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ESCOLA CONVERGÊNCIA

de teologia & vida cristã

ESPAÇO
PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em
meio às Agitações da Vida Moderna

Monte Mor/SP
2018
Esta apostila foi redigida a partir das videoaulas ministradas na Esco-
la Convergência de Teologia & Vida Cristã EAD (Ensino a Distância)
e outros materiais didáticos relacionados, cujas referências constam
no corpo da mesma.

Copyright© 2018 por Escola Convergência
Todos os direitos reservados

Autor:
Eliza Walker

Compilação e Elaboração de Texto:


Lauriane Lima de Sousa Hayashiguti
Camila Brum

Revisão Teológica:
Harlindo de Souza

Revisão Final:
Maria de Fátima Barboza

Diagramação:
Fabi Vieira

Esta apostila ou qualquer parte dela não pode ser reproduzida
ou usada de forma alguma sem autorização expressa da Escola
Convergência, exceto pelo uso de citações breves desde que
mencionada a fonte, com endereço postal e eletrônico.

ESCOLA CONVERGÊNCIA
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Sumário
Aula 1
Espaço vazio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Aula 2
Retrato da vida natural I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Aula 3
Retrato da vida natural II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Aula 4
A grande tentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Aula 5
A vida de Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Aula 6
Nossas vidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Aula 7
A disciplina da solidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

Aula 8
A disciplina da comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Aula 1
v.1.0.0

ESPAÇO
VAZIO
Em meio às fontes inesgotáveis de ocupação e entretenimento, existe o convite
assombroso por parte de Deus para esvaziar-se. Ao se abster da busca incansável
por preencher o tempo e a alma, o homem se torna livre para ouvir a voz de Deus.
O objetivo desta primeira aula, da série “Espaço para Deus”, é incutir no aluno a
necessidade que ele possui de dizer sim ao convite divino e esvaziar-se. Isso im-
plica em jejuar, jejuar o tempo gasto em redes sociais, jejuar conversas, jejuar as
distrações, jejuar as ocupações. É impossível que o homem percorra o caminho da
espiritualidade cristã sem antes esvaziar-se.
O homem contemporâneo é, por diversas vezes, marcado pela ideia de dever pro-
dutivo. É possível perceber o alto valor associado à palavra “ocupação”. Estar ocu-
pado é sinônimo de status, portanto, desacelerar é ir contra as exigências da lógica
que rege o mundo moderno. O entretenimento, assim como o dever produtivo, é

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

outro ladrão do tempo e da atenção do homem. São inúmeras as ferramentas dis-


poníveis para fugir da desocupação e do tédio, como os livros, as redes sociais, as
compras, os filmes e séries, enfim, são diversos os convites e propostas para preen-
cher o tempo e a alma.

Entendendo o espaço vazio


A seguir, veremos uma história Zen que servirá para ilustrar a importância do es-
vaziar-se:

“Nan-in, um mestre japonês do período Meiji (1866-1912), recebeu um


professor universitário que veio consultá-lo a respeito do Zen. Nan-in
serviu chá. Encheu a xícara do visitante até a boca e continuou a enchê-
-la. O professor ficou olhando o chá transbordar até que não pôde conter-
-se: “Está cheia! Não vai entrar mais nada!” “Como essa xícara”, disse
Nam-in, "você está cheio de suas opiniões e especulações. Como posso
mostrar-lhe o Zen sem que você esvazie sua xícara?” (Zen Flesh, Zen B
ones,1998, p.5, apud NOUWEN, 2003, p. 74)¹

Um interior cheio de especulações, entretenimento e ocupações, torna-se hermé-


tico para qualquer experiência espiritual e transcendente.
A problemática a respeito do espaço vazio assola a humanidade desde o Éden, pois o
pecado bagunçou o interior do homem, o tornou cego e surdo para sua própria realidade.
Após a queda a comunhão entre Deus e o homem foi cortada, uma lacuna entre Cria-
dor e criatura foi aberta. A desobediência de Adão condenou a humanidade a uma
surdez patológica frente à realidade, gerando consequentemente um vazio de pro-
porções eternas no interior do homem. Como forma de suplantar o silêncio e o vazio
existencial, o homem elevou ao máximo o volume do entretenimento e das ocupa-
ções. É possível dizer que o século XXI é o século do entretenimento, nunca antes
na história foram oferecidas tantas fontes de divertimento e distração, e são esses os
ladrões que roubam o homem da verdadeira vida que ele foi criado para usufruir.
Vejamos ainda sobre as distrações ligadas à produtividade. Segundo Henri Nouwen
(1984), em seu livro Espaço para Deus, ocupação e produtividade estão diretamen-
te ligadas à identidade, vale destacar um trecho do livro:

1 NOUWEN, Henri J. M. Crescer, Os três movimentos da Vida Espiritual. 3 ed. São Paulo:
Paulinas, 2003.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Na nossa sociedade orientada para produção, estar atarefado ou ter uma


ocupação tornou-se uma das principais formas, se não a principal, de
nos identificar. Sem uma ocupação, não só nossa herança econômica,
mas nossa própria identidade é ameaçada. Isto explica o grande temor
com que muitas pessoas enfrentam a aposentadoria. Afinal, quem somos
depois de não mais ter uma ocupação? (NOUWEN, 1984, p. 4-5)2

Não seria exagero afirmar que o entretenimento e o dever produtivo são estratégias
desesperadas do homem na tentativa por disfarçar suas angústias, uma vez que tais
ferramentas ajudam a mascarar a surdez e o vazio. Blaise Pascal, um gênio mul-
titalentos do XVII, apresenta em diversos fragmentos de seu livro Pensamentos
(2003)3 publicado postumamente, sua visão a respeito do divertimento ou prazer.
Segundo ele, o divertimento é a maneira pela qual o homem tenta cobrir suas mi-
sérias. Pascal, profetizou que as gerações futuras seriam perseguidoras ávidas do
divertimento e do prazer. Portanto, esvaziar-se significa abrir mão desses disfarces
para tocar a realidade, pois é apenas por meio da realidade, ou seja, da ausência de
máscaras e disfarces, que o homem é capaz de se conectar consigo mesmo, com o
próximo e com Deus.
O interior do homem que é constantemente alimentado por entretenimento, ocu-
pações, ilusões e mentiras, se torna um ambiente inapropriado para a voz de Deus.
Apenas o espaço vazio é capaz de atrair a Voz de Deus.

O tabernáculo e o interior do homem


O tabernáculo, parte fundamental da liturgia judaica, foi construído com base em
uma rigorosa planta instituída por Deus. Esse local era formado por três partes, o
Átrio, Santo Lugar e Santo dos Santos, sendo cada uma delas repleta de preciosos
detalhes. As três partes eram imbuídas de valor e significado dentro da liturgia ju-
daica, porém, uma se destaca em importância entre as demais - o Santo dos Santos.
Este era o alvo de toda a liturgia, as demais partes apontavam para esse lugar que
continha o móvel mais solene de todos, a arca da aliança.

“Também farás um propiciatório de ouro puro, com dois côvados e meio


de comprimento e um côvado e meio de largura. Farás também dois que-
rubins de ouro batido, nas duas extremidades do propiciatório. Farás um
querubim em cada extremidade. Serão feitos para formar uma só peça com
o propiciatório, nas duas extremidades dele. Os querubins terão as asas
estendidas por cima do propiciatório, cobrindo-o; estarão um de frente

2. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984.


3. PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2003.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

para o outro, com as faces voltadas para o propiciatório. Colocarás o


propiciatório em cima da arca; e dentro da arca porás o testemunho que
te darei. Ali virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois que-
rubins que estão sobre a arca do testemunho, falarei contigo a respeito de
tudo o que eu te ordenar para os israelitas.” (Êx 25.17-22)
Deus viria e falaria de cima do propiciatório, entre os querubins, ou seja, um local
vazio, esse era o fim do ritual judaico. A liturgia apontava para um hiato, diante do
qual o sacerdote se portaria e ouviria a Voz que direcionaria todo o povo. As outras

religiões dispunham de deuses personificados em imagens, seus rituais apontavam


para algo previsível, mas os judeus precisavam lidar com a imprevisibilidade, com
o desconforto de um espaço vazio.
Por não saberem lidar com o desconforto da imprevisibilidade e do vazio, o povo de
Deus se desviou por diversas vezes dos preceitos divinos. A dureza do coração os
faziam, constantemente, trocar o Deus verdadeiro pelos falsos, aqueles feitos por
mãos humanas. Tais quebras de aliança despertavam os ciúmes de um Deus zeloso.
Assim como os judeus, os cristãos não estão isentos do desconforto da imprevi-
sibilidade, tampouco da dureza de coração. Portanto, é importante que o homem
mantenha-se firme no propósito de esvaziar-se, compreendendo que Deus o con-
vida para uma vida de constante expectativa, para que, assim como ele falava entre
os querubins, ele fale ao interior de seus filhos.

O grande desconforto
A imprevisibilidade é extremamente desconfortável, por isso o homem busca por
segurança, seja nos relacionamentos, nas finanças ou na saúde. Todavia, Deus con-
vida seus filhos a trilhar um caminho completamente imprevisível, alimentado de
expectativas a cada novo passo. Trilhar esse caminho implica em ter como única
segurança o fato de ser guiado pela voz de um Deus confiável.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Além do desconforto gerado pela imprevisibilidade, existe um outro que atinge


desde neófitos a maduros na fé. Pois, ao esvaziar-se na expectativa por ouvir a voz
de Deus, o homem se depara com diversos “fantasmas” a muito tempo adorme-
cidos nos recônditos da alma. Esses “fantasmas” são pecados, vozes, crises e ou-
tros incômodos que circulam livre e intensamente pela mente dos que buscam
o relacionamento com Deus. Essa é uma experiência perturbadora, mas nenhum
desconforto é grande o suficiente se comparado a recompensa que é a voz de Deus,
aquele que traz luz sobre as trevas.

Entendendo a importância da voz de Deus


Como vimos anteriormente, para ouvir a voz de Deus é necessário esvaziar-se, e
esse é um processo repleto de desconfortos. Caso a importância do alvo não seja
clara na mente dos cristãos, esvaziar-se será enfadonho e desprendido de significa-
do. O alvo do espaço vazio é a voz de Deus e não existe vida longe dele, a sua voz é
a única possibilidade de luz em meio às trevas que habitam o interior do homem.
O homem, por meio do intelecto, busca alcançar a Deus de baixo para cima. A
filosofia grega é um grande exemplo dessa busca, pois inicia-se no momento em
que o homem levanta questionamentos e reflexões sobre temas elementares. Tais
questionamentos, desenvolvidos e aprofundados com o passar dos séculos, reve-
lam apenas a angústia do homem por conhecer a Deus, aquele que possui todas as
respostas e aplaca a angústia do homem revelando-se a ele.
Deus, em sua infinita misericórdia, propõe ao homem um relacionamento no qual
ele se inclina em direção aos seus filhos, um caminho de cima para baixo. Tal comu-
nicação, que havia sido quebrada no Éden, foi restaurada quando o Filho de Deus
quebrou o silêncio na cruz. Cristo, por meio de seu sacrifício perfeito, possibilitou
novamente a comunicação que o pecado havia quebrado.

DEUS DEUS

X
INTELECTO/ GRAÇA/
RAZÃO MISERICÓRDIA

HOMEM HOMEM

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Até aqui entendemos que a voz de Deus é acessível, desde que o interior do homem
esteja livre para ouvi-la. Mas é importante ressaltar o quão vital é a voz de Deus para
o cristão. A verdade é que não existe vida cristã sem a voz de Deus, seria impossível
guardar os mandamentos divinos sem um relacionamento com a voz de quem os
ordenou. Por isso, não existe possibilidade de crescer em santidade sem ouvir a voz
de Deus. O homem que cumpre as regras da religião sem um relacionamento com
Deus é religioso, não espiritual. O religioso não usufrui da escandalosa verdade de
que: Deus existe e quer se comunicar!
É responsabilidade do homem esvaziar-se, sendo responsabilidade de Deus falar e
se fazer entendido. Deus é um comunicador por excelência e sabe a forma correta
de se comunicar com cada um de seus filhos, seja o mais maduro na fé ou o que
acaba de dar os seus primeiros passos.
Quando a comunicação com Deus acontece, a vida começa a fluir. Mesmo que as
distração e ocupações disfarcem o vazio interior, o homem é constantemente aler-
tado sobre a ineficiência desses disfarces. Portanto, Deus em sua infinita Graça e
misericórdia, convida Seus filhos para um relacionamento capaz de iluminar e pre-
encher o mais obscuro interior, trazendo vida onde existia morte. Para embarcar
nessa aventura imprevisível guiada pela voz de Deus, é necessário que o homem se
esvazie e esteja livre de todo e qualquer disfarce, tornando seu interior um ambien-
te propício para que a vida de Deus flua. A responsabilidade do homem é ultrapas-
sar a barreira do desconforto e libertar-se de tudo que o impede de esvaziar-se, para
então andar pelo único caminho capaz de o conectar à verdadeira vida.

OUVIR A VOZ DE DEUS É VIDA,


NÃO OUVI-LA É MORTE!

“Se ouvires atentamente a voz do SENHOR, teu Deus, e fizeres o que é


correto aos seus olhos, e deres ouvido aos seus mandamentos, e guardares
todos os seus estatutos, não enviarei contra ti nenhuma das doenças que
enviei contra os egípcios, pois eu sou o SENHOR, que te sara.” (Êx 15.26)

“Agora, portanto, se ouvires atentamente a minha voz e guardardes a


minha aliança, sereis minha propriedade exclusiva dentre todos os po-
vos, porque toda a terra é minha” (Êx 19.5)

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

“Entretanto, não haverá pobre algum no teu meio (pois o SENHOR cer-
tamente te abençoará na terra que o SENHOR, teu Deus, te dará por
herança para possuíres), desde que ouçam com atenção a voz do SE-
NHOR, teu Deus, cuidando para cumprir todo este mandamento que
hoje te ordeno.” (Dt 15.4,5)

“Se ouvires atentamente a voz do SENHOR, teu Deus, tendo o cuidado


de guardar todos os seus mandamentos que hoje te ordeno, o SENHOR,
teu Deus, te exaltará sobre todas as nações da terra. Se ouvires a voz do
SENHOR, teu Deus, todas estas bênçãos virão sobre ti e te alcançarão.”
(Dt 28.1,2)

“Se, porém, não ouvires a voz do SENHOR, teu Deus, não cumprindo
todos os seus estatutos, que hoje te ordeno, todas estas maldições virão
sobre ti e te alcançarão.” (Dt 28.15)

“Na angústia clamaste, e te livrei; eu te respondi no meio dos trovões;


coloquei-te à prova junto às águas de Meribá. Meu povo, ouve-me e eu
te advertirei; ah, Israel, se apenas me escutaste! Não haja no meio de ti
deus estranho, nem te prostres perante um deus estrangeiro. Eu sou o
SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito; abre bem a tua boca,
e eu a encherei. Mas meu povo não ouviu minha voz, e Israel não quis
saber de mim. Por isso, eu os entreguei à teimosia de coração, para
que andassem segundo seus próprios conselhos. Ah, se o meu povo me
escutasse! Ah, se Israel andasse nos meus caminhos!” (Sl 81.7-13)

“Apenas reconhece que foste rebelde contra o SENHOR, teu Deus, e que
te prostituíste com deuses estrangeiros debaixo de toda árvore frondosa e
não deste ouvidos à minha voz, diz o SENHOR.” (Jr 3.13)

“Mas lhes ordenei isto: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso
Deus, e vós sereis o meu povo; andai em todo o caminho que eu vos or-
denar, para que vos corra tudo bem.” (Jr 7.23)

“Dize-lhes: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Maldito o homem


que não der ouvidos às palavras desta aliança, que ordenei a vossos pais
no dia em que os tirei da terra do Egito, da fornalha de fundição de ferro,

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

dizendo: Ouvi a minha voz e fazei segundo tudo o que vos mando; assim
vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus.” (Jr 11.3,4)

“Falei contigo no tempo da tua prosperidade; mas tu disseste: Não escu-


tarei. Este tem sido o teu procedimento, desde a tua juventude não ouves
a minha voz.” (Jr 22.21)

“Pois quem dentre eles esteve no conselho do SENHOR, para que perce-
besse e ouvisse a sua palavra, ou quem esteve atento e escutou a sua pa-
lavra? Aí está a tempestade do SENHOR! A sua fúria foi desencadeada;
um tufão gira sobre a cabeça dos ímpios. A ira do SENHOR não recuará
até que ele tenha escutado e cumprido os seus planos. Nos últimos dias
entendereis isso claramente. Eu não enviei esses profetas, contudo foram
correndo; não lhes falei, todavia profetizaram. Mas se tivessem compa-
recido ao meu conselho, então teriam feito o meu povo ouvir as minhas
palavras e o teriam afastado do seu mau caminho e da maldade das suas
ações.” (Jr 23.18-22)

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Aula 2
v.1.0.0

RETRATO DA
VIDA NATURAL
Parte 1
O advento da modernidade gerou nos homens uma obstinação por produtividade.
Nenhum assunto parece resistir a isso, sejam os relacionamentos ou as vocações,
nada escapa à pressão exercida pelo anseio produtivo. Está incrustado no imagi-
nário geral o fato de que cumprir metas em prol do sucesso é uma norma padrão
a que se deve submeter. Não é à toa que alguns relacionamentos se assemelham a
contratos, quebrados ao menor sinal de disparidade nos objetivos. Do hábito de
avaliar tudo com base na produtividade, nem mesmo a espiritualidade é poupada.
É comum que o crescimento espiritual seja analisado com os filtros da produti-
vidade, porém, a espiritualidade não pode ser medida, tampouco autoanalisada.
Submeter o relacionamento com Deus a esse processo é um erro. Não existem os
dez passos para a perfeição espiritual, pois a caminhada cristã diz respeito a um
relacionamento fluido e constante com o Rei do Universo. Esse relacionamento
exige tudo do ser humano, inclusive a necessidade de estar à frente, analisando e
controlando cada passo.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Com base nesse quadro, faz-se necessário advertir o aluno sobre os perigos da au-
toanálise. Pois julgar a maturidade espiritual alicerçado na produtividade pode re-
sultar em culpa e desespero. O homem que busca medir o nível espiritual no qual
se encontra, ou que tenta calcular os passos que o levarão rumo ao sucesso espiri-
tual, atrai para si frustração. Ele logo percebe que seus esforços e cálculos, muito
úteis no mercado de trabalho, surtem efeito contrário na caminhada cristã, pois
essa é uma estrada guiada única e exclusivamente por Deus.
Essa aula abordará a espiritualidade de uma forma didática. Veremos sobre a con-
fiança e desconfiança em Deus, o paradoxo “cheios e não realizados”, as preocu-
pações que empurram o homem para fora do seu lar, e todos esses são assuntos
comuns aos homens. Portanto, é importante que o aluno desconfie de sua mente
e resista à tentação, ao se deparar com o conteúdo dessa aula, de submeter-se à
autoanálise espiritual. Perguntas como, “em qual nível da maturidade cristã me en-
contro?”, “qual o próximo passo a ser dado?” ou algumas outras do gênero podem
assolar as mentes dos que buscam crescer em relacionamento com Deus, porém,
seguir nessa direção é perigoso. Então libere sua mente das influências que regem
essa era e abra espaço para receber algo novo da parte de Deus.

CONFIANÇA X DESCONFIANÇA

Na aula anterior falamos sobre o espaço vazio e a importância de esvaziar-se para


ouvir a voz de Deus. Vimos também sobre o perigo que o pensamento moderno
traz à espiritualidade, tendo em vista que a era vigente valoriza de maneira exacer-
bada a produtividade. É comum que a ideia de sucesso esteja diretamente ligada às
ocupações exercidas, fato que leva o coração do homem a afogar-se no mar das pre-
ocupações. Essas são características que traduzem uma humanidade desconfiada. O
homem, desde os primórdios de sua existência, é afetado pela desconfiança em Deus
e, por isso, busca preencher seu vazio, por diversas vezes, em fontes ineficazes.
A desconfiança em Deus é um dos fatores que leva a humanidade a abarrotar o
espaço vazio de preocupações. As mentes são constantemente preenchidas por
planejamentos, compromissos, acontecimentos futuros ou passados, enfim, uma
avalanche de pensamentos que empurram o homem para fora do seu lar, tornan-
do-o desconectado da realidade. Segundo Henri Nouwen (1984)¹, uma forma de
expressar a crise espiritual atual é dizendo que a maioria dos homens possui um

1. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p.9

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

endereço, mas não podem ser encontrados lá. Mesmo possuindo um lar, andam
como desabrigados, justamente por fixar a atenção nas preocupações e ocupações.
A humanidade encontra-se atarefada, porém desligada da realidade, em todo lugar,
porém nunca em casa², o mundo é repleto de seres fragmentados. É desse estado
alarmante que Jesus quer retirar o homem, conduzindo-o de volta ao lar, para uma
vida integral.
Cristo convida o homem a reconhecer sua existência desabrigada, para a partir dis-
so mudar o centro do seu coração, onde habitam as preocupações, convertendo-as
em confiança no Pai. O fato de a humanidade gastar boa parte de sua energia com
“todas essas coisas” reforça como a confiança em Deus está abalada, ela foi ferida
de uma maneira covarde no Éden, mas falaremos sobre isso mais adiante.
Em Mateus 6, Jesus faz um resumo de sua mensagem, dizendo:

“Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que bebere-


mos? Com que nos vestiremos? Pois os gentios é que procuram todas
essas coisas. E, de fato, vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos
serão acrescentadas.” (Mt 6.31-33)

Nesta passagem, ele está apontando para a ordem que reina na criação e garante
que, assim como as aves são alimentadas e os lírios bem-vestidos, o homem tam-
bém será suprido em suas necessidades. Jesus está convidando a humanidade para
entrar no descanso que Deus oferece aos seus filhos. Um lugar onde as preocupa-
ções não estarão mais no centro de seus corações, pois darão espaço para a confian-
ça no Pai celestial.

A RAIZ DA DESCONFIANÇA

A confiança do homem em Deus foi ferida no Éden, portanto, esse é um sentimen-


to que acompanha a humanidade desde o início de sua existência terrena. Seu prin-
cípio se deu quando a astuta serpente arquitetou, de maneira covarde, a armadilha
na qual Eva caiu, arrastando consigo toda a humanidade. Vejamos:

2. idem., p.9.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

“Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o


SENHOR Deus havia feito. E ela disse à mulher: Foi assim que Deus
disse: Não comereis de nenhuma árvore do jardim?” (Gn 3.1)

Existe muita maldade e astúcia implícita nessa pergunta, uma vez que a serpente
não era ignorante quanto às proibições e permissões concedidas por Deus no Éden.
Deus havia proibido apenas um fruto do jardim, portanto, o motivo da pergunta
não seria outro senão levar o homem a questionar a fidelidade do Criador. Ao ser
indagada, Eva teve sua atenção voltada para uma proibição, fato que desencadeou
a desconfiança em coisas elementares. Ela experimentou o receio, nunca presente
antes em seu coração, de que Deus poderia estender sua proibição a todos os frutos
do jardim, ocasionando fome e desespero. Nasce então a raiz da desconfiança, mal
que acompanhará a humanidade em toda sua trajetória.
Em meio a um mundo que desconfia do Deus que o sustenta, Jesus propaga a men-
sagem capaz de transportar o homem da loucura para a sanidade. Ele segue seu
discurso³, dividindo a humanidade em duas categorias, os gentios, que se preocu-
pam com o que comer, o que beber e o que vestir, e os filhos, aqueles que buscam
unicamente o reino de Deus. Uma vida desprendida de preocupações é o centro da
espiritualidade cristã e do esvaziar-se. É para esse lugar que Jesus aponta, um lugar
de plenitude, onde a confiança em Deus será reconquistada.

GENTIOS FILHOS

X
BUSCAM TODAS BUSCAM UMA
ESSAS COISAS COISA SÓ

O homem vive como desabrigado e ausente da realidade, efeitos da falta de confiança


no Pai celestial. Mas os filhos de Deus são convidados para uma vida integral, livre da
fragmentação e das preocupações. Os gentios que buscam “todas essas coisas”, pois
aos filhos cabe a busca pelo reino de Deus. Portanto, Cristo veio para mostrar que o
Pai é plenamente confiável e almeja ter de volta a confiança de seus filhos.

3. Mt 6.31-33

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

CHEIOS

Estar atarefado é o padrão no qual o homem moderno submeteu sua vida diária. To-
dos andam repletos de ocupações e convivem com a insistente sensação de atraso e
dever não cumprido. Existe sempre uma pendência no ar, uma visita que deve ser
feita, um assunto incompleto, um livro para ler, uma exigência de trabalho. Enfim,
são inúmeras as atividades a serem cumpridas para satisfazer as expectativas falsas e
as necessidades arranjadas4. Não poderia ser diferente, uma vez que estar atarefado
tornou-se sinônimo de status.
O homem contemporâneo é valorizado com base em sua produtividade, seu grau
de ocupação está diretamente ligado ao seu grau de importância. É comum que as
ligações sejam iniciadas, com ares de admiração, pela seguinte frase “sei que você
está ocupado, mas será que poderia me dar um minuto?5”, como se um minuto de
alguém ocupado fosse extremamente valioso. Portanto, aquele que deseja garantir
seu espaço entre as figuras relevantes, necessita submeter-se ao padrão moderno
de sucesso, ou seja, ocupar-se.
Como se não bastasse, o homem além de ocupar-se das mais diversas atividades,
ainda se encarrega das preocupações. Segundo Henri Nouwen6, o significado de
preocupação é estar ocupado e preocupado com muitas coisas, ao mesmo tempo
em que se experimenta o enfado, ressentimento e depressão. Andar preocupado é,
por vezes, associado ao senso de responsabilidade.
As preocupações têm o poder de fragmentar as vidas, elas conduzem o homem ao de-
sequilíbrio e tornam o mundo um lugar repleto de pessoas ausentes, indisponíveis e
solitárias. É como se a humanidade permanecesse entorpecida por um eterno estado
offline, com o corpo movendo-se anestesiado enquanto os pensamentos flutuam para
longe do momento presente. Comumente, as preocupações ligam-se a acontecimen-
tos ainda inexistentes, o homem fere a si próprio com perguntas como, “E se eu for
demitido?”, “E se eu não me casar?”. "E se eu não conseguir?”, “E se eu não tivesse
feito isso ou aquilo?”, e nisso consome-se boa parte da energia humana.
Os homens gastam sua energia correndo atrás do vento7, pois estando completa-
mente cheios, imersos no mar das ocupações e preocupações, deixam de usufruir da
fonte de águas vivas. Estar imergido nessa realidade desesperadora, de encontrar-se
cheio interna e externamente, impede que a vida de Deus flua livremente no interior
do homem.

4. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p.6.
5. Ibid., p.4.
6. Ibid., pg 9.
7. Eclesiastes 1.14

17
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

NÃO REALIZADOS

O homem, imerso nas ocupações e preocupações, raramente sente-se realizado. As


inúmeras tarefas executadas são inversamente proporcionais à realização e satisfação
proveniente delas. Mesmo preenchendo seu exterior e interior de atividades e preo-
cupações, o homem dificilmente sente-se em casa ou em paz. Ele é constantemente
lembrado de seu estado de fragmentação e desconexão. Sobre essa experiência de
não realização é possível destacar três sentimentos proeminentes: enfado, ressenti-
mento e depressão. Esses são sentimentos que fragmentam a existência do homem,
levando-o à total desconexão da realidade e cada vez mais para longe de seu lar.
De acordo com Henri Nouwen8, o enfado diz respeito a um sentimento de des-
ligamento. É estar desconectado, encontrar-se com a ausência de sentido no mar
das ocupações. O enfado leva o homem a duvidar de sua relevância e importância
no mundo, é um sentimento que o faz questionar a todo momento se as ativida-
des executadas ao longo do dia são imbuídas de algum significado. Portanto, estar
enfadado não é o mesmo que estar inativo, mas significa não encontrar sentido no
que está sendo feito. É como se a vida fosse apresentada em uma série de aconte-
cimentos desconexos que fogem ao controle. É nesse ponto que habita o paradoxo
da vida moderna, pois o homem encontra-se cheio, porém, não realizado. Ele con-
tinua a preencher sua vida de ocupações, mas questiona-se a todo momento se tais
atividades fazem alguma diferença, ou se o tornam importante para alguém. Esse
sentimento tão amargo e nocivo aos seres humanos conecta-se, por vezes, a um
outro ainda mais perigoso, o ressentimento.
Ao se deparar com a angustiante realidade de ser cheio e não realizado, o homem é
facilmente levado a questionar sobre a importância das atividades que realiza. Ele
questiona se suas ocupações são relevantes para alguém. Ao entrar nesse obscuro
caminho reflexivo, ele passa a enxergar sua realidade sob a ótica do ressentimento.
A sensação de estar sendo vítima da sociedade, injustiçada e explorada em suas
atividades, inunda o coração das pessoas ressentidas. Portanto, ressentimento tem
a ver com um rancor voltado ao outro. Diz respeito à angústia por sentir-se lesio-
nado ou injustiçado por alguém. Henri Nouwen, se refere ao ressentimento como
sendo uma ira congelada9, capaz de, ao menor dos gestos, transbordar em violência,
muitas vezes física. Ainda segundo ele, seus efeitos são mortíferos em nossa sociedade.
A falta de realização recai ainda sobre outro sentimento, mais nocivo que os cita-
dos acima, refiro-me à depressão. Depressão diz respeito a uma ira voltada con-
tra si, não a um simples tédio ou ressentimento perante a vida. Segundo Henri

8. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p.6.
9. Ibid., p.7.

18
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Nouwen (1984), a depressão acusa que “não somente nossa presença não faz diferen-
ça, mas que também nossa ausência talvez, seja preferível10”. Quem se encontra em
tal situação questiona-se com frequência sobre o sentido de continuar a existir, se
realmente vale a pena viver. Existe uma culpa latente que aflige o coração de quem
experimenta as dores da depressão, uma culpa que não diz respeito a uma atividade
específica, mas a própria vida. São comuns os casos de suicídio entre pessoas bem-su-
cedidas e admiradas por suas realizações, fato que reforça ainda mais a máxima que
estar cheio não produz realização. Em entrevista ao G111, a psicóloga Karina Okajima
Fukumitsu diz que “[...] quando a agressividade se volta contra si, o suicídio acontece.”
A depressão é essa agressividade voltada contra si e pode levar ao pior dos extremos.
Os perigos da não realização são visíveis no mundo contemporâneo. A humanidade
foi tomada pelo enfado, ressentimento e depressão, sentimentos que levam à sen-
sação de desconexão e desligamento. Essa desconexão com a vida é extremamente
angustiante e liga-se, muitas vezes, à solidão, doença comum ao mundo contem-
porâneo. Mesmo diante desses sofrimentos, o homem continua a submergir sua
mente no mar das preocupações, a grande causa de seus males. No anseio por se
ver livre da desconexão, fragmentação e isolamento ele acaba por afundar-se em
mais desespero.

O GRANDE PARADOXO

O homem do século XXI pode ser descrito como alguém cheio de atividades, e um
dos fatos que justifica esse estilo de vida é o grande valor agregado às ocupações e
preocupações. Porém, mesmo absorto em sua produtividade, o homem continua
a se deparar com a falta de realização. E aqui mora o grande paradoxo, o retrato da
vida natural. Pois se as ocupações agregam valor ao homem, logo, ser cheio deveria
estar diretamente associado à satisfação. Seguindo essa lógica, o homem ocupado
deveria representar a personificação da realização, porém, não é essa a realidade
vista. A verdade é que o mundo está repleto desta realidade paradoxal, pessoas
cheias, porém, não realizadas.
O homem, no anseio por se tornar integral e conectado à realidade, preenche-se
interna e externamente de preocupações e ocupações. Mas rapidamente depara-se

10. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p.7.
11. MORENO, Ana Carolina.Taxa de suicídio entre crianças e jovens de 10 a 24 anos cresce pelo
décimo ano concecutivo nos EUA. Disponível em:
<https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/10/20/taxa-de-suicidios-entre-criancas-
-e-jovens-de-10-a-24-anos-cresce-pelo-decimo-ano-consecutivo-nos-eua.ghtml> Acesso em:
26 de abril de 2021.

19
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

com a ausência de sentido e a não realização, fruto de suas escolhas. Ao final do dia,
após inúmeras tarefas cumpridas, os homens, absortos no mar das preocupações,
se deparam com o total vazio de sentido. Os perigos dessa condição são inúmeros,
estando inclusive, como dito anteriormente, entre uma das causas de suicídio. De
acordo com a reportagem feita em 2019 pelo G112, a taxa de suicídio cresceu pelo
décimo ano consecutivo entre crianças e jovens de 10 a 24 anos nos EUA, ultra-
passando o número de mortes por homicídio. Em entrevista ao jornal, a psicóloga
Karina Okajima Fukumitsu, diz que a crescente taxa de suicídio entre os jovens
está diretamente associada à falta de sentido na vida. Portanto, as preocupações e
ocupações pintam um quadro desesperador e paradoxal, o retrato da vida natural.
Nesse quadro o homem se encontra perdido e solitário, em busca de um lar, mas
correndo em direção contrária. Cheios e não realizados.
Viktor Frankl (2017), neuropsiquiatra austríaco que viveu os horrores do campo de
concentração na Alemanha nazista, diz sobre os perigos da falta de sentido:

[...] ai daquele que não via mais a meta diante de si em sua vida,
cuja vida não tinha mais conteúdo, mas perdia o sentido de sua
existência e assim todo e qualquer motivo para suportar o so-
frimento. Essas pessoas perdiam a estrutura e deixavam-se cair
muito cedo. A expressão típica com que replicavam a toda e qualquer pa-
lavra animadora era sempre a mesma: "Não tenho mais nada a esperar
da vida"[...]. (FRANKL, Viktor. 2019)13

O ciclo vicioso repete-se constantemente, o homem em busca de realização pro-


cura preencher-se de preocupações e ocupações, mas esse caminho não conduz à
realização e ainda se liga à falta de sentido, esse é um padrão desesperador. Com
base nessa análise do retrato da vida natural, podemos afirmar que as escolhas dos
homens são tolas, pois valorizam e perseguem o vazio, enquanto ignoram a fon-
te de águas vivas. O homem, em busca de sentido, se lança no abismo profundo
das ocupações e preocupações, afundando-se sem ao menos perceber que pros
segue em direção ao nada. Mas o evangelho aponta para uma vida repleta de
sentido e realização, pois um coração cheio de Deus jamais será vazio de sentido.

12. MORENO, Ana Carolina.Taxa de suicídio entre crianças e jovens de 10 a 24 anos cresce
pelo décimo ano concecutivo nos EUA. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-sau-
de/noticia/2019/10/20/taxa-de-suicidios-entre-criancas-e-jovens-de-10-a-24-anos-cresce-
-pelo-decimo-ano-consecutivo-nos-eua.ghtml> Acesso em: 26 de abril de 2021.
13. FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p. 101.

20
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

CONCLUSÃO

Os dias do homem contemporâneo podem ser comparados a uma mala abarrotada que
retorna de viagem, tão cheia a ponto de explodir ao acréscimo de qualquer novo item.
Não existe exagero em tal comparação, pois o homem, ao final do dia encontra-se tão
cheio de preocupações que se torna surdo à voz de Deus. Ele encosta sua cabeça no
travesseiro e sente que suas necessidades não f oram atendidas, encontra-se com
o vazio de sentido e com a fragmentação. Ele está cheio e não realizado. Mas para
que haja mudança nesse quadro é necessário que a humanidade esteja ciente desse
seu estado paradoxal.
Jesus quer reviver no homem o anseio por seu verdadeiro lar, para enfim torná-lo
disponível e conectado a uma família. Quando ele diz ao homem para não se ocupar
com ansiedades e preocupações, mas buscar primeiro o reino de Deus e sua justiça,
ele apresenta uma tábua de salvação em meio ao caos instaurado. O retrato da vida
natural não corresponde à vida que Cristo veio revelar à humanidade. Em Mateus
6 31-34, Jesus aponta para a verdadeira vida que está disponível aos filhos de Deus,
uma vida plena no Espírito, onde as preocupações são suplantadas. Deus não criou
o homem para viver uma vida fragmentada e desabrigada, ele almeja reconquistar a
confiança de seus filhos e conectá-los à realidade espiritual.
Um outro ponto importante a se falar é que Jesus não veio para tornar o homem
um ser desocupado, livre de suas atividades. Ele não sugere que a humanidade se
desligue de suas lutas e afazeres diários, mas o que ele busca é mudar o centro do
coração do homem, onde habitam as preocupações. Seu convite é para que o ho-
mem retorne ao lar e pare de se preocupar com “todas essas coisas”, tendo como
alvo a única coisa necessária, o Reino de Deus.
Toda essa análise da vida natural não foi feita com intuito de desanimar quem com ela
se identificou. A intenção desta aula é justamente o contrário, pois nos mostra que a
vida terrena não se resume apenas a enfado, ressentimento e depressão, existe uma
realidade espiritual disponível. É importante dizer que o cristão que vive sob o jugo da
preocupação não é um falso cristão, isso significa apenas que ele oscila entre as duas
realidades, espiritual e natural. Ninguém está isento dessa oscilação, pois ninguém
estaciona de maneira permanente em nenhuma delas.
Cristo convida o homem para assumir seu papel como filho. Seu convite é de re-
torno ao lar, onde habitam descanso e realização, onde a confiança em Deus será
restaurada e onde as preocupações não ocuparão o centro do coração. Essa é uma
mensagem de ânimo, ela garante que existe uma outra possibilidade para se viver,
uma realidade espiritual onde habitam paz e descanso.

21
Aula 3
v.1.0.0

RETRATO DA
VIDA NATURAL
Parte 2

Com a realidade altamente tecnológica e competitiva na qual reside o mundo mo-


derno, torna-se difícil conter as forças que saturam o exterior e interior do homem,
conduzindo-o para longe de sua essência. O pecado condenou a humanidade a
viver em um ambiente hostil, fragmentado e dividido. A vida é apresentada como
um elo quebrado e as almas buscam, desesperadamente, por uma vida integral. Os
homens, cristãos ou não, sentem-se como seres desabrigados e sofrem com sauda-
des de seu lar. Todos, sem exceção, estão à procura de uma vida autêntica e livre da
fragmentação, ou seja, uma vida íntegra, espiritual e inteira, que possa ser vivida
no momento presente, não apenas no porvir. Porém, a humanidade prossegue pre-
enchendo-se com ocupações e preocupações, fato que aguça ainda mais a sensação
de fragmentação e de se estar longe de casa. O retrato da vida natural revela uma
humanidade doente e desabrigada, paradoxalmente cheia e não realizada e ainda
isolada de si, hostil em suas relações horizontais e iludida em relação a Deus.

22
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Nessa aula faremos um exame crítico da vida natural, uma vez que se faz importan-
te compreender o caos no qual o homem contemporâneo reside. O primeiro passo
rumo à vida espiritual exige, antes, uma plena consciência da realidade fragmenta-
da na qual se vive.
Na aula anterior falamos sobre a realidade paradoxal de estar cheio e não realizado.
Falamos ainda sobre o convite de retorno ao lar que Jesus faz aos filhos de Deus.
Como sequência ao tema, daremos prosseguimento à análise da vida natural falan-
do sobre os três movimentos da vida espiritual: do isolamento para a solitude, da
hostilidade para hospitalidade, da ilusão para a vida de oração. Esses três movimen-
tos são indispensáveis para o crescimento espiritual, portanto, imprescindível para
aquele que busca prosseguir em sua caminhada cristã.

ISOLADOS

O isolamento não é uma experiência particular de determinada civilização ou ser,


mas algo que assola de forma universal a humanidade. Todo ser humano já se depa-
rou com situações que o fizeram adentrar na dolorosa experiência da solidão. Inde-
pendentemente do nível de isolamento enfrentado, a frase “sinto-me só” sempre
recairá, em doses comedidas ou excedentes, nas mentes dos homens. Não existe
fórmula para se isentar de tal abalo, pois onde existe uma alma, seja no quarto mais
silencioso ou na festa mais tumultuada, haverá a sensação de solidão.
Por mais que o isolamento acompanhe a humanidade desde o Éden, o mundo con-
temporâneo reforça ainda mais essa sufocante experiência. Por ser o sucesso o valor
que rege a era moderna, a competição e rivalidade tornaram-se ainda mais presen-
tes nos relacionamentos atuais, fato que aguça a percepção geral de se estar só no
mundo. Sentir-se só provoca no homem os mais diversos sintomas, como alcoolis-
mo, uso de drogas, sendo este inclusive a “raiz crescente do número de suicídios”1.
Vivemos em um mundo repleto de reuniões sociais dos mais diversos gêneros, mas
ao contrário do que se pensa, o homem, ao despedir-se de tais eventos, encontra-
-se com doses ainda mais intensas de solidão. Esse é o retrato fiel da humanidade,
ainda mais nítido na era vigente.
Abaixo se encontra um poema de Fernando Pessoa², escrito em 1920. Em suas
palavras é possível perceber o relato de quem está plenamente consciente de sua

1. NOWUEN, Henri J.M. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas,
2000. p. 23
2. Fernando Pessoa (1888-1935), famoso poeta português.

23
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

situação desesperadora. Mesmo projetando no outro a possibilidade de uma vida


plena, ele parece não acreditar ser possível que alguém esteja livre dessa experiên-
cia universal de solidão.

Outros terão (1920)


Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.
A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.
"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.
"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.
Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.³

Os grandes escritores, em especial os poetas, traduzem sentimentos universais,


por isso, temas que abarcam dor e sofrimento são tão recorrentes nas consagradas
obras literárias. Não há como negar o axioma de que todos sofrem e que a solidão é
uma das grandes responsáveis por tal dissabor.
A solução que muitos encontram para esse dilema é, por vezes, perigosa. Me refiro à
expectativa de sanar no outro a dor por sentir-se só. Projetar em alguém o alívio para
a solidão, somado ao afastamento do próprio eu, é a receita perfeita para sufocar com
excessos e carências qualquer relacionamento. Sobre isso, Henri Nouwen diz:

3. Poesia disponível em <http://arquivopessoa.net/textos/3376> Acesso em 29 de abril de


2021.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Na medida que nossa solidão nos une na esperança de que unidos não
sejamos mais sozinhos, castigamo-nos uns aos outros com nossos desejos
inalcançáveis e irreais de unidade, tranquilidade interior e comunhão
ininterrupta.4

Mesmo que o homem deposite no outro a solução para sua dor, ele continua indis-
ponível, repleto de relações superficiais baseadas em troca. Isso se dá pelo fato de
que as vidas se encontram cada vez mais cheias e desconectadas da realidade.
A modernidade trouxe consigo a supervalorização do sucesso, em detrimento dos
relacionamentos. O homem tornou-se refém das ocupações e preocupações, estan-
do hermético para qualquer afeição real. Existe a ilusão de que os ambientes sociais
são repletos de alegria, amizade e cumplicidade, mas engana-se quem se deixa le-
var por essa falsa visão. Basta um exame crítico para que se perceba a competição,
indisponibilidade e carência existentes.
O isolamento diz respeito à falta de conexão com a vida e consigo mesmo, ou seja,
relaciona-se à fragmentação. O homem imerso no isolamento está em todo o lugar,
porém, nunca em casa5, é alguém que se encontra longe do lar, que possui um ende-
reço, mas nunca é encontrado. O quadro pintado é o triste retrato daquele que se
encontra desconectado da realidade, cujas ocupações e preocupações o levaram à
fragmentação, logo, à indisponibilidade.
O homem moderno é isolado de si, cheio e não realizado. E essa sensação leva ao
enfado, ressentimento e depressão, reforçando ainda mais a noção de desligamento
e não pertencimento. O homem isolado do seu próprio eu, que se julga à margem de
qualquer grupo, experimenta um grande sofrimento, pois, segundo Henri Nouwen:

Podemos suportar muito sofrimento físico e até mental quando sabemos


que isto verdadeiramente nos torna uma parte integrante da vida que
vivemos juntos neste mundo. Mas quando nos sentimos cortados da fa-
mília dos seres humanos, rapidamente desfalecemos.6

Portanto, a dor do isolamento é perigosa, estando entre uma das principais causas
dos comportamentos violentos. O ser humano, em busca de atenção, amor e co-
nexões passa a viver de forma reacionária, ele está simplesmente reagindo à dor de
estar isolado do seu próprio eu e consequentemente do outro. Muitas vezes essa
reação é violenta, quando não acontece de maneira violenta é, no mínimo, doentia.

4. NOWUEN, Henri J.M. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas,
2000. p. 28.
5. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p.9.
6. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984. p. 8.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

HOSTIS

O mundo competitivo em que vivemos reforça a hostilidade presente nas relações


humanas. Repelir os relacionamentos tornou-se um hábito comum ao mundo con-
temporâneo. Tal comportamento não se direciona apenas a desconhecidos, mas
também a colegas de trabalho, amigos ou até mesmo familiares. Qualquer que seja
a relação, basta apresentar algum tipo de ameaça intelectual ou profissional, para
ser repelida, ou melhor, hostilizada. As salas de aula, as reuniões de trabalho, os
encontros sociais, as reuniões religiosas, ou seja, qualquer meio criado para apro-
ximar as pessoas, torna-se na realidade um ambiente de extrema desconfiança,
medo e suspeita.
Em 1851 o filósofo alemão Arthur Schopenhauer publicou o livro “Parerga and
Paralipomena”, onde reuniu inúmeros escritos polêmicos. Nesse compilado de
anotações ele fala sobre a hostilidade presente nas relações humanas. Para isso faz
uso de sua famosa metáfora, o dilema do porco-espinho:

Um número de porcos-espinho se ​​ amontoou buscando calor em um dia


frio de inverno; mas, quando começaram a se machucar com seus espi-
nhos, foram obrigados a se afastarem. No entanto, o frio fazia com que
voltassem a se reunir, porém, se afastavam novamente. Depois de várias
tentativas, perceberam que poderiam manter certa distância uns dos ou-
tros sem se dispersarem.7

Os homens foram criados para o relacionamento com Deus e com o próximo, por
isso percebem a necessidade de aquecer suas almas com o calor que emana da com-
panhia do outro. Ao se deparar com a solidão e monotonia da vida, os homens se
aconchegam em grupos sociais, na esperança de afastar o sofrimento, como fazem
os porcos-espinho em busca de calor. Porém, quando as características espinho-
sas e desagradáveis da natureza humana começam a incomodar, eles acabam por
repelir-se um ao outro. Com isso, os homens aprenderam a manter uma distância
segura uns dos outros, uma espécie de código de conduta. Dessa forma todos saem
ilesos dos espinhos alheios e ainda da culpa por ferir o outro. Mas, ao mesmo tem-
po, convivem com a quantidade ínfima de calor que provém dessa distância.

7. Tradução disponível em <https://www.netmundi.org/filosofia/2017/o-dilema-do-porco-es-


pinho-de-arthur-schopenhauer/>Acesso em 26 de abril de 2021

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Ainda segundo Schopenhauer, “da hostilidade, derivam-se o ciúme, a inveja, a ma-


levolência, a maldade, a alegria maligna, a curiosidade indiscreta, a maledicência,
a insolência, a petulância, o ódio, a ira, a traição, o rancor, o espírito de vingança, a
crueldade”8 (apud BACELAR. 2018. p.18.). É dentro dessa realidade extremamente
fragmentada que os homens tentam sobreviver. Por possuírem características tão
nocivas, preferem fechar a porta de seus corações para que ninguém tenha acesso.
Os homens optam pela segurança em detrimento dos relacionamentos profundos,
pois torna-se insuportável a ideia de enfrentar as danosas idiossincrasias da natu-
reza humana e ainda revelar a própria natureza pecaminosa. Eles preferem a segu-
rança e o pouco calor proveniente desses relacionamentos superficiais ao invés de
lançarem-se sem reservas nas relações humanas.

ILUDIDOS

Um outro aspecto comum aos seres humanos é o fato de serem iludidos em relação
a Deus. Existem muitos equívocos a respeito do caráter de Deus e ainda sobre a
forma como ele se relaciona com sua criação. É comum que os homens acabem por
projetar em Deus a imagem de um carrasco, que avalia tudo com base na produ-
tividade. Por mais que alguns entendam a teologia a respeito da graça, na prática
acabam por se entregar ao desespero e a autocomiseração sempre que um erro é
cometido. O homem, mesmo ciente de sua natureza pecaminosa, continua sur-
preendendo-se com seus pecados, e acredita que Deus também ficará surpreso e
decepcionado com suas falhas. Além disso, iludem-se atribuindo ao amor dele a
mesma fragilidade presente nas relações humanas, supondo ser o pecado mais forte
que o poder purificador do sangue de Cristo.
Outro traço da ilusão do homem em relação a Deus, encontra-se na crença de que
apenas os isentos de pecado - realidade inexistente - podem se aproximar dele.
Isso leva o homem a iludir-se achando ser possível melhor a si próprio e que apenas
essa autopurificação o tornará digno de ser chamado filho de Deus. Tal crença não
poderia ser mais nociva, uma vez que o homem é incapaz de aperfeiçoar sua natu-
reza pecaminosa, e apenas o relacionamento com Deus pode santificá-lo. Deus é
plenamente ciente da sujeira que habita no coração dos homens, por isso anseia por

8. BACELAR, Kleverton.O desenvolvimento da psicologia moral de Schopenhauer.. Sofia


(ISSN 2317-2339), Vitória (ES), V.7, N.2, P. 4-25, JUL./DEZ. 2018.Disponível em <https://pe-
riodicos.ufes.br/sofia/article/view/20974> Acesso em 29 de abril de 2021.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

relacionar-se com seus filhos. O relacionamento com ele é a única solução capaz de
livrar a humanidade das garras do pecado.
Deus anseia por relacionamento, ele convida o homem para usufruir de sua pre-
sença sem exigir nada em troca. Sua graça é abundante e a amizade que ele propõe
aos homens não se assemelha em nada aos relacionamentos terrenos. As relações
humanas são baseadas, sem exceção, no interesse. Por trás dos amores desinte-
ressados existe sempre um benefício em vista, mas o amor de Deus é isento de
qualquer barganha. Ele quer trazer seus filhos para perto, mesmo ciente da impos-
sibilidade de obter algo em troca. Deus não olha para a humanidade como quem
olha para objetos imbuídos de utilidade, pois mesmo as nossas melhores obras de
justiça são consideradas como trapos de imundície9. Portanto, Deus não quer usar
os homens, ele quer relacionar-se. Mas, mesmo diante desse convite divino, a hu-
manidade continua iludida por pensar que Deus se interessa por suas obras e não
pela totalidade do seu ser.
Os homens foram criados para o amor, para recebê-lo e para expressá-lo, porém, o
estado de completa ilusão em que se encontram os fazem acreditar no pior a respei-
to daquele que é o próprio amor. Segundo Jack Frost (2014)10,

Expressar o amor deveria ser algo natural para nós. Fomos criados
por Deus para receber e expressar amor. Entretanto, por nascermos
em um mundo de pecados e por nossa natureza pecaminosa nos levar
a acreditar no pior sobre Deus - em vez de escolhermos conhecê-lo como
o Pai amoroso que é - achamos que receber e expressar o seu amor é
uma luta mesmo após aceitarmos o plano da salvação de Deus. Nos-
sos corações precisam ser renovados pelo Espírito Santo até conseguir-
mos dizer, verdadeiramente, conforme o apóstolo João declarou: “E
nós conhecemos, e cremos no amor que Deus nos tem. Deus é amor”
(1 Jo 4.16) (FROST, Jack. 2014)

Deus quer relacionar-se com seus filhos e derramar sobre eles o seu amor, desse
relacionamento flui vida e paz. Porém, o homem imerso em suas ilusões para com
Deus deixa de usufruir em total plenitude das preciosidades desse convite divino.

9. Isaías 64.6
10. FROST, Jack. Sentindo o abraço do Pai. Rio de Janeiro: BV Books, 2014. p. 48.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

OS TRÊS MOVIMENTOS

Vimos até agora que os homens, seres fragmentados, encontram-se isolados de si,
hostis em relação aos outros e iludidos em relação a Deus. Essas são três realidades
comuns a todos os homens e misturam-se nos seus interiores, em movimentos e
tonalidades diferentes. É importante compreender a diferença entre cada um des-
ses polos e seus respectivos movimentos, pois a correta compreensão a respeito
desse tema pode encorajar o homem na busca por si, pelo próximo e por Deus. Por-
tanto, para progredir na vida espiritual é necessário movimentar-se do isolamento
para a solidão, da hostilidade para a hospitalidade e da ilusão para a vida de oração.
Veremos a seguir sobre cada uma dessas polarizações.

SENDO TRANSFORMADOS

ISOLAMENTO em SOLITUDE

HOSTILIDADE em HOSPITALIDADE

ILUSÃO em VIDA DE ORAÇÃO

É importante frisar que os três movimentos espirituais serão tratados de maneira


didática, não em ordem de relevância, pois o mais importante dos três movimentos
é, sem dúvida, o que conecta o homem a Deus. A polarização que aborda o rela-
cionamento com Deus, ou seja, o movimento da ilusão para a vida de oração, será
tratada por último justamente por ser o ponto mais difícil e consequentemente o
mais importante. Dito isso, prossigamos.
O primeiro movimento espiritual faz-se do isolamento para a solidão. Por mais que a
palavra solidão venha da mesma raiz latina de solitário, solus, esse movimento não diz
respeito a uma reclusão eremita. Mesmo que, ocasionalmente, seja necessário mer-
gulhar em um retiro solo, longe das distrações que circulam no mundo, não é sobre
esse tipo de solidão que nos referimos. O termo aqui diz respeito a uma solidão de co-
ração, “é uma qualidade interior ou uma atitude que não depende de isolamento físico”11.
Quem prova dessa solidão interior é capaz de experimentar a mais pura liberdade,
não sendo mais refém dos diversos estímulos que circulam ao seu redor.
Não é difícil distinguir o isolamento da solidão, vejamos algumas características
que diferem esses dois polos. O homem imerso no isolamento experimenta o mais

11. NOWUEN, Henri J.M. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas,
2000. p.. 35

29
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

profundo sofrimento ao encontrar-se sozinho consigo mesmo, e ainda se torna in-


capaz de desfrutar a companhia do outro. O contrário acontece com quem migrou
do isolamento para a solidão, pois experimentam a liberdade e a tranquilidade que
emanam de seu interior. Uma pessoa isolada só consegue absorver do outro aqui-
lo que lhe traz satisfação imediata, já os solitários estão disponíveis e de ouvidos
atentos às necessidades alheias. Por não experimentar a tranquilidade interior, os
isolados procuram respostas imediatas, enquanto os solitários estão atentos ao seu
interior, eles encontram-se disponíveis para si.
São inúmeras e visíveis as diferenças entre isolamento e solidão e esses são dois
polos que oscilam a todo momento. Por mais que seja difícil estacionar de manei-
ra permanente na solidão, é indispensável compreender essa realidade tão crucial
para a saúde espiritual. Segundo Henri Nouwen (2003) “o desenvolvimento dessa
sensibilidade interior é o início de uma vida espiritual”, portanto, o primeiro aspecto
da vida espiritual é o movimento ininterrupto do isolamento para a solidão.
A segunda característica da vida espiritual é a conversão da hostilidade para a hos-
pitalidade. Esse é um movimento repleto de dificuldades, pois o mundo está cheio
de pessoas desconfiadas e temerosas em relação ao outro. Mas é possível abrir um
espaço hospitaleiro no coração, onde pessoas alheias podem transformar-se em
amigos. A hospitalidade não diz respeito apenas ao ato de acolher estranhos em
casa, concedendo abrigo e alimento, mas também diz respeito a uma atitude de
coração, é estar disponível para os seus semelhantes. Esse movimento se caracteri-
za de diversas formas, segundo Henri Nouwen (2003)12:

Hospitalidade significa em primeiro lugar a criação de um espaço livre


no qual o estranho pode entrar e tornar-se amigo, em vez de inimigo.
Hospitalidade não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no
qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o
nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas di-
visórias. Não é levar nosso espectro de opções de escolha e compromisso.
Não é intimidação educada, com bons livros, boas histórias e boas obras,
mas a liberação dos corações atormentados para que as palavras criem
raízes e dêem muitos frutos.

Converter a hostilidade em hospitalidade é abrir espaço no coração, é torná-lo


amistoso para que haja possibilidade de convidar estranhos a se tornarem amigos.

12. NOWUEN, Henri J.M. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas,
2000. p. 69.

30
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O movimento do isolamento para a solidão faz com que o homem entre em contato
com o seu eu mais profundo, enquanto o movimento da hostilidade para a hospita-
lidade faz com que o homem entre em contato com o outro.
O terceiro e mais importante aspecto da vida espiritual é o movimento da ilusão à
vida de oração, ou a prece. Esse movimento é crucial para a saúde espiritual, pois
abrange tudo que foi dito anteriormente. Apenas por meio desse movimento que
os outros podem vir a acontecer. Não é possível sustentar a solidão e hospitalidade
sem antes converter a ilusão em prece.
A vida de oração diz respeito a uma vida de conexão com Deus, é adentrar no lar
preparado pelo Pai aos seus filhos. A partir desse lugar de conexão com Deus as
mentiras que assolam as mentes podem ser dissipadas. Não existe vida longe de
Deus, portanto, relacionar-se com ele é a única forma de obter salvação em meio
ao caos da existência terrena. Deus almeja se comunicar com o homem, revelar as
verdades a respeito de seu caráter e compartilhar seus planos. Ele quer preencher
com seu amor os corações dos homens e a vida de oração é o único movimento pelo
qual essa realidade pode ser acessada. De acordo com Henri Nouwen:

É provável que não exista imagem que expresse tão bem a intimidade
com Deus na oração como a imagem do sopro de Deus. Somos como
asmáticos curados da ansiedade. O Espírito afastou nossa angústia e
tornou tudo novo para nós. Recebemos um novo alento, uma nova liber-
dade, uma nova vida. Essa nova vida é a vida divina de Deus. Assim, a
prece é a respiração de Deus em nós pela qual fazemos parte da vida de
Deus e nascemos de novo13.

Por mais que o movimento da ilusão para a prece seja um movimento extremamen-
te difícil, ele é o único capaz de transportar o homem da mentira para a verdade, e
lançá-lo no mar ilimitado do amor de Deus.

CONCLUSÃO

Concluímos essa aula com o Salmo 23, que revela um contraste frente a realidade
de isolamento, hostilidade e ilusão.

13. NOWUEN, Henri J.M. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas,
2000. p.121.

31
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pas-


tos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma;
guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome. Ainda que eu
andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque
tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma
mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça
com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a miseri-
córdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do
Senhor por longos dias.

Esse Salmo descreve uma alma apascentada, diferente de uma alma ansiosa, des-
ligada e fragmentada. Aqui podemos enxergar o coração de alguém plenamente
consciente de seu pertencimento e integralidade. Alguém que compreendeu o
caráter de um Deus que não abandona, mas que permanece derramando seu amor
e cuidado. Essa é a realidade disponível para todos os filhos de Deus.
Deus promete que independente da situação a ser enfrentada o homem não estará
só. É necessário ter profunda consciência dessa realidade, movimentando-se do
caminho do não pertencimento para o caminho da espiritualidade, rumo ao re-
lacionamento com Deus. Seja em momento de deleite ou descanso, escassez ou
tribulação, doença ou dor, Deus promete amparar seus filhos, ele não os deixará
só. Ao ligar-se com aquele que tudo criou, o homem passa a viver uma vida real,
autêntica e integral, passa a relacionar-se a partir de seu lar. Ele deixa de viver de
modo reacionário, reagindo à dor do isolamento, hostilidade e ilusão e passa a viver
uma vida plena, com sua alma apascentada. As boas novas do evangelho são com-
pletas, elas garantem ser possível viver uma vida guiada pelo relacionamento com
Deus, uma vida que não apenas reage ao sofrimento, mas que mergulha sem medo
na realidade espiritual.

32
Aula 4
v.1.0.0

A GRANDE
TENTAÇÃO
No mundo em que vivemos existem duas realidades conflitantes e coexistentes,
a visível e a invisível. O grau de importância atribuído a qualquer uma dessas rea-
lidades diz muito sobre a espiritualidade de alguém. O homem, independente do
momento histórico em que vive ou viveu, é constantemente assolado pela terrível
tentação de depositar mais energia no que pode ser visto e tocado do que naquilo
que os olhos não podem ver. Porém, o mundo invisível diz respeito a uma realidade
mais tangível e relevante, que é acessada por meio da fé. Os efeitos de mergulhar
nessa realidade espiritual são duradouros, possuem um peso eterno.
A disciplina “Espaço para Deus” é baseada no livreto homônimo do padre e escri-
tor Henri Nouwen. Este livreto tem como centro de sua mensagem as palavras de
Jesus descritas no Evangelho de Mateus, capítulo 6.

33
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

“Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que bebere-


mos? Com que nos vestiremos? Pois os gentios é que procuram todas
essas coisas. E, de fato, vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos
serão acrescentadas.” (Mt 6.31-33)

Nesta passagem Jesus confronta um estilo de vida, comum aos homens de todas
as épocas, baseado nas preocupações. Ele, ciente da grande tentação que assola a
humanidade, aponta para a única solução capaz de resolver esse dilema. Jesus pro-
põe uma mudança de mentalidade, sugerindo que os homens não atribuam todo o
valor que comumente atribuem ao mundo visível. As preocupações a que se refere,
dizem respeito ao que é material, que pode ser tocado, que é efêmero. Tais preocu-
pações devem ser substituídas por uma única coisa, a busca incessante pelo reino
de Deus, o reino eterno.
Na história do povo de Israel é possível ver um retrato de toda humanidade, pois
constantemente se curvaram em adoração perante os falsos deuses feitos por mãos
humanas, uma vez que seus olhos não contemplavam ao Deus invisível. Se curva-
ram perante o que era visível e aparentemente seguro, mas Deus é zeloso e ciu-
mento, não divide sua glória com nada nem ninguém e nisso consiste o perigo de
cair nesta tentação.
Portanto, nesta aula falaremos sobre essa grande tentação, assim como sobre
aqueles que são considerados inimigos da cruz de Cristo, termo que muitas vezes
é empregado de maneira equivocada, e falaremos ainda sobre a resposta do evan-
gelho para todo esse dilema. Assim sendo, se existe em seu coração alguma raiz
de desconfiança que o leva a duvidar da possibilidade de uma vida sem preocupa-
ções, que atribui mais significado e importância ao mundo real e invisível, esta aula
wcertamente irá confrontar seu estilo de vida.

REVELANDO A GRANDE TENTAÇÃO

Toda a Bíblia aponta para um pecado que assola a humanidade desde o início de
sua existência, o pecado da idolatria. É possível, ao ler a história do povo de Israel,
perceber o quanto eles facilmente flertavam e se entregavam à devoção aos falsos
deuses. Essa inconstância é comumente julgada por quem acompanha a trajetó-
ria judaica com olhos externos. Por vezes, experimentamos uma certa indignação
quando nos deparamos com os textos que relatam a infidelidade do povo de Israel.
Ao ler sobre a grandeza de Deus, sobre as maravilhas que fez para conduzir o povo

34
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

da escravidão para a terra prometida e sobre o seu amor fiel, facilmente nos revolta-
mos com tamanha traição, pois mesmo experimentando empiricamente o poder de
Deus, ainda assim permaneciam infiéis. Porém, a infidelidade não é exclusividade
do povo judeu, pois a igreja de Cristo ao redor do mundo foi e continua sendo asso-
lada por esse pecado. Ninguém está isento de tal tentação, portanto, a infidelidade
do povo de Israel é um retrato fiel da igreja ao redor do mundo. A igreja atravessou e
continua atravessando os séculos flertando com a idolatria, nos diversos níveis em
que esse pecado pode se apresentar.
De forma mais específica, a grande tentação a que nos referimos corresponde ao
fato dos homens depositarem mais importância no que é visível do que no invisível,
ou seja, o pecado de idolatrarem o perecível. Eles se apegam com muita facilidade
ao que é seguro e palpável, o que os tornam inconstantes em relação a Deus. O
evangelho confronta esse pecado, pois diz respeito a uma vida sem garantias de
segurança terrenas, ele aponta para algo ainda mais sólido, os tesouros eternos,
a salvação. Essa é uma tentação que persegue o homem desde sua existência, ele
é sempre convidado a depositar sua fé no que lhe traz segurança, estabilidade e
sucesso, mesmo que todas essas coisas sejam efêmeras.
Deus, em toda a Bíblia, exorta o povo por meio de seus mensageiros, a respeito
dessa grande tentação. No livro de Josué capítulo 24, ele alerta duramente a nação
de Israel sobre esse pecado. Nessa passagem, Josué faz uma pergunta contrapro-
ducente, suas palavras foram contrárias às que esperamos de um líder, pois parece
não considerar que o povo seguirá a Deus. Ele ainda segue o discurso reforçando
de maneira incisiva os perigos de servir a Deus estando dividido, com um coração
que flerta com outros deuses, vejamos:

“Agora, temei o SENHOR e cultuai-o com sinceridade e com verdade;


jogai fora os deuses a que vossos pais cultuaram além do rio e no Egito.
Cultuai o SENHOR. Mas, se vos parece mal cultuar o SENHOR,
escolhei hoje a quem cultuareis; se os deuses a quem vossos pais, que
estavam além do rio, cultuavam, ou os deuses dos amorreus, em cuja
terra habitais. Mas eu e minha casa cultuaremos o SENHOR. Então o
povo respondeu e disse: Longe de nós abandonar o SENHOR para cul-
tuar outros deuses; porque o SENHOR é o nosso Deus; foi ele quem tirou
a nós e a nossos pais da terra do Egito, da casa da escravidão, e quem fez
esses grandes sinais aos nossos olhos, e nos preservou por todo o caminho
em que andamos, e entre todos os povos pelo meio dos quais passamos. O
SENHOR expulsou de diante de nós todos esses povos, até os amorreus,
que moravam na terra. Nós também cultuaremos o SENHOR, porquan-
to ele é nosso Deus.” (Js 24.14-18)

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Josué convida o povo a decidir quais deuses vão cultuar, se os deuses de seus pais
ou os deuses dos amorreus, nessa soma ele não acrescenta o Deus verdadeiro, pois
parece não considerar a capacidade do povo de decidir por essa alternativa. Então,
segue seu discurso alertando sobre os perigos de seguir a Deus, tendo em vista que
ele não convive com outros deuses.

“Então Josué disse ao povo: Não podereis cultuar o SENHOR, porque


ele é Deus santo, é Deus zeloso, que não perdoará a vossa desobediên-
cia nem os vossos pecados. Se abandonardes o SENHOR e cultuardes
deuses estrangeiros, então ele virá contra vós, vos punirá e vos destrui-
rá, mesmo depois de vos ter tratado com bondade. Então o povo disse a
Josué: Não! Antes, cultuaremos o SENHOR.” (Js 24.19-21)

Ao perceber que o povo se manteve firme em sua escolha por Deus, Josué continua
a alertá-los sobre os perigos de tal escolha, mas dessa vez ele os coloca como teste-
munhas diante da promessa feita.

“Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos que escolhestes
cultuar o SENHOR. Eles responderam: Somos testemunhas. Josué disse:
Agora, jogai fora os deuses estrangeiros que há no meio de vós; e inclinai o
coração ao SENHOR, Deus de Israel. O povo disse a Josué: Cultuaremos
o SENHOR, nosso Deus, e obedeceremos à sua voz. E naquele dia Josué
fez uma aliança com o povo e lhe deu leis e normas em Siquém. Josué
escreveu essas palavras no livro da lei de Deus; e, tomando uma grande
pedra, a pôs ali debaixo do carvalho que estava junto ao santuário do SE-
NHOR, e disse a todo o povo: Esta pedra será um testemunho contra nós,
pois ela ouviu todas as palavras que o SENHOR nos falou. Ela será um
testemunho contra vós, para que não negueis o vosso Deus. Então Josué
despediu o povo, cada um para a sua terra.” (Js 24.22-28)

Quando lemos sobre as grandezas feitas por Deus e sua poderosa atuação em
todo o trajeto do povo de Israel, é possível que surja o questionamento em torno
da infidelidade dos hebreus. Parece ilógico que um povo cujos olhos contempla-
ram tamanho poder e amor possa flertar com os falsos deuses, pois não existe
comparação entre o Deus verdadeiro e aqueles feitos por mãos humanas. Mas
a grande verdade a respeito disso é que os falsos deuses oferecem prosperidade
em diversas áreas da vida humana, ou seja, o povo é atraído pelas coisas visíveis
e perecíveis. Esse anseio desenfreado por uma vida confortável, que transborde
em prosperidade, seja em qual área for, é muitas vezes o que leva o coração dos

36
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

homens a estar dividido. A idolatria pelo bem-estar terreno em detrimento da


realidade celestial a qual Deus nos convida a fixar os olhos, é atrativa aos homens
e abominável perante Deus.
Quando Elias estava enfrentando os profetas de Baal, exortou à nação de Israel a
decidir qual dos deuses serviriam, se a Deus ou a Baal, uma vez que o povo oscila-
va entre dois pensamentos. Eles queriam servir o Deus verdadeiro enquanto seus
corações se inclinavam perante os falsos deuses, mas Deus não tolera misturas, ele
exige uma entrega total.

“Elias se aproximou de todo o povo e disse: Até quando titubiareis entre


dois pensamentos? Se o SENHOR é Deus, segui-o; mas se Baal é Deus,
segui-o. O povo, porém, não lhe respondeu nada.” (1Rs 18.21)

Jesus também exorta o povo a respeito da idolatria, ele é bastante preciso em suas
palavras:

“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará a um e amará


o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e às riquezas.” (Mt 6.24)

Portanto, não existe dúvida alguma quanto a esse ponto, é impossível servir a dois
senhores, essa é uma exortação presente no Antigo e Novo Testamento. É impos-
sível amar a Deus e às riquezas; é impossível servi-lo com os olhos fixos naquilo
que é visível e perecível. Por isso, muitos santos do passado faziam a seguinte ora-
ção: “Senhor, torne as coisas do céu mais reais do que as coisas da terra!”. Oravam
assim por entenderem a grande dificuldade que é manter os olhos fixos na realida-
de espiritual. O coração do homem é idólatra, o pecado ofuscou o brilho dos tesou-
ros eternos. Que possamos manter nosso coração fixo na realidade do alto, orando
a corajosa oração feita por São Tomás de Aquino:

“Tudo o que passa torne-se desprezível a meus olhos por Tua causa, Se-
nhor, e tudo o que te diz respeito me seja caro, mas tu, meu Deus, mais do
que o resto. Qualquer alegria sem ti me seja fastidiosa, e nada eu deseje
fora de ti.Qualquer trabalho, Senhor, feito por ti me seja agradável e
insuportável aquele de que estiveres ausente.”¹

1. Oração para fins diversos* MONTFORT Associação Cultural. Disponível em


<http://www.montfort.org.br/bra/oracoes/diversas/stomas/> acesso em 7 de abril de 2021.

37
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

INIMIGOS DA CRUZ DE CRISTO

Quando as mentes se voltam de maneira intensa para as coisas terrenas, o alvo e


propósito do evangelho são automaticamente suplantados. Como vimos anterior-
mente, existe perigo em oscilar entre esses dois pensamentos, uma vez que Deus
não tolera misturas. O perigo de viver uma vida baseada unicamente no apego às
coisas terrenas e visíveis é ainda mais sério do que se pode imaginar, pois Paulo se
refere às pessoas que vivem dessa forma como sendo inimigas da cruz de Cristo.

“Irmãos, sede meus imitadores e prestai atenção nos que andam confor-
me o exemplo que tendes em nós; porque há muitos, sobre os quais vos
falei diversas vezes, e agora vos digo até chorando, que são inimigos da
cruz de Cristo. O fim deles é a perdição; o deus deles é o estômago; e a
glória que eles têm baseia-se no que é vergonhoso; eles se preocupam só
com as coisas terrenas. Mas a nossa pátria está no céu, de onde também
aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo.” (Fl 3. 17-20)

O termo “inimigos da cruz de Cristo” é, por vezes, associado a uma figura blas-
fema, a pessoas que publicamente se posicionam como inimigas de Deus e que
possuem discursos ofensivos em relação ao evangelho. Muitos líderes religiosos
acabam por considerar essas figuras extremamente perigosas à fé e não medem es-
forços para afastar delas os seus liderados. Por mais que pessoas que se posicionam
publicamente como inimigas de Deus ofereçam um certo perigo à fé cristã, não é a
essas pessoas que Paulo se refere quando usa o termo “inimigos da cruz de Cristo”,
antes se refere a pessoas que estão inseridas no contexto religioso, vivendo como
ovelhas, mas com os corações imersos em idolatria. Os inimigos da cruz de Cristo
são aqueles que se preocupam apenas com o que é terreno. Tal característica pode
parecer bastante inofensiva, afinal de contas um homem que se preocupa em jun-
tar tesouros e glórias terrenas é, por vezes, visto com admiração. Tais pessoas são
julgadas como ajuizadas, porém, Paulo é bastante categórico quando diz que os ini-
migos da cruz de Cristo são aqueles que “se preocupam só com as coisas terrenas”2.
Segundo Augustus Nicodemus, em um de seus sermões³ baseado em Filipenses
3, Paulo está denunciando uma conduta mundana voltada para os prazeres da car-
ne. Possivelmente, suas palavras tinham como alvo combater um grupo de falsos
profetas que buscavam disseminar seus pensamentos hereges no meio da igreja

2. Fl 3. 17-19
3. Sermão disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=dOl5-udIB50> Acesso em 07 de
maio de 2021.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

de Cristo. De acordo com Nicodemus, Paulo se referia aos libertinos, hereges que
acreditavam ser possível viver uma vida que extrapolasse os padrões éticos e mo-
rais, uma vez que a salvação não vem pelas obras, mas pela graça. Eles usavam a
graça para justificar os seus pecados, desconsiderando o fato de que os frutos testi-
ficam a obra salvífica de Cristo.
Paulo diz, no início do capítulo 3 de Filipenses, que são muitos os inimigos da cruz
de Cristo infiltrados na igreja de Filipos, o que revela a grande aceitação de tama-
nha heresia. É fácil encontrar o motivo que levou muitos a aderirem ao discurso
desses falsos profetas, pois enquanto o evangelho convidava a igreja para a morte
e crucificação da carne, os hereges propagavam um discurso agradável de auto-
preservação e apego aos prazeres. Mesmo com os séculos que separam a igreja de
Filipos e a igreja contemporânea, o quadro continua a se repetir, a igreja ainda sofre
com as heresias disseminadas por aqueles que se dizem amigos de Deus.
Quando Paulo diz que o deus dos inimigos da cruz de Cristo é o estômago, ele está
se referindo a um estilo de vida que existe para satisfazer os desejos da carne. Pois
enquanto os cristãos devem viver para satisfazer a Deus, os inimigos da cruz vivem
para satisfazer as próprias paixões e desejos. Paulo continua dizendo que a glória
deles estava naquilo em que deveriam se envergonhar, o que significa que eles se
vangloriavam de suas atitudes carnais, enquanto deveriam aviltá-las. Eles acabavam
por exibir seus opróbrios como se suas atitudes fossem dignas de aplausos. Por
fim, Paulo diz que eles se preocupavam apenas com as coisas terrenas, buscavam
somente o que era visível, perecível e efêmero. É importante dizer que, não existe
problema em usufruir do mundo criado por Deus, o perigo se encontra em valori-
zar apenas a realidade visível em detrimento da realidade celestial e eterna. Por fim,
os inimigos da cruz de Cristo apresentam um perigo para a igreja, pois vivem para
os prazeres da carne, se vangloriam de suas vergonhas e não se preocupam com a
realidade celestial.
Em contraste com a mentalidade herética dos inimigos da cruz de Cristo, Paulo
aponta para a realidade invisível, para a cidadania celestial que é conferida aos filhos
de Deus. O destino dos amigos da cruz de Cristo é uma vida eterna, enquanto o
destino dos inimigos da cruz é a perdição. Portanto, o fim dos que vivem em prol
de suas paixões é a ira eterna de Deus, mas aos cristãos que permanecerem fiéis,
crucificando a carne e mantendo seus olhos fixos nos tesouros celestiais, será dada
a recompensa de viver para sempre ao lado daquele que é, que era e que há de vir.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O EVANGELHO

A mensagem do evangelho é a única capaz de transportar o homem da loucura para


a sanidade, uma vez que aponta para a realidade celestial e revela os perigos de vi-
ver uma vida em prol do que é perecível. Como visto anteriormente, um coração
imerso unicamente nas coisas terrenas caracteriza a atitude dos que são inimigos
da cruz de Cristo, e o evangelho é o contraste dessa mentalidade mundana. Cristo
convida os homens para se entregarem a uma vida dominada pelas verdades celes-
tiais, não pelas paixões terrenas. Jesus aponta para uma vida saudável, tendo em
vista o quão prejudicial é depositar fé e esperança no que é efêmero. Portanto, o
evangelho é o convite disponível aos homens, para que construam seus tesouros
em um lugar eterno e sólido, seu verdadeiro lar, o céu.
Manter o foco unicamente nas coisas terrenas produz o terrível sentimento de desli-
gamento, uma vez que esse sentimento está diretamente associado às muitas ocupa-
ções e preocupações. O desligamento pode ser descrito como enfado, ressentimento
e depressão, que por sua vez dizem respeito ao isolamento, sensação tão comum aos
homens. Todas essas são marcas de quem vive em prol do que é perecível e efêmero,
e é desse lugar de desespero que o evangelho quer arrancar o homem.
Jesus, em Mateus 16, exorta os homens por meio de duras palavras. Em sua vida
terrena ele apresentou o contraste entre a vida natural e a espiritual, portanto, seu
discurso não poderia ser ameno, uma vez que as duas realidades são nitidamente
antagônicas. Vejamos:

“Então Jesus disse aos discípulos: Se alguém quiser vir após mim, ne-
gue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser preservar
sua vida, irá perdê-la; mas quem perder a vida por minha causa, este a
preservará. Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder
a vida? Ou, que dará o homem em troca da sua vida?” (Mt 16. 24-26)

Estes versículos revelam a radicalidade do evangelho, não existe a possibilidade de fler-


tar com dois caminhos. O homem deve decidir entre construir seus tesouros no lar
celestial, tomando diariamente sua cruz, ou pela preservação de sua vida, escolha que o
conduzirá à morte. Não existe meio termo, ou o homem se entrega integralmente para
as verdades celestiais, ou afunda-se em uma vida em prol das glórias terrenas.
Diante de tudo isso é importante dizer que Jesus não pede aos homens que
se desprendam das preocupações para caminharem em direção ao nada.
Existem religiões cujo alvo é a total ausência de desejos, algumas propõem reclu-
sões ascetas em prol de uma espiritualidade livre de qualquer contágio.

40
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Porém, o evangelho convida o homem para uma vida repleta de significado, para
uma vida que, inserida no mundo, será capaz de marcar a história com o testemu-
nho de quem manteve o foco no que é eterno. A recompensa de se desprender das
preocupações e manter o foco na realidade celestial é, além de conferir a cidadania
celestial, capacitar o homem a viver uma vida com propósito.

CONCLUSÃO

“Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que bebere-


mos? Com que nos vestiremos? Pois os gentios é que procuram todas
essas coisas. E, de fato, vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos
serão acrescentadas.” (Mt 6.31-33)

O significado de “todas essas coisas” pode ser diferente para cada ser, uma dona
de casa terá preocupações distintas de um empresário, por exemplo. Mas inde-
pendentemente do significado atribuído a tal termo, a verdade é que, por diversas
vezes, elas são as iscas que atraem o homem para o mar das preocupações. Um
coração imerso em preocupações revela um coração dividido e Deus não divide
atenção com nada nem ninguém. Cristo exorta os filhos de Deus para que não
andem ansiosos com coisa alguma, pois não é possível estar com os olhos fixos em
Deus e no que é terreno ao mesmo tempo. É impossível servir a dois senhores,
um certamente será odiado, portanto, o homem que anseia pelas coisas celestiais
precisa se desprender das preocupações que consomem seu coração, precisa odiar
sua vida, livrar-se da idolatria e seguir unicamente a Deus.
É importante dizer que o homem não foi chamado para trocar “todas essas coisas”
pelo vazio ou para uma vida espiritual que se reduz a mantras e meditações inin-
terruptas. Deus convida seus filhos para uma vida integral e com propósito que, ao
encontrar unicamente em Deus a satisfação, podem fazer a diferença no contexto
em que estão inseridos. Ao se livrar do enfado de se preocupar com “todas essas
coisas” e embarcar na busca incessante pelo reino de Deus, o homem livra seu co-
ração da tentação de confiar apenas naquilo que é visível. Ele passa a depositar em
Deus a única possibilidade de satisfação e salvação.
Concluímos essa aula dizendo que o objetivo de Deus não é livrar o homem de
“todas essas coisas”, seu desejo é livrar o homem da insanidade que é depositar
esperança no efêmero e limpar a sua igreja de qualquer raiz de idolatria.

41
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Ele cuida de cada uma das necessidades de seus filhos e em troca pede unicamente
que o homem fixe seus olhos no que é eterno e que mantenha sua devoção apenas
nele, assumindo a cidadania celestial e vivendo em prol daquilo que é real.

42
Aula 5
v.1.0.0

A VIDA
DE JESUS
Cada detalhe da vida de Jesus é precioso para aqueles que buscam viver uma vida
espiritual. Todas as suas palavras e ações, narradas nos Evangelhos, são como ma-
nuais que instruem o cristão sobre o modo correto de viver. Em sua trajetória ter-
rena não houve excesso ou escassez, ele viveu uma vida perfeita, completa e plena.
Seu último suspiro na cruz encerrou um ciclo de trinta e três anos na terra, um
curto período, mas poderoso o suficiente para dividir a história e mudar para sem-
pre o destino da humanidade. Portanto, estão contidos nos Evangelhos relatos da
história mais importante de todos os tempos, cada um de seus capítulos revelam o
amor e a glória de Deus. Cada passo da vida santa e justa que Jesus viveu na terra
é como uma bússola que guia os cristãos no caminho da santidade. Sendo assim, é
necessário que os filhos de Deus submetam suas vidas ao Espírito de Jesus Cristo.
Uma vida no Espírito de Jesus Cristo diz respeito a uma vida plena e integral, sendo
um contraste da realidade fragmentada na qual o homem moderno vive. Fato este

43
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

que se dá pelas diversas ocupações e preocupações às quais submetem suas vidas.


Por mais que as muitas ocupações impostas pelo mundo contemporâneo possam
afastar o homem de seu propósito eterno, é importante ressaltar que a missão de
Jesus nunca foi livrar o homem de suas ocupações. Cristo veio mostrar com sua
própria vida que é possível ocupar-se de atividades sem estar imerso no tenebroso
mar das preocupações, ou seja, veio mostrar ao mundo a possibilidade de viver
uma vida integral e plena, livre das preocupações, ainda que imerso em ocupações.
Como vimos nas aulas anteriores, as preocupações conduzem a humanidade a uma
nociva sensação de fragmentação e é desse lugar que Jesus quer tirar o homem.
Nesta aula teremos como foco a vida de Jesus, analisaremos o relacionamento entre Pai
e Filho, buscando compreender a obediência e confiança demonstradas por ele até as
últimas consequências. Ao olhar para a vida de Jesus é possível aprender a viver de for-
ma plena e integral, livre das preocupações, mesmo que em meio às muitas ocupações.

O EXEMPLO DE JESUS

Os trinta e três anos de Jesus na terra revelaram que as ocupações não são o foco
do problema da humanidade, pois Jesus andava extremamente ocupado, curando,
ensinando, orando, expulsando demônios e ainda assim era plenamente livre da frag-
mentação. Uma pessoa ocupada não é necessariamente alguém fragmentado, muitas
vezes o contrário é verdadeiro, pois é comum que o sentimento de fragmentação se
destaque no ócio. O problema está contido no fato de que os barulhos gerados pelas
preocupações acabam por abafar a voz de Deus, e a sua voz é a única capaz de con-
duzir o homem do desespero da incompletude para a paz. Segundo John Locke¹, as
preocupações possuem o poder de escravizar e controlar as mentes. Portanto, a men-
sagem de Jesus vai de encontro a um interior abarrotado de preocupações, conver-
tendo esse mal em confiança e satisfação em Deus, para que dessa forma o homem
esteja habilitado a viver a vida integral e plena, proposta pelo evangelho.
É possível ler nos Evangelhos a respeito das diversas ocupações com as quais Jesus
lidou durante seu ministério terreno. Ele era, de fato, um homem muito ocupado,
vejamos no texto a seguir:

“Quando anoiteceu, depois que o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os do-


entes e endemoninhados; e toda a cidade estava reunida à porta da casa.

1. John Locke (1632-1704): Filósofo inglês conhecido como o “ pai do liberalismo”.

44
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

E ele curou muitos doentes acometidos de diversas enfermidades e expul-


sou muitos demônios; mas não permitia que os demônios falassem, por-
que eles sabiam quem ele era. De madrugada, ainda bem escuro, Jesus
levantou-se, saiu e foi a um lugar deserto; e ali começou a orar. Então
Simão e seus companheiros saíram para procurá-lo e, quando o encon-
traram, disseram-lhe: Todos te procuram. Jesus lhes respondeu: Vamos
a outros lugares, aos povoados vizinhos, para que também eu pregue ali,
pois foi para isso que vim. Foi, então, por toda a Galileia, pregando nas
sinagogas deles e expulsando os demônios.” (Mc 1.32-39)

Mesmo após doar sua energia em prol da cura de uma cidade inteira e ter sido per-
turbado em seu momento de intimidade com Deus, Jesus não hesitou em abraçar a
próxima ocupação, revelando a calma e a plenitude de um coração satisfeito. Jesus
raramente era deixado a sós, a missão que veio desempenhar na terra era extensa
e exaustiva, e ele era o único capaz de solucionar as necessidades do povo que cla-
mava por auxílio. Porém, mesmo diante do quadro das penosas ocupações, Jesus
mantinha-se calmo e tranquilo.
O segredo da plenitude e tranquilidade encontradas em Jesus, pode ser comparado
a uma semente que lançada sozinha na terra recebe dela todos os nutrientes para se
desenvolver, enquanto lançada com outras sementes dividirá com elas os nutrien-
tes. Assim como a semente sozinha se desenvolve com o máximo de nutrientes
possíveis, no interior de Jesus germina apenas uma semente, fazer a vontade do Pai.
Esse era o segredo da sua plenitude e tranquilidade.
Em João, capítulo 4, Jesus revela mais uma vez um coração profundamente saciado.
Essa passagem narra seu diálogo com a mulher samaritana no poço de Jacó. Após
ter gastado suas energias derramando virtude nas palavras proféticas que liberou ao
coração daquela mulher, Jesus é convidado pelos discípulos a saciar a sua fome. É
evidente que o corpo de Jesus necessitava de alimento, uma vez que havia gastado
sua vitalidade, porém, quando o alimento lhe é oferecido, ele faz uma afirmação
que revela o segredo de seu coração suave e pleno:

“A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e completar


a sua obra.” (Jo 4.34)

A saciedade de Jesus não estava contida na satisfação de suas necessidades básicas,


mas em fazer a vontade do Pai. A tranquilidade de seu caráter não era transgredida
com a privação de alimento ou sono, ausências que alteram drasticamente o humor
de boa parte dos homens. O seu alimento e descanso encontravam-se em cumprir

45
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

os desejos daquele que o havia enviado. Jesus fazia apenas o que via o Pai fazer. O
relacionamento com Deus era a chave que o capacitava a cumprir sua missão de
maneira suave e tranquila, mesmo ciente dos sofrimentos que lhe aguardavam. Nas
passagens bíblicas abaixo é possível perceber a importância que Jesus atribuía ao
seu relacionamento com Deus:

“Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia
estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49)

“E disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada


pode fazer por si mesmo, senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto
ele faz, o Filho faz também.” (Jo 5.19)

“Se não faço as obras de meu Pai, não creiais em mim.” (Jo 10.37)

“Quem não me ama não obedece às minhas palavras. A palavra que


estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou.” (Jo 14.24)

“Então, exclamando em alta voz, Jesus disse: Pai, nas tuas mãos entre-
go o meu espírito. E, dizendo isso, expirou.” (Lc 23.46)

Jesus não era uma espécie de fanático que buscava divulgar o seu próprio minis-
tério e obras, tampouco alcançar metas impostas por ele. Seu único foco era fazer
a vontade de Deus; Jesus veio à terra para obedecer ao Pai e por meio de sua vida
mostrar à humanidade a possibilidade de viver uma vida plena, fruto de um rela-
cionamento vivo com Deus, mesmo que experimentada em dores, sofrimentos e
muitas ocupações. Como afirma Jônathas Braga (1908-1978)², de maneira poética
“[...] Ele se deu em oferenda, para que o pecador assim aprenda a segui-lo através
desses caminhos [...]”. Vejamos a poesia na íntegra:

O REI DOS REIS


Depois de andar por todos os caminhos,
Aos homens ensinando a boa senda,
Jesus teve por trono a cruz tremenda,

2. Jônathas Braga: Poeta brasileiro (1908-1978)

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

E por diadema uns ásperos espinhos.


Todos lhe foram fúteis e mesquinhos,
Porém ele se deu em oferenda,
Para que o pecador assim aprenda
A segui-lo através desses caminhos.
Porque na sua voz havia o encanto
Das melodias de um saltério santo,
Vibrando junto ao nosso coração...
E, Rei dos reis, morreu como um cordeiro,
A fim de assegurar ao mundo inteiro
Um reino de perpétua duração.

Jesus andou na terra cumprindo cada uma de suas obrigações de maneira plena e
tranquila, pois tudo que fazia era fruto de seu relacionamento com o Pai, e é por
esse caminho de plenitude que ele quer conduzir o homem. Esse é o segredo que
veio desvendar, ele abriu o caminho e convida os filhos de Deus a assumirem sua
cruz e segui-lo.

OBEDIÊNCIA

O significado de obediência para Jesus tem, por vezes, uma conotação diferente
para o resto dos homens. É comum que essa palavra seja associada à opressão im-
posta por figuras de autoridade, que utilizam de suas funções para obter de seus
liderados obediência e lealdade forçadas. Quase todos os homens já foram feridos
por figuras de autoridade, fato que justifica a atribuição de um significado negativo
à palavra obediência. Mas, para Jesus, obedecer não era um verbo imbuído de co-
notação negativa, ele não era alguém que estava na terra por obrigação, de maneira
forçada e carrancuda, antes era determinado a não seguir seus próprios desejos
para realizar apenas a vontade do Pai. Jesus era, na verdade, alguém pleno e satisfei-
to, sua obediência era resultado do relacionamento entre ele e o Pai. Por meio desse
relacionamento Jesus foi capacitado a cumprir sua missão na terra, pois o amor que
fluía entre os dois era forte o suficiente para manter o interior de Jesus plenamente
satisfeito. Na relação entre o Pai e o Filho não existe reservas, informações retidas
ou poder negado, pois o Pai está aberto e compartilha tudo com o Filho, como
podemos ver nos versículos abaixo:

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

1. Poder

“E disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada


pode fazer por si mesmo, senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto
ele faz, o Filho faz também. Porque o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo
o que ele mesmo faz; e lhe mostrará obras maiores que estas, para que
vos admireis. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e concede-lhes
vida, assim também o Filho concede vida a quem ele quer.” (Jo 5.19-21)

2. Glória

“Jesus respondeu: Se eu glorificar a mim mesmo, a minha glória não tem va-
lor. Quem me glorifica é meu Pai, do qual dizeis ser o vosso Deus.” (Jo 8.54)

3. Conhecimento

“E sei que o seu mandamento é vida eterna. Assim, o que eu falo é exata-
mente o que o Pai me ordenou.” (Jo 12.50)

“Vim do Pai para o mundo; outra vez deixo o mundo e vou para o Pai.”
(Jo 16.28)

O Filho recebe amor, poder, glória e conhecimento do Pai e em uma ação voluntá-
ria devolve a ele todas essas coisas. O amor que existe entre os dois não tem a ver
meramente com bons sentimentos, mas com o compromisso, fidelidade e aliança
existente entre eles. A dimensão desse amor é tão forte e desmedida que se torna
em uma Pessoa, o terceiro integrante da trindade. O amor resultante do relaciona-
mento entre Pai e Filho é o próprio Espírito Santo.
Santo Agostinho nos dá essa compreensão a respeito da Trindade, segundo ele há
nas três Pessoas divinas: aquele que ama (Pai), o que é amado (Filho) e o amor
(Espírito Santo). De acordo com Sergei Boulgakov (1996):

Santo Agostinho faz uma verdadeira descoberta trinitária estranha à


teologia grega, a saber, a Trindade Santa considerada como Amor. Real-
ça, além disso, a especial significação da Terceira hipóstase, exatamente
como amor, como vínculo de amor, amor ou dilectio. (...) Esta beatitude
do amor na Trindade, consolação do Paráclito, é o Espírito Santo.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Em toda a literatura patrística, é apenas em Agostinho que encontramos


este esquema de amor: o que ama, o amado e o próprio amor. Ele compre-
endeu a Terceira hipóstase como Amor hipostático e é isto que constitui a
importância perene da sua teologia trinitária.³

E é nesse relacionamento de amor que Jesus nos convida a adentrar, nessa dança da
Trindade, chamada Pericorese4, onde Pai, Filho e Espírito Santo se entrelaçam em
perfeita harmonia. A obediência do Filho é resultado desse relacionamento.
Segundo Christopher Walker (2015)5, por mais que Jesus, enquanto indivíduo, pos-
suísse vontade própria, essa vontade não o dominava. Cristo enfatizou em vários
momentos que não veio à terra para fazer a sua vontade, mas a do Pai. Outro ponto
sobre Jesus é que, mesmo possuindo vontade própria, não era um grande sacrifí-
cio fazer a vontade de Deus, para ele obedecer não era penoso nem difícil. Cristo
envolvia suas emoções e anseios aos desejos de Deus de maneira voluntária. A sal-
vação por intermédio de Jesus não se deu apenas pelas coisas que ele fez, mas por
tê-las feito em obediência ao Pai. Portanto, concluímos que o fato mais importante
da vida de Jesus é a sua obediência, e não apenas as maravilhosas obras feitas por
suas mãos.
Paulo, em Romanos 5, mostra todo o peso de importância atribuído à obediência
de Cristo, contrastando-a com o catastrófico resultado da desobediência de Adão:

“Porque, assim como pela desobediência de um só homem muitos foram


feitos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos serão
feitos justos.” (Rm 5.19)

Portanto, é possível dizer que tudo resulta da obediência ou desobediência a Deus,


por mais que tal pensamento pareça simplório, essa é a realidade, uma verdade sim-
ples e real. Não existe meio termo quando se trata da vida com Deus, ou o homem
anda em um caminho de obediência ao Pai, como Jesus andou, ou caminha pela
estrada da desobediência, o que o levará à fragmentação e à morte.

3. BULGAKOV,Sergei Nikolaevich. Le Paraclet, Paris, L’ ge d’Homme, 1996, pp. 49.74 apud


AGOSTINHO.De Trinitate, Livros IX – XIII. Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008. pp
38, 39, grifo nosso.
4. PERICORESE: Relação interpenetrada entre as hipóstases (pessoas) da Trindade. Muitos
se referem a pericorese como sendo a dança da Trindade, uma dança dinâmica que envolve
movimento contínuo.
5. WALKER, Christopher. A dança da Trindade. Americana: Impacto Publicações, 2015, p 26,27.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

CONFIANÇA

O relacionamento de amor entre Pai e Filho capacitou Jesus a viver uma vida de
obediência. Por ter mantido seu coração conectado ao de Deus, ele pôde viver uma
vida perfeita, plenamente satisfeita e tranquila, livre de preocupações. Sendo as-
sim, com base no amor e confiança que fluíam dessa comunhão trinitária, ele se
entregou em completo abandono à providência divina. Ele tinha total consciência
de que estava nas mãos do seu Pai, aquele que sustenta o Universo com a palma
de suas poderosas mãos e, por isso, se entregou à justiça e cuidados dele. Vejamos:

“Ele não cometeu pecado, nem engano algum foi achado na sua boca; ao
ser insultado, não retribuía o insulto, quando sofria, não ameaçava, mas
entregava-se àquele que julga com justiça.” (1 Pe 2.22,23)

A calma e paz vistas em Jesus eram resultado da consciência de que ele estava nas
mãos de Deus. Estar imerso nessa realidade é uma das maiores preciosidades que
podem resultar da vida com Deus, ou seja, a consciência de estar sob o domínio sobe-
rano de Deus, entendendo que nada escapa de suas mãos, é uma grande dádiva. Esse
é um dos fatos que justificam a obediência sem limites de Jesus, ele estava comple-
tamente ciente de que todos os seus passos eram sustentados pelo Rei do Universo.
Jesus experimentou uma certa tensão e angústia quando estava no Getsêmani. Nes-
se episódio sua alma se afligia com o iminente fim da sua missão. Aproximava-se o
momento em que se tornaria maldição em favor da humanidade. Todavia, mesmo
em meio à profundidade de seus sofrimentos, Jesus encontrou em Deus o alívio de
suas angústias e se entregou em obediência. Vejamos:

“Então Jesus foi com os discípulos a um lugar chamado Getsêmani e


disse-lhes: Sentai-vos aqui, enquanto vou ali orar. E levando consigo
Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-
-se. Então ele lhes disse: A minha alma está tão triste que estou a ponto
de morrer; ficai aqui e vigiai comigo.” (Mt 26.36-38)

Jesus estava completamente ciente de que não existia nada nem ninguém fazendo
mal a ele, uma vez que sua vida estava nas mãos de Deus. Cada ofensa, insulto ou
injustiça cometidas contra o Filho de Deus não estavam fora do controle, Deus
tinha a vida de Jesus em suas mãos, portanto, não havia motivos para lamentações
ou vitimizações. E é por meio dessa percepção que ele logo rompeu a fronteira da

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

angústia e prosseguiu rumo ao cumprimento de sua missão na Terra. A grande ver-


dade é que foi do agrado de Deus moer a Cristo e capacitá-lo a concluir sua missão:

“Contudo, foi da vontade do SENHOR esmagá-lo e fazê-lo sofrer; ape-


sar de ter sido dado como oferta pelo pecado, ele verá a sua posteridade,
prolongará os seus dias, e a vontade do SENHOR prosperará nas suas
mãos.” (Is 53.10)

Para Jesus era clara a visão de que sua vida era regida por aquele que detém todo o
poder, isso o levava a descansar na verdade de que nenhuma dor ou alegria escapa-
vam do domínio de Deus. Nada escapa do controle daquele que tudo criou e não foi
criado, portanto, não existem motivos para se aborrecer com as injúrias sofridas,
uma vez que elas só existem com a permissão de Deus, aquele que é justo e fiel.
A justiça humana é deturpada, ela foi ferida pelo pecado, portanto, o único capaz
de julgar e conduzir todas as situações é o próprio Deus. A compreensão correta a
respeito dessa verdade é a chave capaz de conduzir o homem à paz e tranquilidade
experimentadas por Jesus.
Temos na Bíblia o exemplo de Jó, homem reto e justo que, por permissão de Deus,
foi afligido em todas as áreas de sua vida por Satanás. Jó teve sua saúde, família e
bens afetados para que sua lealdade a Deus fosse testada. Satanás almejava, por
meio do sofrimento imputado a Jó, provar que sua lealdade era falsa. Dessa fasci-
nante história, retratada de maneira poética e profunda, vale a pena destacar um
trecho em que Deus exorta a Jó, quando este debate com seus amigos a respeito do
sofrimento dos inocentes. Deus intervém dizendo:

“Quem é este que obscurece o conselho com palavras sem conhecimento?


Agora prepara-te como homem; porque te perguntarei, e tu me respon-
derás. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?
Conta-me, se tens entendimento.” (Jó 38.2-4).

Deus está reafirmando o fato de que ele é poderoso e tem o domínio de todas as si-
tuações, portanto, não cabe ao homem julgar o sofrimento alheio, tampouco o seu.
Outro ponto importante a se destacar é que, ao mesmo tempo em que nele está
concentrado todo o poder, também está concentrado nele toda a bondade.

“Jesus lhe perguntou: Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão
um, que é Deus.” (Mc 10.18)

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Deus é poderoso e bom, verdade vista por muitos como irreal. Os questionamentos
a respeito da bondade de Deus são inúmeros, pois ao se deparar com os sofrimen-
tos presentes no mundo, a humanidade acaba por desconsiderar que a bondade e
poder de Deus são características síncronas. Parece difícil aos homens conviver
com a ideia de que um Deus bom e poderoso consiga permitir os sofrimentos nos
quais padece a humanidade. Mas, como dito anteriormente, Deus é justo, bom e
todo poderoso, nenhuma dessas qualidades são excludentes. Não confiar na bon-
dade de Deus é, por vezes, a raiz dos pecados, pois torna-se difícil submeter-se em
amor à vontade de quem governa o mundo com injustiça.
Por mais que a Bíblia afirme a bondade de Deus a todo momento, por mais que os
santos do passado tenham escrito a respeito dessa verdade e por mais que existem
inúmeros sermões e livros na atualidade sobre o tema, essa é uma certeza que ape-
nas o relacionamento com ele pode trazer. Ninguém é capaz de imputar no coração
do outro a confiança na bondade de Deus, apenas ele pode convencer os seus filhos
sobre o fato de que as suas misericórdias se renovam a cada dia6 e que sua bondade
extrapola os limites da compreensão humana. Apenas o relacionamento com Deus,
caminho que Jesus ensinou com maestria, pode converter corações desconfiados
em corações que se entregam em confiança à bondade e providência divina.

CONCLUSÃO

O anseio de Deus é que o homem se submeta à sua vontade, mas ele não deseja uma
obediência desassociada da confiança plena nele. Ele anseia por uma obediência
que seja fruto da fé, que venha como resposta à confiança em sua bondade e amor.
Deus não quer oprimir ou tolher a liberdade do homem, o caminho que propõe é
de alegria e plenitude. A vida no Espírito de Jesus corresponde a essa vida de plena
liberdade e satisfação em Deus, livre das fragmentações, essa é a vida que nossa
alma tanto anseia. Cada um dos passos de Jesus na terra revelaram a vida de alguém
que se entregou em confiança à providência divina, alguém que não questionava a
bondade de Deus e que, por andar sobre essa realidade, foi capaz de viver uma vida
tranquila e inteira, mesmo em meio ao mar das ocupações. Jesus, por meio de seu
exemplo, quer ensinar aos homens que a vida que Deus propõe é uma vida eterna,
inteira e que sua vontade é boa, perfeita e agradável. Confiar na bondade de Deus é
o descanso e paz que a alma humana tanto anseia.

6. Lm 3. 22, 23

52
Aula 6
v.1.0.0

NOSSAS
VIDAS
Jesus trilhou um caminho de extrema humilhação, ele desceu ao mais baixo nível,
chegando às portas do Inferno, para que os homens pudessem ascender e viver o
propósito eterno ao qual foram criados para viver. O ministério de Jesus carrega em
si uma mensagem redentora que convida o homem, não apenas a ser livre do in-
ferno, mas a viver uma vida de intimidade com o Pai. Esse foi o motivo que levou o
Filho de Deus a se tornar maldição e se humilhar, o anseio por conduzir os filhos de
Deus de volta ao lar. O propósito do ministério de Jesus é levar o homem a imergir
no caminho de intimidade em que ele está inserido; o alvo de sua mensagem apon-
ta para o total abandono à providência divina e para o amor que existe na Trindade.
Jesus quer incluir seus irmãos na realidade em que habita, o verdadeiro lar criado
para os filhos de Deus, o lugar harmônico de onde o homem insiste em se desviar.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Na última aula falamos sobre a vida de Jesus, o maior exemplo a ser seguido. Dadas
as explanações a esse respeito, voltaremos a atenção para as nossas vidas frente a
essa realidade. Jesus viveu uma vida perfeita em contraste com a vida imperfeita
dos homens, porém, estar ciente dessa verdade não deve tolher em nós a ambição
por viver uma vida santa como a de Jesus. Pois, o sangue de Cristo derramado sobre
nós é a garantia que possibilita a aproximação do Pai e o deleite no amor que emana
dele. Não tem a ver com a capacidade do homem, mas com o poder de um Deus que
é mais forte que o pecado. Jesus morreu para que, aos homens, fosse dado o direito
de um lar e para que suas vidas pudessem ser introduzidas na mesma realidade de
intimidade divina experimentada por ele. Portanto, nesta aula falaremos sobre as
nossas vidas e como podem ser introduzidas na realidade proposta por Jesus.

A REALIDADE DA VIDA DE JESUS

Para muitos, ser inserido na realidade de Jesus pode significar uma garantia de
benefícios terrenos, uma vida de projeção e visibilidade. O ser humano é constan-
temente convidado, por influências pecaminosas, a buscar a promoção de sua ima-
gem e de seus dons, mostrando ao mundo o valor que possui. É ainda comum que
muitos depositem expectativa na realidade da vida de Jesus, por acreditarem que
esse será o meio pelo qual Deus realizará os sonhos particulares. Todavia, ainda que
os sonhos estejam ligados a funções religiosas, como trabalhos missionários, por
exemplo, esse não é o foco da mensagem de Jesus. O seu sacrifício não teve como
objetivo conduzir o homem a uma vida confortável, repleta de glórias e riquezas
terrenas, tampouco para que o homem usufrua das glórias de uma carreira eclesi-
ástica bem-sucedida. O alvo do ministério de Jesus é conduzir os filhos de Deus a
uma vida de intimidade com o Pai. Os Puritanos, membros de um movimento de
reforma religiosa ocorrido na Inglaterra no final do século XVI, pregavam a mode-
ração em contraponto ao pensamento comum da época, que julgava a prosperidade
terrena como um sinal do favor de Deus. Como herança às comunidades cristãs
posteriores, os puritanos deixaram uma oração, uma espécie de síntese do pensa-
mento que os guiavam, nela podemos ver a simplicidade de quem compreendeu
ser a vida do cristão uma completa contradição ao pensamento mundano. Vejamos:

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O VALE DA VISÃO

Senhor, santo e excelso, de forma submissa e humilde,


Fui trazido por ti ao vale da visão, em cujas profundezas habito,
mas vejo a ti nas alturas;
cercado pelas montanhas do pecado eu vejo a tua glória.
Permita-me aprender pelo paradoxo que
o caminho para baixo é o caminho para cima,
que ser humilde é ser elevado,
que o coração quebrado é o coração sarado,
que o espírito contrito é o espírito alegre
que a alma arrependida é a alma vitoriosa,
que não ter nada é possuir tudo,
que suportar a cruz é usar a coroa,
que dar é receber,
que o vale é o lugar da visão.
Senhor, de dia podem ser vistas estrelas de lugares profundos,
e no mais profundo poço a luz da tua estrela brilha;
Deixa que eu encontre tua luz em minha escuridão,
tua vida em minha morte,
tua alegria em meu sofrimento,
tua graça em meu pecado,
tua riqueza em minha pobreza,
tua glória em meu vale.¹

Essa oração traduz o que há de mais precioso na mensagem do evangelho, ela apon-
ta para uma vida que despreza qualquer glória terrena em prol do desfrute do maior
dos tesouros, o próprio Deus. O verdadeiro sucesso não está contido no que é
visível, mas sim em dar passos firmes na realidade invisível proposta por Jesus.
A mensagem de Jesus gira em torno da reconciliação do homem com Deus, os seus
sofrimentos não tiveram como alvo trazer glória terrena aos homens. Como vimos
anteriormente, o evangelho não é o meio pelo qual a vida pode vir a dar certo, mas a

1. Tradução livre: Márcio Santana Sobrinho Extraído de: The Valley of Vision: A Collection of
Puritan Prayers & Devotions, editado por Arthur Bennett.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

ponte que reconecta a humanidade ao Pai celeste. Segundo C. J. Mahaney (2004)²,


o apóstolo Paulo era insistente em reforçar essa mensagem, vejamos:

A cruz era o cerne da teologia de Paulo. Não era simplesmente uma


de suas mensagens, era a mensagem. Seus ensinos estendiam-se
também a outras áreas da vida, mas qualquer lição sua era extraída da
realidade basilar: Jesus Cristo morreu para que os pecadores pudes-
sem se reconciliar com Deus e ser por ele perdoados.

Paulo entendia a importância de frisar o verdadeiro alvo do evangelho, o motivo


que levou Cristo a padecer em uma cruz. É possível ser alimentado por essa reali-
dade ao ler as cartas escritas por ele à igreja e ser relembrado que a reconciliação
com Deus e o seu divino perdão, foram e continuam sendo o desejo de Jesus para
os seus irmãos. Segundo Jerry Bridges(1994), essa é a mensagem mais importante
de todas:

O evangelho é não apenas a mensagem mais importante de toda a his-


tória; é a única mensagem imprescindível de toda a história. Mesmo
assim, permitimos que milhares de cristãos confessos passem a vida
toda sem compreendê-la com clareza e sem experimentar a alegria de
viver por ela.³

A mensagem do evangelho é um tesouro de grande valor, que reveste de alegria


aqueles que o encontram. Essa não é uma mensagem qualquer, mas a única capaz
de conduzir o homem ao seu verdadeiro lar, o lugar de intimidade com o Pai. As
boas novas do evangelho falam de um Deus que se humilhou ao descer a terra
como homem, que viveu uma vida santa e irrepreensível e que morreu de forma
cruel, carregando em si todo o peso do pecado para que os homens fossem livres.
Cristo não hesitou em aceitar sua missão, pois seus olhos vislumbravam uma igreja
perdoada e mergulhada na realidade de amor divino em que ele vive, o verdadeiro
lar dos filhos de Deus.

2. MAHANEY, C.J. O segredo da vida aos pés da cruz.São Paulo:Editora Vida.2004. p.12
3. BRIDGES, Jerry, 1994, p.46 Apud MAHANEY, 2004. P.18

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O GRANDE DESPERDÍCIO

Algo curioso a respeito da vida de Jesus está contido no fato de que sua vida terre-
na se resumiu a apenas trinta e três anos de existência. Ainda mais impactante é
o fato de que seu ministério durou somente três anos e meio. Aos olhos naturais
isso parece um total desperdício de potencial. Pois, a forma como os homens con-
tabilizam suas vidas e o tempo é bastante equivocada, para muitos Jesus poderia
ter estendido o seu ministério, dessa forma suas obras seriam ainda mais benéficas
à humanidade. Essa é uma mentalidade afetada pela produtividade, que percebe a
realidade de maneira distorcida, sem a ótica da eternidade. Existem diversas histó-
rias, narradas na Bíblia ou externas a ela, que contam sobre homens e mulheres de
Deus que desperdiçaram suas vidas terrenas em prol de uma vida com propósito
eterno. Esse é o caminho que Jesus propõe, um caminho que deságua em confiança
nos cuidados do Pai. Deus escolheu uma maneira absurda, segundo a ótica mun-
dana, para fazer seu nome glorificado, enviando seu Filho à Terra para que, em um
curto período, pudesse triunfar sobre o pecado. O apóstolo Paulo afirma que, Deus
escolheu as coisas absurdas do mundo para envergonhar os sábios; e escolheu as coisas
fracas do mundo para envergonhar as fortes4, e essa é a verdade a respeito da vida
de Jesus, toda sua trajetória terrena pode ser vista como um louco desperdício de
potencial e esforço. Portanto, é necessário que o homem desconfie da forma como
contabiliza a vida, pois o ministério capaz de dividir a história ao meio, durou ape-
nas três anos e meio.
Com base em tudo isso, é importante frisar que a expectativa por ter uma vida espi-
ritual pode ser enganosa, pois a vida espiritual não é algo a ser mensurado. A vida de
Jesus exemplifica essa premissa, pois é completamente desassociada dos padrões
terrenos que regem a humanidade. Sua vida, em todos os aspectos, foi contrária ao
que os homens consideram ser uma vida de sucesso. Portanto, é necessário que os
olhares estejam atentos ao que é considerado sucesso espiritual e ministerial, pois
o maior exemplo a ser seguido, Jesus, veio para revelar o caminho onde sabedoria e
força são envergonhadas.

A VIDA ESPIRITUAL

Como dito anteriormente, a vida espiritual não pode ser medida, é possível estar
lidando com as mesmas tentações de outrora e ainda assim estar progredindo na

4. 1 Co 1.27

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

vida espiritual. Os homens de Deus em toda a história não viveram suas vidas livres
de tentações. O apóstolo Paulo, por exemplo, se referiu a um espinho na carne que
o assolava, existem diversas especulações a respeito disso e uma delas acredita que
ele se referia a alguma tentação que sofria:

“Portanto, para que eu não me tornasse arrogante, foi-me posto um espinho


na carne, um mensageiro de Satanás para me atormentar, para que eu não
me tornasse arrogante. Pedi ao Senhor três vezes que o tirasse de mim. Mas
ele me disse: A minha graça te é suficiente, pois o meu poder se aperfeiçoa na
fraqueza. Por isso, de muito boa vontade me gloriarei nas minhas fraque-
zas, a fim de que o poder de Cristo repouse sobre mim.” (2 Co 12.7-9)

Não podemos garantir que o espinho era de fato uma tentação, porém o que pode-
mos dizer a respeito disso é que Paulo lutava contra algo que afetava diretamente
o seu orgulho. O conforto de Paulo foi receber do alto a mensagem dizendo que o
poder de Deus se aperfeiçoava em sua fraqueza. Paulo, protagonista de uma histó-
ria extremamente relevante para o reino celestial, era afetado por suas fraquezas,
mas isso não barrou o seu crescimento espiritual, seu ministério gerou frutos que
perduram até a era vigente. Portanto, essa é uma mensagem de ânimo, uma vez que
crescimento espiritual não pode ser medido, tampouco contabilizado com base nas
fraquezas ou tentações sofridas. É possível descansar na verdade de que, mesmo
em nossas fraquezas, Deus é glorificado.
Jesus disse aos homens que a vida terrena seria repleta de tribulações, mas em se-
guida afirma que ele venceu o mundo, sendo assim, não há o que temer. Enquanto
Cristo não retornar para assumir seu reinado de direito sobre a criação, os homens
continuarão em guerra, não apenas uns contra os outros, mas também contra o
pecado. Todavia, por mais que a guerra contra o pecado esteja travada desde o Éden,
sabemos que o Ungido de Deus triunfará sobre todo o mal.

Eu vos tenho dito essas coisas para que tenhais paz em mim. No mundo
tereis tribulações; mas não vos desanimeis! Eu venci o mundo.5

Tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus6, mesmo os tropeços e sofri-
mentos durante a caminhada espiritual. Existe um Judeu de 33 anos garantindo aos
homens que esse caminho, ainda que difícil, é o único capaz de conduzir a verda-
deira vida, ao lugar onde o amor de Deus habita desde a eternidade.

5. Jo 16.13
6. Rm 8.28

58
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

OBEDIÊNCIA

“Nem todo o que me diz Senhor, Senhor! entrará no reino do céu, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está no céu. Naquele dia, mui-
tos me dirão: Senhor, Senhor, nós não profetizamos em teu nome? Em
teu nome não expulsamos demônios? Em teu nome não fizemos muitos
milagres? Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; afastai-vos
de mim, vós que praticais o mal.” (Mt 7.21-23)

Nessa passagem duas coisas serão destacadas, a primeira é o fato de que muitos
serão apartados de Deus, ainda que tenham feito inúmeras coisas em seu nome.
Naquele dia, o dia do juízo, grande será a surpresa dos que usam o nome de Deus
para exercer seus ministérios, mas que estão longe de serem reconhecidos como
seus amigos. Para tais pessoas restará o total desamparo. Ser rejeitado por um ami-
go, por um familiar ou por qualquer outro ser humano, não equivale ao desespero
de ser rejeitado pelo próprio Deus, nada será capaz de sanar essa dor, possivel-
mente esse será o início do sofrimento eterno. Nota-se que Jesus não se refere a
pessoas que falavam contra Deus, ou que lutavam publicamente contra o seu reino,
mas sim daqueles que pregavam, curavam e expulsavam demônios em nome do
Senhor. Tal atitude parece inofensiva e digna de reconhecimento, porém Deus não
está interessado em obras, mas no coração do homem. O homem, cujo coração vive
distante de Deus, será apartado dele por toda a eternidade, independente das obras
realizadas. Deus não precisa dos homens, de seus ministérios, tampouco de seus
dons, pois ele é suficiente em si mesmo; o que ele anseia é o coração de seus filhos.
As obras que geram verdadeiros frutos para o Reino de Deus são aquelas feitas a
partir de um relacionamento íntimo com o Pai, em obediência à sua voz, fato que
nos leva ao segundo ponto a ser destacado nas palavras de Jesus em Mateus 7.
Jesus é enfático ao dizer que entrarão no reino dos céus apenas aqueles que fazem
a vontade do Pai. O homem é extremamente complexo quando tenta desvendar
os mistérios que circundam a vida cristã, porém a vida cristã é simples, a vida es-
piritual tem a ver com obediência. O evangelho não tem a ver com a capacidade
de alguém ser disciplinado, tampouco com sua capacidade de mover-se no sobre-
natural. O caminho do evangelho não diz respeito aos dons nem ao esforço, mas
sim à obediência. Jesus caminhou em obediência ao Pai e esse foi o trunfo de seu
ministério, ele cumpria as ordenanças vindas do Céu, e por isso entregou sua vida
em total obediência. A vida, morte e todos os feitos de Jesus não teriam sido tão
grandiosos, nem teriam o poder salvífico a eles atribuído, se ele não tivesse andado
em completa obediência a Deus. Jesus fazia apenas o que via o Pai fazer:

59
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

“E disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada


pode fazer por si mesmo, senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto
ele faz, o Filho faz também.” (Jo 5.19)

A vida de Jesus é o maior exemplo a ser seguido, portanto sua obediência tem mui-
to a nos ensinar. Ele, mesmo sendo Deus, se humilhou e obedeceu em tudo, sua
vida santa, justa e irrepreensível o tornaram o sacrifício perfeito. Seu sangue puro
derramado sobre os homens é o que os possibilita se achegar a Deus. A obediência
de Cristo trouxe ordem ao caos e é por esse caminho que ele convida os homens
a andar, um caminho onde a única coisa que importa é a vontade do Pai. Jesus não
obedecia por mera obrigação, mas por saber, através de um relacionamento íntimo
com Deus, que a sua vontade é boa, perfeita e agradável.7

O LUGAR SECRETO

“Cuidado para não praticardes boas obras diante dos homens a fim de
serdes vistos por eles; do contrário, não tereis recompensa de vosso Pai,
que está no céu. Assim, quando deres esmola, não faças tocar trombeta
diante de ti, a exemplo dos hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para
serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já rece-
beram sua recompensa. Mas, quando deres esmola, a tua mão esquerda
não saiba o que faz a direita; para que a tua esmola fique em segredo; e
teu Pai, que vê o que é secreto, te recompensará.” (Mt 6.1-4)

Nessa passagem Jesus comunica que Deus recompensará aqueles que praticam
boas obras sem o anseio por reconhecimento. Aqueles que agem no secreto serão
recompensados por Deus, pois o Pai vê o que é feito em segredo. Um ponto impor-
tante sobre o relacionamento com Deus é que ele é cultivado no secreto:

“Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a
teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê o que é secreto, te recompen-
sará.” (Mt 6.6)

7. Ro 12.2

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

É nesse lugar de comunhão, onde se encontram apenas o homem e Deus, que ele
fala aos corações. As obras, ou seja, o que é visível, deveriam ser resultado dessa
comunhão, pois qualquer obra feita sem as bases do relacionamento com Deus
torna-se completamente vazia. Muitos se apresentarão a Deus no último dia com
as mãos cheias, mas ouvirão de sua parte que não são dignos de entrar no reino dos
céus, pois são por ele desconhecidos. Os verdadeiros amigos de Deus se aproxi-
mam em busca de relacionamento e é por meio dessa comunhão que seus destinos
são traçados. Somente as obras feitas como resultado dessa comunhão entre Deus
e o homem, são imbuídas de significado e incluídas no seu plano eterno.
Leonard Ravenhil (1989), foi bastante categórico ao considerar a grande maioria das
pregações modernas, ato visível e de grande estima, como inferior a oração. Segun-
do ele, é possível que Satanás não teme boa parte das pregações atuais8, mas sem
dúvida alguma temeria uma igreja que, no secreto, busca a Deus em oração. Para
Ravenhill, o segredo da oração é a oração no lugar secreto9, pois uma igreja formada
por indivíduos que se relacionam em intimidade com Deus, é uma igreja com um
potencial gigantesco para o Reino dos céus.
O homem que segue os passos de Jesus e vive em obediência a Deus, construindo
uma história de amizade com o Pai, será recompensado. Aquele que, mesmo em
meio às diversidades, perseverar em comunhão com Deus, será reconhecido como
seu amigo e lhe será dada a coroa da vida.

“Feliz é o homem que suporta a provação com perseverança, porque,


depois de aprovado, receberá a coroa da vida que o Senhor prometeu aos
que o amam.” (Tg 1.12)

Existe no homem um desejo por aprovação e reconhecimento, talvez esse seja um


dos motivos que tornam o lugar secreto pouco atrativo. Para auxiliar no processo
de desapego à necessidade por aprovação, existem alguns exercícios que podem
ser feitos. Um deles consiste em fazer algo por alguém sem revelar o ato, tal atitude
não representaria a totalidade do que está sendo construído entre você e Deus, mas
seria o início da caminhada.

8. RAVENHILL, Leonard. Por que tarda o pleno avivamento.Minas Gerais: Editora Betânia, 1989.
p 22
9. Ibidem p 144

61
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

CONCLUSÃO

O relacionamento com Deus precisa ser levado a sério, caso contrário, seremos
estranhos a ele, ainda que nos apresentemos com as mãos cheias de obras. Existe
uma história a ser construída entre o homem e Deus e não existe ninguém no meio
desse relacionamento. A nossa responsabilidade é andar em obediência e cultivar
as bases desse relacionamento no lugar secreto, um lugar sem intermediários ou
olhares alheios. Jesus reforça que não devemos fazer nada para sermos vistos, pois
o verdadeiro tesouro se encontra no lugar secreto, longe de qualquer visibilidade.
É necessário aceitar o trabalhar de Deus nos bastidores, uma vez que nessa história
ele é o único protagonista e, por ser soberano e suficiente em si mesmo, não ne-
cessita de auxílio.
O relacionamento com Deus é vital ao cristão, pois é o único caminho capaz de
mudar o coração do homem de lugar, transportando-o da morte à vida. Jesus veio
mostrar que uma mudança de coração acontece apenas por meio do relacionamen-
to com o Pai. Por essa razão, faz-se necessário dispor de tempo a sós com Deus de
maneira constante, caso contrário o homem será assolado pelo isolamento, hosti-
lidade e ilusão.
Os filhos de Deus foram criados para uma vida integral e espiritual e Jesus apre-
senta a forma correta de mergulhar nessa realidade. Buscar o Reino de Deus em
primeiro lugar não é uma moeda de troca para ganhar “todas essas coisas”, mas
sim a oportunidade de experimentar o amor, cuidado e provisão de um Deus que
é Todo Poderoso. Mas para que esse relacionamento seja de fato experimentado,
é necessário obedecer e basear cada um dos passos dados na realidade da vida de
Jesus, nosso maior exemplo.

62
Aula 7
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DA SOLIDÃO
Prosseguindo sua viagem, Jesus entrou num povoado; e uma mulher chamada Mar-
ta recebeu-o em casa. Sua irmã, chamada Maria, sentando-se aos pés do Senhor,
ouvia a sua palavra. Marta, porém, estava atarefada com muito serviço; e, aproxi-
mando-se, disse: “Senhor, não te importas que minha irmã tenha me deixado sozinha
com o serviço? Dize-lhe que me ajude. E o Senhor lhe respondeu: Marta, Marta, estás
ansiosa e preocupada com muitas coisas; mas uma só é necessária; e Maria escolheu a
boa parte, e esta não lhe será tirada.” (Lc 10.38-42)
Uma coisa só é necessária, essas foram as palavras de Jesus direcionadas ao coração
agitado de Marta. Por mais que o momento em que tais palavras foram ditas separe
em séculos a era em que estamos, elas continuam a confrontar a realidade agitada
na qual o homem vive. Em um mundo onde as necessidades são cada vez mais

63
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

avassaladoras, faz-se necessário um auto exame minucioso para compreender se,


de fato, cremos na premissa - “uma coisa só é necessária”.
A vida moderna trouxe consigo diversas necessidades que acabam por consumir
a mente humana. A lista de tarefas a serem executadas é crescente e junto a elas
somam-se as diversas preocupações. Nesse estado se encontrava Marta, ela estava
agitada, ansiosa e preocupada frente às muitas necessidades. Esse é um quadro
semelhante ao dos habitantes do século XXI, pois suas almas encontram-se em
extrema agitação. São contas para pagar, prazos a serem cumpridos, pessoas para
serem assistidas, enfim, são inúmeras as atividades que, mesmo legítimas, acabam
por eliminar as forças e por dividir a atenção com o que realmente importa.
Ainda que a atitude de Maria seja admirada, a agitação de Marta continua a ser a
que mais gera identificação naqueles que se deparam com essa história. Porém, o
desejo de Jesus é transformar esse quadro, resgatar os homens do mar agitado de
suas vidas e transportá-los a um lugar de descanso. Um lugar reservado aos filhos de
Deus, onde as muitas necessidades perdem espaço para a companhia mais sublime,
a do próprio Deus.
Um coração imerso no mar agitado da vida, encontra descanso apenas na solidão,
livre das muitas vozes e influências que assolam sua alma. Esse será, portanto, o as-
sunto desta aula. Nela falaremos sobre a disciplina da solidão, e como por meio dela
é possível encontrar a única coisa necessária para apaziguar um coração agitado.

O MAR AGITADO DA VIDA

“Depois que entrou no barco, seus discípulos o seguiram. E levantou-se


no mar tão grande tempestade, que o barco estava sendo coberto pelas
ondas; Jesus, porém, estava dormindo. Os discípulos se aproximaram
e o despertaram, dizendo: Salva-nos, Senhor! Vamos morrer. Ele lhes
respondeu: Por que temeis, homens de pequena fé? Então Jesus se levan-
tou e repreendeu os ventos e o mar, e houve grande calmaria. E aqueles
homens se admiraram, dizendo: Quem é este que até os ventos e o mar
lhe obedecem?” (Mt 8.23-27)

Existem diversas alegorias feitas com base no episódio narrado acima, porém, esse
caminho pode ser perigoso, uma vez que as alegorias bíblicas são previamente des-
critas como alegorias. Todos os fatos citados em Mateus 8 são reais e não alegóricos,

64
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

fato que torna possível retirar dessa história ensinamentos muito preciosos, uma
vez que Jesus é o maior exemplo a ser seguido. Portanto, focaremos nossa atenção
em Jesus e na forma como ele lidou com o turbulento mar. O primeiro ponto a se
destacar é que Jesus descansava enquanto tudo à sua volta parecia desmoronar. Ele
se mantinha tranquilo frente ao perigo, pois era convicto que sua vida estava nas
mãos do Pai, que é bom e todo-poderoso. Seu coração era batizado pela paz que
inunda o coração dos filhos, os que compreendem ser Deus, aquele que criou e
continua a sustentar o Universo. O segundo ponto a ser destacado é a postura de
Jesus ao ordenar que o mar se acalmasse. Ele se levantou e determinou que a tem-
pestade cessasse, em uma atitude de completa autoridade sobre as circunstâncias.
E é essa autoridade que Cristo anseia ensinar aos homens. O mesmo espírito que
capacitou Jesus a descansar e ordenar o mar, atua sobre os filhos de Deus.
Muitas vezes nossas vidas se assemelham a um mar agitado, com turbulências
externas e internas. São muitas as necessidades, as exigências, as dificuldades, enfim,
existem caos dentro e fora do homem. Contudo, ainda que as circunstâncias sejam
desfavoráveis é possível encontrar um lugar de paz e receber autoridade para dominar
a alma agitada. Aqueles que vivem em comunhão com a Trindade são munidos de
poder para ordenar a paz ao caos. Apenas assim o homem será capaz de usufruir de
uma vida integral e intensa, não existirá somente reagindo às circunstâncias. A vida
de Jesus revela ser possível triunfar sobre o caos; ele ensinou, com seu exemplo, a
importância de não se desesperar frente às circunstâncias, mas de enfrentá-las.
É possível que muitos pensem ser impossível agir da mesma maneira que Cristo agiu,
uma vez que ele é Deus. Todavia, sua vida abriu um caminho por onde o homem é ha-
bilitado a passar, um caminho de autoridade e poder frente às agitações da vida. O mes-
mo espírito que capacitou Jesus, habita hoje no interior do homem, portanto, podemos
crer nas palavras de Jesus quando diz “Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que crê
em mim também fará as obras que eu faço, e as fará maiores, pois estou indo para o Pai.¹”
As ferramentas necessárias para ordenar paz à alma agitada já foram concedidas
aos filhos de Deus. Mas, como dito anteriormente, é possível olhar o exemplo de
Jesus e pensar ser impossível agir como ele agiu, pois sendo Deus estava munido
de poder para triunfar sobre todo o mal. Contudo, tal pensamento revela uma falta
de compreensão a respeito da obra de Cristo, pois existe um motivo pelo qual ele
se fez carne. Jesus se despiu de sua glória para que sua vida e morte concedesse
aos homens a grandiosa alegria de ter o próprio Deus habitando em seu interior.

1. João 14.12

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

O Espírito Santo reveste os homens das ferramentas necessárias para fazer obras
maiores que as de Cristo². O mesmo Espírito que estava sobre Jesus, atua hoje
sobre os filhos de Deus, capacitando-os a trilhar o caminho que conduz ao Pai.
A Ceia celebrada pelos cristãos, assim como outros rituais litúrgicos, revela que
assim como estão dentro de nós o pão e o vinho ingeridos, está a vida de Jesus.
O Espírito Santo, derramado sobre os homens no Pentecostes, é o poder que os
capacita a seguir os mesmos passos do Filho de Deus.

Tempestade no
mar da Galiléia,
Rembrandt, 1633.

DOMÍNIO PRÓPRIO

“Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, paciência, benignidade,


bondade, fidelidade, amabilidade e domínio próprio. Contra essas coisas
não existe lei.” (Gl 5.22,23)

O domínio próprio é um dos frutos do Espírito, acessível àqueles que nasceram de


novo. Portanto, é possível, por meio dele, viver uma vida não mais dominada pelas
circunstâncias. A grande maioria dos homens encostam suas cabeças no travessei-
ro e se deparam com uma alma completamente tumultuada. Os dias são agitados,
existem inúmeras necessidades a serem supridas, pendências postergadas, entre
outros dissabores que tornam a alma humana um lugar semelhante ao mar em todo
seu furor. Dessa forma os homens seguem seus dias, completamente tumultuados
externa e internamente. Possivelmente esse é o quadro da grande maioria da po-
pulação mundial. Os homens estão adoecendo por não saberem dominar a agitação
de suas vidas. Mas existe um lugar a partir do qual é possível ordenar os dias e

2. João 14.12

66
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

conduzi-los de uma forma mais saudável. Um lugar de descanso, não por isentar o
homem de suas muitas atividades e obrigações, mas por torná-lo capaz de ordenar
a paz ao caos.
É possível ler diversos Salmos escritos por Davi, onde ele parece entender a impor-
tância de dominar a alma agitada. Vejamos:

“Ó minha alma, bendize o SENHOR, e todo meu ser bendiga seu santo
nome. Ó minha alma, bendize o SENHOR, e não te esqueças de nenhum
dos seus benefícios. É ele quem perdoa todas as tuas iniquidades, quem
sara todas as tuas enfermidades, quem resgata da cova a tua vida, quem
te coroa de amor e de misericórdia, quem te supre de todo bem, de modo
que tua juventude se renova como a da águia” (Sl 103.1-5)

“Por que estás abatida, ó minha alma, por que te perturbas dentro de
mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, minha salvação e meu
Deus. Minha alma está perturbada dentro de mim; por isso me lembro
de ti, nas terras do Jordão, no Hermom e no monte Mizar." (Sl 42.5,6)

Davi entendeu que as circunstâncias não deveriam tirá-lo do controle de suas emoções.
Pois, segundo ele, uma alma abatida era uma alma que não confiava em Deus. O do-
mínio próprio coloca o homem em uma posição de combate a tudo que pode afastá-lo
de Deus. Uma alma agitada torna o homem surdo à sua voz, portanto, é de extrema
importância retomar o controle e ordenar a paz ao mar agitado que habita o interior.
A pessoa que exerce o domínio próprio é capaz de repousar sua cabeça e descansar
tranquilamente, ainda que frente às muitas necessidades. Esse descanso existe por
meio da consciência de que há um lugar a partir do qual é possível ordenar paz à
alma. Portanto, domínio próprio significa não se deixar dominar pelas circunstân-
cias, situações e necessidades que a vida apresenta. É necessário encontrar o lugar
de comunhão com o Espírito, por onde flui a autoridade necessária para triunfar
sobre a agitação da vida. Um lugar onde as circunstâncias não dominam, mas onde
reina a paz de Cristo.

FAZENDO NOVA TODAS AS COISAS

O livreto utilizado como base para essa aula tem, em sua versão original, o título
“Fazendo nova todas as coisas”. Ao ser traduzido para o português ganhou o título,

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

“Espaço para Deus”. Ambos carregam em si muito significado, porém, iremos nos
atentar ao título originalmente escolhido por Henri Nouwen. Essa escolha do autor
diz muito sobre a trajetória humana, pois não aponta para algo novo, nunca visto,
mas para a restauração de todas as coisas. O foco dessa palavra não é levá-lo a mudar
as circunstâncias, mas conduzi-lo a um lugar de comunhão com Deus. A partir desse
lugar é possível ter o coração transformado, fato que trará uma nova perspectiva a
respeito da vida.
Ao ser atingido pela verdade de que Deus é um pastor que apascenta amorosamen-
te suas ovelhas e que seu cajado consola e molda os caracteres, é possível se desvin-
cular da posição de vítima. Ao estar ciente do caráter de Deus, a vida deixa de ser
encarada como uma série de acontecimentos desenfreados que fogem ao controle,
uma nova perspectiva passa a existir. Necessitamos confiar, mesmo quando Deus
utiliza seu cajado para repreensões e correções, que ele é bom o tempo todo.
Ao dizer que “uma coisa só é necessária” foi exatamente a respeito desse novo
coração que Jesus se referia. Um coração que busca em primeiro lugar o reino de
Deus, é inundado pela perspectiva celestial. Quando as prioridades são estabeleci-
das, tudo se faz novo. Não são as necessidades que mudam, mas a visão a respeito
delas, elas perdem o destaque e abrem caminho para algo mais sólido. A partir do
momento em que surge uma correta compreensão sobre a premissa “uma coisa só
é necessária”, não será mais necessário reagir a “todas essas coisas”. Contudo, essa
é uma garantia disponível apenas àqueles que mergulham em um relacionamento
íntimo com Deus. A vida que flui a partir da comunhão entre Criador e criatura é
capaz de transformar o interior do homem, restaurando todas as coisas.

SOLIDÃO

Qualquer pessoa que seja séria em seu intuito de viver uma vida cristã, precisa
encarar a temida palavra “disciplina”. Esse é um preceito que determina o quão
abundante uma pessoa será. A disciplina é o segredo para se libertar de uma vida
que apenas reage às circunstâncias. É necessário que todo esforço seja empregado
na missão de cultivar o relacionamento com o Pai celeste. A disciplina mais neces-
sária a ser empregada é, sem dúvidas, a solidão. Por ser a mais necessária, torna-se
também a mais difícil. Existem diversos obstáculos a serem enfrentados quando o
espaço para Deus começa ser liberado por meio dessa disciplina.
A solidão a qual nos referimos diz respeito a um espaço onde habitam apenas o ho-
mem e Deus. É um movimento contrário à produtividade, uma vez que nenhuma

68
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

atividade vista como produtiva, seja física ou mental, é exercida. Ao encarar a discipli-
na da solidão, o homem deverá manter sua atenção exclusivamente no Pai celestial.
Nesse momento é importante se desprender da necessidade de suplantar o tédio,
a única coisa necessária é liberar espaço e esperar o som que vem do alto. A voz de
Deus é capaz de alinhar qualquer coração emaranhado, portanto, é necessário que
seus filhos se esforcem para abrir espaço para ouví-la.
Ao cultivar a disciplina da solidão, abrindo espaço para Deus, o caos que existe no
interior será evidenciado, por esse motivo muitos fogem da solidão. É completa-
mente desconfortável aos homens lidar com a desordem intrínseca. Em razão disso
as mais diversas sugestões acabam por encontrar repouso em suas mentes, quan-
do adentram nesse caminho. As necessidades mais latentes e as pendências mais
inesperadas ganham destaque. Mas para que isso não venha a acontecer, algumas
estratégias podem ser aplicadas, falaremos sobre elas logo abaixo.
O primeiro estágio do caminho que leva à solidão é extremamente doloroso. Nesse
momento as mentes são bombardeadas por ansiedades, medos, conflitos, dúvidas
ou até mesmo desejos impulsivos. Abrir espaço para Deus conduz o homem a um
lugar de doloroso confronto, mas é necessário prosseguir em perseverança e cons-
tância, pois esse é o único caminho capaz de conduzi-lo ao Pai.

MÉTODOS

Ao embarcar na jornada da solidão e perseverar nela, será possível perceber a re-


novação da esperança e uma maior sensibilidade para ouvir a voz de Deus. Tais as-
pectos não surgem instantaneamente, eles exigem um cultivo paciente, pois, como
dito anteriormente, o primeiro contato que o homem terá ao abrir espaço para
Deus, será a confrontação com seu próprio mundo interior. É possível que surjam
dúvidas, medos ou outros empecilhos, mas a perseverança conduzirá a confiança
em Deus e a fé para crer que a sua voz está sendo de fato ouvida.
Para auxiliar no caminho da solidão, existem alguns métodos muito eficientes, ve-
jamos:
1. Anote: Tenha ao alcance um papel e um lápis, ou qualquer outro meio para
anotar as necessidades e/ou pendências que surgem na mente. Dessa forma
tais pensamentos não permanecerão assombrando e atrapalhando o momento
reservado para se estar a sós com Deus.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

2. Constância e calma: Persevere em constância e calma, pois a constância


é mais importante que quantidade de tempo. Não é saudável, para quem está
iniciando sua jornada rumo à solidão, separar uma grande quantidade de tempo.
Recomenda-se que poucos minutos sejam separados, porém mantendo cons-
tância, para que esse espaço cresça de forma orgânica.
3. Local: Separe um local para esse momento, um quarto ou qualquer outro
espaço que seja, de preferência, exclusivo para isso. Um local tranquilo, sem
muitas distrações, seria o ideal.
4. Distrações: Quando as distrações vierem é importante não tentar combatê-las
diretamente, pois ao fazer isso o resultado será apenas o desgaste mental. O que deve
ser feito é o confronto das distrações com as Escrituras, é necessário ler a palavra, ela
servirá como âncora quando os pensamentos começarem a divagar ou quando o caos
interior vier à tona. É possível ainda repetir orações bíblicas, trechos de Cânticos e
Salmos, pois ao fazer isso o interior é inundado pelas verdades celestiais.
5. Rotina: Tenha uma rotina, isso deve englobar o horário escolhido e os passos a
serem seguidos nesse momento. Ter um horário fixo e uma ordem para cada um dos
movimentos facilitará, em especial, quando o tédio ou qualquer outro bloqueio vier
a surgir.
Essas são dicas que podem facilitar o processo, mas cada um possui ritmos e gostos
distintos. É importante que essa rotina seja uma busca individual que condiga com
as peculiaridades de cada ser. Entretanto, vale lembrar que o foco não se encontra
na rotina, mas no alvo que é o próprio Deus, sendo a rotina apenas um meio para
esse fim. Uma vez que isso é estabelecido, segundo as palavras de Jesus, não será ti-
rado. Ainda que você se encontre fora desse lugar ou fora da rotina, você continuará
a ser completamente dependente da voz de Deus. Portanto, o objetivo dessa aula
não é levá-lo a ser uma pessoa disciplinada, mas levá-lo a uma solidão de coração, o
lugar onde você e Deus habitam em comunhão.
Algo que também pode ajudar nesse momento a sós com Deus é o método, chama-
do “LEDCO”. Um acróstico das palavras, Leia, Escreva, Diga, Cante e Ore. Esse é
um guia para meditação bastante utilizado e pode ajudá-lo a crescer em relaciona-
mento com o Pai. Veja abaixo cada um dos passos:

70
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

LEDCO

1. Leia um único versículo várias vezes. Procure por frases e palavras-chave. Se


concentre no que você leu e naquilo que deve significar em seu contexto. Pense
em outras formas de dizer as palavras. Note quais as palavras que parecem enfa-
tizadas e como elas afetam o significado da frase.
2. Escreva o versículo uma vez, exatamente como está escrito. Feche sua Bíblia e
coloque-a de lado. Uma vez que você já tem o versículo, você não quer outro cha-
mando a sua atenção para longe desse primeiro. Escreva uma pequena frase e vá
para o próximo passo: diga. Escreva a frase várias vezes em sua meditação. A Palavra
escrita é poderosa e temos a oportunidade de escrever sobre as valorosas palavras
do eterno Deus.
3. Diga o versículo ou a frase em voz alta. Diga alto o bastante para que seus
ouvidos ouçam. Fé vem pelo ouvir e ouvir a Palavra de Deus. Grande parte das
coisas que você acredita são coisas que você ouviu várias vezes. Enquanto você
repete o versículo ou a frase, certas palavras se destacam. Essas palavras devem
ser repetidas mais vezes, continuamente.
4. Cante! Cantar é um meio de destravar o coração. Pegue uma frase isolada e
cante-a repetidamente. Use a melodia ou harmonia de uma música conhecida
ouvindo, caso o ajude. Escreva quais são os seus sentimentos ou percepções.
Quando cantamos, nossas vozes funcionam de uma maneira distinta de qual-
quer outro instrumento musical. Nenhum outro instrumento musical carrega
uma corrente de pensamentos junto a uma melodia. Declarar um versículo bí-
blico em canção tem impacto sobre o espírito, alma e corpo.
5. Ore! Oração é um meio divino de comunicação com Deus. Quando você repe-
te uma frase e acredita estar falando com Deus, isso é uma oração. Todas as frases
das Escrituras são convites para acreditar e/ou gerar fé para vivê-las. Enquanto
você ora, peça ao Senhor para te ajudar a acreditar no versículo. Se a frase invoca
fé para o seu caminhar, então peça a Deus para te ajudar a viver o versículo.

CONCLUSÃO

No mundo moderno, onde todos parecem lutar contra o relógio, o convite de Je-
sus soa um tanto contraproducente. Marta estava agitada com as muitas necessi-
dades, mas Jesus evidencia o fato de Maria estar aos seus pés. Parar e permanecer
aos pés de Jesus é uma atitude que, para muitos, pode ser considerada como um

71
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

completo desperdício de tempo. Porém, quando Jesus alerta Marta sobre a boa parte
escolhida por Maria, ele está ensinando a humanidade a respeito da forma correta de
viver. Jesus fala que uma coisa só é necessária, portanto, priorizar a comunhão com
ele no lugar das muitas necessidades é escolher a boa parte e essa não será tirada.
Jesus disse que no mundo teríamos aflições, mas também garante que ele venceu o
mundo. Ele é Senhor sobre todas as circunstâncias e necessidades, é Senhor sobre
todas as aflições, faz com que tudo coopere para o bem de seu povo. O mesmo Es-
pírito que estava sobre Jesus foi derramado no Pentecostes sobre os homens, para
que eles pudessem entrar na mesma realidade que há na Trindade e assim viver
uma vida baseada em uma perspectiva celestial. Disciplinar o interior para adentrar
na realidade da solidão, onde habitam apenas o homem e Deus, é sem dúvida a
maneira mais correta de se viver.

72
Aula 8
v.1.0.0

A DISCIPLINA DA
COMUNIDADE
A disciplina é uma ferramenta indispensável para quem procura crescer espiritualmen-
te. À medida que o homem se submete a uma vida de disciplina, Deus concede a graça
necessária para que realize aquilo que é incapaz de fazer sozinho. Uma vida discipli-
nada, em especial quando diz respeito à espiritualidade, significa uma vida repleta de
obstáculos. Contudo, o plano de Deus prevê e considera cada uma desses entraves.
Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelo homem está relacionada diretamente
aos seus relacionamentos horizontais. Todavia, o projeto de redenção é perfeito, ele
capacita o homem a viver o relacionamento vertical para que consiga, a partir des-
se lugar, se relacionar de maneira saudável com o próximo. Os aspectos que vimos
acima, sobre a disciplina, são aplicáveis nesse caso, uma vez que a disciplina é capaz
de munir o homem da graça necessária para viver em comunhão com Deus e com o
próximo. Deus é um Deus de família, Ele não criou o homem para andar só e é sobre

73
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

essa realidade de comunidade que falaremos. Os homens foram criados para a comu-
nhão, para uma família. Isso significa que estar longe dessa realidade é o mesmo que
estar longe da vontade perfeita de Deus. Esse é o motivo que nos faz encerrar essa
disciplina focando no que Deus tem a dizer sobre a comunhão dos santos.

A BASE DOS RELACIONAMENTOS SAUDÁVEIS

Uma das bases para cultivar relacionamentos saudáveis, dentro de uma comunida-
de de fé, encontra-se na solidão. Segundo Henri Nouwen (1984):

“Embora a disciplina de solidão exija que separemos para isso tempo e


espaço, no final de tudo o importante é que nossos corações se tornem
aposentos tranquilos em que Deus possa habitar, onde quer que esteja-
mos ou façamos. Quanto mais nos treinarmos a gastar tempo com Deus
e unicamente com ele, mais descobriremos que em todo o tempo e em
todo lugar Deus está conosco. Então, poderemos reconhecê-lo mesmo no
meio de uma vida atarefada e ativa. Depois que a solidão de tempo e espa-
ço se torna a solidão do coração, nunca haveremos de deixá-la. Poderemos
viver a vida espiritual em qualquer lugar e em qualquer tempo. Dessa for-
ma, a disciplina de solidão capacita-nos a viver uma vida ativa no mundo,
enquanto permanecemos constantemente na presença do Deus vivo.”¹

Os monges do passado chamavam a disciplina da solidão de “fornalha da alma”,


pois é através dela que Deus forja nos homens o caráter de Cristo. O padrão ensina-
do por Jesus no sermão do monte, ou seja, todas as bem-aventuranças e exortações
ditas por ele, são introduzidas no interior do homem quando este dedica tempo à
disciplina da solidão. Este é o momento em que as fraquezas se evidenciam, tra-
zendo à tona pensamentos e desejos escondidos no mais profundo da alma. Porém,
é de extrema importância que o homem encare esse obstáculo, perseverando na
solidão, para que seu interior seja completamente iluminado. O homem torna-se
habilitado a ter um encontro com Deus apenas quando tem um encontro real com
quem de fato é. E só é possível relacionar-se de maneira saudável com o próximo,
quando existe relacionamento com Deus. A base do relacionamento horizontal é o
relacionamento vertical.

1. NOUWEN, Henri J. M. Espaço para Deus. Americana: Impacto publicações, 1984, p 25.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Tendo como base o relacionamento com Deus é possível relacionar-se com o pró-
ximo sem os males da comparação, justiça própria, espírito de inferioridade ou
qualquer outro aspecto nocivo à vida de comunidade. Através do relacionamento
com Deus, cultivado na solidão, o homem passa a perceber a si próprio pela ótica
divina. Ao se deparar com quem de fato é e com a graça imerecida que o alcançou,
seu coração passa a ser banhado em compaixão pelo próximo. Portanto, a compai-
xão nasce do encontro com Deus, esse sentimento não pode ser fabricado pelo
homem, é dádiva dos céus. Ao compreender a profundidade dos seus pecados em
contraste ao imenso amor do Pai, o homem é capaz de olhar para o outro com em-
patia e misericórdia.
A solidão não aguça o egoísmo, tampouco conduz ao individualismo, mas é a base
dos relacionamentos saudáveis. Se os relacionamentos são pautados em sentimentos
de desligamento, isolamento, medo e desconfiança, a tendência é que se tornem do-
entios. Muitos relacionamentos funcionam dessa forma, são cultivados por pessoas
cheias e não realizadas que sugam umas às outras, na esperança por terem seus vazios
preenchidos. Não é à toa que as relações interpessoais se encontram extremamente
frágeis. Logo, se a base relacional não é intimidade com Deus os relacionamentos
serão desastrosos, decepcionantes e frustrantes. Tendo em vista tudo isso é possível
afirmar que a disciplina da comunidade é consequência da disciplina da solidão.
Veremos, então, que a disciplina da comunidade é consequência da solidão. Uma
das áreas que a disciplina da solidão mais afeta é a palavra. Isso acontece porque o
centro da disciplina da solidão é o silêncio e a oração. O silêncio ensina a não ba-
nalizar as palavras, mas a fazer o uso correto delas. A língua é um órgão que pode
interferir positiva ou negativamente em uma comunidade. Na epístola de Tiago o
autor exorta sobre os cuidados com a língua:

Assim também a língua é um pequeno membro do corpo, mas se gaba


de grandes coisas. Vede como um grande bosque é incendiado por uma
faísca. A língua também é um fogo; sim, como um mundo de maldade,
ela é colocada entre os membros do nosso corpo, contamina todo o corpo
e põe em chamas o curso da nossa existência, sendo por sua vez posta em
chamas pelo inferno (...). Com a língua bendizemos o Senhor, e Pai, e com
ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. (Tg 3.5,6,9)

É fundamental que a língua seja dominada a partir da disciplina da solidão, pois ela
é um dos principais órgãos que podem pôr fim à vida em comunidade. Além de tra-
zer grande confusão, a língua é capaz de minar o potencial que há na comunidade.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Apenas o relacionamento individual com Deus pode frear os possíveis efeitos noci-
vos da língua em uma comunidade.
Não existem relacionamentos saudáveis sem o relacionamento individual com
Deus. É somente por meio da comunhão vertical que as relações horizontais
podem ser bem-sucedidas. Caso contrário, serão manchadas pelo mal uso da lín-
gua, pelo egoísmo e pela fragmentação. Esses são alguns dos aspectos danosos que
definem pessoas de corações cheios e não realizados. Apenas o relacionamento
com Deus é capaz de curar e trazer vida aos relacionamentos humanos.

A DISCIPLINA DA COMUNIDADE

A disciplina da comunidade gera um espaço livre e vazio entre as pessoas, o que as


possibilitam viver uma vida de obediência, livre dos apegos. Segundo Henri Nouwen
(1984), “Através da disciplina da comunidade nos prevenimos de nos apegar um ao outro
com sentimentos de medo e isolamento, e criamos um espaço livre para ouvir a voz liber-
tadora de Deus”.2 É de extrema importância que a vida de comunidade seja, de fato,
encarada como uma disciplina. Caso contrário não será vista com a seriedade que
necessita. A vida de comunidade não pode ser restrita a apenas um lugar confortável,
seguro e aconchegante, mas a um lugar onde flui vida em toda sua plenitude.
Outro ponto importante a ser ressaltado é o fato de que a vida da comunidade não
tem a ver com afinidades. Deus criou o homem com características individuais, por
mais que alguns temperados se identifiquem, esse não deve ser o parâmetro para se
entregar a essa realidade. Sobre isso Henri Nouwen fala:

Comunidade não tem muito a ver com compatibilidade mútua. Semelhan-


ças em ”background” educacional, constituição psicológica, ou posição
social, podemos nos atrair um ao outro, mas nunca podem ser a base para
comunidade. Comunidade é fundamentada em Deus, que nos chama a vi-
ver juntos, e não na atratividade mútua das pessoas. Há muitos grupos que
se constituíram a fim de proteger seus próprios interesses, defender sua
própria posição, ou promover suas próprias causas, mas nenhum destes é
uma comunidade cristã. [...] O mistério da comunidade é exatamente seu
envolvimento de todas as pessoas, quaisquer que sejam suas diferenças
individuais, permitindo-lhes viver juntas como irmãos e irmãs de Cristo e
filhos e filhas do seu Pai celeste.³

2. NOUWEN, Henri J. M. op. cit., p 26.


3. NOUWEN, Henri J. M. op. cit., p 27.

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ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Ao viver em comunidade, dentro das bases estabelecidas por Deus, o homem passa
a pertencer a uma família. Esse é o plano de Deus para seus filhos, que vivam mu-
tuamente em amor, buscando a direção correta em conjunto. Seu plano não inclui
seres isolados à procura de um caminho que será trilhado de maneira solitária.
Quando uma comunidade cristã é alicerçada na solidão individual de cada ser, esse
povo passa a viver, em conjunto, o real sentido da comunhão. Essa palavra tem a
ver com o Espírito Santo fluindo livremente e unindo a todos em amor e no mesmo
propósito. Fora desse lugar os homens acabam por sugar uns aos outros, alimentan-
do-se de tudo que é efêmero. Porém, quando os membros de uma comunidade se
relacionam com base no espaço para Deus, flui vida e amor através deles, por meio
do Espírito Santo. Ao reconhecer o Espírito Santo que habita no outro, é possível
visualizar o potencial enorme e poderoso que existe no ouvir a voz de Deus em
comunidade. Cristo morreu por um povo e irá casar-se com uma noiva, a sua igreja.
O plano de Deus tem a ver com uma família.

VIDA DE IGREJA

Existem diversas formas de se viver a realidade da igreja, são inúmeras as suas ex-
pressões. Abordaremos cinco níveis4 essenciais para a vida dos seres que compõem
a família de Cristo. São níveis nos quais a igreja se manifesta e/ou expressa.5

Entendemos que a saúde espiritual depende de uma correta experiência


destes cinco níveis de comunhão e que grande parte da doença da igreja
atual resulta da falta de experiência de um ou mais deles ou de um con-
ceito errado sobre o propósito de cada um deles.6

Vejamos os cinco níveis:

1. INDIVIDUAL

“E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar
em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos

4. WALKER, Haroldo. MANZINI, Paulo. ASSIS, Eliasaf. Os 5 DEGRAUS DA COMUNHÃO ou


OS 5 NÍVEIS DE EXPERIÊNCIA DA IGREJA (Individual, Família, Dois ou Três, Local e Univer-
sal). Mensagem ministrada no dia 6 de maio de 2009, na 3° reunião em Jundiaí.
5. É importante ressaltar que esses níveis não são mandamentos, ao aluno é dado o direito
de concordar ou não.
6. ibidem

77
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

homens. Em verdade vos digo que eles já receberam sua recompensa.”


(Mt 6.5)

Realidade individual é o que estudamos até agora, isto é, o relacionamento vertical,


entre o homem e Deus. Não existe vida cristã sem esse primeiro nível, pois é por
meio dessa realidade que Deus se comunica com seus filhos e não existe cristianis-
mo longe dele.

Se não houver comunhão individual com Deus não há salvação! Por quê?
Porque a vida eterna é conhecer a Deus e a seu Filho, Jesus Cristo (Jo
17.3). Sem um relacionamento vertical, pessoal, sigiloso, reservado, a
portas fechadas, só existe religião – e religião não salva, apenas enga-
na. Deus nos salvou, nos reconciliou consigo mesmo com um propósito
principal – ter comunhão conosco. Ele quer que o conheçamos assim
como somos conhecidos por ele. Ele não quer apenas nos dar vida eterna
depois que morrermos – ele quer andar conosco agora nessa vida terre-
na. Ele quer nos usar para ser sua imagem neste mundo perdido e em
trevas. Ele quer que experimentemos sua boa, santa e agradável vontade.
Ele quer que tenhamos a alegria inexprimível de sermos seus coopera-
dores, de trabalharmos juntos no mesmo projeto.7

O desejo de Deus é que existam segredos entre o homem e ele, coisas ditas apenas
no lugar de oração e intimidade. Esse é o alvo do relacionamento com Deus, a intimi-
dade. É possível frequentar todas as reuniões religiosas e ainda assim viver um evan-
gelho superficial, sem relacionamento vertical. Por isso a necessidade de ter irmãos
que apontem esse erro e auxiliem uns aos outros na caminhada rumo à maturidade
espiritual. Não é possível perseverar na busca por Deus sem o auxílio dos irmãos.

2. FAMÍLIA

“Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher,
e eles serão uma só carne.” (Gn 2.24)
A família não é um arranjo social nem uma invenção da sociedade. Pelo contrário,
ela é um projeto de Deus, uma forma dele se expressar na terra. A família é um
reflexo da Trindade, Deus existe em família.

7. WALKER, Haroldo. MANZINI, Paulo. ASSIS, Eliasaf.op. cit.

78
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

A família não é apenas uma forma que a raça humana descobriu para per-
petuar sua espécie de forma eficiente. A família é a estrutura terrena que
mais se assemelha ao relacionamento que existe na Trindade. A família
é o centro do propósito de Deus na terra. Se ele criou o homem para ser
sua imagem, então a família é indispensável para que o homem consiga
cumprir esse propósito. Deus vive em família e quer que o homem tam-
bém viva dessa forma.8

Esse nível de expressão da igreja, especificamente, resolve e direciona determina-


dos aspectos da vida prática do indivíduo. Possivelmente a pessoa que teve uma boa
estrutura familiar será um adulto que lidará bem com os assuntos práticos da vida.
Por outro lado, quem não teve tal estrutura encontrará maior dificuldade. Portanto,
crescer em um lar estruturado pode influenciar diretamente na forma como alguém
lida com as dificuldades e responsabilidades.
Outro ponto a ser destacado é a respeito da adoção, não necessariamente em seu
sentido jurídico, mas em um sentido mais amplo. As famílias cristãs deveriam con-
siderar a inserção de pessoas de fora em seus lares. Solteiros, viúvos ou qualquer
pessoa que necessita viver em um ambiente familiar e usufruir da sua estrutura,
deveriam ser acolhidos por famílias cristãs.
O desenvolvimento saudável dessa estrutura familiar, seja no que diz respeito à
adoção ou ao papel de cada um de seus membros, depende do relacionamento
que os pais cultivam com Deus, em seus momentos a sós com ele. Por mais que os
cultos familiares sejam incluídos na rotina de uma casa, se os pais não estiverem
firmes na disciplina da solidão, a família não experimentará verdadeira comunhão.
É esse relacionamento vertical que traz a ordem horizontal, em especial no que se
relaciona à autoridade.

É esta dança emocionante, alternando entre o vertical e o horizontal,


que constitui o cerne da vida. A autoridade dá a segurança, estabele-
ce responsabilidade, proteção, cuidado. Isso permite que a comunhão
floresça e sobressaia. Quando existe autoridade adequada com respei-
to, honra e obediência, num determinado ambiente, você quase não
o percebe por causa da comunhão horizontal que predomina entre as
pessoas. Todo ser humano precisa destes dois elementos – autoridade
e comunhão. Todo ser humano precisa de paternidade e amizade. E a
família é o lugar primordial onde estes dois princípios se desenvolvem
e se complementam.9

8. ibidem
9. WALKER, Haroldo. MANZINI, Paulo. ASSIS, Eliasaf.op. cit.

79
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

3. AMIZADES ESPIRITUAIS

“Ainda vos digo mais: Se dois de vós na terra concordarem em pedir


acerca de qualquer questão, isso lhes será feito por meu Pai, que está no
céu. Pois onde dois ou três se reúnem em meu nome, ali estou no meio
deles.” (Mt 18.19,20)

Deus criou o homem para a amizade, existe em cada ser um desejo por relaciona-
mentos saudáveis. Nas palavras de Jesus, a junção de duas ou três pessoas, reunidas
em seu nome, têm o poder de atrair a sua presença. Esse fato revela a seriedade das
amizades espirituais. É importante ter, ao menos, uma ou duas pessoas que sejam
seus amigos espirituais, aqueles que caminham rumo ao mesmo alvo, ombro a om-
bro. São pessoas que estão ligadas a nós não por uma função ministerial, mas por
amizade espiritual. Neste nível não existe hierarquia nem rigidez. Nessa relação há
um ambiente que nos permite ser vulneráveis, sem máscaras ou reservas; nela temos
liberdade de ser completamente transparentes diante do outro. As amizades espiritu-
ais são muito poderosas e as palavras de Jesus a respeito disso são impactantes.
O território das amizades espirituais é extremamente sagrado e poderoso. Neste
lugar seguro, dois corações podem concordar com algo que está sendo movido em
seus espíritos, sem que haja nenhuma imposição. Nessa configuração espiritual de
amizade, os integrantes não estão necessariamente olhando um para o outro, mas
para algo em comum, algo que Deus os tocou para realizarem. Mas esse ambiente
também é perigoso, pois estamos dando armas para, possivelmente, o outro nos fe-
rir. Contudo, é um risco que devemos correr, pois, caso contrário, não experimen-
taremos o poder nem a vida de Cristo. Este tipo de amizade normalmente exige
tempo de qualidade juntos. É assim que são criados os relacionamentos de aliança.
Amizade espiritual não é simplesmente ter ou fazer amigos, mas construir alianças
sinceras e inquebráveis em Deus.

Sem tempo de caminhada juntos, esse tipo de amizade não existe. Não
basta conhecer o nome, cumprimentar e trocar amenidades. Amigo é di-
ferente de colega, é diferente de irmão. Amigo é alguém que Deus deu a
você e deu você a ele. É alguém, que através dos anos, acompanha sua vida
e você a vida dele. É alguém com quem você compartilha uma história. E
não são muitos. É impossível desenvolver um relacionamento profundo
e significativo com muitos. É por falta desse tipo de amizade que muitos
cristãos estão fracos, doentes espiritualmente e até naufragando na fé.10

10. WALKER, Haroldo. MANZINI, Paulo. ASSIS, Eliasaf.op. cit.

80
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

A ausência de relacionamentos profundos de aliança torna os cristãos fracos, pois


Deus criou o homem, não para andar só, mas para viver em comunhão e amor com
seus irmãos. As amizades espirituais têm o poder de conduzir o homem para mais
perto de Deus.

4. CONGREGAÇÃO LOCAL

“Se teu irmão pecar contra ti, vai a sós com ele e repreende-o; se te ouvir,
ganhaste teu irmão. Mas se ele não te ouvir, leva ainda contigo mais
uma ou duas pessoas, para que toda palavra se confirme pela boca de
duas ou três testemunhas. Se ele se recusar a ouvi-las, dize-o à igreja; e,
se também se recusar a ouvir a igreja, considera-o gentio e publicano.”
(Mt 18.15-17)

“Pensemos em como nos estimular uns aos outros ao amor e às boas


obras, não abandonemos a prática de nos reunir, como é costume de al-
guns, mas, pelo contrário, animemo-nos uns aos outros, quanto mais
vedes que o Dia se aproxima.” (Hb 10.24-25)

A congregação local é onde flui a vida de Deus, o lugar em que juntos os seus filhos
formam um corpo, o alvo do seu amor. A congregação é o lugar onde os pecados
podem ser confrontados e o perdão praticado. É na congregação local que há auto-
ridade para ligar ou desligar a terra e o céu, mas também onde a Palavra flui e é pro-
clamada. Quando o homem deixa de se reunir, ele para de ser exposto à pregação
do evangelho, sua fé torna-se desnutrida.

O primeiro motivo de irmos para as reuniões da igreja local deve ser


para renovar as nossas mentes, para desmanchar as mentiras produzidas
pela mente natural e repetidos à exaustão pela mídia e toda a nossa cul-
tura. Toda vez que ouvirmos sobre a obra consumada de Jesus na cruz,
um senso de maravilhamento deve invadir nossas almas. Toda vez que
tomarmos da ceia devemos sentir a gratidão e o assombro que sentimos
quando nos batizamos. Ele disse: “Fazei isso, TODAS AS VEZES, em
memória de mim”. Podemos nos renovar no evangelho quantas vezes qui-
sermos e precisarmos.11
A congregação é o lugar onde a fé é alimentada por meio da pregação do evangelho.
Como resposta a isso existe adoração coletiva a Deus. A igreja também deve apresen-

11. WALKER, Haroldo. MANZINI, Paulo. ASSIS, Eliasaf.op. cit.

81
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

tar, ensinar, praticar e divulgar um estilo de vida contracultural.12Também deve enri-


quecer e complementar a vida espiritual dos membros por meio da troca intensiva
de dons e ministérios complementares. Por último, ela deve formar um ambiente de
convivência social onde os membros podem encontrar seus amigos espirituais.13

5. IGREJA UNIVERSAL

“E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha


igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16.18)

Esse último nível fala a respeito da igreja que atravessou e continua a atravessar os
séculos. A igreja universal é composta por todos os escolhidos de Deus ao longo de
sua história. É a reunião de todos os santos, a unidade de todos os filhos, daqueles
que foram lavados e remidos pelo sangue do Cordeiro. É, portanto, a soma de todos
os homens da Bíblia, os heróis da fé, os mártires e todos os que, ao longo da histó-
ria, creram e amaram a Deus. A igreja universal é também a expressão de Cristo na
terra, a noiva que está sendo preparada para celebrar as bodas do Cordeiro.

CONCLUSÃO

Tudo o que estudamos até aqui foi baseado no livreto Espaço para Deus, do teólo-
go, padre e escritor Henri Nouwen. O livreto, assim como nossa disciplina homô-
nima, serve como base para o desenvolvimento da espiritualidade. O foco dessas
oito aulas é imprimir no aluno a necessidade que este possui de abrir espaço para
a voz de Deus em seu interior. Essa é uma atitude capaz de libertar o homem do
peso de apenas reagir às muitas preocupações que rondam sua vida. Portanto, abrir
espaço para Deus é a única atitude que pode transportar o homem de uma vida sem
sentido para uma vida de plenitude.
As disciplinas aqui propostas nos levam, primeiramente, ao encontro intrínseco
com nosso eu, para só então nos conduzir ao encontro sublime com a voz de Deus.
Não existem atalhos quando o assunto é a vida espiritual, cada um dos processos
são importantes para transformar a natureza humana. Ao praticar as disciplinas es-
pirituais somos capacitados a permanecer no lugar que fomos criados para estar,
o lar eterno de onde flui harmonia e amor. Cada um desses passos propostos por

12. ibidem
13. ibidem

82
ESPAÇO PARA DEUS
Vivendo uma Vida Espiritual em meio às Agitações da Vida Moderna

Jesus tem como intuito aperfeiçoar e transformar o caráter do homem, para que a
igreja como um todo seja abençoada. Por isso, é importante que a igreja de Cristo
seja formada por indivíduos que se preocupam em, individualmente, abrir espaço
para Deus, para que dessa forma a sua voz seja ouvida também coletivamente.

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