagens que contam a história do
faziam a lâmina deslizar no tecido sem indivíduo, e na alma, por isso todo
ferir a pele. capoeira tinha uma crença em Deus e
um respeito absurdo pela morte. "Isto
O capoeira também possuía um código
explica, então, que a vingança do
de comportamento. “Através dele torna-
capoeira não se traduza em um rancor
se possível atingir valores consagrados
infinito; a morte também devolve para
não só pelos capoeiras, mas também por
eles a noção de igualdade"
boa parte da população carioca”
(SALVADORI, 1990, p.137).
(SALVADORI, 1990, p.128). O
principal valor moral para os capoeiras O tratamento a mulher pode ser
era a valentia. Através do seu próprio considerado algo impar na história. O
corpo, que neste momento torna-se uma código de comportamento do capoeira
arma, o capoeira demonstra todo sua não via a mulher como um ser com
valentia e coragem. Fugir era sinal de plenitude e liberdade. A mulher deveria
fraqueza, mesmo quando as condições ser vista como uma propriedade do
eram desfavoráveis e o inimigo estava outro. Então o respeito dado a ela, não
em maior número. Essa valentia fazia era um respeito ao ser "mulher", mas
um respeito ao outro. O desrespeito a carregadores de café" (CARVALHO,
mulher pode ser interpretado, de 1996, p.121). No Jardim Botânico, nas
maneira simbólica, como uma invasão proximidades da fabrica Carioca, houve
do pedaço do outro. um intenso tiroteio entre operários e a
policia. Um outro tiroteio acontece nas
A traição não era aceita em hipótese Laranjeiras, perto da fábrica Aliança.
alguma. Não eram apenas valores Nos bairros Cosme Velho, Laranjeiras e
morais, mas envolvia o corpo do Vila Isabel os combustores de gás são
capoeira no momento do combate. Por destruídos. A polícia não tinha mais
esse motivo, dois dogmas eram condições de realizar a guarda das
fundamentais: não bater em homem fábricas e o Exército precisou ser 33
deitado e não navalhar à traição. A luta acionado para a função.
era travada em igualdade de condições.
O inimigo derrotado devia ser O relato acima mostra uma certa
respeitado e o vencedor reconhecido insatisfação das classes trabalhadoras
pelo adversário. com as políticas governamentais. Em
1902, quando Rodrigues Alves assumiu
As maltas funcionavam como uma
o governo, ele tinha total conhecimento
organização autônoma. E no seu
que seu antecessor não deixaria
interior, cada capoeira era responsável
saudades a população. O combate a
por construir a sua história. Sua
inflação na gestão de Campos Sales foi
ascensão frente ao grupo estava
marcado por uma política de recessão
diretamente relacionada a sua
econômica "que se caracterizava pela
competência individual. Não existia
redução do meio circulante, pela
nepotismo ou apadrinhamento, como é
contenção drástica dos gastos do
comum no mundo que vivemos hoje.
governo e pelo aumento de impostos,
A Revolta da Vacina especialmente através da tarifa-ouro
sobre os produtos de importação"
A Revolta contra a vacina aconteceu no (CARVALHO, 1996, p.92).
ano de 1904, porém, devemos destacar
que alguns acontecimentos ocorridos no Rodrigues Alves não fez nenhuma
ano anterior propiciaram um maior mudança na política do campo
engajamento de grupos organizados na financeiro, porém, investiu nas obras
revolta. Em maio de 1903 houve um públicas de saneamento e reforma
desfile operário que contou com a urbana. Seu governo foi favorecido com
participação de 20 mil pessoas, segundo o alta no preço do café, estagnado desde
o chefe de polícia. Em agosto iniciou-se 1896 e, também, com o aumento
uma greve na fábrica de tecidos significativo nas importações das
Cruzeiro. A reivindicação dos matérias-primas, assim, como o
trabalhadores era a diminuição da aumento do consumo de cimento e aço.
jornada de trabalho e um aumento Pereira Passos fora nomeado prefeito da
salarial. Esta greve logo ampliou-se e cidade e Oswaldo Cruz tornou-se
atingiu outras fábricas de tecido. O diretor do Serviço de Saúde Pública.
ápice ocorreu no dia 17 de agosto onde
imperava um discurso de greve geral Pereira Passos tinha como objetivo
para todas as categorias. "Aderiram transformar a nossa cidade, cuja
canteiros, pedreiros, charuteiros, administração era caótica e o povo
sapateiros, chapeleiros, alfaiates, extremamente mal educado, numa Paris
pintores, catraieiros, estivadores, dentro continente sul americano. Desta
forma, criou medidas de Além da febre amarela e da peste
comportamento: bubônica, Oswaldo Cruz precisaria
enfrentar uma terceira epidemia: a
Proibiu cães vadios e vacas leiteiras varíola. A forma de combater esta
nas ruas; mandou recolher a asilos epidemia era implantar a
os mendigos; proibiu a cultura de obrigatoriedade da vacina de Jenner.
hortas e capinzais, a criação de Essa vacina já era usada no Brasil desde
suínos, a venda ambulante de 1801.
bilhetes de loteria. Mandou também
que não se cuspisse nas ruas e Em 1837, uma postura municipal
dentro dos veículos, que não se tornara-a obrigatória no Rio de 34
urinasse fora dos mictórios, que não Janeiro para crianças de até três
soltassem pipa (CARVALHO, meses de idade, sob pena de multa
1996, p.95). de 6$000, a ser paga pelos
responsáveis. Em 1884, o decreto
Quando Oswaldo Cruz assumiu, suas estendera a obrigação a todo o
império para todas as pessoas. Em
atenções foram direcionadas para
Dezembro de 1889, um mês depois
enfrentar a febre amarela. Ele repetiu no da proclamação da República, o
Brasil os métodos adotados por Cuba. governo provisório renovara a
Por um lado, criou nos hospitais obrigatoriedade para crianças de até
medidas, de modo que, fosse possível o seis meses de idade. A partir daí,
isolamento dos doentes e, por outro até 1903, uma série de decretos foi
lado, montou uma operação de guerra ampliando a exigência da vacinação
contra os mosquitos. Em seguida, para os alunos de escolas públicas,
passou a enfrentar a peste bubônica. civis e militares, para os
Seria necessário eliminar ratos e pulgas empregadores dos correios, para os
e, ao mesmo tempo, realizar um detentos e menores recolhidos a
asilos públicos (CARVALHO,
trabalho de dedetização de ruas e casas.
1996, p.95-96).
Uma grande equipe formada por
sanitaristas, mata-mosquitos e operários Para enfrentar a epidemia de varíola, o
da limpeza passaram a atuar nas ruas da governo percebeu que era necessário
cidade e, também, realizavam visitas em criar uma nova lei, de modo que, a
casas e prédios. Nessas visitas doentes vacina de Jenner tornar-se-ia
eram removidos, reformas no obrigatória. No dia 20 de julho, o
estabelecimento eram exigidas e, caso projeto foi aprovado no Senado com 11
necessário, a interdição do imóvel era votos contrários. Na Câmara a
feita. As áreas com maior densidade aprovação foi quase que total e no dia
demográfica e, consequentemente, de 31 de outubro tornou-se lei. Os três
maior pobreza costumavam impedir o principais nomes de oposição a
trabalho das equipes da saúde. Nessas aprovação da nova lei foram: Barbosa
locais era necessário o auxílio das Lima e Alfredo Varela, na Câmara e
forças policiais. Para termos uma idéia Lauro Sodré, no Senado.
da dimensão das áreas visitadas, segue A discussão não foi encerrada após a
os seguintes números: "só no segundo aprovação na Câmara e no Senado.
semestre de 1904 foram visitadas 153 Alguns veículos de imprensa eram
ruas; foram feitas, no primeiro semestre, contrários a posição do governo. Faziam
110224 visitas domiciliares, 12971 parte deste grupo os jornais Correio da
intimações, 626 interditos" Manhã e o Commercio do Brazil. Para
(CARVALHO, 1996, p.94 e 95). eles, o poder público não tinha
competência "para invadir o recesso dos afirmou que a lei era arbitrária e
lares, seja para inspeção, seja para deprimente, que era necessário resistir.
desinfecção, seja para remoção de Também fez ataques ao governo
doentes, ou sequestro, como preferiam considerando-o corrupto e fora da lei.
dizer" (CARVALHO, 1996, p.98). O Vicente de Souza fez um discurso ainda
jornal O Paiz era governista e para mais agressivo:
tentar justificar a decisão do governo
decidiu realizar uma entrevista com J.J. Mencionou que cerca de seis mil
Seabra, ministro da Justiça e Negócios operários tinham feito petição ao
Interiores. Na entrevista o ministro congresso; que há dois anos fora
afirma que a lei seria respeitada e que solicitado ao prefeito que se 35
nenhum tipo de excesso seria praticado construíssem casas higiênicas para
os operários para substituir os
pelo governo. O problema é que o texto
cortiços e estalagens, focos de
aprovado em lei não era esclarecedor. endemias. Nada fora feito. Pintou a
Oswaldo Cruz ficou responsável pela situação em que ficaria a família
regulamentação do projeto de lei. proletária com a nova lei. Ao voltar
do trabalho, o chefe fica sem poder
Reuniões foram marcadas, discussões
afirmar que a honra de sua família
postas a mesa entre médicos, juristas e esteja ilesa, por haver aí penetrado
políticos para definir a melhor maneira desconhecido amparado pela
de se colocar em prática a vacinação. proclamação da lei da violação do
Porém, uma minuta das reuniões vazou lar e da brutalização aos corpos de
para o jornal A Notícia e foi publicado suas filhas e de sua esposa. A
no dia 10 de novembro. O documento messalina entrega-se a quem quer,
dizia que a vacinação poderia ser feita mas a virgem, a esposa e a filha
por um médico particular, mas que seria terão que desnudar braços e colos
imprescindível firma reconhecida no para os agentes da vacina
atestado. Esse atestado seria exigido (CARVALHO, 1996, p.100-101).
para tudo: emprego, matrícula escolar,
hospedagem, casamento e etc. A A partir daí vários distúrbios passaram a
ausência do atestado geraria multa. acontecer na capital do República. Nos
dias 10 e 11 de novembro, sempre em
Após publicação da minuta, até mesmo frente a Escola Politécnica, grupos de
os que defendiam a vacina ficaram alunos iniciavam discursos humorísticos
contra o governo. O Paiz, como já foi e, com isso, pessoas aglomeravam-se a
dito, jornal governista atacou Oswaldo eles e passaram a percorrer o centro da
Cruz afirmando ser um cientista cidade. O fim das ações era sempre em
desligado das realidades do país. O confronto com a polícia, ocorrendo
jornal procurou o ministro e este tentou várias prisões. No dia 11 outras
justificar que a minuta não passava de associações de classes declararam apoio
um debate entre especialistas. ao movimento. Entre elas estavam: o
Centro Internacional dos Pintores; as
A repercussão que teve na imprensa não
Associações de Classes União dos
demorou muito para chegar nas ruas.
Lauro Sodré, Vicente de Souza e Jansen Chapeleiros, União dos Pedreiros,
Tavares queriam fundar uma Liga União dos Cigarreiros e Charuteiros; a
contra a Vacina Obrigatória. Segundo o Associação de Resistência dos
jornal Correio da Manhã esta reunião Marinheiros e Remadores; a Sociedade
teve um público superior a 2 mil de Carpinteiros e Artes Correlatas e o
pessoas. Lauro Sodré, em sua fala, Centro Geral dos Foguistas.
No dia 12 de novembro houve uma da reunião da comissão que iria
reunião para definir as diretrizes da liga. examinar o projeto do regulamento.
Ela ocorreu no Centro das Classes A comissão acabou adotando
Operárias, nas proximidades da praça projeto substantivo, feito pelo dr.
Teixeira Brandão, baseado na lei
Tiradentes. Marcada para às vinte horas,
francesa de 1903. Mas nada disto
a partir das dezessete, já havia uma
importava mais. Ainda durante a
grande quantidade de pessoas no largo reunião, pelas duas horas da tarde,
de São Francisco. Segundo o Correio da quando chegou o chefe de polícia,
Manhã, garotos da classe operária, Cardoso de Castro, seu carro foi
iniciaram uma encenação representando apedrejado. A polícia carregou
os acontecimentos da véspera, sobre a multidão. O local se tornou 36
mostrando a violência da polícia contra uma praça de guerra. Aos poucos, a
a população. Eles usavam pedaços de luta se espalhou pelas ruas
madeiras retirados de obras. Não adjacentes, pela Sacramento e
demorou muito para que o teatro fosse avenida Passos, pelo largo de São
transformado em realidade. Espadas e Francisco, ruas do Teatro, dos
Andradas e da Assembleia, Sete de
tiros por parte da polícia eram
Setembro, Regente, Camões, São
respondidos com bombas de brinquedo Jorge. Segundo o Jornal do
e a quebra dos combustores de Comércio, houve descargas
iluminação. cerradas de carabina e revólveres.
Os bondes começaram a ser
Às 20 horas todos estavam no Centro atacados, derrubados e queimados.
das Classes Operárias. Segundo o Foram quebrados combustores de
Correio da Manhã haviam quatro mil gás e cortados os fios de iluminação
pessoas presentes, de várias classes elétrica da avenida Central.
sociais. O ambiente era tenso. A polícia Surgiram as barricadas, primeiro na
agora passou a fazer provocações. O avenida Passos, depois nas ruas
primeiro a falar foi Lauro Sodré. Em adjacentes. Oradores subiam aos
seu discurso chamou o governo de montes de pedras das construções e
fazendeiros e disse que era preciso o incitavam ao ataque. Na rua São
povo resistir. O discurso de Barbosa Jorge, as prostitutas saíram as ruas
para aderir a luta contra a polícia,
Lima seguiu a mesma linha de Lauro.
ficando uma delas ferida no rosto.
Vicente de Souza alertou a população Começaram os ataques às
para não acreditar nas palavras do delegacias de polícia e ao próprio
ministro da Justiça quando este quartel da cavalaria, na Frei
afirmava não endossar as ações de Caneca. Verificaram-se também
Oswaldo Cruz. Apesar da notória assaltos ao gasômetro e ás
participação popular, O Paiz considerou companhias de bondes. Os
a reunião um fracasso total, pois os distúrbios se espelharam atingindo
organizadores não conseguiram abordar a praça Onze, Tijuca, Gamboa,
o tema proposto: as diretrizes para Saúde, Prainha, Botafogo,
fundação da liga. Laranjeiras, Catumbi, Rio
Comprido, Engenho Novo
No dia 13 de novembro, o conflito (CARVALHO, 1996, p.103-104).
generalizou-se: A luta continuou noite adentro, com
Um aviso no Correio da Manhã, de tiroteios e a cidade escura. O Exército e
12, convocara o povo a aguardar na a Marinha foram acionados. Passaram a
praça Tiradentes, onde ficava o proteger locais estratégicos. No dia 14,
Ministério da Justiça, os resultados os jornais publicavam notícias
discrepantes. Para o Correio da Manhã, Lauro Sodré, Varela e o general
as tropas da Marinha e do Exército eram Travassos não tiveram qualquer
aplaudidas pela população por problema para tomar a escola. O
garantirem a ordem pública. O Jornal do comandante, general Costallat, não fez
Comercio relatou toda a destruição nenhuma resistência. Ao tomar
ocorrida durante os conflitos. O Correio conhecimento do levante, o governo
da Manhã fazia ataques ao ministro da enviou tropas do Exército e Marinha
Justiça e classificava Rodrigues Alves para o local. Houve troca de tiros.
como o desmoralizador da República, Militares das tropas do governo
devido aos crimes praticados pela mudaram de lado, o general Travassos
polícia. foi atingido, Lauro Sodré não foi mais 37
visto. No final, ambos os lados partiram
E as manifestações violentas em debandada. A princípio, o governo
continuavam. Houve uma tentativa de entra em pânico, ao receber a notícia do
assalto a 3.ª Delegacia Urbana. A 2.ª ocorrido. Foi sugerido ao presidente que
Delegacia foi tomada e com a chegada se alojasse num navio de guerra.
do Exército, os manifestantes a Rodrigues Alves negou prontamente.
abandonaram. A 5.ª Delegacia foi Um pouco depois, uma notícia que
tomada e depredada. Na Saúde houve trouxe alívio: os cadetes recuaram e
tiroteio, os manifestantes montaram regressaram a escola. Na manhã
trincheiras de resistência. O Moinho seguinte foram recolhidos a prisão sem
Inglês, localizado na rua da Gamboa, foi qualquer tipo de resistência. O saldo do
atacado. “Na Visconde de Itaúna, houve combate foi o seguinte: o lado dos
tiroteios entre guardas-civis e soldados revoltosos teve três mortos e vários
do Exército, comandados pelo alferes feridos e o lado do governo um número
Varela, do 22.º BI. Os soldados em torno de 32 feridos.
prenderam e feriram alguns guardas”
(CARVALHO, 1996, p.106). No dia 15 de novembro não houve
desfile militar e a situação na cidade
No Clube militar houve uma reunião continuava tensa. Apesar de ter
com a presença de Lauro Sodré, o controlado a revolta militar, os grupos
deputado Varela, o major Gomes de não-militares continuavam atuando.
Castro, o general Travassos, Vicente de Para o Paiz isso era inaceitável. Os
Souza, Pinto Andrade, monarquistas, redutos do Sacramento e da Saúde eram
militares de diversas áreas e alguns controlados pelos rebeldes. A 19.ª
civis. Ao tomar conhecimento da Delegacia foi atacada por operários das
reunião, o ministro da Guerra ordenou fábricas de tecido, um cabo da guarda
que o general Leite de Castro, foi morto nesta ação. O gasômetro,
presidente do clube, encerrasse o algumas fábricas e às casas de armas
encontro. A ordem do ministro foi também foram atacados. “Houve
cumprida. Algum tempo depois, quando distúrbios no Méier, Engenho de
estava no centro da cidade, Vicente de Dentro, Encantado, Catumbi, São
Souza recebeu voz de prisão. A noite, Diogo, Vila Isabel, Andaraí, Matadouro,
Pinto Andrade e o major Gomes de Aldeia Campista, Laranjeiras”
Castro tentaram tomar a Escola (CARVALHO, 1996, p.109).
Preparatória e de Tática de Realengo. O
plano não deu certo e ambos foram No mesmo dia 15 chegaram os reforços
presos. Em relação a Escola Militar da vindos de Minas e São Paulo. O estado
Praia Vermelha o desfecho foi diferente. de sítio era iminente e foi decretado no
dia 16. Somente no dia 18 a situação prisão não existe nem para o estado,
começou a ser controlada. nem para a justiça. Para Carvalho, "os
processos não só fornecem nomes e
Prata Preta
características sociais, como também
Seu nome de origem era Horácio José informações sobre as ideias e valores
da Silva. Era chefe dos capoeiras na dos revoltosos" (CARVALHO, 1996,
Saúde. Foi preso num enfrentamento do p.113). A falta de processo foi um fator
seu grupo com o Exército. Não havendo que permitiu, por exemplo, que João
mais condições de resistir, o grupo Batista Sampaio Ferraz, chefe de polícia
fugiu. Prata Preta permaneceu. Além de do Rio de Janeiro no ano de 1889,
possuir uma navalha e uma faca, utiliza-se seu poder discricionário para 38
segurava um revólver em cada mão e prender "capoeiras, enviando muitos
desferia tiro para todos os lados. Um deles para Fernão de Noronha"
único homem contra vários soldados do (BRETAS, 1997, p.47).
exército e da polícia. Em nenhum
momento demonstrou medo. Antes de O que nos leva a afirmar que os
capoeiras tiveram uma atuação de
ser capturado matou um soldado do
exército e feriu gravemente dois destaque após o levante militar ter sido
policiais. Foi preciso colocá-lo numa controlado foram as áreas que o
camisa de força. Sozinho, amarrado, governo perdeu o controle. Saúde e
correndo o risco de ser linchado pelos Sacramento são exemplos de áreas com
soldados, só não foi devido a uma presença muito forte de capoeiras.
intervenção do chefe de polícia,
continuou a insultar e ameaçar todos os Referências
presentes. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade.
Considerações finais Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
________. A queda do império da navalha de
Entre diversos grupos atuantes, a revolta
rasteira. In: Revista Estudos Afro-Asiáticos nº
da vacina também foi marcada pela 20, p. 239-256, 1991.
presença dos capoeiras. Pode parecer
CARVALHO, José Murilo de. Os
estranho ter apenas citado Prata Preta. O Bestializados. São Paulo: Companhia das
problema são os registros históricos que Letras, 1987.
temos. Ao contrário das revoltas
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
parisienses, que tinham como fonte de Petrópolis: Vozes, 1987.
estudos os arquivos policiais e judiciais,
SALVADORI, Maria Angela Borges.
no Brasil, a maioria dos presos não
Capoeiras e Malandros: pedaços de uma
tinham processos. Apenas os lideres sonora tradição popular (1890-1950).
eram processados. Tivemos casos de Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-
pessoas deportadas sem processo e Graduação em História – Universidade Estadual
daqueles presos que foram soltos como de Campinas: 1990.
se nada tivessem feito, ou seja, o
período que esse indivíduo passou na

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