Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria. São 6 horas da manhã. Acordo com o telefone tocando insistentemente em minha casa. Atendo. Doutora em psicanálise, É Clarissa, paciente do ambulatório, em tratamen- psicóloga do CARIM to já há vários meses. A voz é aflita e chorosa. “Nathalia, desculpe por ligar a essa hora, eu te acordei?” “Acordou, Clarissa. Diga, o que está haven- do?” “Desculpe, eu não devia ter ligado, Desculpe, vai dormir, está muito cedo, vou desligar...” “Não, Clarissa, tudo bem, agora já estou acor- dada, pode falar, estou ouvindo...” “Não sei o que fazer, briguei com meus pais, estou na rua, não quero mais viver... não quero vol- tar para casa...” Em poucas palavras, Clarissa me conta o motivo do desentendimento. Novamente os pais deram razão à irmã, e a destrataram. Pensa em sumir, fugir, ou “fazer alguma besteira”, pois não suporta mais. Embora meu turno naquele dia não fosse de manhã, digo a Clarissa para ir às 8 horas no ambulatório, onde poderia ser acolhida. Digo- lhe para procurar outra psicóloga e contar o que houve, que havia me telefonado e que eu havia lhe dado essa orientação. À tarde eu estaria esperan-
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do-a em seu horário habitual. Já com o atendimento sem fazer algum tipo a voz mais calma, Clarissa concorda de trabalho com os pais ou respon- com minha proposta. sáveis, na medida em que os proble- Clarissa é um dos poucos pa- mas que a criança atravessa estão cientes que tem meu telefone pesso- intimamente relacionados com a rela- al, e essa é, em verdade, a primei- ção dos pais entre si e com a criança, ra vez em que o utiliza. Apesar de e a criança seguirá dependendo dos o motivo de seu desespero parecer pais em diversos níveis, sendo eles tolo, eu já sabia que situações se- a sua referência, que lhe fornece um melhantes, de conflitos por razões nível de segurança. Já no caso dos aparentemente banais com pessoas adolescentes, geralmente, há que significativas, haviam engendrado ati- se ouvir os pais, uma vez que para tudes extremas de Clarissa. Em uma o adolescente também está posta dessas circunstâncias, travo meu pri- uma dependência, mas a trajetória meiro contato com Clarissa, que vem do adolescente pode dizer respeito ao ambulatório, encaminhada pela justamente à possibilidade da consti- emergência de um hospital geral. tuição de novas referências, extralar, em um processo de ultrapassagem Momentos iniciais de seu lugar familiar para a consti- tuição de um outro tipo de inserção. A chegada do adolescente é Conforme a sua trajetória é possível chave para a construção da estra- que esse trabalho com os pais seja tégia terapêutica e é preciso estar apenas pontual, referido a momentos atento ao modo como esta se dá. O e questões muito específicas do tra- paciente pode vir “por conta própria”, tamento. ou através do intermédio de alguém, Clarissa chegou ao ambulatório, geralmente os pais, mas isso não é encaminhada pela emergência de um obrigatório. Ele pode ainda, vir, como hospital geral. Havia tomado “chum- qualquer paciente, através de um en- binho”, um veneno para rato de fácil caminhamento de outra instituição, aquisição, vendido nas ruas por ca- seja de saúde, escolar ou de assis- melôs. Aos 17 anos, pequena, quase tência social. Assim, é preciso discer- franzina, fazendo um estilo “moleca” nir a demanda de quem traz o adoles- no vestir e no corte de cabelo, Claris- cente, do que pode vir a se constituir sa vem acompanhada de uma amiga, a sua própria demanda. Sandra, com quem morava, esta bem Nesse sentido, há pontos de mais velha, mãe de duas crianças. aproximação e de diferenciação do Entram as duas, e a amiga fala o tem- atendimento a crianças. No caso po todo, muito preocupada, enquanto das crianças, é impensável realizar 92 Parte III: Estratégias psicoterápicas fundamentadas pela psicanálise Clarissa apenas sorri, como que en- com os pais e com a irmã. Desde pe- cabulada. A amiga diz que a família quena fora muito maltratada pelo pai de Clarissa não lhe dá o devido va- alcoolista e pela mãe de humor instá- lor, que ela é uma menina ótima, mas vel, sempre à beira do desequilíbrio. que tem umas besteiras “na sua ca- “Sempre apanhei mais do que minha becinha”, e que essa não era a sua irmã”. Em algumas dessas surras, já primeira tentativa de suicídio. Sandra quando adolescente, Clarissa pra- parece assustada com a responsabi- ticou atos que poderiam ser vistos lidade de olhar por Clarissa, já que os como tentativas de suicídio, mas pais “não estão nem aí”. O que mais sempre havia alguém em condições Clarissa seria capaz de fazer? de chegar a tempo para salvá-la. Já Já a sós comigo, Clarissa me havia praticado também atos de au- conta que tomou chumbinho porque tomutilação. Certa vez, após levar naquele momento não queria mais uma paulada da mãe no braço, viu viver. Sentiu “uma coisa”, não sabia que havia ficado “um calombo”, um explicar, foi para o quarto e ingeriu o “calombo pequeno”, e fez então, pró- veneno. Sandra havia saído com os ximo a esse machucado, um outro, filhos, e, quando voltou, encontrou cortando-se com uma faca. Clarissa já desacordada. Tento saber Era uma história de muita bru- o que havia ocorrido, e Clarissa faz talidade, e de grandes decepções. A questão de caracterizar seu ato como gota d’água parecia ter sido a traição um impulso, “do nada”. Investigando da irmã do meio, que lhe roubara o o que precedeu tal ato, fico sabendo namorado e fora viver com ele. Os que Sandra ia sair e não queria levá- pais de imediato condenaram essa la. Com algum custo, Clarissa admite união, mas depois, logo, tentaram haver uma conexão entre esses dois se reaproximar da filha, que os re- eventos: a rejeição vivida e a tentativa chaçou. Clarissa desaprova a forma de suicídio. Logo, Clarissa revela que como os pais lidaram com a situação, mantinha “uma relação íntima”com e sorri ao dizer: “Isso é passado, não Sandra, e que esta não era capaz tem mais nada a ver. Não ligo mais.”. de assumi-la por causa “dos outros”. Por alguma razão, Clarissa con- Não que ela ficasse chateada, até tava-me todos esses fatos densos e entendia, mas achava que não era a difíceis de sua vida, para em seguida, atitude correta. quando se referia à sua vida presen- Nas sessões seguintes, Cla- te, caracterizar-se como uma pessoa rissa fala de sua família, com quem frívola, como se fizesse as coisas não quer contar, pois sofrera muito sem saber o que estava fazendo,
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“do nada”, “porque deu vontade na tário do grupo, algumas “besteiras”, hora”, sem que suas autoagressões transgressivas ou não, são feitas, e ou “tentativas de suicídio” dissessem são justificadas pelos adolescentes e respeito às pessoas com que se rela- mesmo pelos pais como atos impen- cionava e ao que se passava nessas sados, não propriamente intencio- relações. Nunca admitia uma mágoa, nais, pois o rapaz ou moça “vai pela um ressentimento, uma tristeza que cabeça dos outros”. “Ir pela cabeça fosse diante de coisas que os outros dos outros”, é algo que até certo pon- lhe faziam, coisas que poderiam ge- to já era feito até então, a questão é rar decepção. Curiosamente, sempre que outros são esses, que agora já uma situação desse tipo precedia o não são mais apenas os pais, mas envenenamento, o pendurar-se na o grupo, a turma etc. Fazer, nesses laje, cortar os pulsos etc. Não que ela casos, se apoia no grupo, mas é um relatasse esses eventos em sequên- fazer que concerne ao adolescente, e cia, de modo algum. Era na reconstru- que tem uma significação para esse ção das histórias, através de minhas adolescente que faz. Portanto, fazer perguntas, onde se evidenciava a para não pensar, ato solitário ou em sequência: a rejeição ou a decepção, grupo, é uma forma de evitar um po- e a “besteira”, isto é, a passagem ao sicionamento diante de determinadas ato. dificuldades. No caso de Clarissa, o ato suicida, ou no mínimo, autoagres- Pensar ou fazer sivo, a livra de se dar conta do que não quer (ou não suporta) ver, pois ao Muitas vezes, quando alguma se dar conta, terá que pensar e agir coisa não pode ser pensada, quan- levando isso em conta, isto é, conse- do vivê-la não parece ser suportável, quentemente. A postura do terapeuta, mas tampouco é possível esquecê-la, diante desses atos “impensados”, ge- “deixar para lá”, uma ação toma seu ralmente não tão graves como os de lugar. Fazer, nesses casos, substitui Clarissa, mas relativamente comuns o pensar, diferentemente do fazer que na adolescência, não pode ser a de é consequente ao pensar ou sentir, uma simples condenação ou julga- que é um fazer assumido pelo sujeito mento moral, mas deve se basear no que pratica o ato. Na adolescência, entendimento de que eles se referem pelo porte das elaborações das ques- a algo que não está podendo ser pen- tões que estão em jogo, atos tidos sado, e se trata de descobrir o que como inconsequentes muitas vezes está sendo tão difícil assim para o são a saída para algo que não pode adolescente lidar. ser dito ou mesmo pensado. É assim que, apoiando-se no suporte identi-
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Pensar e fazer o ato supostamente suicida, em que fica patente que algo não vai bem Pensar as estratégias clínicas com Clarissa, isto é, algo que não é de atendimento psicanalítico a ado- vivido e assumido enquanto tal termi- lescentes implica em pensar as es- na em um ato para ser visto, atestan- tratégias dos adolescentes em lidar do, testemunhado por um outro que com as suas questões. No caso de vem lhe salvar, o seu sofrimento e Clarissa, por exemplo, as autoagres- desespero. sões e supostas tentativas de suicídio A estratégia clínica depende da aparecem como uma estratégia, para estratégia da paciente. Nesse enten- que seu desespero, seu sofrimento dimento, o caminho está dado: cami- seja visto por alguém. Assim, não se nhar da estratégia em direção àquilo trata de uma tentativa pura e simples que ela vem responder, o insuportá- de se apartar da vida, mas de um ato vel, no caso de Clarissa, da decepção. que é endereçado, que deve ser visto Assim, é pela implicação de Clarissa por alguém, a tempo de salvá-la. O em seu ato, isto é, na conexão des- que não significa que não haja riscos se ato com algo lhe dá significado, a nessas empreitadas, e assim, por um decepção, é que é possível fazer ver erro de cálculo, ou por azar, o desen- o que é insuportável nisso. É a partir lace pode ser fatal. Mas além desses desse tipo de entendimento que po- atos suicidas endereçados, há uma demos, a cada passo, adotar uma ou estratégia anterior. Clarissa nega outra medida, peculiar a cada caso. qualquer ressentimento, qualquer so- frimento que outra pessoa, de quem goste, possa lhe causar. Aponta as A trajetória da adoles- fraquezas daqueles a quem ama, cência seus defeitos, mas quase que se de- O advento da puberdade traz clara invulnerável ao sofrimento. Se para o menino ou para a menina no- sofre é pelo bem do outro, e não por vas questões referentes à identidade, estar magoada ou decepcionada. à sexualidade, à relação com os pais Assim, temos que, em primeiro e a seu lugar no mundo. Há, nas pa- lugar, há uma expectativa quanto ao lavras de Freud, um novo aporte libi- que um outro significativo possa lhe dinal, uma nova onda de sexualidade, dar, lhe propiciar. Segundo, há uma que traz a possibilidade biológica do decepção com relação a essa expec- ato sexual. Diferentemente da sexu- tativa, o que parece ser insuportável alidade na infância, na adolescência, para Clarissa. Terceiro, essa decep- está posto como possível o ato sexu- ção é minimizada, como se não pu- al. Assim, diz Freud, não seria de se desse ser sentida e vivida. Quarto, estranhar que o menino ou a meni- Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 95 na dirigisse sua sexualidade àqueles dão mostras de sua fragilidade pela que lhe são mais próximos e que já consecução de atos violentos contra ocupam um lugar privilegiado nas re- ela, mas sendo “moleca”, “muito leva- lações objetais, ou seja, os pais. Con- da”, de certo modo preservava-se de tudo, já está colocada aí a interdição sucumbir a uma total submissão que do incesto, e o adolescente terá que não dá lugar ao desejo, e, ao mesmo mais uma vez renunciar aos pais para tempo, justificava as punições, decer- estabelecer novos objetos de identifi- to exageradas. cação e escolha sexual. Os pais terão que ser, de alguma forma, destituídos A decepção deste lugar tão especial, para que ou- A decepção que leva Clarissa a tras pessoas venham a ser investidas se afastar dos pais não é com uma libidinalmente pelo adolescente. Se- violência praticada contra ela. Trata- gundo Freud, essa forçagem entre a se, aí, da complacência dos pais para nova onda emergente de sexualidade com a irmã, que a trai e destrata os e a necessidade de abandonar esses pais, que, por sua vez, continuam bus- laços com os pais é que daria origem cando aproximação com esta filha. ao famoso “conflito entre gerações”. Sob essa decepção podemos pensar A idealização dos pais é, então, aba- encontrarem-se muitas outras: com o lada, e não raro outras pessoas vêm pai alcoolista, que é injusto com ela e ocupar, ainda que transitoriamente, com a mãe, e com a mãe que segue esse lugar de ideal. Incoerências, fa- ao lado pai, não se posicionando “a lhas, defeitos dos pais, até então ne- favor” da filha, mas, em situações- gados ou justificados pelas crianças, limite, se colocando “contra” ela. Por que precisam da segurança da hiper- trás do triângulo amoroso Clarissa- potência parental, serão percebidos irmã-namorado, podemos pensar como tais, e até hiperdimensionados estar outro triângulo, edípico, da filha às vezes, para que o adolescente que não entende por que a mãe con- possa encontrar as suas próprias re- tinua ao lado do pai. Saindo de casa, ferências. Esse processo de sepa- Clarissa encontra, em outra família, a ração passa, portanto, muitas vezes dos patrões, uma cena semelhante: por decepções com relações aos da mulher com os filhos e o marido pais, por coisas que não eram pro- que bebe e destrata a mulher. Só que priamente desconhecidas na infân- nesse enredo, agora, há um desen- cia, mas de certo modo negadas ou lace diferente: é o marido que sai de justificadas. No caso de Clarissa, fica casa, deixando as duas livres para claro que ela já sabia e sofria com “uma relação íntima”. Se pensarmos várias dificuldades de seus pais, que no que Freud diz acerca da relação
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pré-edípica da menina com a mãe, Crises com os pais continuam existin- relação que precede o amor edipiano do, e a orientação sexual de Claris- da menina ao pai, temos os elemen- sa não é ainda definida. Há namoros tos para saber que é possível uma com rapazes e casos com moças, in- regressão da menina para a relação clusive uma retomada, por um tempo, com a mãe. Ante os impasses pos- da relação com Sandra. tos pela diferença sexual, Clarissa, Um episódio marca muito Cla- ainda virgem de uma relação sexual rissa: um amigo do pai, alcoolizado, com homens, volta-se para essa rela- tenta agarrá-la à força, mas não con- ção com Sandra, fora do mundo dos segue. Mesmo sabendo disso, o pai homens, violentos e beberrões, que continua amigo desse homem. Dessa não cumprem seu papel de proteger vez, contudo, Clarissa, ao invés de se e suprir as mulheres. Com a saída do envenenar ou cortar os pulsos, con- marido de Sandra de casa, Clarissa segue dizer algo ao pai e indignar-se empreende contra ele um processo com ele. Percebe as incoerências trabalhista, pois ele lhe deve seus di- parentais, a fragilidade de ambos, e reitos, que não são pagos quando é, o quanto isso a faz sofrer. Mas for- então, demitida. Há algo a reclamar mula para si que, até ser uma pessoa dos homens, algo de direito, que, no adulta, independente, terá que lidar entanto, nunca vem. Na relação com de alguma forma com isso, e ir cons- Sandra, também, uma insuficiência truindo as condições para que esse se dá: a relação de ambas jamais é dia possa chegar. assumida oficialmente, e Sandra não se mostra em condições de fazê-lo. Para saber mais O trabalho com Clarissa permi- Freud, S. Tres ensaios de teoría se- tiu-lhe trazer para si aquilo que não xual, In:Obras Completas,vol. 7. conseguia ser pensado, mas agido. Amorrortu, Buenos Aires, 1992. Assim, Clarissa, aos poucos, retoma ________ Sobre la psicogénesis de seus estudos, volta a morar com os un caso de homosexualidad feme- pais, faz cursos de computação e tra- nina, In: Obras Completas, vol.18. balha em meio expediente em uma Amorrortu, Buenos Aires, 1992. indústria de reciclagem junto com a ________33ª Conferencia. La femi- mãe. Retoma seu lugar de filha, e nidad, In: Obras Completas, vol. 22. passa a se interrogar sobre o futuro. Amorrortu, Buenos Aires, 1992.
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