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Estratégias psicoterápicas

fundamentadas pela psicanálise


Nathalia S. Armony

Universidade Federal do O Apelo


Rio de Janeiro, Instituto de
Psiquiatria. São 6 horas da manhã. Acordo com o telefone
tocando insistentemente em minha casa. Atendo.
Doutora em psicanálise, É Clarissa, paciente do ambulatório, em tratamen-
psicóloga do CARIM
to já há vários meses. A voz é aflita e chorosa.
“Nathalia, desculpe por ligar a essa hora, eu
te acordei?”
“Acordou, Clarissa. Diga, o que está haven-
do?”
“Desculpe, eu não devia ter ligado, Desculpe,
vai dormir, está muito cedo, vou desligar...”
“Não, Clarissa, tudo bem, agora já estou acor-
dada, pode falar, estou ouvindo...”
“Não sei o que fazer, briguei com meus pais,
estou na rua, não quero mais viver... não quero vol-
tar para casa...”
Em poucas palavras, Clarissa me conta o
motivo do desentendimento. Novamente os pais
deram razão à irmã, e a destrataram. Pensa em
sumir, fugir, ou “fazer alguma besteira”, pois não
suporta mais. Embora meu turno naquele dia não
fosse de manhã, digo a Clarissa para ir às 8 horas
no ambulatório, onde poderia ser acolhida. Digo-
lhe para procurar outra psicóloga e contar o que
houve, que havia me telefonado e que eu havia lhe
dado essa orientação. À tarde eu estaria esperan-

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do-a em seu horário habitual. Já com o atendimento sem fazer algum tipo
a voz mais calma, Clarissa concorda de trabalho com os pais ou respon-
com minha proposta. sáveis, na medida em que os proble-
Clarissa é um dos poucos pa- mas que a criança atravessa estão
cientes que tem meu telefone pesso- intimamente relacionados com a rela-
al, e essa é, em verdade, a primei- ção dos pais entre si e com a criança,
ra vez em que o utiliza. Apesar de e a criança seguirá dependendo dos
o motivo de seu desespero parecer pais em diversos níveis, sendo eles
tolo, eu já sabia que situações se- a sua referência, que lhe fornece um
melhantes, de conflitos por razões nível de segurança. Já no caso dos
aparentemente banais com pessoas adolescentes, geralmente, há que
significativas, haviam engendrado ati- se ouvir os pais, uma vez que para
tudes extremas de Clarissa. Em uma o adolescente também está posta
dessas circunstâncias, travo meu pri- uma dependência, mas a trajetória
meiro contato com Clarissa, que vem do adolescente pode dizer respeito
ao ambulatório, encaminhada pela justamente à possibilidade da consti-
emergência de um hospital geral. tuição de novas referências, extralar,
em um processo de ultrapassagem
Momentos iniciais de seu lugar familiar para a consti-
tuição de um outro tipo de inserção.
A chegada do adolescente é Conforme a sua trajetória é possível
chave para a construção da estra- que esse trabalho com os pais seja
tégia terapêutica e é preciso estar apenas pontual, referido a momentos
atento ao modo como esta se dá. O e questões muito específicas do tra-
paciente pode vir “por conta própria”, tamento.
ou através do intermédio de alguém, Clarissa chegou ao ambulatório,
geralmente os pais, mas isso não é encaminhada pela emergência de um
obrigatório. Ele pode ainda, vir, como hospital geral. Havia tomado “chum-
qualquer paciente, através de um en- binho”, um veneno para rato de fácil
caminhamento de outra instituição, aquisição, vendido nas ruas por ca-
seja de saúde, escolar ou de assis- melôs. Aos 17 anos, pequena, quase
tência social. Assim, é preciso discer- franzina, fazendo um estilo “moleca”
nir a demanda de quem traz o adoles- no vestir e no corte de cabelo, Claris-
cente, do que pode vir a se constituir sa vem acompanhada de uma amiga,
a sua própria demanda. Sandra, com quem morava, esta bem
Nesse sentido, há pontos de mais velha, mãe de duas crianças.
aproximação e de diferenciação do Entram as duas, e a amiga fala o tem-
atendimento a crianças. No caso po todo, muito preocupada, enquanto
das crianças, é impensável realizar
92 Parte III: Estratégias psicoterápicas fundamentadas pela psicanálise
Clarissa apenas sorri, como que en- com os pais e com a irmã. Desde pe-
cabulada. A amiga diz que a família quena fora muito maltratada pelo pai
de Clarissa não lhe dá o devido va- alcoolista e pela mãe de humor instá-
lor, que ela é uma menina ótima, mas vel, sempre à beira do desequilíbrio.
que tem umas besteiras “na sua ca- “Sempre apanhei mais do que minha
becinha”, e que essa não era a sua irmã”. Em algumas dessas surras, já
primeira tentativa de suicídio. Sandra quando adolescente, Clarissa pra-
parece assustada com a responsabi- ticou atos que poderiam ser vistos
lidade de olhar por Clarissa, já que os como tentativas de suicídio, mas
pais “não estão nem aí”. O que mais sempre havia alguém em condições
Clarissa seria capaz de fazer? de chegar a tempo para salvá-la. Já
Já a sós comigo, Clarissa me havia praticado também atos de au-
conta que tomou chumbinho porque tomutilação. Certa vez, após levar
naquele momento não queria mais uma paulada da mãe no braço, viu
viver. Sentiu “uma coisa”, não sabia que havia ficado “um calombo”, um
explicar, foi para o quarto e ingeriu o “calombo pequeno”, e fez então, pró-
veneno. Sandra havia saído com os ximo a esse machucado, um outro,
filhos, e, quando voltou, encontrou cortando-se com uma faca.
Clarissa já desacordada. Tento saber Era uma história de muita bru-
o que havia ocorrido, e Clarissa faz talidade, e de grandes decepções. A
questão de caracterizar seu ato como gota d’água parecia ter sido a traição
um impulso, “do nada”. Investigando da irmã do meio, que lhe roubara o
o que precedeu tal ato, fico sabendo namorado e fora viver com ele. Os
que Sandra ia sair e não queria levá- pais de imediato condenaram essa
la. Com algum custo, Clarissa admite união, mas depois, logo, tentaram
haver uma conexão entre esses dois se reaproximar da filha, que os re-
eventos: a rejeição vivida e a tentativa chaçou. Clarissa desaprova a forma
de suicídio. Logo, Clarissa revela que como os pais lidaram com a situação,
mantinha “uma relação íntima”com e sorri ao dizer: “Isso é passado, não
Sandra, e que esta não era capaz tem mais nada a ver. Não ligo mais.”.
de assumi-la por causa “dos outros”. Por alguma razão, Clarissa con-
Não que ela ficasse chateada, até tava-me todos esses fatos densos e
entendia, mas achava que não era a difíceis de sua vida, para em seguida,
atitude correta. quando se referia à sua vida presen-
Nas sessões seguintes, Cla- te, caracterizar-se como uma pessoa
rissa fala de sua família, com quem frívola, como se fizesse as coisas
não quer contar, pois sofrera muito sem saber o que estava fazendo,

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“do nada”, “porque deu vontade na tário do grupo, algumas “besteiras”,
hora”, sem que suas autoagressões transgressivas ou não, são feitas, e
ou “tentativas de suicídio” dissessem são justificadas pelos adolescentes e
respeito às pessoas com que se rela- mesmo pelos pais como atos impen-
cionava e ao que se passava nessas sados, não propriamente intencio-
relações. Nunca admitia uma mágoa, nais, pois o rapaz ou moça “vai pela
um ressentimento, uma tristeza que cabeça dos outros”. “Ir pela cabeça
fosse diante de coisas que os outros dos outros”, é algo que até certo pon-
lhe faziam, coisas que poderiam ge- to já era feito até então, a questão é
rar decepção. Curiosamente, sempre que outros são esses, que agora já
uma situação desse tipo precedia o não são mais apenas os pais, mas
envenenamento, o pendurar-se na o grupo, a turma etc. Fazer, nesses
laje, cortar os pulsos etc. Não que ela casos, se apoia no grupo, mas é um
relatasse esses eventos em sequên- fazer que concerne ao adolescente, e
cia, de modo algum. Era na reconstru- que tem uma significação para esse
ção das histórias, através de minhas adolescente que faz. Portanto, fazer
perguntas, onde se evidenciava a para não pensar, ato solitário ou em
sequência: a rejeição ou a decepção, grupo, é uma forma de evitar um po-
e a “besteira”, isto é, a passagem ao sicionamento diante de determinadas
ato. dificuldades. No caso de Clarissa, o
ato suicida, ou no mínimo, autoagres-
Pensar ou fazer sivo, a livra de se dar conta do que
não quer (ou não suporta) ver, pois ao
Muitas vezes, quando alguma
se dar conta, terá que pensar e agir
coisa não pode ser pensada, quan-
levando isso em conta, isto é, conse-
do vivê-la não parece ser suportável,
quentemente. A postura do terapeuta,
mas tampouco é possível esquecê-la,
diante desses atos “impensados”, ge-
“deixar para lá”, uma ação toma seu
ralmente não tão graves como os de
lugar. Fazer, nesses casos, substitui
Clarissa, mas relativamente comuns
o pensar, diferentemente do fazer que
na adolescência, não pode ser a de
é consequente ao pensar ou sentir,
uma simples condenação ou julga-
que é um fazer assumido pelo sujeito
mento moral, mas deve se basear no
que pratica o ato. Na adolescência,
entendimento de que eles se referem
pelo porte das elaborações das ques-
a algo que não está podendo ser pen-
tões que estão em jogo, atos tidos
sado, e se trata de descobrir o que
como inconsequentes muitas vezes
está sendo tão difícil assim para o
são a saída para algo que não pode
adolescente lidar.
ser dito ou mesmo pensado. É assim
que, apoiando-se no suporte identi-

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Pensar e fazer o ato supostamente suicida, em que
fica patente que algo não vai bem
Pensar as estratégias clínicas
com Clarissa, isto é, algo que não é
de atendimento psicanalítico a ado-
vivido e assumido enquanto tal termi-
lescentes implica em pensar as es-
na em um ato para ser visto, atestan-
tratégias dos adolescentes em lidar
do, testemunhado por um outro que
com as suas questões. No caso de
vem lhe salvar, o seu sofrimento e
Clarissa, por exemplo, as autoagres-
desespero.
sões e supostas tentativas de suicídio
A estratégia clínica depende da
aparecem como uma estratégia, para
estratégia da paciente. Nesse enten-
que seu desespero, seu sofrimento
dimento, o caminho está dado: cami-
seja visto por alguém. Assim, não se
nhar da estratégia em direção àquilo
trata de uma tentativa pura e simples
que ela vem responder, o insuportá-
de se apartar da vida, mas de um ato
vel, no caso de Clarissa, da decepção.
que é endereçado, que deve ser visto
Assim, é pela implicação de Clarissa
por alguém, a tempo de salvá-la. O
em seu ato, isto é, na conexão des-
que não significa que não haja riscos
se ato com algo lhe dá significado, a
nessas empreitadas, e assim, por um
decepção, é que é possível fazer ver
erro de cálculo, ou por azar, o desen-
o que é insuportável nisso. É a partir
lace pode ser fatal. Mas além desses
desse tipo de entendimento que po-
atos suicidas endereçados, há uma
demos, a cada passo, adotar uma ou
estratégia anterior. Clarissa nega
outra medida, peculiar a cada caso.
qualquer ressentimento, qualquer so-
frimento que outra pessoa, de quem
goste, possa lhe causar. Aponta as A trajetória da adoles-
fraquezas daqueles a quem ama, cência
seus defeitos, mas quase que se de- O advento da puberdade traz
clara invulnerável ao sofrimento. Se para o menino ou para a menina no-
sofre é pelo bem do outro, e não por vas questões referentes à identidade,
estar magoada ou decepcionada. à sexualidade, à relação com os pais
Assim, temos que, em primeiro e a seu lugar no mundo. Há, nas pa-
lugar, há uma expectativa quanto ao lavras de Freud, um novo aporte libi-
que um outro significativo possa lhe dinal, uma nova onda de sexualidade,
dar, lhe propiciar. Segundo, há uma que traz a possibilidade biológica do
decepção com relação a essa expec- ato sexual. Diferentemente da sexu-
tativa, o que parece ser insuportável alidade na infância, na adolescência,
para Clarissa. Terceiro, essa decep- está posto como possível o ato sexu-
ção é minimizada, como se não pu- al. Assim, diz Freud, não seria de se
desse ser sentida e vivida. Quarto, estranhar que o menino ou a meni-
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na dirigisse sua sexualidade àqueles dão mostras de sua fragilidade pela
que lhe são mais próximos e que já consecução de atos violentos contra
ocupam um lugar privilegiado nas re- ela, mas sendo “moleca”, “muito leva-
lações objetais, ou seja, os pais. Con- da”, de certo modo preservava-se de
tudo, já está colocada aí a interdição sucumbir a uma total submissão que
do incesto, e o adolescente terá que não dá lugar ao desejo, e, ao mesmo
mais uma vez renunciar aos pais para tempo, justificava as punições, decer-
estabelecer novos objetos de identifi- to exageradas.
cação e escolha sexual. Os pais terão
que ser, de alguma forma, destituídos A decepção
deste lugar tão especial, para que ou-
A decepção que leva Clarissa a
tras pessoas venham a ser investidas
se afastar dos pais não é com uma
libidinalmente pelo adolescente. Se-
violência praticada contra ela. Trata-
gundo Freud, essa forçagem entre a
se, aí, da complacência dos pais para
nova onda emergente de sexualidade
com a irmã, que a trai e destrata os
e a necessidade de abandonar esses
pais, que, por sua vez, continuam bus-
laços com os pais é que daria origem
cando aproximação com esta filha.
ao famoso “conflito entre gerações”.
Sob essa decepção podemos pensar
A idealização dos pais é, então, aba-
encontrarem-se muitas outras: com o
lada, e não raro outras pessoas vêm
pai alcoolista, que é injusto com ela e
ocupar, ainda que transitoriamente,
com a mãe, e com a mãe que segue
esse lugar de ideal. Incoerências, fa-
ao lado pai, não se posicionando “a
lhas, defeitos dos pais, até então ne-
favor” da filha, mas, em situações-
gados ou justificados pelas crianças,
limite, se colocando “contra” ela. Por
que precisam da segurança da hiper-
trás do triângulo amoroso Clarissa-
potência parental, serão percebidos
irmã-namorado, podemos pensar
como tais, e até hiperdimensionados
estar outro triângulo, edípico, da filha
às vezes, para que o adolescente
que não entende por que a mãe con-
possa encontrar as suas próprias re-
tinua ao lado do pai. Saindo de casa,
ferências. Esse processo de sepa-
Clarissa encontra, em outra família, a
ração passa, portanto, muitas vezes
dos patrões, uma cena semelhante:
por decepções com relações aos
da mulher com os filhos e o marido
pais, por coisas que não eram pro-
que bebe e destrata a mulher. Só que
priamente desconhecidas na infân-
nesse enredo, agora, há um desen-
cia, mas de certo modo negadas ou
lace diferente: é o marido que sai de
justificadas. No caso de Clarissa, fica
casa, deixando as duas livres para
claro que ela já sabia e sofria com
“uma relação íntima”. Se pensarmos
várias dificuldades de seus pais, que
no que Freud diz acerca da relação

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pré-edípica da menina com a mãe, Crises com os pais continuam existin-
relação que precede o amor edipiano do, e a orientação sexual de Claris-
da menina ao pai, temos os elemen- sa não é ainda definida. Há namoros
tos para saber que é possível uma com rapazes e casos com moças, in-
regressão da menina para a relação clusive uma retomada, por um tempo,
com a mãe. Ante os impasses pos- da relação com Sandra.
tos pela diferença sexual, Clarissa, Um episódio marca muito Cla-
ainda virgem de uma relação sexual rissa: um amigo do pai, alcoolizado,
com homens, volta-se para essa rela- tenta agarrá-la à força, mas não con-
ção com Sandra, fora do mundo dos segue. Mesmo sabendo disso, o pai
homens, violentos e beberrões, que continua amigo desse homem. Dessa
não cumprem seu papel de proteger vez, contudo, Clarissa, ao invés de se
e suprir as mulheres. Com a saída do envenenar ou cortar os pulsos, con-
marido de Sandra de casa, Clarissa segue dizer algo ao pai e indignar-se
empreende contra ele um processo com ele. Percebe as incoerências
trabalhista, pois ele lhe deve seus di- parentais, a fragilidade de ambos, e
reitos, que não são pagos quando é, o quanto isso a faz sofrer. Mas for-
então, demitida. Há algo a reclamar mula para si que, até ser uma pessoa
dos homens, algo de direito, que, no adulta, independente, terá que lidar
entanto, nunca vem. Na relação com de alguma forma com isso, e ir cons-
Sandra, também, uma insuficiência truindo as condições para que esse
se dá: a relação de ambas jamais é dia possa chegar.
assumida oficialmente, e Sandra não
se mostra em condições de fazê-lo. Para saber mais
O trabalho com Clarissa permi- Freud, S. Tres ensaios de teoría se-
tiu-lhe trazer para si aquilo que não xual, In:Obras Completas,vol. 7.
conseguia ser pensado, mas agido. Amorrortu, Buenos Aires, 1992.
Assim, Clarissa, aos poucos, retoma ________ Sobre la psicogénesis de
seus estudos, volta a morar com os un caso de homosexualidad feme-
pais, faz cursos de computação e tra- nina, In: Obras Completas, vol.18.
balha em meio expediente em uma Amorrortu, Buenos Aires, 1992.
indústria de reciclagem junto com a ________33ª Conferencia. La femi-
mãe. Retoma seu lugar de filha, e nidad, In: Obras Completas, vol. 22.
passa a se interrogar sobre o futuro. Amorrortu, Buenos Aires, 1992.

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