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APENAS

ALGUNS
LIMÕES
APENAS
ALGUNS
LIMÕES

Marcelo Gomes


APENAS ALGUNS LIMÕES
Marcelo Gomes
Espaço Palavra Publicações

Categoria: Espiritualidade
Copyright © 2010 por Espaço Palavra Publicações
Título: Apenas alguns limões...
Autor: Marcelo Gomes
Capa: Jonatas Liasch

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


G633c Gomes, Marcelo

Apenas Alguns Limões / Marcelo Gomes.


– Maringá: Espaço Palavra, 2010.

101 pp.

ISBN: 978-85-61525-04-0

1. Espiritualidade. 2. Cristianismo. 3. Ética


Cristã. 4. Teologia Cristã. I. Título.

CDD - 22. ed. 230

Publicado por:
ESPAÇO PALAVRA PUBLICAÇÕES
Maringá – Paraná – Brasil
Telefone: (44) 3301 9925
www.espacopalavra.com.br
espacopalavra@espacopalavra.com.br

Edição impressa publicada em Outubro de 2010,


com tiragem de 3000 exemplares.

DEDICATÓRIA

Para minhas avós Anna de Paula Gomes e Ilza Russo Bent


Glória, com carinho, gratidão e saudades. Elas ensinaram-me
que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Hoje, já
desfrutam da eterna recompensa.
APRESENTAÇÃO

O que você faria se alguém lhe desse alguns limões? Pois bem,
não há muito que fazer. Você poderia deixá-los num recipiente
qualquer, sob a ação do tempo, até que, finalmente,
apodrecessem e devessem ser jogados fora. Poderia, quem
sabe, cortá-los ao meio e desfrutá-los ao natural, o que
certamente traria um gosto azedo à língua. Mas também
poderia combiná-los a outros ingredientes, como açúcar, água
e gelo, preparando uma refrescante limonada.

O mesmo vale para um livro: pode ser deixado de lado, até


que suas páginas envelheçam ou sejam corroídas por umas
traças quaisquer. Também pode ser consumido sem crítica ou
interesse genuíno, o que poderia trazer algum amargor ou
algum descontentamento para a vida do leitor. E seria uma
perda de tempo. Mas um livro também pode ser combinado
aos elementos presentes no coração daquele que desfruta de
suas páginas, às quais ele associa seus próprios
conhecimentos, visão de mundo e expectativas,
transformando-o num refresco para a alma e para o espírito.

“Apenas Alguns Limões” é um conjunto de reflexões que


pretende ser o que o nome já diz: limões com os quais o leitor
fará o que bem entender. Não desejo que azedem sua vida,
mas que dêem sabor refrescante ao coração. Isso só acontecerá
se, aos meus pensamentos, forem acrescentados a experiência
e o conhecimento de quem os recebe para deles usufruir.
Espero, acima de tudo, que não sejam deixados de lado, num
canto, apodrecendo. Mas também esse direito o leitor tem.
Nem todos gostam de limão.

De qualquer modo, independentemente do gosto ou das


preferências pessoais, os limões deste livro são de uma espécie
bastante particular, naturais do ambiente da fé cristã,
selecionados no grande e belo pomar que é a Palavra de Deus.
Minha oração é para que sejam alimento para a mente e prazer
para o paladar espiritual, trazendo alegria e fortalecendo a fé
em Jesus Cristo, cujo nome desejo ter honrado.

Ótima leitura para você. Refresque-se!

Marcelo Gomes
Setembro de 2010
ÍNDICE

01. Pedi a Deus uma pregação diferente


02. O caminho da felicidade com prosperidade
03. Homens, deuses e monstros
04. Cuide do seu coração
05. O que é meu... é meu!
06. Os gigantes do caminho
07. Escola de reis
08. Soberania de Deus e liberdade humana
09. Predestinação e adoração
10. Sobre a simplicidade da fé
11. A fé que precisamos
12. A esperança que precisamos
13. O amor que precisamos
14. Almas, vida, mundo e salvação
15. O cego que se fez de surdo porque enxergava demais
16. Por que sou cristão?
17. Jesus Cristo ou o super-homem?
18. Sobre caçadores e semeadores
19. Peregrinando
20. Programa Fidelidade
21. Fidelidade a toda prova
22. Casais inteligentes permanecem juntos... e já são ricos!
23. O dia em que o homem ajudou Deus
24. Ajuda política ou espiritual?
25. Não somos animais! Ou somos?
26. Uma bagunça só. Nada mais.
27. Berkeley e o anonimato
28. Não sou eficiente
29. Ou não me chamo...
30. Vitória sobre a inveja
31. A ditadura do bem-estar
32. Esse tal
33. Contando os dias, remindo o tempo.
34. Ainda chego lá!
35. Confissões de um jovem pastor
PEDI A DEUS UMA PREGAÇÃO DIFERENTE

Pedi a Deus que me dê uma pregação diferente. Única.


Daquelas que os ouvintes jamais se esquecem. Ela terá algo de
cômico, de dramático, e muita profundidade. Será também
prática, sobre a vida, os relacionamentos e a felicidade. Sem
deixar de ser simples, animadora, atual e fiel às Escrituras.
Falará a todos, inclusive àquele irmão mais triste, mais duro,
mais cético, que senta no lugar de sempre, desconfiado, quase
por obrigação, enquanto pensa que tudo é muito bonito, mas
muito irreal, porque sua vida nunca muda e a alegria nunca lhe
vem, e não sente que é amado ou que seja especial. Até ele sairá
tocado, transformado, restaurado. Nunca mais será o mesmo.

Ele contará aos outros da pregação que mudou sua vida.


Comprará gravações às centenas; distribuirá para amigos,
parentes, funcionários, concorrentes e fornecedores. Tentará
reproduzi-la com suas palavras, inúmeras vezes, para tantas
pessoas quantas se dispuserem a ouvi-lo, e terminará sempre
dizendo: “pena que você não estava lá”. Os outros ouvintes
farão o mesmo, com igual entusiasmo e convicção. Espalharão
a mensagem, viva-voz ou gravação, e convidarão quantos
encontrarem pelo caminho, nas filas, nos restaurantes, pela
internet, enfim... As celebrações, depois daquele dia, daquela
pregação, serão concorridas, quase disputadas. Todos
querendo ouvir o pregador que disse aquelas coisas tão lindas,
tão transformadoras.

As palavras se tornarão livro. O livro, best-seller. Sem perder


nada de sua força, seu impacto. Leitores escreverão cartas à

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editora, contando testemunhos de conversão, chamado,
reconciliação e cura. Maridos compartilharão que, com o livro,
aprenderam a amar suas esposas. Esposas compartilharão que,
com a ajuda do livro, conseguiram perdoar seus maridos. Os
jovens o lerão sem dificuldades e com grandes
desdobramentos. Pastores, evangelistas e obreiros utilizarão
seu conteúdo em mensagens, aulas, palestras, cursos; também
falarão de milagres que experimentaram ou viram à medida
que reproduziam a mensagem.

O livro será traduzido em muitas línguas e distribuído em


vários países. Não sofrerá prejuízo por conta de cultura,
contexto ou circunstâncias quaisquer. Todos o entenderão.
Outros o reescreverão — para mulheres, para homens, para
crianças; será publicado em versão devocional, de bolso,
ilustrada. Alguém quererá fazer um filme sobre a pregação,
imaginando que milhões a receberão pelas telas dos cinemas.
Os recursos gerados serão todos destinados à obra
missionária, à assistência em países arrasados por tragédias
naturais e às entidades que atendem pessoas em situação de
risco. Uma fundação, com o título da pregação, será criada e
beneficiará milhares de pessoas…

Apesar de todo alcance daquelas palavras, eu saberei meu


lugar e minha condição. Ninguém duvidará que a obra é do
Espírito, e a glória será toda para Jesus. Cristãos de
denominações diferentes unirão forças, superarão barreiras, e
farão novos esforços pelo avanço do Reino de Deus. Todos
amarão mais a Bíblia, estudarão mais seus textos, e buscarão
mais suas riquezas, pois perceberão que aquela pregação não
terá sido nenhuma novidade, nenhuma invenção; apenas

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baseada na Bíblia, tomada de suas páginas, exposta com
paixão e unção espiritual. Descobrirão que poderá ser feita por
quantos a quiserem pregar; outras, em outros textos, com
outras aplicações, mas igual poder transformador, surgirão e
percorrerão o mesmo caminho.

Alguns chamarão tudo isso de avivamento. No futuro, contarão


essa história em livros, aulas, seminários, e orarão para que
ocorra novamente. Quantos aderirem à fé cristã, mesmo daqui
a quinhentos anos, conhecerão da pregação que mudou uma
geração inteira. Mas poucos saberão o mais importante,
fundamental: que eu pedi a Deus uma pregação diferente para
falar ao coração daquele irmão mais triste, mais duro, mais
cético, que senta no lugar de sempre, desconfiado, quase por
obrigação, enquanto pensa que tudo é muito bonito, mas
muito irreal, porque sua vida nunca muda e a alegria nunca
lhe vem...

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O CAMINHO DA FELICIDADE COM PROSPERIDADE

Reflexão no Salmo 01
Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não
se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos
escarnecedores. Antes, o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei
medita de dia e de noite.Ele é como árvore plantada junto a corrente
de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto e cuja folhagem não
murcha; tudo quanto ele faz será bem sucedido.Os ímpios não são
assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa. Por isso, os
perversos não prevalecerão no juízo, nem os pecadores, na
congregação dos justos. Pois o Senhor conhece o caminho dos justos,
mas o caminho dos ímpios perecerá.

Todo ser humano normal, isto é, sem grandes desvios


psicológicos ou emocionais, deseja ser feliz. Todo ser humano
normal deseja ser bem sucedido naquilo que realiza. E não há
pecado em se desejar tais coisas. Nosso principal problema
não está em desejarmos isto ou aquilo, mas nos caminhos que
escolhemos para alcançar nossos objetivos.

O salmo 1, escolhido especialmente para inaugurar esta coleção


que chamamos de “saltério” (o livro dos salmos), trata de
ambos os temas: felicidade e prosperidade. E mais: relaciona-os
e apresenta-os como uma realidade presente na vida de alguém.
Incrível? Surpreendente? Talvez, sobretudo para uma sociedade
como a nossa, em que felicidade e prosperidade parecem
valores dissociados para a maioria das pessoas.

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O fato é que, para o salmista, estas duas realidades só podem
caminhar juntas – e caminharão – na vida do justo (os ímpios
não são assim). E o justo, por sua vez, não é aquele que alimenta
um conceito de justiça própria, mas, em primeiro lugar, aquele
que foge radicalmente do pecado (bem aventurado o homem
que...)! O justo não se deixa influenciar pelos conselhos e
sugestões dos que não temem a Deus. Não acompanha e não
toma como modelo aqueles que obedecem tão somente suas
próprias inclinações pecaminosas. Não se envolve e muito
menos associa-se com aqueles cujos lábios e corações se
deleitam no mal. O justo foge destas coisas – e pessoas!

Em segundo lugar, o justo é aquele que se relaciona


alegremente com Deus (antes, tem o seu prazer na lei do
Senhor...). Sua lei e Sua palavra são fonte inesgotável de
alimento. Mais que isso, são companhia de dia e de noite,
constantemente, o tempo todo. Sua fuga do pecado não
encontra bases no moralismo religioso ou na auto-afirmação
diante dos homens. Pelo contrário. Sua conduta expressa seu
profundo temor e amor a Deus, a quem deseja agradar
(novamente: os ímpios não são assim).

Enfim, o justo é aquele que descansa no fato de que é


conhecido por Deus (o Senhor conhece o caminho dos justos...).
Não há o que esconder e, muito menos, como se esconder.
Deus conhece todas as coisas, conhece o coração do ser
humano. Por isso, o justo aproxima-se de Deus com
humildade e sinceridade, na certeza de que será aceito não por
ser justo, mas para ser justificado por este Deus misericordioso
e amoroso (os pecadores não permanecerão na presença do juiz).

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O justo encontra em Jesus Cristo seu modelo de justiça. Nele é
justificado. Por seu Espírito Santo é conduzido no caminho da
justiça. Por tudo isso, pode ser reconhecido como bem
aventurado, isto é, feliz, e como aquele que tudo quanto fizer
prosperará. O Senhor, por meio de Jesus Cristo, é a razão de
sua felicidade. O relacionamento com Ele, com Sua lei e com
Seu Espírito é o motivo de seu sucesso. Nada pode ser mais
importante em sua vida e nada pode prejudicar este
relacionamento alegre e amoroso.

Esse é o caminho da felicidade. Esse é o caminho da


prosperidade.

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HOMENS, DEUSES E MONSTROS.

A modernidade caracterizou-se por seu humanismo otimista.


O homem ocupou o centro da reflexão filosófica. Nietzsche e
seu super-homem foram saudados como ícones de uma
geração fascinada com sua própria capacidade. A felicidade
era questão de tempo. O ser humano encontraria a vida com
q u e t a n t o s o n h a r a s e e x e rc e s s e e m p l e n i t u d e a s
potencialidades de suas faculdades racionais. Livre do poder
opressor da religião medieval, o homem moderno não via
limites para suas fantasias de realização. Tornou-se seu
próprio deus.

O resultado da modernidade foi trágico. Duas grandes guerras


mundiais puseram fim aos sonhos de uma vida sem
desilusões. O homem viu-se como monstro. Os campos de
concentração espalhados pela Europa levantavam a mais
dolorosa pergunta existencial: como pode um ser humano
chegar ao ponto de torturar outro ser humano? A razão
fracassou como caminho de felicidade, dando lugar ao
nascimento de uma geração desencantada, desanimada e
desesperada.

A pós-modernidade não é uma nova era, é apenas uma


ausência. Já não há sonhos, utopias ou ideais. Sobraram as
decepções, os desarranjos e a melancolia. Os deuses-homens
perderam espaço para os deuses-coisas, num panteão cujo
deus-maior chama-se Mamom. O homem, de deus passou a
ser coisa. A divinização foi trocada pela coisificação.
Desacreditado de si mesmo, o pós-moderno transferiu sua

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confiança aos bens de consumo que é capaz de adquirir.
Mesmo a razão, tão necessária na produção científica e
tecnológica, foi rebaixada ao status de artigo de uso,
descartável.

O resultado da pós-modernidade é ainda mais trágico. As


grandes guerras pulverizaram-se em guerras do dia-a-dia, no
trânsito, nos bares, nas disputas por posses ou poder. O
homem continua um monstro. A pergunta agora é: como pode
um ser humano tratar outro ser humano como se fosse um
objeto, como se fosse um animal? Meninos morrem por causa
de seus calçados; homens matam por causa de seus carros.
Com eles, inclusive. Indiferença, emocionalismo barato e
hedonismo egoísta são as marcas dessa nova geração.

Entre homens, deuses e monstros uma única saída: o Deus-


homem Jesus Cristo. Sua vida, morte e ressurreição resgataram
a dignidade de nossa humanidade. A soberba do homem com
vontade de ser deus foi envergonhada na decisão do Deus que
tornou-se homem. A irracionalidade do homem reduzido à
condição de coisa foi superada na pobreza do Deus que
escolheu nada ter. Nele, nossa monstruosidade foi evidenciada
(nós o matamos!), mas nosso pecado foi perdoado. Monstros
redimidos, devolvidos à condição de gente. Nem deuses, nem
coisas; apenas gente. Gente lavada, purificada e vivificada no
sangue de Jesus. Modernidade e Pós-modernidade vencidas
pela ETERNIDADE. Vida Eterna, para todas as gerações.

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CUIDE DO SEU CORAÇÃO

Foi a gota d’água. Saul já não podia continuar reinando sobre


Israel. Deus o rejeitou. Precisava de um novo rei. Alguém
segundo o seu coração. Encontrou um dos filhos de Jessé, o
belemita, a quem Samuel, o profeta, faria uma visita especial.
Estava entre seus oito filhos o novo monarca para a nação.

Samuel ficou encantado com o mais velho. Era alto, formoso e


de postura adequada. “Certamente está perante o Senhor o seu
ungido” – pensou. Mas o Senhor lhe advertiu: “Não atentes
para a sua aparência! Deus não vê como o homem vê. Este vê
o exterior; eu, o coração”. Com estas palavras, estabeleceu um
dos mais importantes princípios da verdadeira
espiritualidade: Deus conhece o coração!

Os critérios de avaliação que Deus usa são interiores, não


exteriores. Seu olhar atento ao que passa no íntimo é um
convite à pureza de intenções. Diz que devemos preferir a
ética à estética; investir em valores morais, emocionais e
espirituais. Qual a importância de uma bela roupa, quando há
rancor e amargura? Qual a beleza de um rosto, quando há
tristeza e desânimo na alma?

Jesus reforçou o princípio da interioridade quando ensinou


aos seus discípulos que tanto o pecado como a santidade
nascem do coração. Sendo Deus, conhecia a verdade sobre os
que dele se aproximavam. Sondava-lhes os pensamentos e via-
lhes por trás das aparências. Percebia suas motivações. E não
poucas vezes desafiou os religiosos da época, a quem chamou

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de sepulcros caiados. Dele foi profetizado que “não tinha
aparência, nem formosura”, mas “vimos sua glória, como do
unigênito do Pai”.

Davi nem presente estava quando seus irmãos desfilaram para


Samuel. Não estava aparente. Mas era conhecido do Senhor.
Sua história estava apenas começando: a história de um
homem segundo o coração de Deus. História de todos quantos
preferem cuidar do coração a zelar pelas aparências. Quer
participar?

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UM LUGAR GARANTIDO

Sete homens passaram à vista do profeta Samuel, aquele dia,


na casa de Jessé. Nenhum foi confirmado rei. E o problema era
que não havia nenhum outro jovem para conhecer.
“Acabaram-se teus filhos?” – perguntou, incomodado. Teria
Deus se enganado ou ele mesmo, o profeta, perdido a
sensibilidade?

Havia mais um. Sim, mais um. Jessé, típico pai desnaturado, se
esquecera dele. Era o mais novo. Não estava em casa; cuidava
das ovelhas, no campo. Chamava-se Davi. Tinha pouca idade.
Quem diria que poderia tratar-se dele? Era o próprio. “Mande-
o chamar!” – exclamou Samuel. “Não nos assentaremos à mesa
enquanto ele não chegar”. Chegou. Tudo se esclareceu. “Este é
ele!” – declarou o Senhor.

Se houve alguém na história da humanidade que não moveu


uma palha para ser escolhido ao que quer que pudesse
almejar, este foi Davi. Que chances teve para apresentar a si
mesmo? Que oportunidade para falar de suas qualidades ou
potencialidades? Mas Deus o escolheu. Sabia quem ele era e o
chamou. Conservou seu lugar à mesa e no trono. Ninguém
pode tomar o que o Senhor reservou para aqueles que elegeu.
Ninguém pode ser o que só você pode ser nas mãos do Pai.

Jesus deixou clara a verdade a respeito da soberania deste


Deus que escolhe e cuida em sua própria missão: “Por isso, o
Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir.
Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a

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dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-
la. Este mandato recebi de meu Pai”. Também para os
discípulos, revelou: “não fostes vós que escolhestes a mim; eu
escolhi a vós e vos designei para que vades e deis fruto”.

Davi aprendeu – e esta lição foi fundamental para todo o seu


reinado – que há um Deus no controle da história. Aprendeu
que não precisamos lutar por posição ou reconhecimento, uma
vez que o Pai nos olha dos céus, conhece nossos corações e já
separou o lugar de nossa missão, a qual não será cumprida em
vão. Como escreveu o apóstolo Paulo: “no Senhor nosso
trabalho não é vão”. Portanto, descanse!

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GIGANTES DO CAMINHO

Entre aquele dia no qual foi ungido rei e aquele em que subiria
ao trono, Davi viveu muita coisa. Há uma relação bastante
complexa entre a vontade de Deus e o tempo de Deus. Antes
de ser coroado, Davi precisava ser provado. E aprovado. Antes
de conduzi-lo ao conforto do palácio, Deus o conduziu ao
campo de batalha: havia um primeiro gigante a ser vencido.

Golias tinha perto de três metros de altura. Davi não era


pequeno, mas entrou para a história como se fosse baixinho. A
comparação era desleal. Não havia dentre os soldados de
Israel quem se atrevesse a enfrentar o campeão dos filisteus.
Saul, o rei israelita de então, já havia feito promessas de
recompensas e poder para quem lutasse contra o gigante. E o
vencesse, é claro.

Davi não era soldado. Foi ao campo por ordem do Pai, para
levar mantimentos aos irmãos e trazer notícias. Ocorre que
não pôde admitir o que viu: um filisteu incircunciso, confiado
em armas humanas, afrontando o Senhor dos Exércitos? Não
era uma cena aceitável para seu coração cheio de fé. Ofereceu-
se. Recusou armaduras e espadas. Girou sua funda ante um
gigante desdenhoso e blasfemo. Matou-o com uma pedrada na
testa. Foi declarado grande entre os homens de Saul.

O primeiro gigante a ser vencido numa batalha é o medo da


batalha. Jesus ensinou que para ser discípulo é preciso
coragem: coragem para renunciar, tomar a cruz e seguir. Até a
morte. C. S. Lewis escreveu que, sem coragem, nenhuma outra

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virtude subsiste, senão por acidente. João vinculou a coragem
ao amor: “no amor não existe medo; antes, o verdadeiro amor
lança fora todo medo”.

Davi foi moldado para reinar desde antes de sua unção por
Samuel, enquanto pastoreava suas ovelhas e as defendia dos
perigos, vencendo gigantes como o medo. Mas sua luta com
Golias ensinou-lhe mais: que é preciso vencer o gigante da
incredulidade, o gigante da inércia, o gigante da prepotência e
o gigante da autossuficiência. Gigante, mesmo, na vida do
crente, somente o amor de um Deus cuja grandeza excede toda
capacidade humana de compreensão.

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ESCOLA DE REIS

Davi chegara ao palácio, mas não, ainda, ao trono. Saul era o


rei e ele, servo. Talvez porque ninguém possa reinar se não
tiver aprendido a servir. De qualquer modo, estava à
disposição do monarca de direito, para lutar em suas guerras,
liderar seus exércitos, cuidar de seus interesses e até mesmo
tocar harpa em seus delírios, acalmando seu coração
perturbado. Não imagino o que se passava na mente de Davi.

Saul era péssimo rei. Covarde, desleal, egocêntrico, mentiroso


e, além do mais, ciumento. Não demorou para que Davi o
incomodasse. Foi questão de tempo e de algumas mulheres
começarem a celebrar o general das batalhas mais do que o rei
da nação: “Saul matou os seus milhares e Davi, os seus dez
milhares” – cantavam elas. Pronto! Saul era só ódio e Davi,
inimigo público número um.

Do palácio, Davi fugiu para vilarejos isolados, cidades


estrangeiras e desertos. Estava tão perto do trono! Mas, agora,
tudo parecia tão longe. Perseguido, caluniado e injustiçado,
aprendeu pela dor e pelo sofrimento que um rei deve ser
digno de sua posição. Reinou no deserto, entre mercenários e
desesperados, gente sem rumo e indefesa, descobrindo, a
duras penas, que um líder deve ser justo e generoso, para
devolver esperança e ânimo aos corações machucados pela
vida.

Jesus é o Rei da Igreja e do universo, mas escolheu a


companhia dos pobres e oprimidos deste mundo. Preferiu as

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cidades da Galiléia aos encantos de Jerusalém. Quando
multiplicou os pães para uma multidão faminta, fugiu
daqueles que desejavam fazer dele um rei político, terreno.
Sua identidade estava segura em Deus e na sua vontade, não
nos homens e suas falsas devoções. Com Jesus aprendemos
que majestade e fama nem sempre andam juntas, mas
majestade e serviço não podem ser dissociados.

Davi viu um rei mau em ação e isso lhe foi útil. Podemos
crescer tanto pelos bons exemplos, que queremos imitar, como
pelos maus, dos quais queremos nos afastar. As crises de Saul,
o deserto, as privações e os conflitos fizeram com que o futuro
rei de Israel amadurecesse. Deve ter agradecido por tão
intensa escola. Caso contrário, nada teria aprendido. E de nada
teria valido tamanho sofrimento.

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SOBERANIA DE DEUS E LIBERDADE HUMANA

Na Bíblia encontramos de forma clara e objetiva a


apresentação de duas grandes verdades: 1. Deus é Soberano
(cfe. Ex 9:12, 10:20 e 27, 11:10; Jó 42:2; Pv 21:1; Is 43:13; Ef 1:3-6;
1 Tm 6:15; Ap 1:5); e 2. O ser humano é um ser livre (cfe. Dt
30:19; Sl 95:7 e 8; Pv 1:29; Is 1:2, 66:3 e 4; Jo 1:11 e 12; 1 Pe 2:7).
Até aqui estamos juntos e não há problema algum.

As dificuldades começam quando tentamos “harmonizar”


estas verdades: se há uma soberania absoluta (definida em
termos de eleição, predestinação, onipotência, etc.), não pode
haver qualquer liberdade real que não a do próprio soberano,
sujeitando todos a si mesmo; se há uma liberdade real
(definida em termos de livre-arbítrio, rebeldia, desobediência,
etc.), não pode haver soberania absoluta que não a do
indivíduo sobre suas próprias decisões, escolhas e vontade.
Assim define a lógica.

Mas a lógica é humana. A verdade pertence a Deus. “Seja


sempre Deus verdadeiro e todo homem mentiroso”, adverte o
apóstolo Paulo (Rm 3:4). Por isso, entender tais temas é um
exercício, sobretudo, de humildade na presença de Deus e de
Sua Palavra. Quem nunca entrou em crise — ou em parafuso!
— diante de temas como a predestinação e a eleição? Quem
nunca encontrou dificuldades para ler os capítulos 9 a 11 de
Romanos (se é que já os lemos)?

A soberania de Deus e a liberdade humana são verdades que


devemos encaixar perfeitamente na categoria dos

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“paradoxos”: verdades que se excluem mas permanecem
como verdades. Não há possibilidade de harmonização. Falar
da soberania absoluta de Deus exige que suspendamos, por
um pouco, o tema da liberdade; falar da liberdade humana
exige que, por um pouco, suspendamos o tema da soberania.
Não há outra saída. Todas as tentativas de harmonização
beiram as raias da heresia, pois diminuem uma ou outra
verdade.

Mas é só isso? O que esperávamos? Compreender Deus


totalmente? Dominar seus assuntos por completo? Estamos
falando de Deus! Qualquer deus compatível com nossa mente
finita deixou de ser Deus. É projeção humana. Farsa. Por isso a
necessidade de humildade: o primeiro pecado consistiu no
desejo de conhecer tudo (Gn 3).

Glória e Honra, portanto, ao único Deus soberano, amoroso e


incompreensível. Deus absconditus!

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PREDESTINAÇÃO E ADORAÇÃO

Acusam Calvino e os presbiterianos de uma doutrina que, na


verdade, é de autoria do apóstolo Paulo: a predestinação. Por
ela cremos que o Deus soberano da Bíblia está não apenas no
desfecho de nossas decisões e escolhas, mas também em sua
origem. Como escreveu aos romanos: “aos que dantes conheceu
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho,
a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (8:29, grifo
meu).

Outro termo que usou com frequência e sentido muito


semelhante foi eleição. Deus – dizia Paulo – nos elegeu
(escolheu soberanamente) antes da fundação do mundo.
Chamava os crentes de eleitos (Colossenses 3:12; Tito 1:1) e
tinha tão clara a questão da escolha divina que, falando sobre
Esaú e Jacó, declarou: “Ainda não eram os gêmeos nascidos, nem
tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus,
quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que
chama), e já fora dito a Rebeca: o mais velho será servo do mais
moço” (Romanos 9:11-12, grifo meu).

Veja como uniu os dois conceitos numa mesma declaração,


dirigida aos Efésios: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual
nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes
da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante
dele. Em amor, nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por
meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade...” (1:3-5,
grifos meus).

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Diferentemente, porém, do que se possa pensar, não foi o
objetivo de Paulo propor uma espécie de determinismo
espiritual, no qual os salvos já estão inequivocamente
definidos e os perdidos, irremediavelmente condenados, não
havendo nada a fazer. Não podemos nos esquecer de que
Paulo foi o maior missionário da história do cristianismo,
tendo pregado insistentemente a todos quantos encontrou pelo
caminho, instando-lhes a que se convertessem e fossem
perdoados. Nunca mencionou predestinação em qualquer
mensagem evangelística. Jamais pregou a não crentes
influenciado por esta doutrina.

O objetivo de Paulo, ao que parece, era conduzir os crentes à


adoração. Sua recorrência ao tema está relacionada a textos
doxológicos, que exaltam a Trindade em sua majestade e glória,
ou parenéticos, que incentivam a uma vida de santidade e
compromisso com o Deus que escolhe sem considerar
merecimentos ou pecados. Desejava livrar-lhes do orgulho
que, cedo ou tarde, faz o cristão acreditar que tem méritos por
sua salvação. Por que gloriar-se de uma decisão que, em
última instância, foi de Deus? Como o próprio Jesus exortou:
“não fostes vós que escolhestes a mim; eu escolhi a vós” (João 15:16).

A favor de uma vida cristã sadia e madura deve-se


compreender, portanto, que a doutrina da predestinação
ilumina o passado e não o futuro. Se a projetarmos neste,
ficaremos inertes e negligenciaremos nossa responsabilidade
cristã. Se a lançarmos sobre aquele, reconheceremos que Deus
é a razão de nossos acertos e seremos livres do orgulho que
conduz ao falso moralismo e à perdição. Como arrematou o

28
mesmo Paulo: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, tolerância e
longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao
arrependimento?” (Romanos 2:4). Toda glória a Deus! Sempre!

29
SOBRE A SIMPLICIDADE DA FÉ

Numa sociedade tão complicada como a nossa, a simplicidade


é virtude em extinção. As pessoas querem ser notadas,
admiradas, invejadas. Esforçam-se por chamar à atenção. A
extravagância está na moda. Uma vida simples e, sobretudo,
cristã deixou de interessar. Mesmo a Igreja anda se esquecendo
da simplicidade. Especialmente da simplicidade da fé.

Na simplicidade da fé o cristão não se encanta com as ilusões


da quantidade, mas sacia-se com a suficiência da graça de
Deus. Ora como o salmista: “não me dês nem a pobreza nem a
riqueza; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder
que, estando eu farto, te negue e diga: Quem é o Senhor? Ou
que, empobrecido, venha a furtar e profane o nome de
Deus” (Pv 30:7-9).

O simples não deseja o máximo; esse é o ganancioso. O


simples não deseja o mínimo; esse é o resignado. O simples
deseja o necessário, pois confia na fidelidade e na justiça do
Pai Celestial.

Na simplicidade da fé o cristão não alimenta sonhos de


onipotência, mas entrega-se ao serviço do Reino no poder do
Espírito Santo. Sente-se à vontade para orar, outra vez, como o
salmista: “Senhor, não é soberbo o meu coração, nem altivo o
meu olhar; não ando à procura de grandes coisas, nem de
coisas maravilhosas demais para mim” (Sl 131).

30
O simples não deseja ser grande; esse é o soberbo. O simples
não deseja ser pequeno; esse é o complexado. O simples deseja
ser útil a todos, pois sabe que o poder e a glória são de Deus.

Na simplicidade da fé o cristão não vive questionando as


razões e os “por quês”, mas crê na Palavra de Deus para
depois poder compreender. Resiste ao espírito reticente que
impediu Pedro de acatar as palavras do Mestre no “lava-pés”:
“O que eu faço não o sabes agora; compreendê-lo-ás
depois” (Jo 13:7).

O simples não deseja saber tudo; esse é o pretensioso. O


simples não deseja não saber nada; esse é o preguiçoso. O
simples deseja viver de acordo com o que acredita. Busca uma
vida coerente e centrada nas Escrituras.

Enfim, Na simplicidade da fé o cristão não se deixa enganar


pelos apelos da embalagem, mas aprende a valorizar as ações
que revelam um caráter aprovado. Lembra-se de como Samuel
foi exortado ao admirar-se da beleza do primogênito de Jessé:
“Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura,
porque o rejeitei; porque o Senhor não vê como vê o homem. O
homem vê o exterior, o Senhor, porém, o coração” (1 Sm 16:7).

O simples não deseja ser belo; esse é o narcisista. O simples


não deseja ser feio; esse é o masoquista. O simples deseja ser
sincero e verdadeiro de coração. Ama a Deus e é amado por
Ele. Isso basta. Lembremo-nos da advertência de Jesus: “sejam
símplices como a pomba”...


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A FÉ QUE PRECISAMOS

“Agora, pois, permanecem estes três: a fé, a esperança e o amor...”


(1 Co 13:13)

Os discípulos pediram a Jesus que aumentasse-lhes a fé.


Tinham consciência de sua incredulidade. Sabiam o quanto
lhes era difícil confiar em Deus, sobretudo quando as
circunstâncias se mostravam adversas. Oscilavam quando
chamados a uma decisão e insistiam assumir desafios
baseados em suas próprias forças ou recursos. Eram pessoas
como nós. Frágeis como nós.

Cristãos nas mais diversas situações de dificuldade


questionam a suficiência de sua fé. Imaginam que não são
capazes de acreditar na medida que deles se espera. Acham que
se pudessem crer um pouco mais, demonstrar um pouco mais
sua fé, alcançariam sua solução. Deus, para eles, é caprichoso e
exigente: ignora toda manifestação de fé que não seja
grandiosa e eloquente.

Jesus deixou seus discípulos em crise. Disse-lhes que se


tivessem uma fé do tamanho de um grão de mostarda
moveriam montanhas. Note bem: um grão de mostarda!
Queria que aprendessem que uma fé mínima já é capaz de
grandes prodígios; que a menor fé pode experimentar os
maiores milagres. Fé de pessoas como nós. Nem maiores, nem
melhores do que nós.

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Spurgeon sugeriu que não é uma grande fé, mas uma fé
verdadeira que salva. Descobriu que o mais importante não é
quanto cremos, mas em quem cremos. Sabia que a fé não
alcança suas vitórias por ter se tornado forte e evidente, mas
por encontrar como sua contrapartida a graça incondicional e
irrestrita de um Deus que tem prazer em abençoar. Como
orientou-nos Karl Barth: “nossas orações são fracas e pobres;
contudo, não importa que nossas orações sejam fortes, mas
que Deus as ouça”.

A graça do Deus em quem cremos foi-nos revelada


definitivamente na pessoa de Jesus Cristo. Sua encarnação e
entrega por nós, em nosso favor, quando ainda não críamos,
quando ainda éramos pecadores, prova o amor de um Deus
capaz de tomar a iniciativa antes e apesar de nós. Seu esforço
na cruz é total e completo. Sua vitória na ressurreição é plena e
definitiva. Sua chamada a uma vida de fé é firmada na
bondade convincente de seu Espírito mais que na capacidade
humana de responder satisfatoriamente ao seu convite.

A ênfase num suposto tamanho da fé coloca os holofotes no


ser humano. Os resultados são seu mérito ou sua culpa. A
ênfase na graça coloca os holofotes em Deus. Os resultados são
expressão de sua soberania e amor. Quaisquer que sejam eles.

Um homem compreendeu bem o desafio da fé. Ouviu de Jesus


que tudo é possível ao que crê. Respondeu que cria, mas que
precisava de ajuda em sua falta de fé. Percebeu que sua
necessidade não era crer mais, mas simplesmente crer.
Aprendeu que seu inimigo maior não era uma fé insuficiente,
mas a ausência da fé. Soube, naquele dia, que se tivesse fé

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como um grão de mostarda veria um grande milagre. E viu.
Era um homem como nós, amado como nós.

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A ESPERANÇA QUE PRECISAMOS

“Agora, pois, permanecem estes três: a fé, a esperança e o amor...”


(1 Co 13:13)

“A esperança é a última que morre” – diz a sabedoria popular.


Sugere que mesmo depois de naufragarem todas as
possibilidades, e esgotarem-se todos os recursos, a esperança
ainda pode resistir. Indica que não se trata de um conceito
limitado às circunstâncias, mas além delas; não dependente
das alternativas visíveis, mas livre de todas elas. Uma
esperança forte; mas que, ainda assim, morre no final.

Esta esperança que morre por último é resistente, mas


frustrante. Resistente porque é capaz de seguir sozinha, contra
tudo e contra todos, mesmo depois da adversidade, na
expectativa de dias melhores no futuro. Frustrante porque
desanima e esvai-se quando este futuro jamais chega. É uma
esperança maior do que tudo, mas menor do que aquele que
espera. Se este cansa, não consegue mais esperar.

A esperança bíblica não é a última que morre. Não é uma


esperança heróica, abnegada, persistente e mártir. Não é a
mais forte das expectativas, nem mesmo uma espécie de
“último refúgio” daquele que perdeu tudo. A esperança bíblica
não morre. Não está vinculada ao ânimo do indivíduo que
espera e não se perde quando este se cansa. Não se faz
necessária somente quando dias melhores são desejáveis, mas
inclusive quando as coisas vão bem. É uma esperança
permanente.

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Paulo escreveu que “a esperança não confunde, pois o amor de
Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito”.
Lembrou-nos de que a esperança do crente é uma esperança
em Deus. Não é uma expectativa de dias melhores. Não é uma
“torcida” em favor de um futuro promissor. Não é um
otimismo em linguagem evangélica. É uma expectativa segura
no amor de Deus, uma participação presente no futuro de
Deus e um descanso tranquilo na vitória de Deus.

A esperança bíblica não morre porque não é um esperar por


mudanças de qualquer ordem, num futuro próximo ou distante;
é um esperar por Deus e por seu próprio futuro, pela realização
de seu Reino e pelo cumprimento de todas as suas promessas.
Não morre porque não é uma iniciativa individual, da coragem
pessoal de alguém em situação crítica, mas um milagre do
Espírito em nós, convencendo-nos, apesar de tudo, que estamos
firmes no amor de Deus. É uma esperança confiante. Como
afirma Moltmann, “a esperança é a companheira inseparável da
fé... a fé é o fundamento sobre o qual descansa a esperança, e a
esperança alimenta e sustenta a fé”.

A esperança cristã não morre porque é uma esperança em


Jesus Cristo. Não apenas em seu poder, mas em sua companhia.
Com ele confiamos, firmados no exemplo de sua entrega e
vitória. Sua morte não foi o fim, mas a inauguração de uma
nova era, na qual sua presença é real e transformadora. Jesus
Cristo tornou-se, ele próprio, a nossa esperança. Como não
pode morrer, uma vez que ressurgiu dos mortos para assentar-
se à destra de Deus, assegura-nos, todos os dias, cansados ou

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não, sofrendo ou não, que nossa esperança também não pode
morrer. É uma esperança bendita! Bendito seja Deus.

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O AMOR QUE PRECISAMOS

“Agora, pois, restam estes três: a fé, a esperança e o amor;


o maior, porém, é o amor.” (1 Co 13:13)

O amor não é um sentimento. Sentimentos são variações de


nossa química orgânica em resposta a certos estímulos que
recebemos das experiências vividas. Paul Tournier nos faz
lembrar que “o sentimento é um movimento; se fosse fixo, não
se sentiria”. Por isso, amor não é sentimento. Se fosse, Jesus
não poderia mandar-nos amar. Quem pode controlar os
próprios sentimentos? Quem pode dominá-los?

O amor não é um conjunto de atitudes favoráveis em relação


ao ser amado. Atitudes são importantes. Não há amor que não
se expresse através de atitudes. Mas não são sinônimos. O
apóstolo Paulo lembra-nos que é possível assumir as mais
louváveis atitudes sem amor (1 Co 13:1-3). Por fama,
reconhecimento, inveja, orgulho ou interesse algumas pessoas
são capazes de qualquer iniciativa positiva. Sem amor. Sem
valor.

Deus é amor. Não apenas amoroso, mas amor. Não se trata de


seu estado ou condição, como se fosse uma referência ao fato
de que ama o tempo todo. Trata-se de sua essência: Deus é
amor. Nada há em seu ser que possa negar o amor. Nada que
possa enfrentar o amor. Nada que possa ofuscar o amor. É
incondicional não apenas porque resiste a tudo, mas porque
não pode sofrer variação ou sombra de mudança.

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Se Deus é amor, amar é participar da vida de Deus.
Experimentar sua existência concreta, real. Assumir o aspecto
mais extraordinário de sua identidade divina e resgatar a
beleza de nossa própria criação à sua imagem e semelhança.
Se o pecado consiste em usurpar a glória de Deus pelo desejo
de onipotência, a redenção consiste em nos identificarmos com
Ele no amor. Quem ama, é nascido de Deus.

Porque Deus existe, o amor é possível. Porque Deus é amor,


somos amados de fato. Porque somos amados, podemos amar.
Como lembrou-nos o apóstolo João, “nós amamos porque ele
nos amou primeiro”. É na força de nosso encontro com este
Deus-amor que somos capacitados a amar as pessoas ao nosso
redor. Sem sua graça e amparo, tornamo-nos incapazes de
amar. Inclusive a nós mesmos. Somos movidos por uma
espécie de senso de sobrevivência, um instinto de auto-
preservação, mas que não é amor. O amor não é amor próprio.
Porque Deus nos amou, morreu por nós.

Não podemos amar as pessoas sem desfrutarmos deste amor


de Deus. No máximo, podemos desenvolver afetividades
interessantes, empatia, uma noção de solidariedade; nada
comparável ao amor. Por isso, o mandamento: amar a Deus e
ao próximo como a nós mesmos. Quem ama a Deus, conhece o
que é ser amado por Ele. Quem se descobre amado, ama a si
mesmo. Não como quem cuida de si mesmo. Não com amor
próprio. Ama a si mesmo com o amor de Deus. Dá sua vida
por amor a Deus. Não tem a vida como preciosa. Ama ao
próximo nesta dimensão: reconhece que ele é amado por Deus
e que sua vida pertence a Deus. Entrega a vida por ele, doa-se,

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para que através do amor Deus seja conhecido e glorificado.
Deus é amor!

40
ALMAS, VIDAS, MUNDO E SALVAÇÃO:
QUEM DÁ MAIS?

“Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”. Esta frase foi
citada em “A lista de Schindler”, filme dirigido por Spielberg
sobre os horrores do Holocausto e a coragem de pessoas que
não se deixaram INTIMIDAR pela tirania dominante. É um
trecho do Talmude, código moral e religioso dos judeus, e foi
gravada num anel dado de presente ao protagonista do enredo
em gratidão pelas muitas vidas que salvou. No filme, após
receber o presente, Schindler tem um acesso de desespero e
revolta-se. “Por que fiquei com o carro?” -- pergunta,
apontando para o veículo particular. “Quanto vale este carro?
Quantas vidas poderia salvar com ele?”

“Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua


alma?” -- perguntou Jesus aos que ouviam seu convite ao
discipulado (Mt 16:26). “Que daria o homem em troca de sua
alma?” -- continuou. Sabia que não há no mundo algo que se
compare em valor a uma vida humana. Nem o mundo inteiro.

Antonio Vieira destacou o valor de uma alma para Jesus


comparando dois textos. Duas cenas. Na primeira, eis o diabo
diante de Jesus. Seu objetivo é tentá-lo (Mt 4:1-11). Oferece-lhe
todos os reinos e a glória deste mundo, em troca de vê-lo
prostrado. Note bem: o mundo inteiro em troca de sua alma.
Mas o Mestre não se vendeu. Recusou-se atender pedido tão
singelo e tão terrível. Não trocou sua alma pelo mundo inteiro.

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Na segunda cena, eis Jesus diante do diabo. Diabo disfarçado.
Diabo em potencial. Judas Iscariotes. Jesus já o tinha
denunciado como diabo (Jo 6:70). Não havia dúvidas sobre sua
verdadeira identidade. Mas, quando tudo caminhava para o
fim, eis Jesus prostrado, diante de Judas. Lava-lhe os pés,
como aos demais. Jesus prostrado diante de um homem
possuído pelo diabo. E por quê? Por desejar salvar-lhe a alma.
Por desejar tocar-lhe a alma. Estava entregando sua própria
vida também por aquela alma. Jesus conhecia -- e conhece --
bem o valor de cada alma. De cada vida humana.

“Ide, pelo mundo inteiro, e pregai o evangelho a toda criatura”


-- ordenou Jesus depois de sua ressurreição. O mundo
transformou-se em cenário de salvação. Cada criatura, cada
alma, deve ouvir as boas novas. Deus pagou o preço pela
redenção de todas elas. Há uma esperança, um perdão, uma
herança preparada nos céus para os que crêem em seu Nome.
O mundo há de passar, mas a Palavra do Senhor permanece
para sempre. Esta é a Palavra da Verdade, pela qual somos
salvos, pela qual somos enviados a salvar. O mundo inteiro.

“Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro” -- lembra-nos


o Talmude. Uma vida vale mais que o mundo inteiro, ensinou-
nos Jesus. O mundo inteiro é pequeno -- desafia-nos nossa
missão -- se uma vida ainda aguarda por salvação. E o mundo
inteiro pode passar (eis a esperança bendita), desde que a
Palavra da salvação permaneça viva nos corações dos que vão
sendo salvos.

Agora, a pergunta que não pode calar: quanto vale uma alma
para você? Quanto vale a sua própria alma? O que você faria,

42
quem sabe ainda hoje, para salvar uma vida? O que daria,
para ver um pecador redimido pela graça de Deus?

43
O CEGO QUE SE FEZ DE SURDO
PORQUE ENXERGAVA DEMAIS!

A história nós conhecemos bem: Jesus entrando em Jericó, a


multidão acompanhando-o de perto, o cego sentado à beira do
caminho; a notícia de que era Jesus quem passava, os gritos
por misericórdia, a reação de alguns dentre a multidão; a
insistência do cego, a atenção de Jesus, o milagre da
restauração da visão. Tudo muito rápido, claro e objetivo. Mais
um dia comum no incomum e extraordinário ministério do
Senhor.

Cegos são conhecidos por sua sensibilidade tátil e auditiva.


Acontece, quando um dos sentidos fica prejudicado, que os
outros se aprimorem para compensar as perdas. Nosso cego
ouviu a multidão e sentiu que havia algo diferente no ar. Não
era burburinho rotineiro. Sua audição estava em dia e seu
senso de oportunidade extremamente acurado. Quem sabe,
não era seu dia? Jesus estava passando.

Nem tudo são flores no caminho de quem precisa do milagre.


Logo, revelaram-se os obstáculos de plantão. Gente insensível,
rancorosa e sem amor, pronta para impor barreiras ou sugerir
impossibilidades sem fim. “Fique quieto! Não importunes o
Mestre! Quem você pensa que é, para gritar desse jeito?” –
diziam com reprovação e ódio no olhar. Desanimariam
qualquer um.

Mas nosso cego não era qualquer um. Embora ouvinte preciso,
era suplicante persistente: fingiu-se de surdo para não ter que

44
dar ouvidos às palavras dos amargurados da ocasião. Quanto
mais mandavam-no calar, mais ele gritava (nossas avós
costumavam dizer que “é melhor ouvir besteira que ser
surdo”, mas não parece que era esta a filosofia de nosso
amigo-exemplo; surdez, certos momentos, é virtude
providencial).

E tudo isso porque nosso cego enxergava bem demais. Via o


que a maioria não se fazia capaz de enxergar: Jesus era mesmo
o Messias de Deus. Chamou-o “Filho de Davi”, título
messiânico extraído das profecias do Antigo Testamento e
perfeitamente aplicável ao Nazareno que passava. Quantos
foram capazes de ver o que aquele homem viu? Poucos. Jesus
mesmo disse que haveria gente que, tendo olhos, não veria...

Acho que a pergunta de Jesus para o nosso cego faz mais


sentido à luz de sua maravilhosa visão de fé: “que queres que
eu te faça?” é dúvida necessária somente diante de alguém
cuja necessidade não está evidente. A cegueira do cego não
estava evidente aos olhos de Jesus, pois via, com olhos com
que só Deus nos vê, que aquele homem enxergava bem
demais. Coisas que anelamos também ver...

45
POR QUE SOU CRISTÃO?

Foi o apóstolo Pedro quem nos exortou que devemos estar


preparados para responder a todo aquele que nos pedir razão
da esperança que há em nós (1 Pe 3:15). Por isso, a pergunta
cuja resposta precisa estar na ponta da língua: Por que somos
cristãos?

Em primeiro lugar, porque somos humanos e temos uma sede


natural de Deus ou, se alguém preferir, do sobrenatural. Há
uma expectativa de eternidade em nossos corações. Sabemos,
mesmo que de modo inconsciente, que a vida não é só isso;
não se resume ao que somos capazes de perceber à nossa
volta. Olhamos ao redor e imaginamos uma mente superior,
perfeita e todo-poderosa por trás da natureza criada. Supomos
a existência de Deus e desejamos nos relacionar com Ele.

Mas isso ainda não é o cristianismo; é apenas a base de toda


religião.

Em segundo lugar, porque lidamos com a dor, o sofrimento e a


morte, fontes de nossas maiores preocupações. Não há, no
mundo dos sentidos e das idéias, explicação que satisfaça
nosso anseio por entendimento. Não há força que nos ajude a
superar as mais complicadas crises. A não ser Deus. A não ser
a revelação de Deus. A não ser a força que vem de Deus. Sem
Ele a vida torna-se sem sentido e a existência sem esperança.

Mas isso ainda não é o cristianismo; é, no máximo, a


experiência da fé.

46
Em terceiro lugar, e mais importante, somos cristãos porque
reconhecemos na figura histórica de Jesus Cristo, a encarnação
do Deus Criador, em visita à humanidade perdida.
Reconhecemos em sua vida de poder e humildade a
solidariedade do Deus que se importa conosco. Reconhecemos
em sua morte na cruz o preço pago por nossos pecados.
Reconhecemos em sua ressurreição a vitória definitiva sobre a
morte e a abertura para a eternidade ao lado de Deus.
Reconhecemos e cremos!

Somos cristãos por causa de Jesus Cristo. Sua história, predita


em detalhes por todo Antigo Testamento e testemunhada com
entusiasmo por seus discípulos através do Novo, tornou-se a
referência de nossa própria jornada e a excelente notícia de
nossa salvação. Sem Ele, Deus permaneceria distante e
inacessível. Incompreensível. Sua graça pareceria injusta e sua
justiça pareceria sem misericórdia. Sem Ele, nossos pecados
nos condenariam e nossas culpas nos consumiriam
permanentemente. Com Ele e, sobretudo, Nele, Deus se
revelou próximo e perdoador, amoroso e bom. Pode ser
chamado de Pai. Pai de Jesus Cristo. Pai de todos nós, que
cremos em seu nome.
Isso é cristianismo. Esta é a razão. O resto é religião vazia e fé
idólatra. Ilusão.

47
JESUS CRISTO OU O SUPER-HOMEM?

Nunca entendi o super-homem. Por que alguém com tantos


poderes não faz nada de efetivo pelo bem do planeta e da
humanidade. Não parece desperdício que um ser capaz de voar
à velocidade da luz, dobrar vigas de aço, resistir a tiros de fuzil,
ver através das coisas, ouvir a qualquer distância e disparar com
os próprios olhos passe o dia salvando donzelas em apuros? Por
que não combate o tráfico de drogas? Por que não derruba
regimes ditatoriais? Por que não intermedeia conflitos armados
ou guerras civis? Por que não condena a corrupção?

Eu sei que o super-homem não existe. Também sei que, mesmo


o dos quadrinhos, já salvou o mundo de perigos terríveis:
seres extraterrestres, aviões em queda, armas nucleares e as
maluquices do Lex Luthor. Minha dúvida não é a respeito da
existência do super-herói ou seu currículo. Minha dúvida é
sobre a força e a tendência de nossas fantasias. Queremos um
herói que conserte a vida na terra ou um que nos salve de
problemas particulares? Queremos a segunda opção.

Qual seria a graça de um herói envolvido em assuntos


internacionais, diplomacia, economia, crime organizado ou
redes de pedofilia? Legal é que ele bata em três ou quatro
marginais de uma só vez e devolva a bolsa da mocinha.
Bacana é vê-lo apanhar o rapaz que pulou do vigésimo andar
ao mesmo tempo em que impede a colisão de um veículo
desgovernado. Sentimo-nos seguros não porque há quem
garanta a ordem e a harmonia da vida, mas porque há quem
nos socorra quando nos metemos em enrascadas.

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Jesus Cristo não é o super-homem. Não veio ao mundo para
punir vilões e salvar inocentes. Também não veio para integrar
comissões de estudos ecológicos ou fundar organizações não-
governamentais de ação social. Veio para libertar-nos de nós
mesmos, nossos pecados e miséria, concedendo-nos a salvação
que conquistou na cruz. Ensinou-nos a ética do amor e deu sua
vida por nós. Satisfez a justiça que há na lei e convidou-nos
para os benefícios de sua graça. Chamou-nos para o seu reino.

Não era o que queríamos. Ninguém pediu por perdão,


restauração ou força nas adversidades. Pedimos por milagres,
livramentos, vingança contra os inimigos e vitórias em
situações pontuais. Nossa fantasia é que alguém chegue
voando enquanto caímos, arrebentando tudo enquanto
sofremos, quebrando a cara de quem nos persegue. Um herói
compassivo, justo, humilde, fragilizado, lutando com as armas
do amor e da auto-negação... quem aguenta? Alguém chame o
super-homem! Sua fraqueza é a criptonita e não a compaixão.

Por tudo isso, os judeus rejeitaram Jesus Cristo. Não era o


herói que esperavam. Por tudo isso, rejeitamos Jesus Cristo.
Não é a solução que gostaríamos. Por tudo isso, continuamos
amarrados a fantasias de onipotência que jamais nos libertam
de nossas angústias. Por tudo isso, ainda somos vítimas da
arrogância e das injustiças que nos impõem os poderosos deste
mundo, aos quais nos associaremos assim que tivermos
chances. Por tudo isso, seguimos sem sabedoria ou fé, criando
contra nós mesmos situações que só fazem nos prejudicar. E
ainda estamos mortos em nossos delitos e pecados.

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Somos duros de coração e tardios para entender tudo que
Deus planejou para o nosso bem. Ainda não nos demos conta
de todas as vitórias que Jesus conquistou e nos disponibilizou
por sua generosidade. Permanecemos tímidos, ignorantes e
iludidos por nosso próprio engano. Talvez por isso, ao se fazer
passar por um ser humano normal, o super-homem adote a
figura ingênua e desinteressante do Clark Kent. Foi o jeito que
encontrou para dizer como nos vê: bobos e perdidos,
atrapalhados e distraídos com nossos problemas. Incapazes de
perceber o que está bem diante do nosso nariz...

50
SOBRE CAÇADORES E SEMEADORES

Gosto de usar maniqueísmos para ilustrar a vida. Facilitam as


coisas. Ajudam a distinguir entre modos de lidar com as
circunstâncias de forma que qualquer um possa identificar-se
com uma de duas possibilidades.

Costumo dizer que há dois tipos de pessoas: caçadores e


semeadores. Caçadores vivem em busca de satisfação
imediata. Semeadores providenciam hoje as soluções que
desejarão amanhã. Caçadores apropriam-se de recursos que
não produziram. Semeadores plantam no presente os frutos
que esperam colher no futuro.

O perfil caçador é agressivo e predador. Faz acreditar que


sucesso e felicidade resultam da exploração do mundo e de
suas potencialidades. A vida é uma selva, na qual vigora a lei
do mais forte. Sorte e esperteza são termos que ocorrem
abundantemente no vocabulário caçador.

O perfil semeador é paciente e contribuinte. Resulta de uma


percepção da realidade a partir de categorias como causa e
efeito. “Tudo que o homem semear, isso também ceifará”. A
vida é um campo, no qual o suor do rosto viabiliza o comer do
pão. Perseverança e esperança são palavras que orientam o
estilo de vida semeador.

O problema do perfil caçador é sua insaciabilidade. Por mais


que conquiste, jamais se satisfaz. Na vida caçadora, o que não
é consumido, apodrece. Não há descanso ou confiança. Não há

51
paz; sequer esperança. O futuro do caçador é nebuloso e
caminha na direção da escassez e da extinção. Não há caça que
dure para sempre.

A vantagem do perfil semeador se traduz em provisão e


continuidade. Exige, num primeiro momento, esforço e visão,
mas recompensa seus adeptos com fartura, tranquilidade e
gratidão. A boa semente sempre dará origem a uma boa
árvore, que dará frutos na estação própria e cujas folhas não
murcharão. O futuro do semeador é aguardado com fé e
celebrado com alegria; jamais temido.

Cristãos são chamados a semear. Sabem que com Deus não se


brinca e de Deus não se zomba. Acreditam em milagres e
soluções imediatas, mas organizam-se de tal forma que
possam sempre colher os frutos de suas sementes. Não
murmuram e não sucumbem a uma religião de consumo com
uma ética baseada em prazer.

Jesus foi um semeador. Ensinou que, se um grão de trigo,


caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer produz
muito fruto. Comparou o evangelho às sementes que um
semeador lançou pelo caminho e falou do Reino de Deus como
se fora um grão de mostarda. Colheu, pela fidelidade do Pai,
um nome sobre todos e um povo que ninguém pode contar.

O diabo, desde o princípio, é caçador. Invejou um trono que


não construiu, um mundo que não criou e uma glória que
jamais mereceu. Tentou o próprio Jesus com seu apelo caçador:
“manda que as pedras se transformem em pão”. Uma pena
que ainda faça suas vítimas e ainda encontre a quem caçar.


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PEREGRINANDO

Gosto de viajar. Fazer malas, preparar roteiros, cair na estrada.


Prefiro um bom passeio a uma boa aquisição. Tanto pelo
privilégio de conhecer outros lugares como pelo descanso em
relação à rotina. Sair da rotina é reparador. Faz descansar a
alma, ainda que o corpo se desgaste um pouco com a
movimentação.

Aprendi das viagens que voltar é tão bom quanto partir. Dá


uma saudade de casa! Por melhores que sejam os lugares por
onde passo. Não tem cama como a cama da gente. Nenhum
lugar como o lar. E tem mais: uma hora o dinheiro acaba, falta
a roupa limpa e dá vontade de conversar com os amigos;
mostrar fotos e “contar vantagens”.

A certeza da volta determina as escolhas da partida. Devo


levar bagagem proporcional aos dias de turismo e reservar
estadias no número exato. O dinheiro deve ser o suficiente.
Pretendo aproveitar, ao máximo, cada oportunidade. Há uma
opção evidente pela alegria e pela comunhão. A idéia é não ter
do que me arrepender.

Viagens são parábolas da vida. Falam de trânsito, passagem e


provisoriedade. Ensinam sobre o que significa estar onde não é
casa; viver por um tempo onde não é lar. Deixam claro que,
cedo ou tarde, os recursos esgotam, a movimentação cansa e a
distância incomoda. Tratam de saudade e desejo de voltar.

53
Mas para onde? Qual é o lar? Onde é a casa? Jesus já falou: “Na
casa do meu Pai há muitos quartos. Se assim não fosse, eu diria,
pois vou preparar-vos lugar” (João 14). Existe um destino final
que não é mais que um retorno à origem: de Deus viemos e para
Deus voltaremos. Tem lugar para nós na casa do Pai.

Infelizmente, no entanto, há quem se acostume com a viagem.


Quem a transforme em rotina. Quem fuja da realidade de que
isso, um dia, acaba. Mais dia, menos dia, é hora de voltar.
Apresentarmo-nos diante de Deus e prestarmos as contas.
Fomos com dinheiro emprestado. O recurso era alheio. A
viagem não era de férias, mas a trabalho. Éramos
embaixadores e não nos apercebemos disso. Tínhamos uma
missão de paz e boas novas, as quais falam de um Senhor
amoroso e salvador. Mas não cumprimos nosso dever. Ao
contrário do que gostaríamos, temos muito do que arrepender.

É tempo de revermos roteiros e motivos. De levarmos somente


o suficiente. Quem é que se enrola em viagem, que não se
mostre um completo tolo? Quem é que faz a vida no lugar de
passagem, como se não tivesse para onde retornar? Quem é
que deixa sem trato as questões da casa e da vida real para a
qual, finalmente, voltará? Sejamos sábios!

Peregrinação é como a Bíblia denomina nossa viagem. Suas


palavras revelam o caráter transitório da vida e a urgência de
nossa rendição a Deus. Ninguém é eterno turista. Não há lugar
como o lar. É o que ensinam os heróis da fé: “morreram na fé,
sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe,
crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros

54
e peregrinos na terra... homens dos quais o mundo não era
digno” (Hebreus 11:13 e 38).

Tem hora que dá uma saudade de casa... Acho que estou


precisando de roupas limpas.

55
PROGRAMA FIDELIDADE

O cartaz à porta não deixava dúvidas: “a cada dez refeições,


uma é de graça”. Entrei. Pedi um dos pratos da casa. O lugar
era agradável e parecia bem limpo. Comi. Pedi a conta e fui ao
caixa, pagar.

- “Vinte e dois reais, tudo” – disse a mocinha, depois de


somar na calculadora.
- “No débito, por favor.”
- “Quer fazer um cartão fidelidade?”
- “Quero...”
- “É simples” – explicou; “basta preencher os
quadradinhos com dez carimbos do restaurante e pode fazer
uma refeição de graça.”
- “Ok. Obrigado.”

Saí e, pela calçada, passei frente a uma agência de viagens.


Muitos cartazes. Buenos Aires, Orlando, Maceió, Natal... um
destino mais atraente que o outro. Abaixo, quase escondido,
um adesivo de propaganda da empresa aérea. Sugeria que o
candidato a turista se cadastrasse num programa de fidelidade.
Com ele, acumularia “milhas” em vôo e poderia viajar de
graça para qualquer lugar do país. Interessante.

Ao trabalho, já no carro, parei para abastecer. Um desses


postos famosos, com bandeira conhecida. Faz propaganda na
televisão.

- “Álcool ou gasolina” – perguntou o frentista.

56
- “Gasolina...”
- “Completa?”
- “Isso...”
- “Posso verificar o óleo e a água?”
- “Por favor.”
- “Gostaria de fazer o cartão do posto?”
- “Cartão?”
- “É... cartão fidelidade. Com ele o doutor ganha desconto
na hora de encher o tanque.”
- “Hoje não”.

Fui para o escritório pensando na vida. Estou acostumado ao


termo fidelidade. Sou cristão, pastor; ouço essa palavra desde
pequeno. Mas não imaginava que estivesse tão banalizada.
Cartão fidelidade? Programa de fidelidade? As pessoas têm
noção do que significa ser fiel?

Logo, incomodei-me inda mais. Percebi que o desafio da


fidelidade nos nossos dias virou uma questão de vantagem.
Não depende de valores morais, mas de interesses individuais.
Não nasce do desejo por relacionamento, mas da ânsia por
recompensa. Se for fiel, receberei benefícios que, de outro
modo, não teria. Simples assim.

Acontece que fidelidade é fruto do amor. Quem ama, é fiel.


Mesmo quando não há promessas. Mesmo quando não existe
ganho algum. Deus não é fiel porque terá vantagens ao final
do processo, mas porque não pode negar a si mesmo. Deus é
amor. É do amor assumir compromissos e os cumprir. Aquele
que ama é nascido de Deus e cumpre toda a lei.

57
Percebi que comer dez vezes num mesmo lugar não me faz
fiel; apenas constante. Assim como mudar de restaurante não
me faz infiel; apenas alguém que gosta de variar. Quanto ao
meu relacionamento com Deus, aqui sim, almejo fidelidade.
Sei que não precisarei de cartões. O carimbo é no coração. E já
fui carimbado. Uma vez por todas.

58
FIDELIDADE A TODA PROVA

O que faz uma pessoa fiel? Em que circunstâncias podemos


afirmar que um homem ou uma mulher é fiel? Fidelidade é
exclusividade de relações afetivas? Basta que uma pessoa não
se envolva em relacionamentos extraconjugais para que seja
considerada fiel? O que significa dizer: Deus é Fiel?

São perguntas importantes, porque fidelidade é questão de


caráter e não de circunstância. Deus é fiel não somente porque
jamais nos traiu, mas, sobretudo, porque não pode negar a si
mesmo. Seu modelo e sua força nos convocam a uma postura
de integridade, nascida do coração, a partir da qual nossos
relacionamentos são construídos e mantidos, mesmo em
situações adversas.

Recentemente, defendi que a fidelidade resiste a três inimigos


básicos, que nominei utilizando palavras iniciadas com a letra
“D”. Sem que seja provada por eles e a eles supere, triunfando
sobre suas armas, fidelidade é só conceito e fantasia, ilusão de
relacionamentos fundamentados em mentira e não na rocha da
salvação.

O primeiro inimigo da fidelidade é a dificuldade. Nossos avós


diziam: “quando o dinheiro sai pela porta, o amor foge pela
janela”. Parece senso comum que as dificuldades, as lutas, as
tribulações (próprias da vida, diga-se de passagem), justificam
os rompimentos, as traições, os abandonos, as quebras de
contrato. Fidelidade tornou-se, para esta geração, sinônimo de
facilidade ou conveniência.

59
A fidelidade segundo Deus, contudo, encontra na dificuldade
sua razão de ser e permanecer. “Ainda que a figueira não
floresça”, disse Habacuque. O fiel é fiel no pouco, na ausência,
na privação, na provação e em condições inóspitas. Sabe que
Deus é fiel para socorrer, fortalecer, orientar e, finalmente,
conduzir em triunfo. Vale a pena esperar, orar e descansar no
cuidado do Pai.

O segundo inimigo da fidelidade é o desejo. Outro ditado


sugere: “querer é poder”. Se é desejo, por que negar? Por que
resistir aos apelos do corpo, da libido, da paixão? O prazer é
uma coisa boa, não? Ser fiel é ser careta, antiquado, moralista,
reacionário, fundamentalista, louco. Há uma infinidade de
opções, caminhos, possibilidades... Por que ligar-se em
definitivo a uma só alternativa? Por que manter um
compromisso e renunciar aos instintos?

A fidelidade segundo Deus supera o desejo porque sabe que o


coração humano é enganoso. Querer e poder são atributos
distintos, inconciliáveis muitas vezes. “Quem quiser ganhar
sua vida”, disse Jesus, “irá perdê-la, mas quem estiver
disposto a perder sua vida, irá achá-la”. Não é uma ameaça; é
uma constatação. Deus sabe o caminho para a verdadeira
felicidade e realização. Ser fiel consiste em permanecer no
caminho correto apesar dos apelos atrativos dos atalhos que
nos aparecem. Vale nos lembrarmos que “larga e espaçosa é a
porta que conduz à perdição”.

O terceiro inimigo da fidelidade é a decepção. Ser fiel e receber


infidelidade em troca é o fim. A maioria das pessoas não o

60
admite. Por isso ouvimos, já de nossas crianças, na mais tenra
idade, o tal do “ele fez primeiro”; ou ainda: “ele começou”. A
esposa era fiel, mas quando descobriu a infidelidade do
marido... O empregado era honesto, mas quando foi
ludibriado pelo patrão... A pessoa era correta em sua fé e vida
cristã, mas quando o pastor caiu... ou o líder a ofendeu... ou a
amiga a enganou...

A fidelidade segundo Deus, o qual disse: “ainda que vocês


sejam infiéis, eu permaneço fiel”, não é compensação e não
pode ser revogada para que se pague com mesma moeda. É
caráter, coração tratado e apaziguado, mansidão, fome e sede
de justiça, amor, disposição para dar a outra face ou caminhar
segunda milha. Não se fia no próximo e sua conduta, mas em
Deus e sua soberania. Pode até fraquejar, mas logo se levanta e
firma, na certeza daquele que perdoa pecados e faz novas
todas as coisas.

61
CASAIS INTELIGENTES PERMANECEM JUNTOS.
E JÁ SÃO RICOS!

Não é um trocadilho, é uma crítica. O título do livro “Casais


inteligentes enriquecem juntos”, de Gustavo Cerbasi, não é
adequado. Primeiro, porque propõe inteligência como
caminho de enriquecimento: se é inteligente, enriquece. Não
creio que seja assim... Segundo, porque desvia a atenção do
leitor quanto à verdadeira riqueza de um casal: a união em si.
Como enriquecer a quem tudo já possui?

Não, não é exagero. Casamento é riqueza de valor


imensurável. Sua conquista é uma dádiva. Sua manutenção,
uma bênção. A tese não é minha; pertence à sabedoria bíblica:
“O que acha uma esposa acha o bem e alcançou a
benevolência do Senhor” (Provérbios 18:22); e ainda: “Mulher
virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas
jóias” (Provérbios 31:10). Nem todos os tesouros do mundo
podem ser comparados ao valor de um casamento abençoado
e feliz.

Quando se sugere que o casamento inteligente enriquece, o


equívoco não está unicamente na sugestão (que pode até
revelar-se verdadeira, para alguns), mas no foco: mais que
ambiente para a aquisição de quaisquer recursos, o casamento
é um espaço para compartilhá-los. A atenção não deve estar
voltada para o que se pode alcançar, mas ao que se tem à
disposição para oferecer.

62
Eu reconheço, é óbvio: ninguém pode dar o que não possui;
mas não é tão óbvio, ao menos para a maior parte dos casais
de hoje, que a inteligência afetiva revela-se mais no
compartilhar que no conquistar. Dai e ser-vos-á dado... – disse
Jesus. Ele sabia que nenhum sustento vem do simples fato de
alguém ser ganancioso ou mesquinho, mas do fato de confiar
em Deus e, de suas mãos, aguardar a providência. Se ele não
edificar uma casa, em vão trabalham os que a edificam; se não
guardar a cidade, em vão vigiam as sentinelas; se não der aos
seus amados, em vão levantam cedo, dormem tarde...

Outra coisa: a inteligência de um casal não pode ser medida


por seus acúmulos financeiros ou patrimoniais, mas por seus
níveis de maturidade e intimidade. Se casais inteligentes
enriquecem ou não, pouco importa. Casais inteligentes – e isso
importa – permanecem juntos, pois na superação das crises,
feridas, distanciamentos ocasionais e desencontros das
vontades individuais, aprendem a dialogar, ceder, confiar e
vencer fantasias juvenis; tudo em nome da construção de um
projeto de vida para além do universo particular. Foi Paulo
quem sugeriu que amar o cônjuge é amar a si mesmo.

Finalmente, vale dizer que outro sinal de real inteligência é a


obediência a Deus. Um coração voltado para as riquezas deste
mundo é, na verdade, uma marca de total estupidez: o amor
ao dinheiro é a raiz de todos os males (1 Timóteo 6:10). Não
nego que um casal ajustado e capacitado deverá administrar
com excelência seus recursos e investir com sabedoria em seu
futuro, mas não o fará para enriquecer, senão para servir.
Riqueza será sempre consequência, nunca alvo. A inteligência

63
espiritual diz que é melhor buscar o Reino de Deus e sua
justiça; todas as demais coisas serão acrescentadas.

64
O DIA EM QUE UM HOMEM AJUDOU DEUS

Imagine...

Jesus está a caminho. Seu destino: o Calvário. Sobre seus


ombros, massacrados durante toda uma noite pelos gritos
cortantes dos açoites, o lenho que anuncia a morte daquele que
o carrega. À frente, guardas abrem passagem. Por trás, outros
guardas - com chicotes e caniços - cuidam do ritmo da jornada.
Aos lados, multidões enfurecidas, gritando, blasfemando,
agredindo e atacando ao que passa para morrer.

Jesus está cansado. As feridas abertas já não se deixam


mascarar pelo efeito da morfina que seu corpo - como o nosso
- no início liberava. Seus pés, tão acostumados às longas
viagens, ardem em bolhas cada vez maiores. Como se não
bastasse, em sua cabeça pesa uma coroa, não como as dos reis
e poderosos, mas como a dos ultrajados e torturados: feita de
espinhos. Seu aspecto é inchado e sua dor indescritível.

Jesus está caído. As dores do corpo agora superam suas


impressionantes forças. As pernas firmes do carpinteiro-
viajante cederam, exatamente em sua última viagem. Sem
dúvida, a mais longa. Nem mesmo os guardas são capazes de
ainda castigá-lo, pois é visível o estado deprimente em que se
encontra o condenado. E condenado por quê? Por ser culpado
dos pecados do mundo inteiro. Pecados de todas as gerações.
Pecados de todos nós.

65
Dentre o povo vem a ajuda. Cireneu, um simples espectador
do martírio, é tomado à força e obrigado a intervir. É escolhido
para continuar carregando a cruz de Jesus Cristo. De repente,
o homem ajuda Deus na dura missão de redimir a
humanidade. Não era necessário que fosse ele. Podia ser
qualquer um. Afinal, a cruz era de qualquer um, menos de
Jesus. Mas foi ele o escolhido. Aparentemente por homens,
mas certamente por Deus. Escolhido para levar, ainda que por
um pouco, a cruz que deveria mesmo estar sobre os seus
ombros. Sobre os ombros de todos nós.

Estaríamos dispostos a levar nossa cruz? Estaríamos dispostos


a assumir sobre nós, como eleitos de Deus, a cruz que é só
nossa? Estaríamos dispostos a contribuir com Deus na dura
missão de resgatar a humanidade?

66
AJUDA POLÍTICA OU ESPIRITUAL?

Ajudar pessoas é um privilégio e, sobretudo para o cristão,


uma obrigação. Pessoas precisam de ajuda. A vida reserva
situações de dificuldade e provação que exigem a ajuda mútua
e o exercício da solidariedade. O nosso Deus é um Deus que
socorre e ajuda em todo tempo e nas mais variadas
c i rc u n s t â n c i a s . P o r i s s o , n i n g u é m e s t á i s e n t o d e
responsabilidade com relação ao seu próximo, especialmente o
necessitado.

No entanto, é preciso distinguir entre o que ajuda e o que


atrapalha; entre o que socorre e o que perpetua a necessidade;
entre o que liberta e o que cria relações de dependência; entre
o que podemos chamar de ajuda espiritual, movida por fé e
amor a Deus, e o que chamamos ajuda meramente política,
movida por orgulho, interesses e desejo de autoafirmação. Esta
parece ajuda, mas é armadilha; aquela, vez ou outra, não
parece ajuda, mas é bênção e orienta pelo caminho da
transformação e da autonomia.

A ajuda meramente política tem suas características: considera


o pedido (o que essa pessoa quer de mim?), fundamenta-se em
estruturas de poder (como posso atendê-la?), objetiva a
satisfação de quem pede (se eu não a atender ficará chateada
comigo!) e estabelece relações de reciprocidade e compensação
(amanhã poderei precisar dessa pessoa!). É incapaz de
discernir entre necessidade e desejo, solução e vaidade. Só se
concretiza quando diz “sim”. Funciona no curto-prazo, mas,
normalmente, gera transtornos no longo-prazo.

67
A ajuda espiritual, por sua vez, tem outras características:
considera a pessoa (quem é o que me pede? Qual sua história?
Como chegou até aqui?), fundamenta-se no amor (o poder, em
última instância, é sempre de Deus!), objetiva a glória de
Cristo (importa que Ele cresça e que eu diminua!), trabalha
pelo avanço do Reino (Deus é soberano!), e orienta para a
liberdade dos filhos de Deus (Deus cuidará de mim sempre
que eu precisar!). Sabe a diferença entre desejo e necessidade. É
ajuda tanto no “sim” quanto no “não”. Produz frutos para a
eternidade.

Jesus é nosso maior exemplo de ajuda espiritual sem


preocupações meramente políticas ou sociais. Recebeu as
multidões, curou enfermos, libertou oprimidos, consolou
aflitos, mas também negou pedidos (como quando foi
solicitado para arbitrar entre irmãos que disputavam uma
herança), censurou motivações (quando a mãe de dois de seus
discípulos pediu que pudessem assentar-se à sua direita e à
sua esquerda, no reino) e fugiu dos que queriam torná-lo rei.
Não tinha qualquer compromisso com as fantasias populares,
senão com a vontade do Pai.

Denunciou a hipocrisia das lideranças políticas e religiosas de


sua época, protegidas pelas estruturas de poder e distanciadas
da realidade do povo. Condenou suas festas, cerimônias e
grandes construções, instrumentalizadas para distrair e
perpetuar pobreza e ignorância. Desmascarou suas motivações
pecaminosas, acusando-as de dar esmolas com trombetas e
alardes, visando chamar a atenção e propagandear a própria

68
imagem. Foi crucificado por elas, mas ressuscitado e exaltado
pelo Espírito de Deus. Recebeu um nome acima de todo nome...

A igreja precisa aprender com Jesus e seguir em seus passos.


Precisa ter compaixão pelos sofridos, amor pelos necessitados
e disposição para servir ao próximo, mas também
discernimento espiritual, liberdade de autoestima e firmeza de
decisão. Precisa saber o valor de um “sim” e o valor de um
“não”; cada um tem sua hora e seu lugar. E o que passa disso
vem do maligno...

69
NÃO SOMOS ANIMAIS! OU SOMOS?

Há muito venho dizendo que os seres humanos,


diferentemente dos animais, não devem agir por instinto, mas,
sobretudo, por princípios e convicções. Sei que não é o que a
maioria das pessoas deseja ouvir, sobretudo nos dias de hoje.
Slogans do tipo “siga seus instintos” fazem mais sucesso e
encontram número cada vez maior de adeptos. É a pós-
modernidade.

Instintos são inclinações comportamentais inatas, ligadas a


questões vitais e de sobrevivência (acasalamento e procriação,
autodefesa, alimentação, etc.), às quais o organismo
recompensa com sensações de satisfação e prazer. Não nego
sua presença e importância na constituição humana, mas
defendo que nos tornamos distintos dos demais animais à
medida que os submetemos aos valores que adquirimos e
preservamos ao longo de nossa história. Comportamentos
unicamente instintivos são animalescos, degradantes e
indignos de um ser humano criado à imagem e semelhança de
Deus.

No entanto, o pecado que afasta de Deus é também a força que


move a pessoa na direção de sua própria vontade, conforto e
bem-estar. Pecado é orgulho e egocentrismo, vaidade e
autodeificação. Seu poder consiste na ilusão do prazer
permanente e da satisfação dos desejos mais íntimos. Ele
reduz a importância dos princípios ou convicções, abrindo
novamente as portas para um comportamento instintivo e
irracional. Emoções favoráveis tornam-se o centro da vida.

70
O resultado dessa equação, porém, é desastroso. Os mesmos
instintos que conduzem ao apetite sexual desenfreado, ao
vício, à gula e às experiências de prazer sem limites,
conduzem ao ódio, à violência, aos homicídios e a toda forma
de agressão ao próximo. Instintos trabalham na busca do que o
organismo considera essencial, mas também na defesa de sua
integridade e primazia, contra as ameaças que o outro, às
vezes, representa.

É o que vemos, todos os dias, na televisão e nos jornais: o


atleta famoso, conhecido por sua vida promíscua, matou a ex-
amante, que reivindicava recursos financeiros; o advogado
bem-sucedido, propenso a reações violentas, matou a ex-
namorada por não aceitar o rompimento da relação; o garoto
de classe-média, acostumado às farras regadas a muita bebida,
esfaqueou a outro rapaz da mesma idade, na saída de uma
casa noturna, enciumado por causa de uma menina; o jovem
usuário de drogas, precisando sustentar o vício, matou a avó,
com quem morava, enterrando-a no quintal da casa. A lista é
infinita.

As pessoas se perguntam: como pode alguém ser capaz de


cometer tamanha atrocidade? A resposta me parece óbvia:
pessoas que sempre viveram seguindo seus instintos,
indiferentes aos padrões de Deus para a vida e os
relacionamentos, serão impedidos por estes no momento
crítico, quando aqueles exigirem a violência, a agressão e o
crime, em nome da autodefesa e da manutenção dos espaços
de prazer? Certamente, não. O organismo já está habituado, e
responde sempre positivamente aos apelos instintivos. A

71
consciência já está cauterizada, tornou-se incapaz de julgar e
de reprimir os instintos nocivos. Não passa de uma estrutura
animal e sem percepção ética.

A Palavra denuncia a vida instintiva como idolátrica e adverte:


o “deus” dessas pessoas é o ventre. Propõe, como caminho de
vitória, a renúncia ao “eu” e a apresentação do corpo como
sacrifício vivo, santo e agradável. Insiste que o Reino de Deus
não é comida ou bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito
Santo, que é nossa garantia de um prazer que não passa e de
uma satisfação que não tem fim.

Se não nos rendermos a Cristo e a seu exemplo de triunfo


sobre os instintos mais básicos (afinal, deu sua vida por nós),
seguiremos como animais que usam roupas elaboradas,
comem em mesas bem postas e fazem suas necessidades em
aparelhos de cerâmica, mas cujas escolhas fazem da vida uma
verdadeira selva. Nada mais que isso.

72
UMA BAGUNÇA SÓ... NADA MAIS!

“O princípio único do inferno é este: eu sou meu!”


(George MacDonald)

O tempo passa e sinto que me torno mais crítico. Tenho cada


vez menos medo de questionar pressupostos ou repensar
paradigmas. Decidi que não aceito mais o que me é dito sem
alguma reflexão. Tornei-me um hermeneuta da suspeição,
sobretudo nos assuntos da fé. E ainda que creia com todo meu
coração na revelação da Palavra de Deus, sigo cada vez mais
desconfiado do que dizem sobre ela ou do que dizem que ela
diz. Ninguém é dono da Verdade. Ela, sim, nos possui,
esquadrinha, chamando-nos a níveis mais profundos de
conhecimento e intimidade.

Dentre as afirmações que decidi confrontar está a compreensão


do inferno como uma organização política bem definida e
hierarquicamente estruturada. Quase uma brigada militar,
espécie de batalhão sobrenatural com código de conduta
elaborado e relações de respeito às escalas de comando. Seria
uma força alternativa, nos moldes dos exércitos celestiais,
conquanto oposta a eles. O “lado escuro da força”, como nos
filmes de guerras nas estrelas. Desta tese surgem várias outras,
sobre batalha espiritual, demônios territoriais ou estratégias de
exorcismo eficaz. E muitíssimos especialistas em cada uma.

Não posso admitir que o diabo seja um general talentoso e


estrategista com um batalhão sob seu comando. Não acredito
que os demônios são soldados disciplinados e obedientes

73
movidos por uma causa comum. Não posso aceitar que o
inferno seja uma organização, contrária ao Reino de Cristo e
com expectativas de sucesso ou triunfo final. Não faz sentido.
O céu não passou por um “racha”, do tipo que enfrentam
igrejas ou partidos políticos, mas expulsou de seu meio os
rebeldes, os usurpadores, os orgulhosos irreconciliáveis,
condenando-os à distância eterna. Seu pecado não foi uma
idéia alternativa ou discordância pontual, mas a insubmissão
narcísica de quem não se rende a autoridade de quem quer
que seja, ainda que a autoridade seja o próprio Deus.

O diabo não é um líder; é um rebelde. Os demônios não são


um exército, mas espíritos inquebrantáveis sem qualquer
abertura para o arrependimento. Eles não deixaram a esfera da
glória para construir um espaço de oposição e confronto, mas
foram expulsos e condenados ao andar errante e sem
perspectiva de futuro. Não se submeteram a Deus; não se
submeterão a ninguém. Sua natureza é rebelião, arrogância,
mentira e desobediência. Quem seria bem-sucedido na
formação de uma organização cujas bases fossem a revolta e a
insubmissão? Quem comandaria um grupo de criaturas
incapazes de qualquer gesto de cooperação? Estão por aí para
matar, roubar e destruir. Não constroem, não doam e não
fornecem vida a nada.

O diabo e os demônios são exemplos de uma existência


totalmente desprovida de comunhão com Deus. São um sinal
de alerta: devemos vigiar para que não caiamos em suas
armadilhas e também cuidar para que não nos tornemos
incapazes de nos quebrantar. Mostram qual é o resultado da
insubmissão generalizada e da insensibilidade para o Espírito,

74
que é quem nos conduz efetivamente a todo caminho de
arrependimento. Sua ação no mundo não é organizada,
articulada ou planejada, mas movida por impulsos,
sentimentos de ódio e ímpeto destrutivo. Tornam semelhantes
a eles todos quantos lhes dão ouvidos e seguem seus passos.
Foi assim que caíram juntos: imitando uns aos outros e, todos,
ao primeiro da fila. Quem não os conhece que os compre...

75
BERKELEY E O ANONIMATO

Anônimo. Adjetivo. Do grego, anónymos. Sem nome ou que


não o declara. Sem denominação. Aplica-se à sociedade
comercial que não é designada pelo nome de nenhum dos
associados nem por uma firma social, mas por uma
denominação que designa o fim social ou sua natureza.
Indivíduo que não assina o que escreve. Obscuro. Sem renome
(Dicionário).

Anonimato é esconderijo. Proteção. Precaução. Ou covardia,


mesmo. Recurso de quem prefere não se revelar. Exposições
podem ser perigosas. Além do mais, fica fácil ocultar
intenções, motivos ou verdades mais íntimas quando não é
preciso assinar, admitir, confessar. A pessoa faz uma crítica
num blog e assina: “anônimo”. Escreve uma carta com
ameaças ou tentativas de intimidação e assina: “anônimo”. Sai
ilesa, segue em frente. O estrago fica todo para o outro lado.

Mas anonimato também é risco. Não tem garantia. Faz sofrer


quando faz pensar no perigo da descoberta ou do
desmascaramento. Será mesmo que ninguém viu? Será mesmo
que ninguém ouviu? Será mesmo que minhas realizações não
podem ser rastreadas? A sociedade evoluiu, tornou-se
tecnológica, está mais exposta e reduziu absurdamente os
espaços de privacidade e intimidade. Será mesmo anônima
uma existência, opinião ou ação?

George Berkeley, filósofo irlandês ligado à tradição do


empirismo inglês, ficou conhecido na história do pensamento,

76
dentre outras, pela tese “ser é ser percebido” (esse est percipi).
Simplificando, significa que não conhecemos a substância
material em si, mas aquelas informações que nos são
comunicadas através de nossas capacidades perceptivas. Por
isso, a realidade não seria mais que a experiência da mente
individual de perceber o mundo exterior. O best-seller “Mundo
de Sofia”, de Jostein Gaarder, foi construído em torno desta
tese.

Contudo, para fugir do que poderia ser considerado


subjetivismo individualista, negação da existência para além
da mente individual, Berkeley sugeriu uma mente cósmica,
infinitamente superior à humana, capaz de perceber a um só
tempo, de uma só vez, todas as coisas, garantindo sua
realidade. A mente de Deus. Assim, bispo anglicano que era,
afirmou a verdade de Deus e resgatou a revelação bíblica que
diz: os olhos do Senhor estão em todo lugar, contemplando os
maus e os bons (Provérbios 15:3). Ou ainda: não há criatura
que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas
as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a
quem temos de prestar contas (Hebreus 4:13).

A filosofia de Berkeley não responde todas as perguntas.


Desde sua morte, em 1753, muito foi pensado, dito e escrito.
Vieram Kant, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, dentre
outros. Mas sua contribuição permanece vívida e válida.
Ajuda-nos, sobretudo, a lembrarmos que somos vistos,
percebidos, por Aquele para quem nada escapa. Nossa
existência, diria o apóstolo Paulo (e Berkeley concordaria), se
dá Nele, em quem somos, nos movemos e existimos. Ser é ser

77
percebido por Ele. Conhece-nos. Esquadrinha-nos. Chama-nos
pelo nome. Pelo nome!

Anonimato, portanto, é mentira e ilusão. Falsa sensação de


segurança quanto ao que é feito nos bastidores da vida, às
escondidas, sorrateiramente. Prestaremos contas. Ainda que
ninguém mais tenha visto, ouvido ou testemunhado. Foi Jesus
quem disse: nada há encoberto, que não venha a ser revelado;
nem oculto, que não venha a ser conhecido (Mateus 10:26).
Para lembrarmo-nos de Jó: os olhos de Deus estão sobre os
caminhos do homem e vêem todos os seus passos (34:21).
Ninguém é anônimo. Nossos atos ecoarão pela eternidade.
Para Deus prestaremos contas.

Eternidade. Substantivo feminino. Do latim, aeternitate.


Duração sem princípio nem fim. Qualidade do que é eterno.
Vida eterna. Existência absoluta, sem princípio nem fim
(Dicionário).

78
NÃO SOU EFICIENTE!

Não sou eficiente. Bem que já tentei, mas não consigo.


Eficiência é virtude difícil, rara. Transforma gente comum em
agência de alta produtividade e pouco desperdício. É um tipo
de especialização naquilo que se faz todo dia. Padrão de
atuação, ritmo, rotina. Uma pessoa eficiente desempenha com
excelência o que lhe cabe diariamente. Ninguém faz aquilo
melhor do que ela.

Não sou eficiente porque oscilo muito. Desanimo, com alguma


facilidade. Caio de produção. Canso, decepciono-me, frustro-
me. Não me dou muito bem com essa coisa de ser máquina.
Não estou sempre bem... Não tenho sempre um sorriso... Não
correspondo todas as expectativas sobre mim... Há dias em
que não desejo levantar da cama. Já pensei, e não poucas
vezes, em jogar tudo para o alto.

Um dia me disseram que eu deveria ser eficaz, não eficiente. A


eficiência não é criativa, mas monótona. Reproduz, repete,
insiste. Até aperfeiçoa-se, mas não se transforma. A eficácia é
diferente, inovadora, certeira, maleável. Uma pessoa eficaz
assume responsabilidades, as mais diversas, e atinge os
objetivos. Se não é especialista em algo, cerca-se de quem o
seja e cumpre seu dever. Sabe solucionar problemas e construir
relacionamentos. Jamais deixa de produzir os resultados
desejados.

Mas também não sou eficaz. Ah, como gostaria de ser... Erro
mais que acerto, julgo equivocadamente, precipito-me.

79
Produzo aquém do que consideram – ou considero – meu
verdadeiro potencial e não tenho clareza a respeito do que é
fundamental. Chego aos resultados questionando-me sobre
sua validade; penitenciando-me por valores que deixei pelo
caminho. Arrependo-me. Defendo-me. Não me compreendo.

Contudo, não desespero. Tenho salvação. Creio em Deus e


reconheço minha dependência de seu Espírito Santo. Confio
em sua eficácia: ofereceu-se uma vez por todas e salvou-me
uma vez por todas. Redimiu minha vida, fazendo-me assentar
nos lugares celestiais. Seu sopro me impulsiona, cria e recria
em mim aquilo que há de mais importante. Estou seguro em
suas mãos e sei que posso ser usado para a sua glória.

Confio na eficiência do Senhor, sua completude. Não


desanima, não desiste, não desampara jamais. Faz nascer seu
sol todos os dias, sobre maus e bons. A cada manhã renova
suas misericórdias. Fala, ensina, corrige, disciplina. Sobretudo
aos que ama. Seu poder levanta o caído e sua graça anima o
abatido. Ele faz os meus pés como os da corça e me faz andar
altaneiramente...

A mim, portanto, resta o efetivo. Resta-me ser efetivo,


verdadeiro, real. Consciente de minhas limitações e
dependente da direção de Deus. Consagrado. O efetivo
também produz, também tem seu valor. Mas é um valor
relativo, dependente: é efetivo quando usado corretamente!
Nas palavras do apóstolo Paulo: “o bem que quero fazer, não
faço (ineficácia: errar o alvo); o mal que detesto, pratico
(ineficiência: fazer o malfeito). Miserável homem que sou;

80
quem me livrará do corpo dessa morte? Graças a Deus por
Jesus Cristo, nosso Senhor...

Seja Cristo a nos usar! Efetivamente! Eficazmente!


Eficientemente! E para a sua glória!

81
OU NÃO ME CHAMO...

“Vou conseguir essa promoção... ou não me chamo Jorge”.


“Ela vai pagar pelo que me fez passar... ou não me chamo
Luiza”. “Pode contar com minha presença na sua festa... ou
não me chamo Tiago”.

Usamos este tipo de expressão quando queremos ser cridos


em nossas promessas ou compromissos. É como se
quiséssemos garantir a realização disso ou daquilo, sob pena
de mudarmos nosso nome. Nossa força, ao que parece, é o
orgulho. E sentimos que nos dão crédito quando nos
posicionamos com tal convicção. Nossa motivação, ao que
tudo indica, é o ego.

A Palavra de Deus, no entanto, esforça-se para nos livrar de


nossas arrogantes pretensões. Tiago, em sua carta, adverte:
“não digam que amanhã farão isto ou aquilo, pois vocês não
sabem o que lhes acontecerá no dia de amanhã. Digam, porém:
se Deus quiser, amanhã faremos isto ou aquilo” (conforme os
versos 13 a 17 do capítulo 4). O apóstolo sabia que nossos
planos são frágeis e vulneráveis ante a força e o impacto da
soberania de Deus.

Nossa insistência em conseguir que nos creiam em nossas


promessas e compromissos — muitos dos quais jamais
deveríamos assumir! — vem de nosso desejo de auto-
suficiência e fantasia de onipotência. Não estamos confortáveis
com a revelação bíblica de nossa fraqueza e contradição;
tampouco com o desafio da humildade e da submissão à

82
vontade de Deus. Queremos ser os donos de nós mesmos e
nossos sonhos. Queremos acreditar que nossos nomes, com
toda sua aparente importância, são garantias de realização dos
nossos planos. Queremos ser especiais, mesmo quando já nos
declaramos cristãos. Ainda mais quando nos declaramos
cristãos.

Mas há esperança para nós. O livro do Apocalipse conta de


uma pedra branca com um novo nome nela inscrito, conhecido
apenas por aquele que o recebe (2:17). Esta promessa — feita
por quem pode cumpri-la, independentemente das
circunstâncias — consola-nos a respeito daquele dia em que
seremos libertos de nossa contradição e fraqueza. Revestidos
plenamente de Cristo. Assumidos nele e em seu reinado.
Novos em tudo, até no nome.

Voltando para onde partimos, já podemos dizer: se Deus


quiser, faremos isto ou aquilo. Porque não queremos
descumprir o que acordamos, contaremos com sua ajuda e
fidelidade. O Senhor não desampara ao que lhe ouve em
humildade e submissão. Faremos assim até que nos leve para
si mesmo,  para aquele lugar em que não mais haverá
frustrações.

Que até lá nos comprometamos com lealdade e firmeza. Que


cada um diga de si mesmo: conte comigo, pois, com a graça de
Deus, já não me chamarei...!

83
VITÓRIA SOBRE A INVEJA

“Pesquisa exclusiva apontou a inveja como o mais lembrado


dos sete pecados capitais pelos brasileiros”, afirmou um site da
internet que divulgava o lançamento do livro “Inveja - Mal
Secreto”, de Zuenir Ventura.

O dicionário define “inveja” (do latim invidia – não ver) como


um “misto de pena e raiva; sentimento de desgosto pela
prosperidade ou alegria de outrem; desejo de possuir aquilo
que os outros possuem; ciúme, emulação, cobiça”.

Zuenir Ventura destacou a peculiaridade da inveja em relação


aos demais pecados: “O ódio espuma. A preguiça se derrama.
A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O
orgulho brilha. Só a inveja se esconde”. O invejoso, em geral,
nega a existência de sentimentos ligados à inveja, enquanto
alimenta-os em seu próprio coração.

A Bíblia faz dura advertência sobre a inveja: “Cruel é o furor e


impetuosa é a ira, mas quem pode resistir à
inveja?” (Provérbios 27:4). Trata-se de poderoso inimigo,
sobretudo por sua capacidade de fortalecer-se às escondidas,
nos bastidores da vida interior. Invejosos costumam trazer
grandes prejuízos para os outros e para si mesmos.

A melhor definição de “inveja”, no entanto, veio-me nas


palavras do psicanalista francês Jacques Lacan, elaboradas a
partir de um quadro descrito por Agostinho de Hipona, no qual
um garoto já alimentado observa, com “olhos envenenados pela

84
inveja”, o irmão menor sendo amamentado nos braços de sua
mãe: “a inveja pouco ou nada se relaciona com o que o outro
tem. Trata-se de que o outro aparece unido ao que tem,
oferecendo a imagem de uma completude que se basta”.

A inveja, portanto, segundo Lacan, é mais que uma espécie de


cobiça. A considerar que o menino alimentado é o sujeito da inveja,
esta é mais que um desejo de se possuir o que o outro possui ou
uma raiva por aquilo que o outro possui. O invejoso, ao que tudo
indica, tem mais que um anseio de destruição daquilo que o outro
possui (a fim de que “não veja” mais). Sua inveja nasce de um
sentimento de vazio, de infelicidade, de incompletude. Surge no
“não ter”, mas também no “ter”. É complexo de inferioridade,
solidão, sentimento de abandono. Morte.

O invejoso está à procura dessa plenitude que lhe baste, a qual não
encontra jamais e cuja ausência só faz aumentar o vazio de sua
alma. Ao deparar-se com o outro em situação de aparente
completude, pois a imagem dessa satisfação pode ser real ou
ilusória, inveja, desejando não apenas o objeto com o qual o outro
parece unido, mas aquela união em si, aquela sensação de
felicidade que desconhece. Em casos extremos, desejará destruir o
outro e não somente o objeto com o qual está ligado ou se satisfaz.

Por tudo isso, a vitória sobre a inveja não consiste no “ter” ou,
menos ainda, no “não desejar”. Consiste no ser inteiro, no
estar em paz; na experiência do amor mais puro e genuíno. A
vitória sobre a inveja consiste no ser íntimo de Deus e cheio do
Espírito Santo. Trata-se do privilégio de “ser unido com Ele
numa completude que se basta”. Trata-se de ser unido com Ele
numa completude da qual todos podem desfrutar igualmente,

85
pois não faz acepção de pessoas. Trata-se de aprender com o
modelo de Cristo, que, sendo UM com o Pai, esvaziou-se de
seus “pertences” para doar-se e tornar-se Salvador. Nessa
completude o “ter” dá lugar ao “ser”.

Para citar outro provérbio: “Não tenha o teu coração inveja


dos pecadores; antes persevera no temor do Senhor todo
dia” (Provérbios 23:17). E para citar C. S. Lewis: “Aquele que
tem Deus e tudo o mais, não tem nada mais do que aquele que
só tem Deus”.

86
A DITADURA DO BEM-ESTAR

A definição popular de felicidade está relacionada a conceitos


como bem-estar, prazer e, subjetivamente, independência ou
auto-suficiência. Ser feliz, como dizem, é sentir-se bem,
escapar dos sofrimentos comuns da vida e fazer o que se quer
fazer. Uma pessoa feliz é identificada a partir de critérios como
posses, poder e liberdade em relação a compromissos
desagradáveis. A felicidade, desse modo, é o resultado de uma
vida em que o “eu” está no centro das decisões.

A definição evangélica de felicidade é estranha ao mundo


natural. Inclui conceitos como choro, fome, sede, perseguição e
humildade (Mt 5:1-12). Convida ao auto-aniquilamento, à
auto-negação. Para ser feliz, o crente precisa morrer para si
mesmo e seus desejos egocêntricos. Não pode assumir-se, sob
pena de naufragar na busca por aquela paz que o mundo não
pode dar. Assim, quem quiser ganhar a sua vida irá perdê-la.

A diferença entre uma proposta e outra é mais que conceitual:


é prática. É na prática que o bem-estar transforma-se em
angústia inexplicável, o prazer, em vício, a independência, em
isolamento e a auto-suficiência, em arrogância destruidora. Na
prática, posses aprisionam em medos cada vez maiores, poder
substitui amor e a liberdade em relação a compromissos dá
lugar à prisão na irresponsabilidade de uma vida infrutífera.
Esse é o retrato de nossa geração. Esse é o drama da opção
pelo egocentrismo.

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Na prática da felicidade evangélica, por outro lado, o choro é a
porta para a consolação, a fome e a sede, os critérios de valor
da verdadeira saciedade, a perseguição, alternativa para o
milagre, e a humildade, o caminho para a intimidade. Feliz o
que morre para si mesmo e renasce para Deus. Sua vida é
afirmada, seu valor, confirmado, e sua paz, garantida. O
próprio Cristo do evangelho, em sua simplicidade e vitória,
torna-se o seu guardião. Nas palavras de C.S.Lewis: “A
obediência é o caminho da liberdade, a humildade, o caminho
do prazer e a unidade, o caminho que conduz à
personalidade.” Assim, quem perde a sua vida irá salvá-la.

Agostinho escreveu: “Alegrar-se de Deus, em Deus e por


Deus: isso é felicidade. Não há outra”. As pessoas que ainda
não descobriram tal verdade sofrem irremediavelmente as
frustrações de uma vida no engano. Os crentes que
abandonam tal verdade, fazendo do conceito mundano sua
confissão de fé, são como a porca lavada que volta a contorcer-
se na lama. Para eles valem palavras de Paulo aos gálatas: Ó
insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos
foi Jesus Cristo exposto como crucificado? [...] De Cristo vos
desligastes... da graça decaístes (3:1 e 5:4). Precisam
urgentemente de uma restauração.

Não se deixe enganar: não há bem-estar momentâneo que


compense o distanciamento definitivo de Deus. Está bem
quem está perto Dele. Não engane a si mesmo: não há bem-
estar que resista ao vazio de um peito carente de Deus e de sua
Palavra. Não ouça o canto da sereia demoníaca, vendedora de
promessas que não pode entregar. Lembre-se que, dentre
outras coisas, “feliz é o homem que não anda segundo o

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conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, seu prazer
está na lei do Senhor, na qual medita de dia e de noite” (Salmo
1:1-2). Faça o teste. Seja, de fato, muito feliz!

89
ESSE TAL

Implacável. Não encontro palavra mais apropriada. Seu rigor


sereno, seu ritmo firme, sua rotina imutável... Quem não se
impressiona com seu desdém frente aos problemas de quem
quer que seja? Não poupa ninguém, não faz acepção de
pessoas, não negocia valores. Segue seu caminho. Imponente.
Atinge a tudo e a todos, sem perguntar opinião.

Já tive raiva dele. Menino, joguei a culpa de minhas


frustrações e fracassos sobre seus ombros largos. Acusei-o de
ser curto demais, longo demais, rápido demais, lento demais.
Tentei aprisionar-lhe, e impor sobre ele minhas vontades.
Nunca funcionou. Saía sempre derrotado, envergonhado, com
mais raiva ainda. Nada parecia incomodar seu passo-a-passo
decidido e irritantemente simétrico. Duro na queda esse tal...

Aos poucos, sem que eu percebesse, ele foi moldando minhas


convicções e aparando as arestas do meu caráter. Aprendi a
respeitá-lo, mesmo sem compreendê-lo. Quisera ser como ele:
constante, inabalável, forte, e até sou, vez ou outra, naqueles
momentos bastante especiais que me proporciona, os quais ele
não grava, não congela, e nem eu. O que faço é aceitar sua
importância, seu status, sua verdade. Nunca volta atrás, esse
tal!

Acho que aprendi a lidar com ele. Sua oferta não é posse, é
oportunidade. Jamais prometeu submeter-se, mas nunca
deixou de apresentar-se como opção e novidade. Sua essência
é começo. Sua força, percepção. Que seria dele, não fosse

90
contado, avaliado, amado, odiado, mas, em hipótese alguma,
desprezado? De seu tamanho só sei o que tive, não o que terei.
Aproveito-o, reinventando a mim mesmo e minha relação com
ele. Provoco-o, fingindo, às vezes, que o dominei por
completo. Mas não chega a irritar-se comigo. É generoso esse
tal...

Sinto, contudo, que, um dia, romperemos. Entristeço-me.


Como será sem ele? Reflito, incapaz. Imaginação pequena essa
nossa. Pequenos nós! Nada alcanço, mas alegro-me, enfim.
Descubro, na certeza de sua ausência, uma presença. Quando
ele faltar, encontrarei Aquele que o criou, a quem se submeteu,
o qual nunca esteve nele contido, e que interveio em seu curso,
porém. E não poucas vezes! Houve uma... Ah!, essa uma... Fui
salvo ali. Amoroso Esse Tal! Senhor de tudo que aprendi a
amar e respeitar. Senhor do TEMPO. Senhor da VIDA. Senhor
meu.

Eternidade. Não encontro esperança mais apropriada...

91
CONTANDO OS DIAS, REMINDO O TEMPO

Aprendi com Rubem Alves que não se deve perguntar a uma


pessoa quantos anos ela tem, mas quantos ela já não tem mais.
Aquele número que indica sua idade consiste, na verdade, de
um tempo que já passou, não volta; não pode ser mudado e
sua história não pode ser reescrita. Os anos que qualquer de
nós ainda tem, pela frente, são uma incógnita; ninguém os
conhece nem pode dizer, ao certo, quantos são.

Compreender a própria idade como o conjunto daqueles anos


que já não temos muda nossa relação com a vida. Quão jovem
é uma pessoa? Até uma criança, que hoje brinca com toda sua
energia, pode não estar mais aqui no momento seguinte. Quão
velha é uma pessoa? Homens de oitenta anos podem ser
chamados a mudar o mundo, ainda que tenham biografias
acanhadas e sem grandes pretensões. O futuro pertence a
Deus. Exclusivamente.

Paulo escreveu aos cristãos efésios que vivessem como sábios,


não como ignorantes, remindo o tempo, pois os dias são maus
(5:15-16). A palavra remir, ligada ao verbo redimir, significa,
pelo termo grego que o apóstolo utilizou, “comprar de volta,
recuperar”. Indica a necessidade de assumirmos os desafios do
tempo presente, livres das cargas de um passado que já não
volta e confiantes a respeito de um futuro que será
desdobramento de nossas decisões e escolhas. Os dias são
maus, mas a sabedoria nos ajuda a desfrutá-los com graça,
alegria e vitória nas provações.

92
O agora se revela, então, tempo oportuno (interessante que, na
expressão “remindo o tempo”, Paulo tenha escolhido o
substantivo grego kairós – tempo especial – e não chronos –
tempo corrido). Quem vive o agora com sabedoria, reconhece
a finitude da vida e a malignidade do mundo, preferindo
semear para os relacionamentos e para a eternidade a entrar
na roda viva de uma busca alucinada por recursos, fama,
valorização e poder. Sua pátria está nos céus...

O sábio não pode dizer quanto tempo tem pela frente, mas
conhece o que tem pela frente. Sabe que é Deus quem o
aguarda, no futuro que Ele mesmo preparou para aqueles
cujos corações abriram-se para a sabedoria da fé e da confiança
em Sua salvação. Crê na obra redentora de Cristo, para quem o
tempo neste mundo foi brutalmente abreviado, mas para
quem também as portas da glória foram abertas de uma vez
por todas, fazendo dele o primogênito de muitos irmãos.

Enfim, reconhece que o próprio tempo será vencido, superado.


A eternidade não será um tempo sem fim, mas a ausência do
tempo. Será conhecida como o Dia que se chama Hoje!
Portanto, já começou para o cristão, que, de acordo com o
próprio Jesus, já não morre, mas passou da morte para a vida.
A eternidade é sua nova condição. Como afirmou Moltmann,
desfrutamo-la não segundo a extensão, como um viver sem
fim, mas segundo a profundidade. Paulo mencionou
“compreendendo a vontade do Senhor” e, ainda, “não
embriagando-nos com vinho, no qual há dissolução, mas
enchendo-nos do Espírito” (Efésios 5:17-18). Marcas da vida no
Reino Eterno.

93
Por hora, cabe-nos acolher o desafio da sabedoria e orar com o
salmista: “ensina-nos a contar os nossos dias, para que
alcancemos corações sábios” (90:12).

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AINDA CHEGO LÁ!

Paulo é uma das minhas referências. Não só pelo óbvio (foi


apóstolo de Cristo), mas pela força de suas convicções
harmonizada à leveza de sua personalidade. Mesmo na Bíblia,
talvez à exceção de José, Rute e Davi (não posso colocar Jesus
em nenhuma lista, você entende...), não encontro tantos
exemplos de pessoas que foram tão corajosas na fé, ousadas
nas decisões, quebrantadas nos confrontos e leves no trato com
a vida, as pessoas e as adversidades.

Paulo era diferente. Sua vida com Deus, inspiradora. Quem


mais diria, indiferente à importância que teve no cenário do
cristianismo iniciante, “miserável homem que sou” ou, ainda,
“sou o que sou pela graça”. Quem mais afirmaria: “não que
tenha alcançado ou que seja perfeito... mas uma coisa faço:
deixando as coisas que para trás ficam, avançando para as que
estão diante de mim, prossigo para o alvo, o prêmio da
soberana vocação em Cristo Jesus”. Paulo disse. Paulo
afirmou.

Às vezes, nas minhas reflexões, excluindo-se as cadeias e


açoites (porque de bobo só tenho a cara e o jeito de andar),
penso que ainda serei como Paulo. Ele mesmo desejou, certa
vez: “queria que todos fossem tal como sou, exceto pelas
minhas correntes”. Não porque fosse narcisista ou presunçoso,
mas porque podia dizer, sem constrangimentos: “sejam meus
imitadores como eu sou de Cristo”. Quem vive para Cristo não
teme a exposição. Brilha com a luz que vem do seu Senhor.

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Ainda chego à estatura de um Paulo. Ainda venço essa tendência
muito minha de olhar para trás com mágoas, remorsos,
melancolia. Passado não é carga, é caminho. Não fiz tudo que
gostaria ter feito. Errei, sim. Talvez, mais do que acertei. Fui
infantil, tantas vezes. Inconveniente, outras tantas. Injustiçado,
certamente. Prejudicado, sem dúvidas. Mas nunca uma vítima.
Isso, não. Aprendi com Jesus que “não cai um fio de cabelo da
cabeça se Deus não o permitir”. E também com o apóstolo: “todas
as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus”.

Ainda assumo o futuro com esperança e alguma


imprevidência. A vida não está em minhas mãos. Não é uma
competição. As pessoas não são minhas adversárias, ainda que
se esforcem por parecer. Qual o problema se, no balanço geral,
eu dar mais que receber? Qual o problema se, depois de
socorrer a tantos, não houver ninguém para me socorrer (Deus
estará lá, eu sei)? Qual o problema se eu suportar a todos e não
encontrar a quem me suporte? Fico, mais uma vez, com Paulo:
“sei em quem tenho crido e estou certo que é poderoso para
guardar o meu tesouro”.

Ainda compreendo as pessoas em suas angústias e verdades


mais incômodas. Eu me conheço. Se o Talmude diz: “quem
salva uma vida, salva o mundo inteiro”, eu digo – e já faz
algum tempo: “quem conhece a si mesmo conhece o mundo
inteiro”. São muitos os medos, os receios, os anseios, os sonhos
que cada pessoa carrega no peito. Carrego todos os meus (sou
o que sou pela graça, veja só). Não quero julgar. Não posso
julgar ninguém. Não quero condenar. Quem sou eu para
condenar alguém? Aprendi, novamente, com Jesus, que “não
se pisa a cana quebrada, nem se apaga o pavio que fumega”.

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Ainda aplaco esse fogo que consome por dentro quando
discordam das minhas idéias ou rejeitam-me as opiniões.
Ninguém é obrigado a seguir meus conselhos. Minha
autoestima não está ameaçada quando desprezam minhas
convicções. Não preciso elevar o tom de voz, argumentar com
rispidez ou depreciar as razões de quem me confronta.
Novamente, com Paulo: “se alguém pensa diferente, Deus o
instruirá”. Quem sabe não sou eu quem precisa de instrução?

Ainda aprendo a fechar a boca em nome de manter mais abertos


e atentos os ouvidos. Já percebi que ajudo mais quando ouço
que quando falo. Descobri, e a cada dia tento lembrar-me, que
as pessoas desfrutam mais daquilo que elaboram sob olhares
interessados, que daquilo que lhes digo motivado por desejos
de autoafirmação ou valorização pessoal. Não preciso
propagandear-me. Vou com Tiago: “todo homem seja pronto a
ouvir, tardio para falar e tardio para se irar”.

Ainda chego lá. Seja aqui, ainda, ou lá mesmo (o céu, ora).


Estou em processo. Não vou me lastimar pelos atrasos,
inconsistências, desvios ou frustrações. Deus é bom. Prefiro
comemorar as alegrias, vitórias, conquistas, perdão,
relacionamentos, etc. E aquela capacidade que o Espírito dá de
a gente levantar depois de cair. Repito o que disse Martinho
Lutero: “sei que ainda não sou quem deveria ser, mas também
sei que já não sou quem eu era!” Acho que Paulo concordaria.

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CONFISSÕES DE UM JOVEM PASTOR

Confesso que sou jovem demais para um texto de confissões.


Ainda que seja curto e sem maiores implicações. Não sei se é
prudente. Agostinho escreveu as suas já com alguma
maturidade, aos 43 anos de idade, aproximadamente.
Considerava-as muito mais uma iniciativa de adoração que de
culpa ou auto-exposição. Talvez por isso eu tenha criado
coragem: não quero considerá-las qualquer biografia ou
descrição de trajetória pessoal, mas uma declaração de
fraqueza que honre a Deus e ajude outros, sobretudo os que se
sentem como me senti em vários momentos dessa breve
história pastoral.
 
Confesso que não tinha ideia do peso que acompanha o
ministério pastoral. Não apenas aquele que resulta dos
sofrimentos em geral, participados pelas pessoas ao pastor em
quem confiam e que com elas também sofre, mas aquele que,
infinitamente mais pesado, resulta exatamente desta confiança,
que faz com que nos vejam como líderes que não somos, cheios
daquelas qualidades idealizadas que não temos. Superam-nos,
em busca do “pastor”. Não lhes importa nossa juventude; não
porque desprezam-na, mas porque não lhes comunica o que
deveria. Chamam-nos de “pastor” e “senhor”, mesmo quando
poderiam ser nossos pais. Confiam-nos suas almas de
imediato, embora demoremos para nos perguntarmos: quem
somos nós – ou o que temos nós – para cuidarmos de tantas?
 
Confesso que almejava o lado aparentemente mais glamouroso
do ministério pastoral. Acreditava não haver nada mais

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entusiasmante que a pregação, até começar a lidar com sua
real dificuldade: o que dizer, semanalmente, a um mesmo
povo, que torna-se cada dia mais exigente e com memória
cada vez mais fiel? Erasmo de Rotterdam diria: “odeio o
ouvinte de memória fiel”. Cri que daria conta, tranquilo, dos
aconselhamentos, até começar a perceber que o problema das
pessoas não é a ignorância sobre as soluções disponíveis, mas
uma infinidade de medos a que não temos acesso, senão com
muita paciência, acolhimento e amor. Acreditava que
organizaria facilmente os ministérios e departamentos da
igreja, conforme os muitos manuais à disposição para
qualquer tipo de visão eclesiástica, até que comecei a perceber
que não é organização que falta à igreja, mas
comprometimento.
 
Confesso que me vi sozinho, inúmeras vezes. Encontrei mais
concorrentes que amigos entre aqueles que, como eu,
lançaram-se ao desafio do ministério. Comportei-me também,
muitas vezes, como um competidor, em busca da maior igreja,
da mais numerosa membresia, da maior arrecadação e dos
melhores contribuintes. Alimentei certa inveja, quando tais
resultados se faziam presentes no arraial do colega. Embora
tenha sido politicamente correto, sem jamais ultrapassar certos
limites éticos e de convivência, reconheço que Deus sabe o que
se passou em meu coração nessa complicada área das
realizações e dos resultados. Chorei diante Dele, mas não pude
compartilhar minhas dores. Demorei para encontrar em quem
confiar, pessoas que não exporiam meus dramas juvenis para
minar as bases de meu pastorado.
 

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Confesso que, desde o começo, faltaram referenciais mais
sólidos para a construção de meu caráter. Não somente
morais, pois que não foram poucos os escândalos que vi
envolvendo pastores e líderes, mas inclusive de paciência e
incentivo. Por que os mais velhos não podem relevar a
mocidade dos mais novos? Por que exigem tanto? Olham-nos
com evidente desconfiança, enciumados, afastando-nos de si
mesmos e de seus ambientes de poder ou influência. Não
poderiam ensinar-nos? Compartilhar conosco suas
experiências e descobertas? Poupar-nos dos mesmos erros que
cometeram, para que possamos cometer erros novos?
Confesso que precisei de guias mais confiáveis e amorosos,
dispostos a abençoar meu ministério sem que desejassem se
impor sobre mim ou desqualificar-me diante das ovelhas que
Deus mesmo me confiou.
 
Confesso, depois de não muitos anos, que não tenho as
respostas que achava ter, lá no começo. Há muitas frustrações
e desilusões reservadas para os pastores. Pensei em desistir e,
às vezes, até hoje, ainda penso. Creio que Karl Barth tinha
razão quando disse que “os apóstolos e profetas não querem
ser o que são; eles têm de ser. E, todavia, eles são”. Agora
entendo o que Tiago quis dizer quando orientou-nos a não
aspirarmos, não muitos de nós, a sermos mestres. Identifico-
me até com Jeremias, que derramou-se diante de Deus,
seduzido pela vocação e apavorado com suas implicações,
oscilando entre o não querer falar e a percepção de um fogo
que o queimava até que falasse. Deus é um fogo consumidor.
Não nos queima por que não somos o que Ele quer que
sejamos, mas até que o sejamos. E, assim, vamos de dor em
dor, de luta em luta, de fé em fé.

100
 
Mas confesso que, apesar de toda angústia envolvida, é
maravilhoso estar onde se crê ser a vontade de Deus. O
resultado que vale é um coração confiante na graça de Cristo e
na vitória de Sua cruz. O caminho Dele também não foi fácil.
Oposições, acusações, traições e negações de toda ordem
marcaram sua trajetória terrena. Deus, porém, o exaltou
sobremaneira, dando-lhe um nome acima de todo o nome,
para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre. A começar
pelos nossos joelhos de pastores, nem sempre tão prontos a
encontrar o solo da oração e do quebrantamento.

Jesus é nosso modelo. Sua humildade e obediência, nossas


metas. Seu Espírito, nossa força. Deus é fiel. Cuida de nós e
supre nossas carências. Sem falar nas pessoas a quem Ele
levanta para, contra tudo e contra todos, nos abençoar. No fim
das contas, são muitas. Não esperam nada em troca e dão-nos
o melhor de seus corações. Renovam-nos a esperança e a
disposição para seguir em frente. São verdadeiras dádivas,
amigos mais chegados que irmãos.
 
Deus os conserve e a nós, na missão de implantar o Seu Reino
e morrer para o mundo. A cada dia. Até aquele dia. Maranata.

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