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ENERGIA

Serviços de rede e a segurança do


abastecimento de gás natural
Fernanda Delgado Carlos Augusto Arentz Pereira
Professora e coordenadora de pesquisa da FGV Energia Professor de Planejamento energético e
Recursos renováveis da Uerj

Desde 2016, o Brasil tem trabalha- legislativas criavam um Operador


do em uma agenda liberalizadora do Sistema Nacional de Transporte
do mercado de gás natural. Após as de Gás Natural, visando à operação
discussões no âmbito da iniciativa e coordenação dos serviços de rede
“Gás para Crescer” e a passagem do e garantia de abastecimento de gás.
projeto de lei pela Comissão de Mi- De modo geral, todas as hipóteses
nas e Energia no Congresso, o novo equiparam e copiam as funções re-
governo retomou a agenda e estabe- alizadas pelo Operador Nacional do
leceu uma estratégia de atuação. Sistema Elétrico (ONS), para este
Neste esteio, a Resolução no 16 novo agente. Tal similaridade parece
do Conselho Nacional de Política patente, uma vez que energia elétrica
Energética (CNPE), publicada em 24 e gás são sistemas de rede. Existem,
de junho, delineou uma série de dire- no entanto, grandes diversidades en-
trizes necessárias ao estabelecimento tre as possibilidades de atuação no
do novo mercado de gás natural no nível técnico e legal entre energia elé-
Brasil. O item III do artigo 3o aponta trica e gás natural.
uma medida em que o agente domi- Considere-se a sistemática de pre-
nante deve observar quanto “a oferta cificação atualmente adotada tanto
de serviços de flexibilidade e balan- para energia elétrica,4 quanto para
ceamento de rede, devidamente re- o gás natural,5 que explicita preços
munerados, garantindo a segurança ou tarifas em parcelas distintas, uma
do abastecimento nacional durante para a energia em si (energia elétrica
período de transição ou enquanto ou molécula de gás) e outra para a
não houver outros agentes capazes de logística, destacada em transporte
ofertarem esses serviços”. Tal garan- ou transmissão. Nesta análise, não
tia é fundamental para a credibilida- se pretende abordar em detalhe as
de em qualquer modelo de mercado. questões de encargos ou tributos,
Esta preocupação vem sendo abor- mas somente indicar o quanto esses
dada há tempos pelos interessados, itens podem tornar a coordenação
como os legisladores, em diversos dos sistemas mais complexa em ter-
projetos de lei,1,2 inclusive o atual- mos de decisões operacionais e adi-
mente em tramitação.3 As propostas ção de custos.

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Começando pela energia ou mo- usuário. Nesse instrumento, o ONS
lécula, já se revela uma primeira di- Conclui-se que a é interveniente, determinando as
ferença. A energia elétrica não tem condições técnicas e comerciais da
propriedade, sendo gerada conforme capacidade de conexão do usuário ao Sistema In-
o consumo. O ONS detém o poder terligado Nacional (SIN), provendo
de garantir o atendimento desta de- bases que garantem o atendimento
transmissão e seu
manda elétrica, uma vez que a capa- do mercado elétrico. Quanto à par-
cidade de geração disponível é bem cela de transmissão são aplicadas
maior que o consumo do sistema
controle no setor Tarifas de Uso do Sistema de Trans-
brasileiro. Assim, o ONS ordena a missão (TUST), calculadas consi-
geração dos elétrons necessários ao
elétrico são definidos e derando a configuração da rede,
abastecimento, despachando usinas linhas de transmissão, subestações,
conforme a demanda. Claro, existem operados exclusivamente geração, carga e a remuneração
os contratos comerciais firmados em que as transmissoras devem receber
leilões e entre partes, com vários pra- pelo ONS pela prestação do serviço, resulta-
zos de vigência. Porém, esses instru- do dos leilões de concessão. Esta
mentos garantem a disponibilidade tarifa, que busca promover a otimi-
de geração e o potencial balanço de zação dos recursos elétricos e ener-
atendimento do sistema, que somente substituição e consequente cobrança géticos é aplicada a todos os usu-
é efetivado quando o ONS comanda por esse fluxo alternativo. Nessa hi- ários. Conclui-se que a capacidade
a operação das usinas. E as entregas pótese, surge a necessidade de uma de transmissão e seu controle no
e retiradas são transformadas em va- liquidação dos contratos de gás, ou setor elétrico são definidos e opera-
lores que são liquidados – cobrados seja, uma compensação em moldes dos exclusivamente pelo ONS, que
e pagos – de acordo com a realização semelhantes aos da CCEE, porém garante ao contratante do serviço
dos compromissos contratuais dos com uma contabilização mais com- a capacidade de fluxo, sendo seus
agentes, registrados na Câmara de plexa, conforme as vazões efetiva- custos obrigatoriamente comparti-
Comercialização de Energia Elétrica mente transacionadas. lhados entre todos os usuários.
(CCEE), órgão de compensação des- A logística, em ambos os casos, Já o transporte de gás pressupõe a
te mercado no país. No caso do gás energia elétrica e gás, é um mono- celebração de contratos de capacida-
natural, as moléculas têm proprietá- pólio natural, atividade na qual a de entre o transportador e o carrega-
rios, um vendedor e um comprador, competição não gera ganhos eco- dor, ou proprietário do gás. Portan-
definidos em contrato de compra e nômicos. No caso da energia elé- to, um possível agente controlador
venda. Logo, o potencial gestor do trica, apesar das linhas de trans- do sistema de gás, não pode decidir
sistema de gás não pode redirecionar missão individualmente serem de direcionar qualquer molécula para
fluxos para garantir o atendimento, propriedade dos concessionários, um determinado ponto para garantir
uma vez que existem compromissos ao celebrarem o Contrato de Pres- seu atendimento, uma vez que não
legais que predeterminam as trocas tação do Serviço de Transmissão, participa deste instrumento e não
de propriedade. Como este opera- estes autorizam o ONS como seu controla a capacidade de transporte.
dor, em princípio, não possui con- representante perante os usuários Mesmo que lhe fossem outorgados
trole sobre ativos de produção, rece- nos Contratos de Uso do Sistema poderes de livre determinação de uti-
bimento ou estoque de gás, não pode de Transmissão. Dessa forma, a lização de capacidade e redireciona-
disponibilizar volumes para manter rede básica de transmissão se torna mento das vazões por contrato, resta
o balanço do mercado. E mesmo que um ativo de controle exclusivo do ainda a questão dos custos. No siste-
disponha dessas moléculas, precisa ONS, que garante a capacidade do ma elétrico, os custos da logística do
ter respaldo de algum tipo de instru- sistema pelos termos dos contratos sistema são otimizados pelo seu ope-
mento legal que o autorize a fazer a de conexão entre concessionário e rador e compartilhados entre usuá-

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CONJUNTURA ENERGIA

rios. No transporte de gás, os com- estados,7 as decisões de atendimento


promissos contratuais determinam a Apesar da operação do do mercado do operador de gás na-
passagem de valores entre carregado- tural podem ser determinantes para
res e transportadores, não havendo sistema de gás também recolhimento deste tributo no caso
possibilidade de sua repartição com do gás em cada estado.
terceiros não participantes destes Examinados esses fatores, fica
poder buscar redução
acordos. Ainda há de se considerar a claro que o atual agente dominante
questão de controle das condições fí- somente pode garantir a seguran-
sicas do fluxo, no caso elétrico, ten-
do custo logístico, ça do abastecimento nacional de
são e no gás, pressão. Isto é possível gás natural por ser proprietário dos
ao ONS, com o despacho por razões
pouco pode fazer pela ativos, fontes de oferta e/ou deter
elétricas, que permite compensar os os direitos contratuais sobre estes.
parâmetros de configuração técnica redução do custo Contudo, a remuneração devida
da rede a cada momento. Sem poder por esses serviços de flexibilidade e
injetar moléculas ou determinar ope- de suprimento balanceamento de rede é atualmen-
ração de compressores e válvulas, é te provida pela oferta em conjunto
praticamente impossível ao gestor desses mesmos recursos, usualmente
do sistema de gás garantir o encami- compromissados em contratos que
nhamento dos fluxos. também podem ocorrer no sistema englobam o suprimento da molé-
Em uma visão abrangente, o ONS elétrico, mas seus custos associa- cula e sua entrega. Será necessário
busca a otimização do atendimento dos podem ser distribuídos entre os um meticuloso planejamento dessa
ao menor custo, combinando despa- usuários pelos cálculos de tarifas ou transição para se evitar cenários de
cho das opções de geração mais ba- já são compensados por algum dos desabastecimento ou incidência de
ratas com uma configuração que mi- diversos encargos setoriais que com- custos elevados para alguns agentes
nimize a carga de utilização do SIN. põem a tarifa elétrica. do mercado, quando da entrada de
Apesar da operação do sistema de Este aspecto enseja um breve outros ofertantes desses serviços.
gás também poder buscar redução comentário sobre a questão da tri-
do custo logístico, pouco pode fazer butação. A Constituição de 1988
pela redução do custo de suprimen- estabeleceu que o Imposto sobre Cir- 1
MATHIAS, M.C.P.P.; ROTSTEIN, J. Projetos de lei do
gás natural: uma análise comparativa. In: Rio Oil
to. Eventuais excessos e faltas de gás culação de Mercadorias e Serviços and Gas,2006. Rio de Janeiro: IBP, 2006.
ou de capacidade de transporte, po- (ICMS) incidente na energia elétrica 2
SANTOS, A.B.; SILVA, P.M. Reflexões sobre a im-
tencialmente encarecem o sistema. A é apropriado pelo estado de consu- plantação de um operador do sistema de trans-
porte de gás natural. In: Rio Oil and Gas,2006. Rio
hipótese de falha na disponibilidade mo.6 Já no gás natural, a legislação
de Janeiro: IBP, 2006.
de gás possivelmente conduz ao uso não o distingue das demais mercado- 3
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fi
de uma fonte de maior custo, quer rias, podendo o ICMS incidir sobre chadetramitacao?idProposicao=2111204.
pelo fato da alternativa de origem ser diversos pontos da cadeia, havendo 4
http://www.aneel.gov.br/entendendo-a-
mais cara ou por vir de algum pon- tratamentos diversos quanto a alí- tarifa/-/asset_publisher/uQ5pCGhnyj0y/
content/composicao-da-tarifa/654800?inheritR
to mais distante e, por conseguinte, quotas, regimes especiais e créditos edirect=false.
de transporte mais oneroso. Quan- pelos estados. Apenas a definição de 5
http://legislacao.anp.gov.br/?path=legislacao-anp/
do da sobra, pode haver necessidade incidência deste único imposto di- resol-anp/2011/setembro&item=ranp-52-2011.
de aumento de estoque ou atraso de ferencia criticamente o impacto da 6
BRASIL. Constituição Federal de 1988. (art. 155, §
2º, X, b).
entrada em algum ponto do siste- decisão dos operadores dos sistemas
7
Obs.: As decisões de despacho do ONS não
ma, potencialmente levando ao não elétricos e de gás natural no país.
influenciam ICMS, mas impactam o encargo
cumprimento de alguma obrigação Enquanto a configuração de origem Compensação Financeira pela Utilização de
Recursos Hídricos (CFURH), que visa compensar
contratual e incidência de penalida- e destino da energia elétrica não in-
a União, estados e municípios pelo uso da água
des. Alguns desses tipos de falhas fluencia a arrecadação de ICMS dos para geração de energia.

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