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Projeto Democratização da Leitura e Projeto Revisoras Traduções.

Anne Perry
Série Thomas Pitt, Livro 05
Os Roubos de Ruthland Place
Projeto Democratização da Leitura & Projeto Revisoras Traduções

Informações

Autor(a): Anne Perry


Título da Série: Thomas Pitt
Título da Série Traduzido: Thomas Pitt
Livro, Título Traduzido: Livro 05, Os Roubos de Ruthland Place
Título Original: Ruthlannd Place
Ano: 1983

Sinopse

Para quem gosta de historia de detetive é um prato cheio. Nada de romance embora
a mocinha acabe por encontrar seu mocinho. Aliás, a mocinha é muito engraçada. É do
tipo que primeiro fala e depois pensa. Os diálogos com o vigário e avó são ótimos. Cinco
crimes que devem ser feitos por alguém que se conheça. Mas quem? São todas moças e
bonitas, mas podem ser tanto aristocratas como criadas. Eu no começo achei que era uma
pessoa. Passei perto. No final já estava desconfiada de quem era o criminoso. Um bom
passatempo.

Créditos

Disponibilização: PRT

Revisão Inicial: Edit Suli

Revisão Final: PDL

Formatação: PDL

Logo / Arte: Projeto Revisoras Traduções e PDL

Anne Perry – Thomas Pitt 05 – Os Roubos de Rutland Place


Projeto Democratização da Leitura & Projeto Revisoras Traduções

Comentário da Revisora:

Pitt é chamado para investigar uma morte que a principio parece ser um suicídio por
envenenamento e depois se revela como um assassinato. A mulher morta é vizinha da
mãe de Charlotte que já a tinha chamado para desvendar o roubo de um medalhão
comprometedor.
Esse e outros roubos misteriosos misturam-se com a investigação do assassinato.
Teriam alguma coisa a ver com a morta? Seria esta uma olheira que descobriu algo muito
comprometedor de alguém? E a morte de outra das vizinhas teria alguma coisa a ver com
o caso? E o que tem a ver a paixão da mãe de Charlotte por um homem atraente?
Emily e Charlotte novamente se enredam na investigação de Pitt principalmente por
causa da paixonite de sua mãe.
O acidente com um dos moradores complica mais ainda o caso e finalmente há uma
reviravolta, uma acusação bem fundada e um final surpreendente !
Um livro cheio de mistérios para quem gosta de policiais. Gostei e fiquei tentando
desvendar esses mistérios.

Dedicatória

Dedicado a:
meu pai, com amor,
Judy, com amizade,
à cidade de Toronto, com gratidão
Anne Perry

Anne Perry – Thomas Pitt 05 – Os Roubos de Rutland Place


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Capítulo 1

Charlotte Pitt pegou a carta e, surpreendida, olhou ao mensageiro. O moço lhe


sustentou o olhar com olhos inteligentes. Aguardava possivelmente uma gorjeta?
Charlotte esperou que não fosse assim. Fazia pouco que Thomas e ela mudaram
àquela nova casa, maior e espaçosa, com dormitório suplementar e um pequeno jardim. A
mudança lhes tinha exigido gastar todas suas economias.
—Haverá resposta, senhora? -perguntou o menino, divertido pela lenta reação de
Charlotte. Estava acostumado a trabalhar em zonas mais abastadas da cidade, onde as
pessoas tinham seus próprios mensageiros. Contudo, suas longínquas aspirações como
adulto se pareciam com aquilo: uma casa encostada de sua propriedade, com uma bela
escada de acesso, cortinas nas janelas, flores e uma mulher formosa que lhe abrisse a
porta e lhe desse as boas-vindas ao termo da jornada de trabalho.
—OH! -Charlotte suspirou aliviada-. Um momento. -Rasgou o envelope, tirou uma
única folha e leu:
Rutland Place, 12, Londres
3 de março de 1886
Querida Charlotte:
Acaba de acontecer algo estranho e inquietante, e agradecer-lhe-ia que me
aconselhasse. Tendo em conta sua experiência e demonstrada habilidade em assuntos de
aparência trágica ou criminosa, talvez inclusive esteja disposta a me ajudar.
Não é que isto tenha relação com os atrozes casos em que se viu envolvida no
passado, no Paragon Walk ou naquilo tão horrível do Resurrection Row. Graças a Deus,
trata-se de um simples roubo.
Não obstante, dir-lhe-ei que o objeto roubado possui para mim um grande valor
sentimental. Daí que sua perda me aflija mais do que o normal, e que esteja tão ansiosa
por recuperá-lo.
Quererá me ajudar, querida? Poderá pelo menos me aconselhar? Sei que agora
dispõe de uma criada capaz de ocupar-se da Jemima em sua ausência. Se me permitir,
enviar-lhe-ei minha carruagem amanhã as onze para que almoce; assim falaremos deste
desventurado incidente. Espero com impaciência o momento de vê-la.
Sua mãe que te quer,
CAROLINE ELLISON

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Charlotte dobrou a carta e voltou a olhar o moço.


—Aguarda um momento e escreverei a resposta - disse com um amável sorriso.
Pouco depois lhe enviou uma resposta afirmativa.
—Obrigado, senhora. -O moço partiu; ao que parecia não esperava nada mais dela.
Sem dúvida era costume que a gorjeta corresse a cargo do remetente. De todo modo,
era um menino suficientemente ardiloso para saber com exatidão do que dispunha cada
qual, e até que ponto estavam dispostos a lhe dar uns pennies.
Charlotte fechou a porta e cruzou o corredor em direção à cozinha, onde sua
pequena filha Jemima, de dezoito meses de idade, mordiscava um lápis sentada em seu
berço. Charlotte o tirou das mãos e entregou um cubo de cores.
—Disse-lhe que não lhe dê lápis, Gracie - disse a jovem criada, que estava cortando
batatas-. Não sabe para que servem. A única coisa que faz com eles é comê-los.
—Não sabia que o tivesse pego, senhora. Esses barrotes permitem-na esticar muito
os braços. Ao menos assim se mantém longe da carvoeira ou o forno.
No corrimão do berço havia um ábaco com contas de vivas cores. Charlotte se
agachou para agitá-lo suavemente; Jemima, imediatamente interessada, ficou em pé. Sua
mãe começou a passar as contas uma a uma, enquanto a menina, muito concentrada,
repetia os números olhando alternativamente ao Charlotte e ao ábaco, esperando atrás de
cada palavra um sinal de aprovação.
Charlotte não estava muito atenta a sua filha. Pensava sobre tudo em sua mãe.
Em Cater Street, tanto ela como seu pai tinham reagido muito bem ante a notícia de
que ia casar se e nada menos que com um policial. Edward tinha tentado discutir um
pouco, perguntando-lhe se tinha certeza total do que ia fazer. Caroline, em troca, deu-se
conta a princípio de que a mais inquieta de suas filhas tinha encontrado finalmente a um
homem a quem amar, e que as dificuldades que pudesse suportar semelhante descida em
escalão social e possibilidades econômicas seriam para ela mais fáceis de superar que um
matrimônio de conveniência com alguém que não lhe inspirava amor nem interesse nem
respeito.
Entretanto, e apesar do muito que seus pais continuavam querendo-a, não deixava
de ser estranho que Caroline chamasse Charlotte por um motivo tão insignificante como
um roubo de pouca importância. No fim de contas era algo que acontecia diariamente. Se
se tratava de uma jóia sem valor, sem dúvida uma das criadas a tinha tomado emprestada
por uma noite. Com a ajuda de uma ou duas insinuações bem dirigidas, voltaria a aparecer

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imediatamente. Caroline tinha tido criada durante toda sua vida, e teria sido de esperar que
soubesse enfrentar sem ajuda com um assunto desse tipo.
Apesar de tudo, Charlotte decidiu ir. Seria uma maneira agradável de passar o dia,
sobre tudo depois de tantas semanas de trabalho duro pondo ordem na nova casa.
—Amanhã sairei, Gracie -disse-. Minha mãe me convidou a almoçar.
Deixaremos as cortinas do patamar para outro dia. Você se ocupe da Jemima, e
limpe o chão e a despensa de madeira do canto. Use muito sabão. Continua me
parecendo que cheira um pouco estranho.
—Sim, senhora. Também há roupa que lavar. Quer que leve a Jemima de passeio se
fizer bom tempo?
—Sim, por favor. É uma idéia excelente.
Charlotte se levantou. Como no dia seguinte ia estar fora até tarde, mais valia
apressar-se com o pão, e depois ver que aspecto tinha o melhor de seus vestidos de dia
depois de todo um inverno no guarda-roupa. Gracie tinha só quinze anos, mas era uma
garota habilidosa e adorava fazer-se encarregada de Jemima.
Charlotte já lhe tinha avisado que em uns seis meses ia haver outro bebê que cuidar.
Nas condições do emprego estava especificada sua obrigação de lavar a roupa do
novo bebê, além das usuais trabalhos de cozinha e os afazeres domésticos.
Longe de intimidar-se ante aquela perspectiva, Gracie parecia tomá-la com
entusiasmo.
Provindo de uma família numerosa, sentia falta das constantes exigências e ruidosa
companhia das crianças.
Um pouco antes das seis, Pitt chegou à casa do trabalho, bastante cansado.
Tinha passado o dia perseguindo infructuosamente a um par de ladrões
especializados em roubar das carruagens. Não tinha conseguido mais que uma dúzia de
descrições diferentes. Um inspetor com seu histórico não se teria visto misturado nesse
assunto a não ser porque uma das vítimas era um cavaleiro de título, sem muita vontade
de ter entendimentos com a polícia.
O cavalheiro tinha perdido um relógio de bolso de ouro, herança de seu padrasto.

Charlotte deu as boas-vindas a seu marido com aquela mescla de carinho e ternura
que sentia sempre ao ver seu desalinhado aspecto, a gola torcida de sua camisa, a jaqueta
cheia de rugas. abraçaram-se durante um longo minuto.
Depois lhe serviu um prato de sopa quente, e em seguida o resto do jantar. Não quis

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incomodá-lo com um assunto tão corriqueiro como o do desaparecido objeto de sua mãe.
Na manhã seguinte, em seu dormitório, Charlotte ficou frente ao espelho para ajustar
o lenço ao pescoço, ocultando a marca que tinha ficado ao tirar o colarinho do ano anterior.
Depois colocou seu melhor broche de camafeu. Achou-se atraente.
Apesar da gravidez de três meses, ainda não se apreciava nenhuma mudança em
sua silhueta; com o costumeiro espartilho de baleias, capaz de impor às cinturas mais
recalcitrantes sua elegante curva (espartilho muito incômodo, entretanto, para as mulheres
de formas mais generosas, e quase insuportável para as gordinhas),
Charlotte parecia tão esbelta como sempre. O vestido de lã verde escuro ressaltava
seu suave tom de pele e seu brilhante cabelo. O lenço atenuava a severidade do vestido,
lhe dando um toque um pouco mais feminino. Charlotte não queria que ninguém pensasse
que tinha descuidado de seu aspecto, e menos que ninguém sua mãe.
A carruagem chegou às onze. Em meia hora esteve do outro extremo da cidade e,
depois de percorrer ao trote toda a aprazível extensão do Lincolnshire Road, chegou ao
Rutland Place, tranqüila praça ladeada de árvores.
Deteve-se frente ao número 12. O lacaio abriu a porta e ajudou ao Charlotte a descer
à calçada molhada.
—Obrigado - disse ela sem olhar ao redor, como se estivesse perfeitamente
acostumada a aquele lugar; de fato o tinha estado até só alguns anos atrás.
O mordomo abriu a porta antes que ela chegasse a tocá-la.
—Bom dia, senhorita Charlotte - disse com uma leve inclinação da cabeça.
—Bom dia, Maddock. -Charlotte lhe sorriu. Conheciam-se desde que ela tinha
dezessete anos, quando ele começou a trabalhar como mordomo da família no Cater
Street, antes da série de crimes durante os quais tinha conhecido ao Pitt e se apaixonara.
—A senhora Ellison está no salão, senhorita Charlotte. -Maddock a precedeu com
passo ágil para lhe abrir a porta.
Caroline estava de pé em meio da sala. Atrás dela, um fogo chispava na lareira. Um
ramo de narcisos enchia de reflexos dourados a polida superfície da mesa.
Caroline usava um vestido de tom pêssego, suave como as cores do entardecer; sem
dúvida um vestido caro para sua atual situação econômica.
Em seu escuro cabelo não se viam mais de uma dúzia de fios brancos. Em seguida
se adiantou.
—Querida, me alegro de vê-la! Tem um aspecto esplêndido. Aproxime-se e
esquente-se um pouco. Não entendo que sendo primavera continue fazendo este frio.

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Tudo está florido e cheio de vida, mas o vento corta, como uma faca. Obrigado, Maddock.
Almoçaremos dentro de uma hora.
—Muito bem, senhora. -O mordomo fechou a porta atrás dele. Caroline rodeou com
seus braços ao Charlotte, estreitando-a com força.
—Deveria vir mais freqüentemente, Charlotte. Sinto sua falta. Ultimamente Emily está
tão ocupada com seu círculo social que mal a vejo.
Charlotte respondeu ao abraço e logo retrocedeu. Emily, sua irmã menor, casara-se
com um membro da aristocracia, e desfrutava de todos seus privilégios. Ninguém queria
falar da terceira irmã, Sarah, que tinha morrido de forma tão espantosa no Cater Street.
—Enfim! Sente-se, querida. -Caroline se instalou no sofá, enquanto Charlotte se
sentava em uma poltrona frente a ela-. Como está Thomas?
—Muito bem, obrigado. E também Jemima. -Charlotte se antecipou à esperada fileira
de perguntas-. A casa é muito agradável e a nova criada é muito satisfatória.
Caroline sorriu.
—Alguma vez mudará, não é, Charlotte? Continua dizendo o que lhe ocorre sem
refletir nem um segundo. Tem a sutileza de uma locomotiva! Não sei o que teria feito com
você se não tivesse se casado com o Thomas Pitt.
Charlotte lhe dedicou um amplo sorriso.
—Ainda me estaria arrastando de festa em festa, cada uma mais sofisticada,
esperando convencer à mãe de algum desafortunado jovem de que em realidade sou
melhor do que pareço.
—OH, por favor!
—O que lhe roubaram, mamãe?
—Querida, asseguro-lhe que não entendo como acaba sempre averiguando tudo. Se
parece incapaz de convencer a um policial de que te dê à hora!
—Não estranharia, mamãe. Os policiais estão sempre dispostos a dar a hora, no
improvável suposto de que saibam. Quando quero posso ser muito sutil.
—Então mudou muito ultimamente!
—O que perdeu, mamãe?
O rosto de Caroline mudou e seu sorriso se apagou. Vacilou procurando as palavras
exatas.
—Uma jóia. Um pequeno medalhão pendendo de uma argola de ouro. Não tinha
grande valor, naturalmente. Era bem pequeno, e nunca pensei que fosse de ouro maciço.
Mesmo assim era muito formoso. Tinha uma pérola engastada e, como é lógico, abria-se.

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Charlotte disse a primeira coisa que lhe ocorreu.


—Talvez uma das criadas o tenha tomado emprestado com a intenção de devolvê-lo
e tenha esquecido.
—Mas querida, acha que não pensei nisso? -Por seu tom, Caroline parecia mais
inquieta que irritada-. Nenhuma das garotas tinha a tarde livre desde o momento em que o
vi por última vez até que senti falta dele. Além disso, não acredito que o fizessem. Para
ajudante de cozinha não teria apresentado a oportunidade, sem contar que tem só
quatorze anos e não me parece que pense nessas coisas. A copeira –esboçou um débil
sorriso- é tão formosa como costumam ser as de seu ofício.
Não sabia que Maddock tivesse tão bom gosto para escolher ao pessoal! A natureza
foi bastante generosa com ela e não precisa polir-se com jóias roubadas. Quanto a minha
criada pessoal, merece-me total confiança. Tive a Mary a meu lado desde que nos
mudamos aqui. Veio de parte de lady Buxton, que a conhecia desde menina. É a filha de
seu cozinheiro. Não - voltou a franzir o sobrecenho-, receio que foi alguém alheio a casa.
Charlotte experimentou em outra direção.
—Alguma de suas criadas tem noivo, ou pretendentes?
Caroline arqueou as sobrancelhas.
—Não que eu saiba; Maddock é muito estrito. Em todo caso, custa-me imaginar que
entrassem aqui e chegassem até meu quarto de vestir.
—Suponho que terá perguntado ao Maddock.
—Naturalmente! Charlotte posso me ocupar do mais claro sem sua ajuda. Se fosse
tudo tão simples, não te teria incomodado. -Aspirou profundamente, e depois exalou pouco
a pouco, movendo ligeiramente a cabeça-. Perdoe-Me. É que se trata de um assunto tão
lamentável! Não concebo que o tenha feito um de meus amigos, ou alguém de sua família.
E, entretanto, que outra possibilidade fica?
Charlotte olhou a sua mãe: tinha os dedos entrelaçados no regaço e espremia o
lenço com tal força que o tecido parecia a ponto de rasgar-se. Agora se dava conta do
dilema. Se se decidisse pôr uma denúncia (ou inclusive se se limitava a fazer pública a
perda da jóia), semearia a dúvida entre seus conhecidos. Todos os vizinhos do Rutland
Place acreditariam que Caroline suspeitava deles e mais de uma velha amizade podiam
turvar-se.
Talvez alguns criados perdessem seu emprego ou, pior ainda, sua reputação. Como
quando se atira uma pedra à água, a onda expansiva daquele desagradável assunto se
estenderia até envenenar tudo.

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—Trata de esquecê-lo, mamãe -se apressou a dizer Charlotte e lhe pegou a mão-.
Recuperar a jóia não te compensaria do dano ocasionado por uma investigação. Se
alguém te perguntar, diga que o alfinete estava frouxo e que deve ter se soltado. Em cima
do que o levava?
—Na jaqueta que faz jogo com meu vestido de rua arroxeado.
—Então não é de estranhar. Pode ter caído em qualquer lugar, inclusive na rua.
Caroline negou com a cabeça.
—O alfinete era excelente. Além disso, tinha uma correntinha com um pequeno
fechamento suplementar de segurança que eu nunca esquecia de ajustar.
—Por Deus, não há necessidade de que mencione isso se lhe perguntarem!
Embora duvide que o façam. Quem lhe deu de presente isso? Papai?
O olhar de sua mãe se deslocou levemente por cima do ombro do Charlotte e
contemplou como, depois da janela, o sol primaveril salpicava de luz o arbusto de louro.
—Não; a ele não teria reparo em explicar, Foi sua avó, num Natal passado. E já sabe
que memória tem!
Charlotte teve a estranha sensação de que algo importante lhe escapava.
—Tenho certeza de que a avó perdeu algo alguma vez em sua vida - respondeu. -
Explique-lhe antes que saiba. Provavelmente reaja de forma irada, como se fosse
impossível que lhe acontecessem tais coisas; mas poderá suportar, tenho certeza.
Além disso, de qualquer modo acabaria por ficar de mau humor em algum momento -
sorriu-.
Assim terá uma boa desculpa.
—Sim - disse Caroline piscando, sem muita convicção.
Charlotte passeou seu olhar pelo aposento: cortinas verde pálido, tapete macio, um
ramo de narcisos, quadros nas paredes... Em uma esquina, o piano que Sarah costumava
tocar, coberto com fotografias da família. Sua mãe estava sentada na beira do sofá, como
se se achasse em um lugar desconhecido e se mantivesse em guarda.
—O que ocorre, mamãe? -perguntou Charlotte com certa brutalidade-. Por que lhe
importa tanto esse medalhão?
Caroline contemplou as mãos, fugindo o olhar de sua filha.
—Dentro havia uma lembrança, uma lembrança... bastante pessoal. Seria muito...
grave para mim se caísse em mãos de... alguém. Era algo de índole sentimental.
Certamente me entende. O mau é ignorar quem o tem! É como saber que um
desconhecido lê suas cartas.

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Charlotte suspirou com alívio. Embora não soubesse bem o que tinha temido, de
repente seus músculos relaxaram. Agora que o entendia, compreendia que tudo era muito
simples.
—Ah. Por que não começou por aí? -Não tinha sentido sugerir que possivelmente o
ladrão não o tivesse aberto. O primeiro que faz qualquer um ao achar um medalhão é olhar
seu conteúdo-. Talvez naquele dia esquecesse de fechá-lo. E se caiu, a fim de contas?
Suponho que terá examinado a fundo a carruagem...
—Sim, fiz isso imediatamente.
—Quando recorda tê-lo visto pela última vez?
—À tarde em que fui a uma reunião em casa do Ambrosine Charrington. Vive no
número dezoito. Uma mulher encantadora! -Caroline sorriu-. Gostaria muito dela, é uma
excêntrica.
—Seriamente? Em que sentido?
Caroline a olhou com surpresa.
—OH, é uma pessoa de tudo respeitável! Seu avô era conde e seu marido é Lovell
Charrington, um homem notável. A própria Ambrosine foi apresentada na Corte quando fez
sua apresentação. Isso faz muito, claro, mas segue tendo bons contatos.
—Não parece muito excêntrica - disse Charlotte, pensando que provavelmente para
sua mãe a palavra "excêntrica" tivesse um significado muito diferente que para ela.
—Gosta de cantar - explicou Caroline-. Canções muito estranhas. Não me ocorre
onde pôde aprendê-las. Também é exageradamente desorientada. Esquece inclusive
coisas que uma mulher de boa posição deve ter sempre pressente: quem foram às visitas
da última semana, quem está aparentado com quem... de vez em quando comete os mais
assombrosos equívocos.
Charlotte sentiu imediata simpatia por aquela mulher.
—Melhor para ela. Deve ser divertido. -Recordou as intermináveis tardes anteriores
a seu matrimônio, quando Caroline levava a suas três filhas para visitar as mães de
homens casadouros. Sentadas em poltronas acolchoadas, bebiam chá morno enquanto as
mães comparavam ganhos, elegância no vestir, brancura de pele e simpatia.
Enquanto isso, as filhas se perguntavam quem seria o próximo jovem a quem iriam
ser apresentadas, e quem a próxima candidata a sogra que, com olhar agudo, ia examiná-
las. A lembrança a estremeceu. Imaginou ao Pitt em seu escritório com chão de linóleo,
frente a sua escrivaninha carregada de papéis; imaginou por becos e casas de vizinhos,
perseguindo falsificadores e traficantes de objetos roubados, e só muito de vez em quando

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em bairros elegantes atrás de ladrões de bancos e desfalcadores, talvez inclusive de


algum assassino.
—Charlotte? -A voz de sua mãe a devolveu a aquela confortável sala de estar do
Rutland Place.
—Sim, mamãe. Talvez seja preferível que não o mencione a ninguém. No fim de
contas, se alguém o roubou será difícil que o admita. Mas se o encontra uma pessoa
decente e decide devolvê-lo, não acredito que lhe ocorra examinar algo tão pessoal. E se o
fizesse não lhe prestaria muita atenção. Não temos assuntos privados?
Caroline sorriu forçadamente, passando por cima do fato de que o ladrão seria
incapaz de identificar à proprietária sem a prévia abertura do medalhão em busca de um
nome gravado.
—Sim, claro. -ficou em pé-. Bem, já é hora de almoçar. Está estupenda, querida, mas
tem que vigiar sua alimentação. Recorde que o que come não é só para você!
O almoço foi delicioso, muito mais que o que Charlotte teria comido em casa – já que
ao meio dia costumava contentar-se com algo leve. Comeu com apetite. Depois saíram
para o jardim para tomar ar. Ao amparo das fachadas, o clima era muito agradável.
Pouco antes das três voltaram para o salão. A primeira visita da tarde se apresentou
passada uma meia hora.
—A senhora Spencer-Brown - anunciou à copeira. - Devo dizer que está em casa?
—Sim, naturalmente - assentiu Caroline. Quando a moça saiu da sala, disse à
Charlotte-: Vive justo em frente, no número onze. Seu marido é um autêntico chato, mas
ela é muito vivaz e bonita.
A porta voltou a abrir-se e a copeira fez passar à convidada. Teria uns trinta e quatro
anos. Era muito esbelta, de traços agradáveis. Charlotte jamais tinha visto um pescoço tão
longo e estilizado. Seus loiros cabelos estavam recolhidos sobre a nuca em um coque à
última moda. Estava vestida de renda clara.
—Mina, querida, que alegria vê-la! -disse Caroline com jovialidade, como se nada a
tivesse inquietado em todo o dia-. Sua visita é muito oportuna.
Mina se voltou para Charlotte, com um brilho no olhar.
—Acredito que não conhece minha filha, a senhora do Thomas Pitt. –Caroline
efetuou as apresentações de rigor-. Charlotte, querida, esta é minha amável vizinha, a
senhora Spencer-Brown.
-Como está, senhora -Charlotte inclinou levemente a cabeça.
Mina respondeu com o mesmo gesto.

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—Tinha tanta vontade de conhecê-la! -disse, esquadrinhando Charlotte.


Parecia tomar nota mentalmente de todos os detalhes do vestido, das botas
levemente desgastadas até o bonito penteado do cabelo, como querendo julgar a perícia
de sua criada (e daí deduzir o nível geral de sua vida).
Acostumada a semelhantes exames, Charlotte o suportou sem pestanejar.
—É muito amável - respondeu com um sorriso-. Estou convencida de que se tivesse
ouvido falar mais de você estaria igualmente impaciente por conhecê-la. -Sabia que
Caroline a estava observando com inquietação. Charlotte continuou sorrindo, cada vez
com maior descaramento-. Mamãe é muito afortunada de ter como vizinha a uma pessoa
tão simpática. Ficará para tomar o chá conosco, não é?
Mina certamente pensava ficar, mas ficou perplexa ao ver que falavam do assunto
quando mal acabava de entrar.
—Pois... sentir-me-ia honrada, senhora Pitt; agradeço. -sentaram-se todas de uma
vez, Mina em frente à Charlotte a fim de poder observá-la com dissimulação-. É a primeira
vez que a vejo no Rutland Place. Vive muito longe?
Charlotte tomou cuidado de não mencionar a Jemima como desculpa, pois as
mulheres da posição de Mina não eram obrigadas a cuidar de seus filhos.
Primeiro se ocupava deles uma ama, aos cinco ou seis anos uma babá, e finalmente
uma governanta ou preceptora.
—Não muito longe -respondeu-. Mas já sabe, sempre se acaba freqüentando seu
círculo mais próximo.
Caroline fechou os olhos. Charlotte ouviu em seus lábios um tênue suspiro.
Mina ficou perplexa por uns instantes. A resposta não a tinha satisfeito e tampouco
dava alguma pista.
—Sim, claro -disse. Respirou fundo, alisou as saias e voltou ao ataque-. Tivemos o
prazer de conhecer sua irmã, Lady Ashworth. Uma pessoa encantadora.
Insinuava deste modo que se uma pessoa como Emily, de tão alta categoria social,
conseguia achar tempo, também Charlotte deveria ser capaz de fazê-lo.
—Tenho certeza de que minha irmã também o pensa de você - Charlotte sabia que
sua irmã se teria aborrecido como uma ostra, mas Emily sempre tinha tido talento para
dissimular suas emoções.
—Assim o espero - respondeu Mina-. O senhor Pitt tem interesses no centro?
—Sim - disse Charlotte, fiel à verdade-. Suponho que agora estará lá.
Caroline se afundou um pouco mais na poltrona, como querendo fingir que estava

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ausente.
O rosto de Mina se iluminou.
—Seriamente? Muito sensato de sua parte! Um homem ocioso é presa fácil para
companhias pouco recomendáveis, e pode acabar esbanjando tempo e dinheiro. Não
acha?
—Não tenho a menor duvida -disse Charlotte, perguntando-se o que teria ocasionado
aquele comentário.
—A cidade também tem suas armadilhas, claro - prosseguiu Mina-. Nesta mesma
praça há gente de costumes estrambóticos. Sempre estão ocupados nas ruas do centro.
Mas é natural que os jovens façam essas coisas, e em segundo os quais até é de esperar.
Já se sabe, os antecedentes familiares sempre influem!
Charlotte ignorava totalmente a que se referia.
Sua mãe se levantou e, com tom quase inaudível e expressão serena, disse:
—Se se referir ao Inácio Charrington, consta-me que tem amigos no centro. Sem
dúvida gosta de almoçar com eles de vez em quando, ou possivelmente ir ao teatro, a
concertos...
Mina arqueou as sobrancelhas.
—Certamente. Só espero que tenha escolhido com prudência, e que essas pessoas
mereçam sua amizade. Você não conheceu a pobre Ottilie, não é?
—Não - disse Caroline.
Mina enrugou o rosto em uma careta de comiseração.
—A pobrezinha morreu no verão anterior antes que você se instalasse aqui, se minha
memória for boa. Era jovenzíssima, não mais de vinte e três anos.
Charlotte passeou seu olhar de uma a outra interlocutora, na espera de alguma
elucidação.
—Não, vocês não a conheceram... -disse Mina, agarrando na hora a oportunidade-.
Era a filha do Ambrosine Charrington, a irmã do Inácio. Uma história trágica olhe-se por
onde se olhe. No verão foram ao campo passar algumas semanas. Ottilie estava em
perfeito estado de saúde quando partiram, ou pelo menos o parecia. Então, nessas duas
semanas, morreu. Que espanto!
Todos ficamos aniquilados!
—Quanto o sinto! -Charlotte o disse sinceramente. Aquela história de uma vida
truncada em sua plenitude impressionava, entre tanto palavrório vão de alta sociedade-.
Deve ter sido muito doloroso. Para sua família, quero dizer...

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Os finos dedos de Mina voltaram a passear por sua saia, alisando-a ainda mais sobre
os joelhos.
—Suportaram-no com a maior integridade. -Suas formosas sobrancelhas se
levantaram, como se o fato seguisse a surpreendessem. - É impossível não admirá-los,
particularmente ao Ambrosine, a senhora Charrington. Viveu a tragédia com tanta
dignidade... Se não tivesse presenciado os acontecimentos, asseguro-lhe que chegaria a
duvidar de que tivesse acontecido. Jamais ouvirá sua família falar dela, sabe?
—Mas a ferida continua aberta -respondeu Charlotte-. É impossível esquecer, por
muito que se finja ser valente.
—OH, céus! -Mina perdeu a compostura-. Espero não havê-la incomodado, senhora
Pitt! Não era minha intenção despertar lembranças dolorosas.
Charlotte lhe sorriu, afastando Sarah de seu pensamento e esperando que sua mãe
tivesse feito outro tanto.
—Jamais me ocorreria tal coisa - disse com suavidade-. Suponho que todos
perdemos a alguém em um momento ou outro. Duvido que exista uma só família britânica
que não tenha visto como a morte arrebatava a um dos seus.
Antes que Mina tivesse encontrado uma fórmula adequada para mostrar sua
conformidade de parecer, a porta do salão se abriu. Uma mulher de avançada idade entrou
na sala com expressão de irritação. Um bonito xale de renda caía sobre seus ombros, e
suas negras botas brilhavam como espelhos.
—Boa tarde, senhora Spencer-Brown -disse secamente-. Não sabia que recebia
visitas esta tarde, Caroline. -Olhou ao Charlotte e, dando um passo à frente, exclamou-:
Valha-me Deus! Se é Charlotte! Decidiu-se por fim a se rodear outra vez de companhias
decentes?
—Boa tarde, avó. -Charlotte ficou em pé, oferecendo a anciã a poltrona mais cômoda,
que tinha estado ocupando.
A anciã aceitou a gentileza. Depois de mover as almofadas e sacudir o pó do
assento, sentou-se. Charlotte pegou uma cadeira de espaldar rígido.
—Isso é o que lhe convém -disse a anciã, assentindo com a cabeça-. Na sua idade
pode danificar a coluna sentando-se nestas poltronas. Em minha época, as garotas se
sentavam sempre corretamente erguidas. Não como agora, com esta mania de sair sem
acompanhante, ir ao teatro e todo o resto! E eletricidade por toda parte! Não pode ser
saudável. Só Deus sabe que porcarias flutuam no ar! Bastante más já são as luzes de gás.
Se o bom Deus tivesse querido que a noite fosse igual ao dia, deixaria que a lua brilhasse

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tanto como o sol.


Sem fazer conta, Mina se voltou para Charlotte com entusiasmo.
—Vai sozinha ao teatro, senhora Pitt? Que excitante! Conte-nos, ocorrem-lhe muitas
aventuras?
A avó tirou um lenço e assoou ruidosamente.
Charlotte sopesou a possibilidade de fingir que fazia essas coisas, só para desgostar
a sua avó, mas decidiu que não valia à pena incomodar a sua mãe.
—Não, nunca fiz nada semelhante - disse com tom de pesar-. É perigoso?
—Valha-me Deus! -exclamou Mina com assombro-. Não tenho nem idéia. Ouvem-se
histórias, claro, mas... -de repente sufocou uma risada-. Terei que perguntar à senhora
Denbigh! Se quisesse, atrever-se-ia; é desse tipo de mulheres que têm a coragem de fazê-
lo.
—Sim, é muito provável. -A anciã olhou cuidadosamente a Mina-. Sempre pensei que
a moralidade do Amaryllis Denbigh deixa que desejar, embora sendo viúva deveria saber
melhor que lugar lhe corresponde. Caroline! Servir-nos-ão o chá esta tarde ou teremos que
continuar falando até o anoitecer?
Caroline pegou a campainha.
—Claro que o servirão, mamãe. Só estávamos esperando a que se unisse a nós. -
Com os anos, foi-se acostumando a chamar "mamãe" a aquela mulher, apesar de em
realidade ser a mãe do Edward.
—Seriamente? -respondeu a anciã com cepticismo-. Espero que haja bolachas.
Não suporto esse pão que faz constantemente a cozinheira. Essa mulher é uma
possessa do pão. Meus criados sabiam muito bem como preparar saborosas bolachas.
Ensinei-lhes como é devido. Disso depende tudo. Basta que não lhes consinta tudo e terá
bolachas quando quiser.
—Mamãe, tenho todas as bolachas que gosta! -A paciência de Caroline começava a
fraquejar-. Além disso, hoje em dia é muito difícil conseguir bom pessoal. Os tempos
mudam!
—E não para melhor! -A avó olhou exaltadamente à Charlotte, mas se absteve de
fazer comentários sobre mulheres respeitáveis que se casam com um policial.
Conteve-se só por achar-se em presença de uma estranha que, graças a Deus, nada
sabia do assunto.
Se chegasse a inteirar-se, em poucos dias estaria na boca de toda a vizinhança!
Então, sabe Deus que comentários iriam escutar se, e o que iam pensar as pessoas. - E

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não para melhor - repetiu à anciã-.


Mulheres ganhando seu salário em escritórios, como simples empregadas, quando
deveriam trabalhar como criadas em uma boa casa! Quando se viu algo assim? E quem
vigia sua moralidade, se pode saber-se? Não há mordomos nos escritórios. Nem tampouco
muitas mulheres, graças ao céu! As mulheres devem ficar em casa! A sua, ou, se não
tiverem, na de seus familiares.
Ocorria mais de uma resposta, à Charlotte, mas mordeu a língua. A conversa derivou
então para uma enxurrada de banalidades a respeito da moda e o clima, com referências
ocasionais a outros habitantes do Rutland Place, severamente julgados pela anciã. Quase
tinham acabado quando Edward entrou na sala, esfregando-as mãos por causa do frio.
—Charlotte, querida! -Seu rosto se iluminou de alegria e surpresa-. Não sabia que
viria; teria voltado antes. -Charlotte se levantou para lhe dar um beijo na face-. Tem um
aspecto estupendo.
—Obrigado, papai. Estou muito bem. -Charlotte deu uns passos atrás, e Edward
reparou em Mina. Seu vestido de renda destacava-se contra o brocado do sofá e as
almofadas.
—Me alegro de vê-la, senhora Spencer-Brown. -Edward fez uma reverência.
—Boa tarde, senhor Ellison - respondeu Mina, olhando alternativamente ao Edward e
Charlotte. Parecia muito interessada pelo fato de que ele não esperava ver sua filha aí-.
Tem frio -observou-. Deseja sentar-se junto à lareira? –Apartou suas saias para lhe fazer
lugar no sofá.
Teria sido descortês dizer que não. De todo modo, Edward considerava como seu o
lugar junto ao fogo. Tomou assento com movimentos cautelosos.
—Obrigado. Não há dúvida de que o tempo mudou. Receio que choverá.
—Nesta época do ano não pode esperar-se nada melhor - respondeu Mina.
Por cima da mesinha, Caroline olhou a sua filha com expressão de impotência.
Depois fez soar a campainha para pedir o chá do Edward, e também mais bolachas.
Edward acolheu as bolachas com evidente satisfação e durante vários minutos se
encetaram em uma conversa corriqueira.
—Encontrou o broche que tinha perdido, querida? -perguntou Edward, voltando-se
para Caroline, mas sem afastar seu olhar das bolachas.
Caroline se ruborizou ligeiramente.
—Ainda não, mas logo aparecerá.
—Não sabia que tivesse perdido algo! -exclamou a avó-. Não me disse isso!

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—Não havia motivo, mamãe - replicou Caroline, evitando olhá-la nos olhos-. Tenho
certeza de que se o tivesse encontrado o teria mencionado.
—Do que se trata? -A anciã não tinha intenção de soltar sua presa tão facilmente.
—Ah, sinto muito! -Mina se somou à discussão-. Espero que não seja nada de valor!
—Estou convencida de que aparecerá - respondeu Caroline com crescente dureza na
voz. Charlotte ergueu o olhar e viu que as mãos de sua mãe voltavam a espremer o lenço,
brancas pela pressão do tecido.
—O mais provável é que o tenha perdido - disse com um sorriso artificial-. Estará em
alguma roupa que já não recorda ter levado.
—Isso espero - disse Mina meneando a cabeça. Seus grandes olhos azuis
destacavam em seu frágil rosto-. Eu não gosto de ter que falar disso, querida, mas
ultimamente no Rutland Place alguém tem...se apropriado mais de um objeto. -ficou
olhando aos assistentes.
—Se apropriado? -disse Edward com incredulidade-. A que se refere?
—Pois é isso. Se apropriado- repetiu Mina-. Odiaria ter que usar outras palavras.
—Quer dizer que os roubaram? -perguntou a avó com voz imperiosa-. Já o dizia eu!
Quando não se costuma bem aos criados nem se leva a casa como é devido, não é
estranho que aconteçam essas coisas. Semeia ventos e recolherá tempestades! Sempre o
disso.
—Não o inventou você, avó -respondeu Charlotte-. Essa frase está na Bíblia.
-Não seja impertinente - replicou a anciã.
Edward não parecia dar-se conta da angústia de sua mulher, nem dos esforços de
Charlotte de dar o tema por resolvido.
—Diz você que houveram mais roubos? -perguntou a Mina.
—Receio que sim. É realmente horrível! A pobre Ambrosine perdeu uma magnífica
correntinha de ouro, de sua própria penteadeira.
—Criados! -grunhiu a anciã-. Sua classe está degenerando. Levo anos dizendo-o!
Nada tornou a ser igual desde a morte do príncipe Alberto em sessenta e um. Esse sim era
um homem de princípios! Não estranho que nossa pobre rainha esteja sempre de luto.
Eu faria o mesmo se meu filho se comportasse como o príncipe do Gales. -Voltou a
soprar de indignação-. O país inteiro sabe de suas correrias!
—... E meu marido perdeu uma caixinha de rapé com tampa de cristal que estava no
suporte da lareira - continuou Mina, sem fazer caso à anciã-.
E a pobre Eloise Lagarde, uma abotoadura de prata que levava na bolsa. Pobre

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moça! -Olhou à anciã com ingenuidade-. Que oportunidades teria um criado para roubar
todas essas coisas? No fim de contas, os criados não entram em casa de outra pessoa.
As sobrancelhas da anciã se arquearam, e seu nariz se dilatou.
—Pois, é evidente que há mais de um criado desonesto no Rutland Place! O mundo
inteiro se encaminha ao desastre. Só Deus sabe como acabará.
—Acabará com que todos voltarão a achar o que perderam – disse Charlotte, ficando
em pé-. Foi um prazer conhecê-la, senhora Spencer-Brown.
Espero ter mais ocasiões de lhe falar, mas a tarde se está pondo feia e parece que
vai chover. Deverá me desculpar. Tentarei voltar para casa antes de acabar empapada. -
Sem esperar resposta fez uma reverência, deu a sua avó um leve beijinho na face,
acariciou a seu pai de passagem e estendeu o braço a sua mãe, convidando-a a que a
acompanhasse até a porta.
Depois de uns murmúrios perplexos de despedida, Caroline aproveitou a
oportunidade. Ia atrás de Charlotte quando saíram ao saguão. Fechou a porta do salão
atrás delas.
—Maddock! -chamou Caroline-. Maddock! O mordomo apareceu em seguida.
—Sim, senhora. Aviso ao cocheiro para a senhorita Charlotte?
—Sim, faça-o. Por certo, Maddock, diga ao Polly que corra as cortinas, por favor.
—Faltam ainda umas horas para que anoiteça, senhora -disse o mordomo, um pouco
surpreso.
—Não discuta, Maddock! -Caroline respirou com força, tranqüilizando-se um pouco-.
Começa a levantar-se vento e não demorará para chover. Faça o que lhe peço, por favor.
—Muito bem, senhora. -Maddock se retirou, rígido e erguido com seu impecável traje
negro. Charlotte se voltou para sua mãe.
—Mamãe, por que é tão importante esse medalhão? E por que quer que se corram
as cortinas às quatro da tarde?
Caroline ficou olhando-a. Charlotte tocou suavemente a sua mãe. Seu corpo se
notava tenso sob o delicado vestido.
Caroline deixou escapar o fôlego pouco a pouco, olhando atrás do Charlotte, para a
luz que entrava pelas janelas.
-Não estou muito certa... Parecer-te-ei uma histérica, mas sinto como se alguém me
estivesse vigiando... e esperando!
Charlotte não soube o que responder. Sua mãe tinha razão: soava a puro histerismo.
—Sei que são tolices - continuou, abraçando o corpo e tiritando um pouco, apesar

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do saguão estar bem quente-. Mas não consigo separar de minha mente esta sensação.
Tentei me convencer de que não terá que ser tão fantasiosa, me dizer que a gente
está muito ocupada para dedicar-se a vigiar meus movimentos. E, entretanto, continua aí a
sensação de uns olhos que vigiam, de uma mente que sabe e espera o momento!
Por certo era uma idéia horrível.
—Que espera o que? -perguntou Charlotte que tentava devolver um pouco de bom
senso ao assunto.
—Não sei! Um falso movimento? Sim, espera a que dê um passo em falso.
Charlotte sentiu um calafrio. Tudo aquilo soava insalubre, mórbido inclusive, como um
repentino sopro de loucura. Se sua mãe estava tão nervosa, como não se dera conta
Edward? Como não tinha chamado a suas duas filhas para pensar em alguma solução?
Ou, em último extremo, que tivesse chamado ao médico.
Havia a avó, claro, sempre à espreita e disposta a criticar o que fosse; mas Charlotte
não recordava tê-la visto de outro modo, e ninguém se preocupava que fosse assim.
Comportava-se igual com todo mundo. Sentir-se por cima de outros era seu maior
estímulo para continuar viva, agora que tantos de seus velhos amigos tinham morrido.
Caroline fez um esforço por controlar-se.
—Acredito que poderá chegar a casa antes que comece a chover. Pensando bem,
duvido que caia alguma gota.
Para Charlotte era indiferente que chovesse ou nevasse.
—Sabe quem pegou o medalhão e todo o resto, mamãe?
—Não, claro que não! Pelo amor de Deus, como me pode perguntar isso? Se
soubesse, acha que lhe teria pedido ajuda?
—Por que não? Poderia ter querido recuperá-lo sem intervenção da polícia, em caso
de tratar-se de um amigo ou um criado, ou de qualquer outra pessoa.
—Pois já lhe disse que não tenho a menor idéia a respeito!
De repente Charlotte entreviu o evidente. Perguntou-se como tinha sido tão cega,
como não se dera conta antes.
—O que há dentro do medalhão, mamãe?
—O que há... - engoliu em seco - dentro?
—Sim, mamãe, o que contém? -Quase se arrependia de tê-lo perguntado.
Caroline estava pálida e por uns momentos guardou silêncio. Na rua se ouvia o
relinchar das rodas da carruagem, e o soprar de um cavalo.
—Uma fotografia - disse finalmente.

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Charlotte a olhou. Pronunciou as seguintes palavras quase contra sua vontade,


ouvindo sua voz como se fosse alheia:
—De quem?
—De um... um amigo. Só um amigo. Mas preferiria que não o visse ninguém mais.
Poderiam interpretar mal-se meus sentimentos e me pôr em um apuro, ou inclusive... -
Vacilou.
—Inclusive o que, mamãe? -perguntou Charlotte em voz baixa.
Maddock tinha voltado para o saguão levando a capa e o lacaio esperava na porta.
—Inclusive, quem sabe... que me pressionassem -murmurou Caroline.
Charlotte estava acostumada a palavras e pensamentos desagradáveis. O crime
fazia parte da vida diária do Pitt, e Charlotte compartilhava suas penas e inquietações.
—Está falando de chantagem? -perguntou.
Caroline fez uma careta de dor.
—Sim, suponho que sim.
Charlotte a rodeou com seus braços e por um momento a abraçou estreitamente.
Aos olhos do Maddock e do lacaio, sem dúvida se tratava de uma afetuosa
despedida.
—Então teremos que recuperá-lo - sussurrou Charlotte-, e nos assegurar de que não
cause nenhum dano. Não se preocupe, conseguiremo-lo. -Depois deu um passo atrás e
disse-: Obrigada por uma tarde tão agradável, mamãe. Espero não demorar tanto em
voltar.
Caroline pestanejou e respirou fundo.

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Capítulo 2

Três dias depois, Charlotte recebeu uma nova mensagem de Caroline, relacionado
com o mesmo tema. Desta vez comentou com Pitt. Sentaram-se em frente à lareira, depois
de deitar a Jemima, e estava costurando enquanto Pitt contemplava as chamas e se
reclinava cada vez mais em sua poltrona.
—Thomas... -Charlotte afastou o olhar de seus trabalhos, sustentando a agulha no ar.
Pitt voltou à cabeça e se endireitou um pouco, até apoiar os pés no ferro da lareira.
As chamas chispavam e oscilavam calidamente, pulverizando seus amarelos reflexos pela
sala.
—O que?
—Recebi uma carta de mamãe. Está inquieta porque recentemente sentiu falta de
uma jóia.
O olhar do Pitt se aguçou. Conhecia a Charlotte mais do que ela mesma suspeitava.
—Devo entender que não refere a um simples extravio?
Charlotte titubeou.
—Não tenho muita certeza. Possivelmente o é. Retomou seu trabalho para dar um
pouco de tempo e meditar suas palavras. Não se esperava uma reação tão sagaz. De fato,
achava que Pitt estava meio adormecido.
Depois de uns instantes levantou de novo a cabeça, e topou com um olhar brilhante
e indagador, como escondida atrás das pestanas. Charlotte respirou fundo, deixando de
lado todo esforço de ser sutil.
—Trata-se de um medalhão que contém o retrato de uma pessoa -explicou-.
Mamãe não me disse de quem, mas deduzi que é alguém sobre cuja identidade
prefere não dar detalhes. -Sorriu com certa gravidade. - Possivelmente um velho amigo,
um homem a quem conheceu antes de casar-se com papai.
Pitt se endireitou, afastando seus pés do ferro. Começava a sentir seu calor, e se não
tomasse cuidado lhe iriam chamuscar as pantufas.
—E ela acredita que o roubaram? -perguntou, embora a resposta fosse evidente.
—Sim, acredito que sim.
—Algum suspeito?
Charlotte negou com a cabeça.
—Em todo caso não me quis contar, Naturalmente, se informasse do caso os

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problemas seriam maiores que o prazer de voltá-lo para achar.


Pitt não necessitava mais explicações. Estava perfeitamente familiarizado com a
opinião da alta sociedade a respeito de receber à polícia em casa, com a vulgaridade que
indevidamente a acompanhava. Se os ladrões entravam em casa, podia se apresentar
uma denúncia; era muito lamentável, mas ao menos se tratava de algo procedente do
exterior, uma desgraça que podia ocorrer a todo aquele que possuísse bens cobiçáveis.
Um roubo doméstico era outra coisa. Supunha possíveis e molestos interrogatórios
aos conhecidos da vítima. Daí que fosse impensável ir à polícia.
—E espera de você que faça-se discretamente de detetive? -perguntou Pitt com um
sorriso.
—Não o faço mal - se defendeu Charlotte-. No Paragon Walk descobri a verdade
antes de você! -Assim que disse essas palavras, foram a sua mente imagens
desagradáveis e dolorosas. Em contraste com elas, sua vaidosa reação lhe pareceu
ridícula, quase uma indecência.
—Mas se tratava de um assassinato - indicou Pitt com sensatez-. E sua sagacidade
podia lhe custar muito cara. Não pensará ir perguntando a todos os amigos de sua mãe
"roubou você por acaso o medalhão de mamãe? E, nesse caso, incomodaria-se-lhe
devolvê-lo sem abrir?"!
—Não me está ajudando muito! -replicou Charlotte com mau humor-. Se fosse tão
fácil não lhe teria comentado isso.
Pitt se endireitou na poltrona e, inclinando-se para sua esposa, pegou-lhe a mão.
—Querida, se esse medalhão contiver algo íntimo, o melhor que pode fazer-se é não
falar disso. Deixá-lo estar!
Charlotte franziu o sobrecenho.
—Não é só isso, Thomas. Mamãe acredita que alguém a está... espreitando.
Pitt fez uma careta.
—Quer dizer que alguém está esperando a oportunidade de submetê-la a
chantagem?
—Suponho que sim. -A mão de Charlotte estreitou a de seu marido-. É uma situação
horrível e acredito que a pobre está realmente assustada.
—Se intervier não farei mais que piorar as coisas - disse Pitt suavemente-. Além
disso, não posso fazê-lo de forma oficial, a menos que ela mesma me chame.
—Sei. -Os dedos de Charlotte se crisparam.
—Tome cuidado, Charlotte. Sei que tem boa intenção, mas seu rosto é um livro

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aberto, querida, e sua língua é tão sutil como uma avalanche.


—É injusto! -protestou Charlotte, embora sabia que não o era-. Serei extremamente
cuidadosa.
—Continuo pensando que é melhor não intrometer-se, a menos que realmente se
produza uma chantagem. Possivelmente não é nada grave, só as apreensões de sua mãe
projetando sombras na parede. Uma consciência um pouco intranqüila, possivelmente?
—Não posso permanecer à margem - disse Charlotte com tristeza-. Me pediu que vá
vê-la. Tenho que procurar ajudá-la em todo o possível.
—Suponho que tem razão -concedeu Pitt-. Mas seja precavida, pelo amor de Deus!
As perguntas não farão mais que atrair a curiosidade, e são o meio mais eficaz para
provocar os rumores que ela tanto teme.
Charlotte assentiu, consciente de que Pitt tinha razão; entretanto, já estava fazendo
planos para visitar Rutland Place no dia seguinte.
Encontrou Caroline em casa, esperando-a com ansiedade.
—Querida, me alegro de que tenha podido vir! -disse, dando-lhe um beijo na face-.
Planejei algumas visitas para esta tarde. Desse modo conhecerá outros vizinhos da praça,
sobretudo a aqueles com quem mantenho relação e a quem visitei em suas casas, ou que
vieram à minha.
Ao Charlotte lhe caiu a alma aos pés. Sua mãe estava disposta a empreender a
busca.
—Mamãe, não acha que seria melhor agir mais discretamente? -perguntou-.
Não quererá que se dêem conta de como é importante é para você, não é? Poderia
despertar sua curiosidade. Em troca, se não disser nada possivelmente a coisa passe
inadvertida.
Caroline apertou os lábios.
—Queria compartilhar sua opinião, mas tenho certeza de que, seja quem for, já
sabe...-interrompeu-se.
—Sabe o que? -perguntou Charlotte.
—Sabe que o medalhão é meu, e que para mim é importante... Já lhe disse isso,
sinto sua presença, seu olhar me espiando. E não me diga que são tolices! Tenho a
absoluta certeza de que há uma pessoa... me vigiando, vigiando e rindo! - estremeceu-se-.
E cheia de ódio! Inclusive... inclusive em duas ocasiões senti que me seguiam, ao
anoitecer. -Suas faces se ruborizaram de confusão.
—Isso soa como se se tratasse de um louco -indicou Charlotte com calma-. Seria

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muito desagradável, mas mais digno de compaixão que de medo.


Caroline sacudiu a cabeça.
—Preferiria sentir piedade a uma distância um pouco maior.
Charlotte saltou como uma mola.
—Como todo mundo -disse-. O refrão diz "passar ao largo e afastar a vista"... -Se
deteve, consciente de que estava sendo injusta.
Sentia-se desconcertada, temerosa de que sua mãe estivesse em um estado de
nervosismo fora de controle.
Uma expressão de assombro cruzou fugazmente pelo rosto de Caroline, seguida de
uma ira repentina.
-Acaso sugere -replicou- que tenho um dever cristão que cumprir com um ser que não
só me roubou o medalhão, mas também se dedica agora a me espiar e me seguir?
Charlotte recriminou-se por ter expresso seus pensamentos com palavras tão
francas, sobretudo quando pouco tinham que ver com o problema. Palavras que
dificilmente podiam servir de consolo em um assunto que começava a ser mais complexo
do que tinha suposto.
—Não -respondeu gravemente-, só tento que perceba que não é tão importante como
acredita. Se a pessoa que roubou ou achou o medalhão está espiando-a e zombando de
você, então não está em seu são julgamento. Mais que medo, deve lhe inspirar
repugnância, e também certo tipo de piedade.
Não é como se um inimigo pessoal quisesse lhe fazer mal e tivesse a habilidade para
consegui-lo.
—Não entende! -Caroline fechou os olhos, exasperada-. Não é preciso ser inteligente
para me prejudicar! Até um louco de atar seria capaz de abrir um medalhão e ver o retrato.
Charlotte, sentada em silêncio, tentou reorganizar suas idéias. Sem dúvida havia
muitas coisas que Caroline não queria revelar. O retrato devia ser algo mais que uma vaga
lembrança romântica. Ou aquele sonho continuava dolorosamente vivo, ou se tratava do
retrato de alguém que vivia em Rutland place.
—De quem é o retrato, mamãe?
—De um amigo. -Caroline não a olhava-. Um cavalheiro que conheço. Não é mais
que uma... lembrança, mas é fácil que se interprete mal.
Um flerte. A surpresa de Charlotte não durou muito. Desde os crimes do Cater Street
tinha perdido sua inocência e tinha aprendido muitas coisas. Poucas pessoas são imunes
às adulações, a um pingo de aventura que compense a rotina diária.

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Edward não o tinha sido. Por que ia ser Caroline?


Assim, guardava um retrato em um medalhão. Uma tolice, mas muito humana.
Outros guardavam flores secas, programas de teatro ou de baile, velhas cartas...
Qualquer marido ou esposa prudente permitia uma margem de intimidade naqueles
assuntos, e se abstinha de fazer perguntas ou desenterrar sonhos em busca de respostas.
Charlotte sorriu e tentou mostrar-se mais amável.
—Não se preocupe, mamãe. Todos temos nossos assuntos privados. E se não lhe
der muita importância, tampouco o farão outros. De fato, não acredito que tenham desejos
de fazê-lo. Não só porque a apreciam, mas sim porque também eles terão provavelmente
medalhões ou cartas que prefeririam não extraviar.
Caroline sorriu palidamente.
—É muito caridosa, querida. Está há tanto tempo fora dos círculos sociais que vê as
coisas da distância, e lhe escapam os detalhes.
Charlotte a pegou pelo braço.
—Acima de tudo, mamãe, a alta sociedade tem senso do prático. Sabe o que pode e
que não pode permitir-se. Enfim, a quem quer que visitemos? Me diga algo deles, para me
economizar errar e pô-la em apuros.
—Deus santo, que perspectiva! -Caroline tocou o braço de Charlotte em sinal de
agradecimento. Primeiro visitaremos os Charrington, para ver o Ambrosine. Já lhe falei
dela. Depois, possivelmente à Eloise Lagarde. Acredito que ainda não lhe falei nada sobre
ela.
—Não mencionou a senhora Spencer-Brown esse nome?
—Não me lembro. Eloise é uma mulher encantadora, mas um pouco retraída.
Cresceu entre algodões. Rogo que se modere em sua presença, Charlotte. É muito
delicada.
Para o Charlotte, todos os residentes do Rutland Place viviam entre algodões,
incluindo a sua mãe, mas se absteve de mencioná-lo. O pitoresco e febril mundo do Pitt,
com suas grandezas e suas misérias, seus ingredientes de farsa e tragédia, não faria mais
que assustar ao Caroline. Naquele mundo, a realidade não se suavizava com evasivas e
palavras de bom tom.
O espetáculo ao natural da vida e da morte horrorizaria aos habitantes do Rutland
Place, do mesmo modo que as inescrutáveis e rígidas normas da boa sociedade
aterrariam a um estranho.
—Eloise tem problemas de saúde? -perguntou Charlotte.

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—Não me consta que tenha nenhuma enfermidade em concreto, mas há uma série
de temas que uma pessoa com tato não tem que mencionar. Às vezes cheguei a pensar
que é tísica. Tem um aspecto frágil, e já a vi desfalecer.
Mas, com a moda atual, custa dizer se uma mulher é robusta ou não. Confesso que,
quando Mary se esforça em me reduzir a cintura com cordões e baleias aos cinqüenta
centímetros de minha juventude, às vezes eu mesma estou a ponto de desmaiar! -Sorriu
com contrição.
Charlotte sentiu uma nova pontada de inquietação. Seguir a moda estava bem, mas
na idade de sua mãe não havia por que fazê-lo a todo custo.
—Não vi muito ao Eloise ultimamente - continuou Caroline-. Possivelmente o clima
inclemente não lhe assente bem, em particular estes frios espantosos.
É bastante bonita. Tem a pele absolutamente branca e os olhos negros, e se move
com absoluta elegância. Recorda-me os versos de Lorde Byron: "Caminha bela qual a
noite". - Sorriu-. Frágil e delicada como a lua.
—Também escreveu sobre a lua?
—Não, isso é de minha colheita. Enfim, já a verá você mesma e poderá formar uma
opinião. Seus pais morreram quando era muito pequena, não mais de oito ou nove anos.
Foi educada junto a seu irmão por uma tia. Também a tia morreu, e ambos vivem aqui a
maior parte do ano. Só passam algumas semanas em sua casa de campo, quanto muito
um mês.
—A senhora Spencer-Brown se referiu a ela como a uma mocinha – disse Charlotte.
—OH, é a maneira de falar de Mina. Eloise deve ter vinte e dois anos, ou
possivelmente mais. Tormod, seu irmão, é mais velho três ou quatro anos. -Pegou a
campainha e chamou à criada para que lhe trouxesse o casaco-. Bem, é hora de sairmos.
Queria que conhecesse o Ambrosine antes de que sua casa se encha de visitas.
Charlotte teve medo de que o assunto do medalhão voltasse à tona. Mas abotou o
casaco e seguiu a sua mãe.
A distância era muito curta. Ambrosine Charrington deu as boas-vindas com um
entusiasmo que surpreendeu ao Charlotte. Era uma mulher atraente, de finos traços e pele
suave, com apenas algumas leves rugas nos lábios e olhos. Tinha maçãs do rosto bem
perfiladas, emoldurados por um escuro cabelo.
Observou ao Charlotte com interesse, reconhecendo instintivamente nela a outra
mulher de forte personalidade.
—Como vai, senhora Pitt? -disse com um amplo sorriso-. Estou encantada de que

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finalmente tenha vindo. Sua mãe me falou muito de você.


Não tinha ocorrido à Charlotte que Caroline falasse dela em sociedade, e menos
ainda com freqüência. Sentiu um repentino prazer, inclusive um pingo de orgulho, e se deu
conta de que estava sorrindo mais do que exigia a ocasião.
A sala era ampla e estava mobiliada com certa austeridade, pelo menos em
comparação com os maciços e recarregados adornos que estavam em voga.
Não se viam os habituais animais dissecados em sinos de cristal, nem composições
de flores secas; tampouco quadros de bordados, nem elaboradas toalhas no espaldar das
poltronas.
Comparado com outros salões, dava uma impressão espaçosa, quase de nudez.

Charlotte o achou agradável, salvo pela coleção de fotografias que cobria uma
parede, assim como a tampa do piano e o suporte da lareira. Todas elas mostravam
pessoas mais velhas, e a julgar pelo vestuário tinham sido tomadas muitos anos atrás.
Evidentemente não eram do Ambrosine nem de seus filhos, mas sim de uma geração
anterior.
Charlotte supôs que o homem que aparecia em muitas delas fosse o marido de
Ambrosine. Um homem presunçoso, pensou, a julgar pela quantidade de retratos.
Em cima da lareira pendia meia dúzia de armas exóticas.
Ambrosine percebeu o olhar do Charlotte.
—Horríveis, não é? Mas meu marido insiste. Seu irmão mais novo caiu na primeira
guerra do Afeganistão, faz quarenta e cinco anos. Estas armas são uma espécie de
monumento fúnebre. As criadas sempre se queixam do quão endiabradamente difícil que é
limpá-las. Aí em cima não fazem mais que acumular pó.
Charlotte contemplou a coleção de facas em suas bainhas e capas douradas,
sentindo-se solidária com as pobres moças.
—Não é verdade? -disse Ambrosine com ardor, observando a expressão de
Charlotte-. E estão em perfeitas condições. Bronwen assegura que alguém acabará com o
pescoço talhado um dia destes; embora naturalmente não seja sua coisa limpá-las.
"Armas bárbaras", chama-as.
Suponho que o são.
—Bronwen? -perguntou Caroline.
—Minha criada. -Ambrosine as convidou a que se sentassem com um gesto-. Essa
estupenda moça ruiva.

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—Pensava que se chamava Louisa - disse Caroline.


—Assim é. -Ambrosine adotou uma postura elegante no divã-. Mas a melhor criada
que tive se chamava Bronwen, e eu não gosto de mudar as coisas boas.
Agora todas minhas criadas se chamam Bronwen. Além disso, assim evito confusões.
Há Lilies, Roses e Marys a dúzias!
Não havia nada que objetar. Charlotte se voltou para olhar pela janela para ocultar
seu sorriso.
—Encontrar a uma boa criada é toda uma façanha - disse Caroline-.
Freqüentemente as mais competentes deixam a desejar quanto à honradez. Em
troca, as que merecem confiança não são tão eficientes como caberia esperar.
—Querida, vejo você muito pessimista -disse Ambrosine com simpatia-. Teve algum
problema recentemente?
—Ainda não tenho certeza. -Caroline foi direta ao ponto. - perdi uma pequena jóia, e
não sei se se trata de um roubo ou de um simples extravio. É uma sensação muito
desagradável. Não queria agir injustamente, quando fica a possibilidade de que tenha sido
um acidente.
—É de muito valor? -perguntou Ambrosine franzindo o sobrecenho.
—Nada especial, só que era um presente de minha sogra. Poderia ofender-se,
pensar que o tratei com descuido.
—Ou sentir-se adulada, ao ver que entre todas as jóias alguém escolheu a sua-
indicou Ambrosine.
Caroline riu com entusiasmo.
—Agradeço-lhe a sugestão. Se fizer algum comentário lhe responderei com este
argumento.
—Continuo pensando que o perdeu, mamãe - disse Charlotte, tratando de lhe tirar
importância-. Possivelmente aparecerá em alguns dias. Se permitir que a avó pense que o
roubaram, começasse a lançar acusações infundadas, e não descansará até que impute
alguém como culpado.
Percebendo a aspereza de sua filha, Caroline se deu conta do perigo que estava
provocando com suas palavras.
—Tem razão - disse-. O mais prudente é não dizer nada.
—Os que não têm bastante com seus assuntos se apressarão a ocupar-se dos seus
se mencionar algo como um roubo - sentenciou Charlotte.
—Compreendo, senhora Pitt, que seu conceito da caridade alheia coincide com o

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meu. -Ambrosine pegou a campainha e a fez soar-. Quererão me acompanhar a tomar o


chá? Além de boa criada, também disponho de excelente cozinheira.
Empreguei-a por sua habilidade em confeitaria. Suas sopas são horríveis, mas como
eu não gosto da sopa faço vista grossa.
—Meu marido adora sopas - indicou Caroline.
—Também o meu -disse Ambrosine-. Mas não pode se ter tudo.
A copeira entrou na sala, e Ambrosine pediu que servisse o chá.
—Sabe, senhora Pitt? -continuou-. Seus comentários sobre a curiosidade alheia vêm
muito a propósito. Ultimamente tive a inquietante sensação de que alguém se interessa por
mim. E por pura bisbilhotice. Até diria que com más intenções.
Charlotte guardou silêncio. A seu lado, sua mãe ficou tensa.
—Que desagradável -disse Charlotte depois de breves momentos-. Tem algum
indício de quem pode ser?
—Não, absolutamente; isso é o que o torna inquietante. Trata-se de uma mera, mas
recorrente sensação.
A porta se abriu. A copeira entrou com o chá e uma variedade de bolachas e bolos,
muitos com creme.
—Obrigado - disse Ambrosine, observando com satisfação um bolo de frutas-.
Possivelmente me esteja deixando levar pela fantasia - continuou quando a moça
voltou a sair-. Duvido que alguém tenha tanto interesse em minha pessoa como o que
pressupõe o que digo.
Caroline pareceu disposta a dizer algo, mas finalmente desistiu.
—Tem razão - disse Charlotte, apressando-se a romper o silêncio, com o olhar posto
no serviço de chá-. Sua cozinheira conhece o ofício muito bem. Se eu contasse com seus
serviços certamente não caberia em meus vestidos.
Ambrosine observou a silhueta ainda esbelta de Charlotte.
—Espero que isso não signifique que não pensa voltar a me visitar!
Charlotte sorriu.
—Ao contrário, significa que já tenho duas razões para vir, não só uma. - Pegou o
chá que lhe oferecia e um doce de nata. Ninguém se esforçou por observar o cortês
preliminar de começar com pão e manteiga.
Apenas cinco minutos depois que começassem a tomar o chá, a porta se abriu de
novo e deu passagem a um homem de meia idade e cabelos cinzas. Charlotte reconheceu
naquele cavalheiro de nariz chato e traços severos ao homem das fotografias.

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Levava inclusive o mesmo modelo de gola rígida e gravata negra que nelas. Não
podia ser senão Lovell Charrington.
As apresentações confirmaram sua hipótese.
—Não há canapés? -O homem estudou com cenho a bandeja.
—Não sabia que pensava se reunir conosco - respondeu Ambrosine-. Se quer, posso
pedir à cozinheira que os prepare.
—Sim, por favor! Não acredito que todo esse creme seja bom para sua saúde,
querida. Além disso, não deveríamos obrigar a nossas convidadas a compartilhar seus
excêntricos gostos.
—OH, nós somos igualmente excêntricas! -disse Charlotte impulsivamente-. Estou
encantada de poder comê-los em tão agradável companhia.
Ambrosine lhe dedicou um sorriso de agradecimento um tanto surpreendida.
-Sem querer ofendê-la, senhora Pitt, recorda-me a minha filha Ottilie.
Desfrutava das coisas e não tinha reparos em admiti-lo.
Charlotte duvidou se falava que já sabia da morte da jovem, ou se poderia dar a
impressão de ter estado falando muito dos assuntos dos Charrington. Lovell a tirou do
dilema.
—Nossa filha morreu, senhora Pitt. Sem dúvida me compreenderá se lhe digo que
falar do tema nos é muito triste.
Para Charlotte aquele comentário foi pouco cortês, tendo em conta que ela não havia
dito nada.
—Naturalmente - disse-. Eu mesma falo muito raramente dos seres queridos que
perdi, pela mesma razão.
Viu que o homem ficava um pouco desconcertado. Obviamente não lhe tinha ocorrido
que Charlotte tivesse experiências próprias tão trágicas.
—Com efeito - disse Lovell precipitadamente-, com efeito!
Charlotte tomou outro doce de nata e por uns momentos se viu obrigada a
concentrar-se em comê-lo sem que lhe caísse a nata em cima.
A conversa tomou roteiros puramente corteses e afetados. Falaram do clima, dos
assuntos de sociedade que comentavam os jornais, e da possibilidade -inexistente a
julgamento do Lovell- de que houvesse tesouros perdidos na África, como os que
descrevia o senhor Rider Haggard em sua novela As minas do Rei Salomão, publicada no
ano anterior.
—Tolices! - disse Lovell-. Meras fantasias. Esse indivíduo deveria empregar seu

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tempo em algo de maior proveito. Para um homem de sua idade, ganhar a vida assim é
ridículo, urdindo fantasias para enrolar a mulheres sem miolo ou moças impressionáveis.
Superexcitar a essas pessoas é mau para sua saúde. E também para sua
moralidade!
—Eu acho que é um ofício estupendo - disse, entrando na sala, um homem de uns
trinta anos que saudou com a mão. apoderou-se da última bolacha e, depois de engoli-la
quase inteira, dirigiu à Charlotte um sorriso deslumbrante, e depois à Caroline. Pegou o
bule para servir-se-. Não prejudica a ninguém e diverte a milhares de pessoas. Põe um
toque de cor em vigas desprovidas de aventura e sonho, vidas que de outro modo seriam
absolutamente tediosas.
—Nunca ouvi coisa mais absurda! -replicou Lovell-. Isso não é mais que aproveitar-se
de imaginações febris, ávidas de sensações fortes. Inácio, se quiser chá chama à criada e
peça-lhe mas por favor deixa de sacurdir o bule. Para isso existe a criadagem. Acredito
que não conhece a senhora Pitt...

Inácio olhou para Charlotte.


-Claro que não. Asseguro-lhe que me lembraria dela. Encantado, senhora Pitt.
Não lhe pergunto como está, pois salta à vista que sua saúde é excelente, e também
seu humor.
—Assim é. -Charlotte tratou de manter a dignidade que sua mãe esperava dela-. E
me custaria acreditar se me dissesse que não está na mesma situação -acrescentou.
—Ah! -As sobrancelhas do jovem se arquearam com jovialidade-. Uma mulher com
opiniões próprias! teria se dado bem com minha irmã Tillie, ela tinha opiniões sobre tudo.
Algumas delas, devo dizer, um pouco estranhas; mas sempre tinha as idéias claras, e
geralmente as expunha.
—Inácio! -Lovell se tinha ruborizado-. Sua irmã morreu. Faça o favor de não falar dela
com tanta ligeireza e confiança! -deu a volta-. Lhe peço desculpas, senhora Pitt, por
semelhante falta de tato. -Seu tom delatava escassa convicção.
Não parecia acreditar que Charlotte fosse muito melhor que seu filho.
—Ao contrário -Charlotte se acomodou em seu assento-. Compreendo muito bem
que se recorde com intensidade e afeto a um ser querido. Todos agüentamos nossas
perdas a nosso modo, como nos é mais suportável, e permitimos a outros que façam outro
tanto.
Lovell empalideceu, mas antes de que respondesse Caroline ficou em pé, deixando

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sobre a mesa xícara e pires.


—Foi um prazer - disse sem dirigir-se a ninguém em concreto-. Por desgraça, ainda
temos outras visitas pendentes. Confio que saberão nos desculpar. Espero vê-la logo,
querida Ambrosine. Senhor Charrington, Inácio...
Lovell se levantou e fez uma leve reverencia.
—Boa tarde, senhora Ellison. Boa tarde, senhora Pitt. Me alegro de tê-la conhecido.
Inácio as acompanhou até o saguão.
—Lamento tê-la incomodado, senhora Pitt - disse franzindo o sobrecenho-. Não era
minha intenção.
—Claro que não -respondeu Charlotte-. Pelo que ouvi dela, estou certa de que com
efeito teria gostado de sua irmã. E sua mãe é a pessoa mais agradável que conheci em
muito tempo.
—Agradável? -respondeu Inácio com assombro-. As pessoas estão acostumadas a
pensar o contrário.
—Questão de gostos, suponho. Asseguro-lhe que me parece estupenda.
No rosto do Inácio se desenhou um amplo sorriso, apagando todo rastro de
inquietação. Estreitou calidamente a mão de Charlotte.
O lacaio já estava ajudando Caroline a vestir o casaco. Charlotte aceitou o seu.
Pouco depois se acharam na rua, expostas ao cru vento de março.
Uma calesa passou a seu lado. Seu passageiro as saudou com o chapéu.
Caroline viu fugazmente um rosto moreno e distinto, belamente emoldurado por
negros e brilhantes cabelos que chegavam quase até a nuca, e um olhar escuro e sereno.
A carruagem seguiu seu caminho, mas aquela breve impressão bastou para despertar no
Caroline uma lembrança tão viva que sentiu um estremecimento.
Aquele homem era muito parecido ao Paul Alaric, o cavalheiro francês que tinha
vivido no Paragon Walk perto da casa do Emily e que tantas paixões tinha provocado
durante aquele trágico verão. A pobre Selena se obcecou tanto com ele que quase tinha
perdido o juízo.
Inclusive Charlotte, desobedecendo a todo seu bom senso, sentira-se atraída pela
suave ironia do Alaric, por seu natural encanto, e pelo fato de seu enigmático passado e
posição social. Nem sequer Emily, com toda sua graça e ímpeto, mostrara- se de todo
insensível.
Tratava-se realmente da mesma pessoa?
Charlotte se voltou para sua mãe e a viu tensa, com a cabeça muito erguida e as

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faces coradas de frio.


—Conhece-o? -perguntou Charlotte com incredulidade.
—Um pouco. É monsieur Paul Alaric.
Charlotte sentiu que o pulso lhe acelerava. Assim, era ele...
—Tem contato com muita gente do Rutland Place -continuou Caroline.
Charlotte esteve a ponto de indicar que sua mãe era uma dessas pessoas, mas, sem
saber por que, absteve-se.
—Parece um homem abastado- optou por dizer. Era um comentário vão, mas de
repente a acuidade a tinha abandonado.
—Tem negócios no centro. -Caroline apertou o passo, e o vento impediu de continuar
a conversa.
Trinta metros mais à frente se achava a entrada principal da casa dos Lagarde.
—São franceses? -perguntou Charlotte enquanto se abria a porta.
—Não -respondeu Caroline em voz baixa quando a criada foi anunciá-las-.
Seu bisavô, ou algo assim chegou em tempos da Revolução.
-A Revolução? Isso faz cem anos! -respondeu Charlotte em um sussurro.

Depois adotou uma expressão de conveniente espera no momento de serem


acompanhadas ao salão.
—Bom, pois então fará ainda mais tempo. Graças a sua avó tenho os ouvidos
repletos de história -replicou sua mãe-. Boa tarde, Eloise. Apresento a minha filha, a
senhora Pitt -disse mudando de tom e expressão mas sem parar para tomar fôlego.
A garota era com efeito muito bonita, tal como havia dito Caroline: morena, com a
transparência do reflexo da lua sobre a água, e um cabelo sedoso, frondoso e opaco (a
diferença da Charlotte, que reluzia como madeira brunida e resistia a ser recolhido por
causa de seu volume).
—Que amáveis são ao vir! -Eloise, sorridente, deu um passo atrás convidando-as a
sentar-se-. Tomarão chá?
Era um pouco tarde. Possivelmente a pergunta era mera cortesia.
—Muito obrigado, mas não queríamos dar trabalho - disse Caroline, declinando o
oferecimento com uma fórmula convencional. Dizer que acabavam de tomar o chá em
outra casa teria constituído uma falta de tato. Voltou-se para a lareira-. Que magnífica
pintura! Não recordo havê-la visto antes.
Charlotte teria preferido não ter em casa um quadro semelhante, mas cada qual com

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seus gostos.
—Gosta? -Eloise olhou o quadro com uma faísca de diversão em seu rosto-.
Sempre tive a impressão de fazer com que a casa pareça escura, coisa que em
realidade não é. Mas, como ao Tormod gosta, deixei-o em seu lugar.
—É o retrato de sua casa de campo? -Charlotte perguntou, uma obviedade, pois não
lhe ocorria nada mais que dizer. Pelo menos a resposta ia dar pé a vários minutos de
afável conversa. Continuavam falando das diferenças entre campo e cidade quando se
abriu a porta e apareceu um jovem em quem Charlotte reconheceu ao irmão do Eloise.
Tinha a mesma frondosa cabeleira, os mesmos olhos grandes e a mesma pele
pálida. Em troca, os traços não eram tão semelhantes. A fronte do jovem era mais alta,
coroada por grandes ondas de cabelo. Seu nariz era mais aquilino, e sua boca larga, de
sorriso fácil. Também pronta a torcer-se em caretas de mau humor, pensou Charlotte.
O jovem se aproximou com desenvoltura e graça naturais.
—Me alegro de vê-la, senhora Ellison! -Rodeou ao Caroline com o braço-. Acredito
que não conheço sua acompanhante...
—Minha filha, a senhora Pitt. -Caroline lhe devolveu o sorriso-. Charlotte, o senhor
Tormod Lagarde.
O jovem se inclinou ligeiramente.
—Bem-vinda ao Rutland Place, senhora Pitt. Espero ter freqüentemente o prazer de
sua visita.
—É muito amável.
Tormod se sentou junto ao Eloise, em um amplo sofá.
—Tenho intenção de visitar minha mãe mais freqüentemente, agora que se aproxima
a primavera -acrescentou Charlotte.
—Receio que este inverno não está sendo muito benigno -respondeu o jovem-. É
preferível ficar ao lado da lareira e adiar as visitas. De fato nos retiramos freqüentemente a
nossa casa de campo; simplesmente nos encerramos durante janeiro e fevereiro.
O rosto de Eloise se iluminou, como se recordasse algo agradável. Não disse nada,
mas Charlotte acreditou ver refletidas em seus olhos luz de festa, árvores de Natal e
lanternas acesas, fogueiras de dentes, torradas quentes e alegre companhia que não
necessitava de palavras.
Tormod mexeu em um bolso e extraiu um pequeno pacote.
—Pegue. - Estendeu-o ao Eloise-. Para substituir ao que perdeu.
Eloise o pegou, olhou para Tormod e depois para o pacotinho.

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—Abre-o! -pediu seu irmão-. Tampouco é nada do outro mundo.


Eloise o fez cheia de prazer.
O pacote continha uma pequena abotoadura de prata.
—Obrigada, querido! -disse docemente Eloise-. É muito delicado de sua parte, sobre
tudo podendo ter sido perfeitamente por minha culpa. Agora sentirei remorsos se aparecer
o outro e não foi mais que um descuido. -Voltou o olhar para Caroline, como pedindo
desculpas, ao mesmo tempo um pouco apurada-. Perdi uma abotoadura que tinha durante
anos. Acredito que estava em minha bolsa, mas também é possível que o tenha esquecido
em qualquer lugar.
A curiosidade de Charlotte se sobrepôs ao bom senso de não fazer comentários.
—Quer dizer que poderiam havê-lo roubado? -disse com fingida surpresa.
Tormod rechaçou a idéia.
—Coisas assim costumam acontecer. Não é agradável pensar, mas terá que
confrontar-se com a realidade: às vezes os criados cometem pequenos roubos.
Entretanto, como aparentemente ocorreu em casa de outra pessoa, é melhor não
mencioná-lo. Seria de péssimo gosto pôr em apuros a algum amigo fazendo correr a voz.

Além de que, como diz Eloise, a abotoadura pode aparecer a qualquer momento.
Caroline pigarreou com nervosismo.
—Mas como se pode tolerar que alguém roube? -disse-. Quero dizer, não é imoral?
Tormod manteve seu tom despreocupado e sorriu com um matiz de pesar.
—Suponho que sim -disse-, se soubéssemos com segurança quem é o culpado e
houvesse provas disso. Mas não as há. Só conseguiríamos levantar suspeitas,
possivelmente totalmente injustas. Mais vale deixá-lo estar. Assim que fica alguém a
aprofundar-se no mal, corre o risco de pôr em marcha uma cadeia de circunstâncias que
depois é difícil deter. Custa-me acreditar que uma abotoadura de prata justifique toda a
irritação, o medo e as dúvidas que suscitaria uma investigação.
—Acredito que tem razão -se apressou a dizer Charlotte-. No final de contas, não é o
mesmo ter perdido algo que ter a certeza de que uma pessoa determinada o roubou.
—Um julgamento muito prudente. -Tormod lhe dedicou um rápido sorriso-. Gritar "ao
ladrão" não é sempre o melhor modo de ajudar à justiça.
Sem dar tempo ao Caroline para defender sua postura, a criada entrou anunciando
uma nova visita.
—A senhora Denbigh - disse ao Eloise-. Faço-a entrar?

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O rosto de Eloise se contraiu levemente. Se estivesse menos exposta à luz da janela,


possivelmente sua mudança de expressão teria passado inadvertida.
—Sim, claro, Beryl. Faça-a entrar.
Amaryllis Denbigh era o tipo de mulher que incomodava ao Charlotte.
Entrou na sala com passo firme, com expressão de quem está sempre segura de
causar boa impressão. Não era formosa, mas seus grandes olhos e lábios ligeiramente
carnudos não careciam de encanto. Mostrava a inocência da qual como adolescente não
conhece ainda sua capacidade de seduzir e incitar o desejo.
Seu loiro e ondulado cabelo era abundante, arrumado do modo preciso para não
parecer artificioso. Aquilo requeria uma criada muito competente. O vestido que levava era
caro; nada ostentoso, mas Charlotte sabia o preço daqueles sutis toques que realçavam o
busto e faziam parecer o talhe um par de centímetros mais estreitos.
As apresentações foram formais. Amaryllis inspecionou ao Charlotte e logo a
despachou, voltando-se para o Tormod.
—Virá na quinta-feira ao recital da senhora Wallace? Espero que queira unir-se a
nós. Ouvi que convidaram um pianista estupendo. Com certeza adorará. E também Eloise,
naturalmente - acrescentou com mais educação que sinceridade.
Ao ouvir aquele tom, Charlotte tirou suas próprias conclusões.
—Penso que iremos - respondeu Tormod. Voltou-se para Eloise-. Não tem outros
planos, não é, querida?
—Não, absolutamente. Se o pianista for bom será um prazer. Só espero que as
pessoas não façam barulho e deixe escutar.
—Querida, não esperará você que as conversas se interrompam só para ouvir um
pianista, ao menos em um recital como esse -respondeu Amaryllis com suavidade-. No fim
de contas se trata de um acontecimento social. A música é uma mera diversão, algo para
amenizar.
Além disso, proporciona um pretexto para a conversa e assim evita a alguns o
esforço de procurar outro tema adequado. Há gente muito torpe, já sabe. -Sorriu para
Charlotte-. Não acha assim, senhora Pitt?
—Com efeito, estou convencida disso - reconheceu Charlotte-. Há os que não
conseguem dizer nada adequado, e os que falam muito e no momento inoportuno. Eu
aprecio sobre tudo aos que sabem calar sem sentir-se incômodos, especialmente quando
há boa música.
Amaryllis se enrijeceu, mas não fez caso da indireta.

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—Toca, senhora Pitt? -perguntou.


—Não, desgraçadamente não. E você?
Amaryllis a olhou com frieza.
—Pinto - respondeu-. Eu gosto mais. É menos indiscreto, no meu entender.
Pode-se olhar ou não, como se preferir. OH! -Abriu os olhos e mordeu o lábio-.
Quanto o sinto, Eloise! Esqueci que você toca. Naturalmente não referia a você!
Jamais interveio em nenhum recital.
—Não; acredito que me poria muito nervosa - disse Eloise-. Entretanto, consideraria
uma grande honra ser convidada. De qualquer modo, penso que me zangaria se a
conversa das pessoas impedisse de escutar - enfatizou-.
A música deveria ser respeitada, não tratada como uma espécie de som de fundo.
Isso faz com que alguns se aborreçam com ela sem chegar a apreciar sua beleza.
Amaryllis soltou uma risada aguda e harmoniosa que irritou ao Charlotte.
Talvez porque teria gostado de ter uma risada assim.

—Que filosófica é você! -disse alegremente-. Advirto-a, querida, que se começar a


dizer coisas como essa no recital, far-se-á muito impopular. As pessoas não saberão como
tratá-la!
Charlotte deu a sua mãe um leve chute no tornozelo. Quando Caroline se agachou
pensando que algo lhe tinha caído em cima, sua filha fingiu entender que se dispunha a
partir.
—Ajudo-a, mamãe? -disse ficando em pé e lhe oferecendo o braço.
Caroline a olhou.
—Ainda me arrumo sozinha, querida -disse secamente.
Apesar de ler claramente em seus olhos a intenção de voltar a sentar-se, depois de
uns momentos se despediram e poucos minutos depois estavam de novo na rua.
—Desagrada-me a senhora Denbigh - disse Charlotte-. E muito!
—Já me dei conta. -Caroline levantou a gola do casaco e sorriu-.
A mim também, confesso-o. É injusto, porque não tenho nenhuma razão concreta,
mas a acho irritante.
—Propôs-se conquistar ao Tormod Lagarde - observou Charlotte a modo de
explicação parcial-, e o faz sem dissimulações.
—De verdade?

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—Claro que sim! Não me diga que não o notou.


—Claro que o notei! -Caroline tiritou-. Mas conheço muitos casos de mulheres que
seduzem a homens, querida, e Amaryllis não me pareceu especialmente torpe.
Ao contrário, acredito que é muito paciente.
—Pois continuo sem gostar dela!
—Isso é porque você gosta de Eloise, e a inquieta pensar o que será dela se Tormod
se casar, visto que Amaryllis não lhe é simpática. Talvez também Eloise se case, e isso
soluciona o problema.
—Nesse caso, seria mais ardiloso por parte do Amaryllis procurar um bom partido
para Eloise, em vez de dedicar-se a denegri-la. Não lhe custaria muito: a moça é
absolutamente encantadora. O que lhe passa, mamãe? Está curvada como se fizesse
vento.
—Há alguém atrás de nós?
Charlotte se virou.
—Não. Esperava que o houvesse?
—Não... Só tenho a sensação de que nos vigiam. Não olhe assim, Charlotte, pelo
amor de Deus! Fará que pensem que somos umas bisbilhoteiras, que olhamos através das
cortinas.
—Quem? -Charlotte se forçou a sorrir para ocultar sua inquietação por sua mãe-. Se
não há ninguém!
—Não seja tola! Sempre há alguém, um mordomo ou uma criada correndo as
cortinas, ou um lacaio apostado na porta.
—Então não há motivo para inquietar-se. -Charlotte desprezou os temores de sua
mãe, mas em seu interior vacilou. A sensação de ser observada (não por pessoas
ocupadas em outras tarefas, mas deliberada e sistematicamente) era muito desagradável.
Imaginações do Caroline, sem dúvida... Quem ia fazer uma coisa semelhante? Que razões
podia ter?
Caroline tinha acelerado o passo, seguida por sua filha. Caminhavam tão rápido que
as saias de Charlotte lhe açoitavam os tornozelos. Temeu tropeçar com um paralelepípedo
e cair de bruços, se não vigiasse seus passos.
Rodeando como um torvelinho o poste da entrada, Caroline subiu rapidamente os
degraus que a afastavam da porta de sua casa.
Plantou-se na porta antes de que o lacaio tivesse reparado em sua chegada, e teve
que esperar, impaciente, olhando de tanto em tanto para a rua.

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—Abordaram-na na rua, mamãe? -perguntou Charlotte.


—Claro que não! O que ocorre é que... -Caroline estremeceu-. Tenho a sensação de
não estar sozinha, inclusive quando tudo indica que o estou. Há alguém, alguém a quem
não consigo ver e que, entretanto, me vigia, tenho certeza.
A porta se abriu. Caroline não demorou nem um segundo em entrar, seguida por
Charlotte.
—Por favor, Martin, feche as cortinas - disse ao lacaio.
—Todas, senhora? -Restam algumas horas de luz, e o dia é bom.
—Sim, por favor! Em todas os aposentos que vamos ocupar. -despojou-se do casaco
e do chapéu e os entregou ao Martin.
Charlotte a imitou.
No salão se encontraram com a avó, sentada junto ao fogo.
—E então? -A anciã as examinou dos pés a cabeça-. Alguma novidade?
—Sobre o que, mamãe? -perguntou Caroline, dirigindo-se para a mesa.
—Sobre o que seja, moça! Como vou perguntar algo concreto se não sei ainda o que
é? Se soubesse não seria uma novidade, não acha?
O argumento era rebuscado, mas fazia tempo que Charlotte se convencera da
inutilidade de discutir com sua avó.
—Visitamos a senhora Charrington e à senhorita Lagarde - disse-. Ambas me
pareceram estupendas.
—A senhora Charrington é uma excêntrica. -A voz da anciã soava áspera, como se
acabasse de morder uma ameixa verde.
—Por isso gostei dela. -Charlotte não pensava deixar-se avassalar-. Se comportou
com muita educação. No final de contas, isso é o principal.
—E a senhorita Lagarde? Também te pareceu estupenda? Seu acanhamento a
prejudica. Essa moça parece incapaz de paquerar com um pouco de destreza - comentou
mordazmente a anciã-. Por muito bonita que seja, nunca achará marido se for por aí dessa
maneira, como caminhando em cima das nuvens. Os homens se casam com algo mais
que um rosto bonito, asseguro-lhe!
—O que é uma sorte para a maioria de nós - respondeu Charlotte com não menos
acidez, notando no nariz levemente curvado de sua avó, e depois em suas pesadas
pálpebras.
Fingindo não ter entendido, a anciã se voltou para sua filha e, com voz glacial, disse:
—Teve visita enquanto estava fora.

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—Seriamente? -Caroline não se mostrou muito interessada. O habitual era que ao


menos uma pessoa passasse durante a tarde, do mesmo modo que ela e Charlotte tinham
visitado outras pessoas. Essas atividades formavam parte do ritual social-. Suponho que
deixariam um cartão e que Maddock a trará dentro de pouco.
—Não quer saber de quem se trata? -indagou à anciã, contemplando as costas de
Caroline.
—Não especialmente.
—Era esse cavalheiro francês de maneiras estrangeiras. Sempre esqueço seu nome.
- Por não tratar-se de um inglês, o esquecimento era voluntário. – Em todo caso, tem o
melhor alfaiate que vi em trinta anos.
Caroline ficou tensa. O silêncio se apropriou da sala e se ouviu o ruído das
carruagens duas ruas mais longe.
—Seriamente? -repetiu Caroline com forçada naturalidade. Em sua voz se percebia
certa ansiedade, como se morresse de vontades de acrescentar algo, e entretanto se
forçasse a fazer uma pausa a fim de não falar atropeladamente-. Disse algo?
—Claro que disse algo! Acaso acha que ficou plantado aí, como um bobo?
Sempre de costas a sua mãe, Caroline pegou um narciso, recortou-lhe o caule e o
devolveu a seu lugar.
—Alguma coisa interessante?
—E quem diz coisas interessantes hoje em dia? -respondeu a anciã com desgosto. -
Já não restam grandes homens. O general Gordon foi assassinado por esses selvagens de
Kartum. Até o senhor Disraeli morreu.
Não era um herói, naturalmente, nem sequer um cavalheiro, mas era inteligente. Já
não restam homens com estilo.
—Acaso o senhor Alaric não se comportou com a devida cortesia? –perguntou
Charlotte, surpreendida. No Paragon Walk, Alaric se tinha movido como peixe na água,
com inata correção, apesar dela ter ficado desconcertada mais de uma vez pelo cinismo
que se insinuava debaixo de suas palavras.
—Não -admitiu a avó a contragosto-. Foi muito correto, mas por ser estrangeiro não
resta outro remédio. Se tivesse nascido quarenta anos atrás provavelmente teria chegado
longe, apesar de não ser inglês; mas hoje em dia já não fica nenhuma mísera guerra onde
um homem tenha a oportunidade de demonstrar seu valor. Em tempos do Edward pelo
menos tínhamos Criméia. E não é que ele fosse!
—Criméia está no mar Negro -indicou Charlotte-. Não vejo o que tem que ver

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conosco.
—Falta-lhe patriotismo e visão do Império! -acusou-a sua avó. Isso é o mau dos
jovens. Não têm sentido da grandeza!
—Deixou o senhor Alaric alguma mensagem? -Caroline se tinha dado a volta,
finalmente. Estava ruborizada, mas sua voz já não denotava tanta agitação.
—Esperava que o fizesse? -A anciã arqueou uma sobrancelha.
Caroline aspirou fundo antes de responder.
—Como ignoro a razão de sua visita - disse enquanto se encaminhava para a porta-,
perguntava-me se teria deixado algo dito. Perguntarei ao Maddock. –Saiu rapidamente da
sala, deixando a sua filha a sós com a anciã.
Charlotte titubeou. Devia formular as perguntas que lhe buliam na cabeça? Sua avó,
que tinha má vista, não se tinha dado conta da tensão que embargava ao Caroline, nem do
modo lento e contido com que havia virado a cabeça.
Entretanto, continuava tendo muito bom ouvido, e sua mente se conservava tão ágil
e incisiva como sempre. Não obstante, decidiu que quanto pudesse lhe dizer sua avó já o
tinha adivinhado ela sem necessidade de ajuda.
—Irei perguntar a mamãe se me empresta sua carruagem para voltar para casa antes
que anoiteça - disse depois de breves instantes.
—Como quiser. Em realidade, ainda não sei a que veio; nada mais que para ir fazer
visita, suponho.
—Para ver mamãe.
—Duas vezes em uma mesma semana?
Charlotte não sentia vontade de discutir.
—Adeus, avó. Alegrou-me ver-te tão saudável.
A anciã soltou um grunido.
—Sempre tão arrogante - disse com secura-. Nunca aprendeu a te comportar.
Foi melhor que tenha se casado com alguém de classe inferior. Não teria tido
nenhum êxito em nossos círculos.
De caminho a casa, enquanto percorria as ruas na carruagem de cavalos de seu pai,
Charlotte esteve muito absorta em seus pensamentos para desfrutar da diferença entre a
carruagem e o ônibus.
Era penosamente claro que o interesse de Caroline por Paul Alaric não tinha nada de
circunstancial. Charlotte recordava suficientes detalhes de sua própria obsessão por seu
cunhado Dominic -antes de conhecer o Thomas- para deixar-se enganar.

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Conhecia o significado daqueles ares fingidos por trás da indiferença, do nó no


estômago, do modo em que se acelerava o pulso ante um sorriso ou simplesmente ao
ouvir o nome da pessoa amada ou às pessoas mencioná-los a ambos em uma mesma
frase.
Agora tudo aquilo lhe parecia incrivelmente estúpido, e se ruborizava só em recordar.
Mas continuava sendo capaz de reconhecer os mesmos sentimentos em outras
pessoas. Já tinha visto antes, e mais de uma vez, ao Paul Alaric provocar uma reação
similar.
Entendia o motivo da ansiedade de Caroline, forçada-a naturalidade de sua voz, e
aquela pretendida falta de interesse, incapaz, entretanto, de evitar que saísse quase
correndo da sala só para averiguar se Alaric tinha deixado uma mensagem.
Assim, o retrato do medalhão era o do Paul Alaric. Com razão sua mãe queria
recuperá-lo! Não se tratava de um admirador anônimo de tempos passados, mas sim de
um rosto que qualquer do Rutland Place poderia reconhecer, para não falar dos engraxate
e as criadas...
E não havia explicação possível. Nada podia justificar que levasse num medalhão o
retrato daquele homem.
Ao chegar a casa, Charlotte já tinha decidido contar tudo ao Pitt, e lhe pedir conselho.
Sentia-se simplesmente incapaz de carregar a sós com aquela responsabilidade.
Entretanto, não especificou de quem era o retrato do medalhão.
—Não faça nada - disse Pitt com gravidade-. Com um pouco de sorte o terá perdido
pela rua. Cairia por uma boca-de-lobo, ou o ladrão o terá vendido ou dado a alguém. Em
qualquer caso já não voltará a aparecer pelo Rutland Place; os que o tenham sob seus
olhos nada saberão de sua proprietária nem do homem do retrato.
—Mas e mamãe? -disse Charlotte-. Está claro que esse homem a corteja, e que ela
por sua vez se sente atraída, e não faz nada por mantê-lo longe.
Pitt mediu suas palavras, olhando ao Charlotte.
—Possivelmente de momento não, mas saberá ser discreta. -Vendo que Charlotte se
dispunha a contradizê-lo, pegou-a pelas mãos. - Querida, não pode fazer nada, e embora
pudesse não tem direito a se intrometer.
—É minha mãe!
—Sim, e é normal que se preocupe. Mas mesmo que seja sua mãe não a autoriza a
intervir em seus assuntos, que pelo resto não faz mais que entrever.
—Vi-a! Thomas. Sou perfeitamente capaz de relacionar o que vi esta tarde com o

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medalhão, e com o que acontecerá se papai se inteirar!


—Pois tenta impedir que se inteire. Aconselha a sua mãe que atue com prudência e
se esqueça do medalhão; mas não passe daí. Só conseguiria piorar as coisas.
Charlotte enfrentou os claros e inteligentes olhos de seu marido. Desta vez Pitt se
equivocava. Sabia muito dos homens em geral, mas Charlotte conhecia melhor às
mulheres.
Sua mãe necessitava algo mais que uma advertência: necessitava ajuda e, dissesse
o que dissesse Pitt, ela a ia oferecer.
Baixou o olhar.
—De acordo, avisá-la-ei... Com respeito ao de procurar o medalhão -disse.
Pitt lhe lia os pensamentos mais do que ela imaginava.
Não tinha intenção de forçar as coisas até o ponto de obrigá-la a mentir.
Reclinou-se em sua poltrona, resignado mas descontente.

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Capítulo 3

Pitt estava muito enrascado em seu trabalho para perder o tempo inquietando-se por
Caroline. Seus casos anteriores lhe tinham posto em contato mais de uma vez com
membros da alta sociedade; mas, como os tinha conhecido em circunstâncias não usais,
era consciente de que conhecia bem pouco suas crenças e valores.
Menos ainda se atrevia a julgar o que estavam dispostos a permitir em suas relações
sociais, e que outras coisas, ao contrário, estavam destinadas a causar danos irreparáveis.
Embora Pitt intuísse que sua esposa correria perigo ao mesclar-se com os roubos do
Rutland Place, dava-se conta de que essa impressão se apoiava mais em emoções que
em argumentos. Acima de tudo temia que Charlotte saísse maltratada do assunto.
Ao deixar Cater Street e afastar-se de seus pais, muitas de suas convicções tinham
mudado, às vezes sem consequências. Sem dúvida tinha esquecido muitos dos princípios
que antes assumia com naturalidade, como faziam ainda seus pais.
Charlotte tinha mudado e Pitt temia que não fosse consciente disso, ou supusera que
outros tinham mudado tanto como ela. Aquela intromissão nos assuntos de sua mãe
supunha lealdade e comiseração. Entretanto, feito às cegas, podia acabar prejudicando a
todos.
Apesar disso, não lhe ocorria como convencê-la. Charlotte estava muito perto das
coisas para vê-las com clareza.
Naquela manhã, Pitt estava na delegacia de polícia, sentado em frente a sua mesa
de madeira; revisava, com a mente posta no Charlotte, uma lista de objetos roubados,
quando entrou um agente de nariz aquilino, pálido e com os olhos brilhantes.
—Uma morte, inspetor.
Pitt levantou a cabeça.
—Pois não é algo incomum, por desgraça. No que nos interessa esta em concreto? -
Por sua mente desfilaram imagens de labirínticas casas de apartamentos, cambaleantes
construções de madeira meio podres, tugúrios ocultos atrás das sólidas e espaçosas
moradias da gente respeitável.
Dentro delas morria gente diariamente, toda hora: alguns de frio, outros de fome ou
enfermidade, e uns poucos assassinados.
Pitt se ocupava só destes últimos, e nem sempre-. De quem se trata? -perguntou.
—Uma mulher. -Aquele agente era tão miserável com suas palavras como com seu

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dinheiro-. De boa posição, bairros altos. Casada.


O interesse do Pitt se avivou.
—Assassinato? -disse, meio esperançado e meio perturbado.
O assassinato era uma dupla tragédia. Não só para a vítima e seus próximos, mas
também para o próprio assassino e para quem quisesse, dependessem ou tivessem
piedade daquele ser atormentado.
Não obstante, sempre era um acontecimento menos cinza, menos relacionado com
problemas inabarcáveis que as mortes causadas pela violência de ruas e a pobreza,
marcas inseparáveis do mundo dos subúrbios.
—Não sei. -Os olhos do agente seguiam cravados nos do Pitt-. Terá que investigar. É
possível.
Pitt lhe cravou um frio olhar.
—Quem morreu? E onde?
—Uma tal senhora Wilhelmina Spencer-Brown -respondeu o policial com tom
monocórdio, no qual apareceu em final um débil matiz de interesse-. Rutland Place,
número onze.
Pitt se ergueu.
—Disse Rutland Place, Harris?
—Sim, senhor. Conhece o lugar, senhor? -Acrescentou o segundo "senhor" para
evitar ser impertinente. Habitualmente não usava tantas voltas, mas Pitt era seu superior, e
ele estava interessado em trabalhar no caso.
Mesmo que não se tratasse de um assassinato, uma morte na alta sociedade não
deixava de ser mais interessante que os crimes vulgares dos quais costumava ocupar-se.
Em poucas ocasiões enfrentava um mistério de verdade.
—Não - respondeu Pitt cuidadosamente. Depois ficou em pé e afastou a cadeira,
fazendo-a chiar contra o chão-. Mas suponho que não demoraremos para fazê-lo. O que
pode me dizer sobre essa senhora Wilhelmina Spencer-Brown?
—Não muito. -Harris seguiu a seu chefe enquanto pegavam chapéus, casacos e
cachecóis e desciam pelos degraus da delegacia de polícia para enfrentar o vento de
março.
—E então? -apressou-lhe Pitt, procurando uma carruagem livre com a vista.
Harris apertou o passo para ficar a sua altura.
—Trinta e poucos, muito respeitável, reputação irrepreensível; e embora não o fosse -
acrescentou com mordacidade-, vivendo onde vive tudo se passa por cima.

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Aspecto de ter um montão de criados e de dinheiro, embora o aspecto nem sempre


significa grande coisa. Viram-se casos de gente com três criados, cortinas de seda e nada
que comer salvo pão molhado em molho. Pura aparência.
—A senhora Spencer-Brown tinha cortinas de seda? -inquiriu Pitt, enquanto se
afastava do passo de uma veloz carruagem que salpicou a calçada com barro e esterco.
Imprecou baixo e depois vociferou-: Chofer!
Harris fez uma careta.
—Não sei, senhor, acabam de me dar o informe. Não o vi por mim mesmo. Quer que
peguemos uma carruagem, senhor?
—Claro que sim! -Pitt lhe dirigiu um olhar fulminante. - Grande estúpido! - murmurou;
mas teve que engolir suas palavras, quando Harris saltou com destreza ao centro do
meio-fio e deteve um cabriolé quase no vôo.
Pouco depois estavam comodamente sentados em seus assentos, deslocando-se em
trote em direção ao Rutland Place.
—Como morreu? -continuou Pitt.
—Veneno -respondeu Harris.
Pitt ficou surpreso.
—Como sabe?
—Disse-o o médico. Chamou-nos. Tem um desses aparelhos novos.
—Que aparelhos? Do que está falando?
—Telefones, senhor. Aparelhos que se penduram na parede e...
—Sei o que é um telefone! -replicou Pitt com rudeza-. Assim, o médico telefonou. A
quem? Na delegacia de polícia não há telefone.
—A um amigo dele que vive justo na porta contigüa à delegacia de polícia. Um tal
senhor Wardley. Wardley nos comunicou isso.
—Entendo. E o médico disse que a tinham envenenado?
—Sim, senhor. Essa era sua opinião.
—Algo mais?
—Ainda não, senhor. Envenenaram-na esta tarde. Encontrou-a a copeira.
Pitt extraiu seu relógio de bolso. Eram três e quinze.
-A que hora?
-Por volta das dois e quinze.
Assim, pensou Pitt, devia ter ocorrido quando a copeira ia informar se esperavam
visitas para o chá, ou se a senhora Spencer-Brown pensava sair. Pitt sabia o suficiente

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sobre os costumes da alta sociedade para estar familiarizado com o ritual que se repetia
todas as tardes.
Momentos depois chegaram ao Rutland Place. Pitt contemplou as plácidas e
graciosas fachadas das casas, um pouco afastadas da calçada, com imaculados acessos
aos porões cobertos pela sombra das árvores, e janelas que recolhiam a luz solar. Uma
carruagem esperava em frente à porta de uma casa.
O lacaio estava ajudando uma dama a descer. Outra carruagem empreendeu seu
caminho um pouco mais à frente, com os arreios reluzindo sob o sol. Uma daquelas casas
era a de sua sogra Caroline. Pitt nunca tinha estado aí; por consenso tácito renunciava a
uma visita que não teria sido agradável nem para ele nem para os habitantes da casa.
De vez em quando se reuniam, mas sempre em território neutro, onde não surgissem
comparações - embora nem uns nem outros tivessem intenção de fazê-las.
A carruagem se deteve. Desceram e pagaram ao cocheiro.
—Onze - disse Harris enquanto subiam pelos degraus.
A porta se abriu antes que chegassem a ela e um lacaio convidou-os a entrar sem
perda de tempo. Não podia tolerar ter à polícia esperando na soleira à vista de todos os
vizinhos! Suas esperanças de ascensão lhe exigiam tratar expeditivamente um assunto
como esse.
—Inspetor Pitt - se apresentou em voz baixa, sentindo em torno a presença da
tragédia, fosse qual fosse finalmente sua explicação.
Pitt estava acostumado à morte, mas nem por isso deixava de se sobressaltar.
Continua sem saber como comportar-se ante quem tinha sofrido a perda de um ser
querido. De nada serviam as palavras. Odiava adotar um tom banal e insensível, mas
temia acabar fazendo-o, pela simples razão de ver tudo de fora. Era um intruso que devia
recordar as facetas mais escuras do ser humano, as hipóteses mais sinistras a respeito de
seus atos.
—Sim, senhor - disse o lacaio cerimoniosamente-. Sem dúvida desejam falar com o
doutor Mulgrew. Uma carruagem foi procurar o senhor Spencer-Brown, mas ainda não
voltou.
—Sabe onde está?
—Sim, senhor. Foi ao centro, como sempre. Soube que tem aí interesses diversos.
Pertence à junta diretiva de várias importantes empresas, e de um jornal. Se quer me
seguir, senhor, mostrar-lhe-ei a sala onde espera o doutor Mulgrew.
Pitt e Harris seguiram ao criado através do saguão, em direção à parte traseira da

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casa. Pitt examinou o mobiliário, dando-se conta de que, fosse ou não por amor às
aparências, haviam custado muito dinheiro. Se chegasse o caso de que os Spencer-
Brown sofressem problemas financeiros, os quadros que pendiam junto à escada podiam
lhes proporcionar uma renda que para Pitt teria dado para viver sem trabalhar muitos anos.
Seus contatos profissionais com o mundinho artístico o tinham convertido em bom
juiz do valor de uma pintura.
O Doutor Mulgrew estava sentado junto à lareira, a tão curta distância que Pitt
imaginou perceber o aroma de chamuscado de suas calças. Era um homem rechonchudo,
de frondosa cabeleira branca e bem cuidado bigode. Naquele momento lhe lacrimejavam
os olhos, e seu nariz estava de um vermelho forte. Espirrou com estrépito justo quando
entraram, e tirou de seu bolso um grande lenço.
—Um maldito resfriado - explicou desnecessariamente-. Não tem cura, nem teve
nunca. Meu nome é Mulgrew. São da polícia, não é?
—Sim, senhor. Inspetor Pitt e agente Harris.
—Bem; odeio os resfriados primaveris. Não há nada pior, salvo os do verão.
—Soube que a copeira achou o cadáver da senhora Spencer-Brown quando entrou
para informar-se dos planos para a tarde - disse Pitt-. Foi ela quem o chamou, doutor?
—Não exatamente. -Mulgrew guardou o lenço-. Disse-o ao mordomo. Uma reação
natural, suponho. O mordomo deu uma olhada, e depois enviou ao lacaio para me buscar.
Vivo ao lado mesmo. Vim imediatamente mas não havia nada que fazer. A pobre estava
rígida. Utilizei o telefone para chamar um amigo, William Wardley. Ele enviou a vocês uma
mensagem. -Voltou a espirrar e tirar o lenço.
—Deveria tomar algo -disse Pitt, retrocedendo um passo-. Uma bebida quente e um
cataplasma de mostarda.
—Não tem remédio. -Mulgrew meneou a cabeça e fez um gesto com as mãos-. Não
há cura. Fizeram-no com veneno, embora ainda ignoro de que classe e em que dose
exata.
— Tem certeza? -Pitt não desejava ofender ao Mulgrew pondo em dúvida sua
competência profissional-. Não poderia tratar-se de alguma enfermidade?
Mulgrew entreabriu as pálpebras e olhou ao Pitt.
—Não estou em condições de jurar, mas não era questão de esperar para comprová-
lo. Se o tivesse feito, vocês não teriam tido tempo de inspecionar o lugar dos fatos. Não
sou tão tolo, sabe?
Pitt conteve a ira e se esforçou em manter uma expressão adequada às

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circunstâncias.
—Obrigado -Era o mais cortês que se podia dizer-. Suponho que era você o médico
de cabeceira da senhora Spencer-Brown.
—Naturalmente, por isso me chamaram. Uma mulher de saúde de ferro.
Pequenos achaques de vez em quando, mas quem não os tem?
—Tomava algum remédio que, em dose excessivas pudesse ter causado sua morte
acidentalmente?
-Eu não lhe receitei nada. Só padecia de algum ou outro resfriado, ou acessos de
tosse. Coisas sem remédio, já sabe. São inevitáveis, e o melhor é resignar-se de bom
grado.
Um pouco de compaixão, se for possível, e muitas horas de sono.
Pitt sorriu.
—E os outros habitantes da casa? -perguntou.
—Como? Ah! Não acredito que fosse tão estúpida para tomar medicamentos de outra
pessoa. Não era nada idiota, para uma mulher! Embora imagine que não é impossível. A
pessoa não se comporta de forma sensata quando se trata de sua saúde. -Espirrou outra
vez-. Receitei ao senhor Spencer-Brown algo para a dor de estômago, embora acredite
que em grande parte o provoca ele mesmo.
Tratei de dizer-lhe mas me rechaçou com palavras destemperadas.
—Dor de estômago? -inquiriu Pitt.
—Má alimentação, já sabe. -Mulgrew se soou, movendo a cabeça-. Come
loucamente. Não estranho que logo sofra! É um tipo curioso. Tampouco isso tem remédio!
-Olhou ao Pitt com a extremidade do olho, como se esperasse uma réplica.
—Já - disse Pitt-. E havia nessa receita algo capaz de matar com uma dose
excessiva?
Mulgrew fez uma careta.
—Suponho que sim... se se misturar tudo e se beber de um gole.
—Alguma possibilidade de overdose acidental? Possivelmente a senhora Spencer-
Brown sentisse dor de estômago e pensasse nos medicamentos de seu marido.
—Disse a seu marido que os guardasse em seu estojo de primeiro socorros.
Mesmo assim pôde não fazê-lo, e ela tê-los tomado. Mas continuo pensando que não
é possível que se administrasse uma overdose mortal por acidente.
—O frasco levava indicações?
—A caixa. São uns pós. Sim, claro que as leva. Acredita que tenho costume de

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manipular substâncias venenosas ao acaso?


—Substâncias venenosas?
—Leva beladona.
—Entendo. Mas continuamos sem saber do que morreu. Em todo caso, se souber
não me disse... -Pitt arqueou uma sobrancelha e olhou ao doutor.
Mulgrew lhe sustentou o olhar por cima do lenço, e depois se soou com solenidade.
Remexeu em seus bolsos em busca de outro lenço.
Pitt tirou o seu e o ofereceu com gesto sóbrio.
—Obrigado. É um cavalheiro. -Mulgrew o pegou-. Bem, ainda não posso assegurar,
mas tenho a intuição de que a matou a beladona. Sofreu os sintomas típicos.
Aparentemente ninguém a ouviu queixar-se de que se sentisse mal.
Acabava de voltar de uma visita matinal a um vizinho. Entrou no salão e, em coisa de
quinze ou vinte minutos, morreu. De repente, sem vômitos nem sangue.
Tampouco convulsões, conforme pude apreciar. Tinha as pupilas dilatadas e a boca
seca, precisamente os sintomas da beladona. Parada cardíaca.
De repente Pitt pareceu estar presenciando a cena: uma mulher morrendo a sós,
respirando cada vez com maior dificuldade, a dor, o mundo que se perde de vista, a
crescente escuridão, a paralisia, o terror...
—Pobre mulher- disse Pitt, surpreendendo-se a si mesmo.
Harris pigarreou.
O rosto do Mulgrew se suavizou e em seus olhos brilhou uma faísca de avaliação
pelo Pitt.
—Em teoria pode ser um suicídio -disse-. Não me ocorre nenhuma razão, mas assim
costuma ser. Só Deus é testemunha da íntima agonia que se esconde atrás da máscara
cortês da gente. Eu não, que o Senhor me ampare!
O silêncio era a única resposta adequada. Pitt pensou que não devia esquecer de
mandar Harris atrás do estojo de primeiro socorros do senhor Spencer-Brown. Tinha que
ver se faltava muita quantidade de medicamento.
—Deseja vê-la? -perguntou Mulgrew depois da pausa.
—Suponho que é meu dever -disse Pitt.
Mulgrew se encaminhou lentamente para a porta. Pitt e Harris o seguiram até o
saguão, passando junto ao lacaio, e entraram no salão, cujas cortinas estavam corridas em
sinal de morte recente.
Era uma sala espaçosa, com elegantes cadeiras de cores claras, ao estilo francês:

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pernas curvadas e madeira profusamente esculpida. Por toda parte se viam bordados em
petit-point, entre complexos acertos florais com flores artificiais de seda e algumas
aquarelas, cenas pastoris de correta feitura.
Em outras circunstâncias teria sido uma sala acolhedora, embora um pouco
recarregada.
Wilhelmina Spencer-Brown jazia sobre o divã com a cabeça para trás, olhos e boca
abertos. Nada nela recordava o aprazível abandono de uma mulher adormecida.
Pitt se aproximou e a examinou sem tocá-la. Já não havia perigo de profanar sua
intimidade, nem ficavam naquele corpo sentimentos que pudesse ser feridos.
Mesmo assim, contemplou-o como se conservasse uma faísca de vida. Nada sabia
daquela mulher, se tinha sido amável ou cruel, generosa ou mesquinha, valente ou
covarde. Entretanto, desejava lhe conceder certa dignidade, em interesse tanto dela como
dele mesmo.
—Viu já tudo o que tinha que ver? -perguntou ao Mulgrew, sem virar-se.
—Sim -respondeu o médico.
Pitt endireitou levemente o corpo, lhe outorgando uma aparência de descanso.
Depois, incapaz de afrouxar as mãos, as cruzou sobre o peito, e lhe fechou os olhos.
—Só estava há um quarto de hora na sala quando a achou a criada? - perguntou.
—Isso diz a garota.
—Então, fosse qual fosse à causa de sua morte, agiu com rapidez. -Pitt se voltou
para examinar a sala. Não viu taças nem copos-. O que comeu ou bebeu? - Franziu o
sobrecenho-. Pelo visto já não está aqui. Tocou algo a copeira?
—Já o perguntei. -Mulgrew negou com a cabeça-. Disse que não. Parece uma garota
séria. Não acredito que tenha motivos para mentir. Em minha opinião, a garota estava
muito impressionada para ficar ordenando a sala.
—Em definitivo, não o trouxe até aqui -concluiu Pitt-. Lástima, tudo seria mais fácil.
Enfim, terá você que fazer a autópsia; já me informará das causas da morte e seus
detalhes.
—Naturalmente.
Pitt olhou de novo o cadáver: já não podia proporcionar mais informação. Não havia
indícios de violência, coisa que por outro lado era de esperar, estando sozinha.
Tinha tomado o veneno por iniciativa própria. Ficava por saber se ao fazê-lo era ou
não consciente do perigo.
—Voltemos para a saleta -sugeriu ao Mulgrew-. Aqui não resta nada que possa nos

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ser de ajuda.
Aliviados, os três homens voltaram junto à lareira. Em realidade não fazia frio na
casa; os calafrios que sentiam os policiais eram fruto de sombrios pensamentos.
—Que tipo de mulher era? -perguntou Pitt quando a porta se fechou.- Por favor, não
se defenda no segredo profissional. Tenho que saber se foi suicídio, acidente ou
assassinato.
Quanto antes chegue a uma conclusão, menos terei que importunar aos familiares
com perguntas.
Já têm bastante com a tragédia.
O rosto do Mulgrew se encheu de pesar. Depois de soar-se com o lenço do Pitt disse,
olhando ao chão:
—Não acredito que fosse um acidente. Não era uma mulher torpe. A seu modo era
muito competente, ágil de reflexos e perspicaz. Não vi mulher menos distraída.
Pitt não gostava de fazer certas perguntas, mas era sua obrigação. Não havia
maneira de evitá-las ou disfarçá-las.
—Ocorre-lhe algum motivo para que se suicidasse?
—Não. Do contrário o haveria dito.
—Dá a impressão de ter sido uma mulher atraente, muito feminina e delicada. Acha
possível que tivesse um amante?
—Se tivesse se proposto, sem dúvida que sim. Mas se o que pergunta é se sei de
algum, a resposta é não. Jamais ouvi nenhum tipo de fofocas a respeito, nem sequer em
privado. -Mulgrew olhou ao Pitt com toda franqueza.
—E seu marido? -insistiu o inspetor-. Talvez ele sim tivesse uma amante.
Poderia ser essa a causa do suicídio?
—Alston? -As sobrancelhas do Mulgrew se arquearam com assombro-. Me parece
muito improvável. É um tipo muito insípido. Mas claro, nunca se sabe. A carne é fraca e
sempre dá surpresas! Neste tema, as preferências do ser humano são de qualquer ponto
imprevisíveis.
Tenho cinqüenta e dois anos e levo vinte e sete exercendo como médico. Já não
deveria me surpreender nada, e entretanto...
Ocorriam, para Pitt, possibilidades ainda mais desagradáveis: outros homens, ou
moços, inclusive meninos. Alguns descobrimentos eram capazes de fazer a vida
insuportável a uma esposa. Mas só eram especulações fantasiosas.
Existiam outras opções, possivelmente mais verossímeis. Pitt recordou o que lhe

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tinha contado Charlotte: os roubos e a sensação de que alguém estava espiando em


Rutland Place.
E se aquela mulher tinha sido a autora dos roubos? E se, dando-se conta de que
alguém estava a par de suas maldades e a vigiava, tirou-se a vida por medo a frear-se com
aquela terrível vergonha? A alta sociedade era cruel.
Poucas vezes perdoava, e jamais esquecia.
Pitt estremeceu sob um sopro de angústia, mais frio que uma nevada de janeiro.
Pobre mulher...
Tomou uma decisão: se descobrisse que a verdade era essa, acharia o modo de não
ter que revelá-la.
Não me faça muito caso, inspetor. -Mulgrew lhe olhava com seriedade-.
Não estou sugerindo nada. Só falo em geral.
Pitt piscou.
—Não pensei outra coisa -mentiu-. Tal como há dito você, nada está claro em um
assunto como esse.
Ouviram-se vozes e alvoroço no saguão. A porta se abriu bruscamente.
Viraram-se todos ao mesmo tempo, adivinhando o que acontecia, e temerosos disso.
Harris foi o único a levantar-se. Sabia que, a diferença de outros, não ia ter que falar.
Alston Spencer-Brown estava ali, tremendo de emoção e ira.
—Quem demônios é você? -Olhou ao Pitt-. O que está fazendo em minha casa?
Pitt compreendia a indignação daquele homem, mas também era consciente de que
nenhum subterfúgio ia evitar as reações de dor ou desconcerto.
—Inspetor Pitt -disse-. O doutor Mulgrew me chamou.
Alston se voltou para o Mulgrew.
—Nesta casa, cavalheiro, o único responsável sou eu! É minha mulher que morreu! -
Engoliu em seco. - Que Deus dela tenha piedade. Não é assunto seu! Já não pode ajudá-
la. Pobrezinha, deve ter sofrido um enfarte. Meu mordomo me disse que tinha morrido
antes que você chegasse.
Não entendo por que continua aqui. A menos que seja com a cortês intenção de me
informar pessoalmente, o que agradeço. Considere-se livre de toda obrigação, como
médico ou amigo. Estou em dívida com você.
Ninguém moveu um dedo.
—Não foi o coração -respondeu Mulgrew lentamente. Em seguida espirrou e
rebuscou seu lenço-. Ou sim foi, mas não por sua conta. -soou-se o nariz-.

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Receio que a matou uma dose de veneno.


Uma palidez mortal tingiu o rosto do Alston e por breves segundos pareceu a ponto
de desabar-se. Pitt pensou que ninguém era capaz de fingir uma reação como essa.
—Veneno? -balbuciou Alston-. Pelo amor de Deus, do que está falando?
—Sinto muito. -Mulgrew ergueu lentamente a cabeça para enfrentar seu olhar. - Sinto
muito. Comeu ou bebeu algo que lhe causou a morte.
No meu entender, beladona ou outra substância muito parecida. Ainda não posso
dizer com
certeza. Não tive mais remédio que avisar à polícia.
—Isso é absurdo! Mina jamais... -Alston não achou mais palavras. Vendo que tudo
escapava à razão, abandonou todo intento de compreender.
—Descanse um momento. -Mulgrew lhe ajudou a sentar-se em uma ampla poltrona
acolchoada.
Pitt foi até a porta e ordenou ao lacaio que trouxesse brandy. Cumprida a ordem, Pitt
serviu uma taça e a deu ao Alston, quem a engoliu mecanicamente, sem saboreá-la.
—Não entendo - repetiu-. É ridículo. Não pode ser verdade!
Pitt odiou ter que intervir.
—Suponho que não estará à corrente de nenhuma tragédia ou inquietação que
pudesse ter levado a sua esposa a tal grau de angústia - disse.
Alston ficou olhando-o.
—O que está sugerindo, senhor? Que minha esposa se suicidou? Como... como se
atreve? -Sua boca tremeu de ira.
Pitt baixou o tom de voz e foi incapaz de olhar ao Alston nos olhos.
—Lhe ocorre alguma situação em que sua esposa pudesse tomar veneno de forma
acidental? -perguntou.
Alston abriu a boca, mas na hora voltou a fechá-la. Deu-se conta das implicações da
pergunta e deixou correr os segundos enquanto procurava uma resposta.
—Não -disse ao cabo-. Nenhuma. Mas sou ainda mais incapaz de pensar que o
fizesse conscientemente. Era uma mulher feliz. Tinha tudo que desejava, e seu
comportamento era o de uma esposa perfeita.
Eu me alegrava de lhe proporcionar todos seus desejos: bem-estar, situação social,
viagens, vestidos, jóias...Tudo o que queria me pedir.
Além disso, sou um homem aprazível. Nunca me irrito nem me permito o menor
excesso. Wilhelmina gozava de todo o carinho e o respeito que merecia.

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—Então a solução se acha em outra parte, em algo que ainda desconhecemos. -Pitt
expôs seu raciocínio com toda a suavidade possível-. Espero que entenda, senhor, que
nossa obrigação é descobri-lo.
—Não... Não, não entendo! Por que não deixam minha pobre esposa em paz? -
Alston se endireitou e deixou a taça de brandy sobre a mesa-. Nada do que façamos
poderá ajudá-la. Ao menos poderíamos permitir que seu repouso fosse digno. Rogo! Exijo!
Pitt odiava chegar a esse ponto. Esperava isso: era uma reação natural, mas isso não
a tornava menos difícil.
Tratava-se de uma situação habitual, um papel que Pitt sabia de cor de tanto
participar dela. Em troca, para a outra pessoa sempre era a primeira vez.
—Lamento-o, senhor Spencer-Brown, mas sua esposa morreu em estranhas
circunstâncias. Pode ter se tratado de um acidente, embora você mesmo disse que lhe
parece difícil. Ou possivelmente um suicídio, apesar de que a ninguém lhe ocorre um
motivo. Fica também a hipótese do assassinato. -Olhou em direção ao Alston e se chocou
com seu olhar-. Devo saber. A lei deve saber.
—Isso é ridículo. -Alston permaneceu imóvel, muito consternado para irritar-se-.
Quem, por todos os Santos, ia querer fazer mal a Mina?
—Não tenho a menor idéia, mas se alguém o fez devemos encontrá-lo e submetê-lo
à justiça.
Alston contemplou o espelho que tinha em frente. Todas as respostas lhe pareciam
igualmente inverossímeis. Entretanto, sua inteligência lhe obrigava a aceitar que uma delas
era a correta.
—Muito bem - disse-. Mas lhe agradeceria que recordasse que esta casa está de
luto. Rogo-lhe que, dentro do possível, atue com respeito e prudência. Sem dúvida estará
acostumado às mortes violentas; além disso, não conhecia Mina.
Eu em troca não estou, e Mina era minha esposa.
Desde o princípio, Pitt não havia sentido especial simpatia por Alston. Era um
homenzinho afetado e meticuloso, enquanto que Pitt, pelo contrário, era generoso e
impulsivo. Entretanto, havia naquele homem uma dignidade que merecia ser respeitada.
—Sim, senhor -disse com gravidade-. Me encontrei freqüentemente com a morte,
mas espero não chegar nunca a aceitá-la com frieza, nem deixar de participar um pouco
da dor dos afetados por ela.
—Obrigado. -Alston ficou em pé-. Suponho que quererá interrogar à criadagem.
—Sim, por favor.

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Os criados foram chamados um por um. Nenhum deu mais que dados básicos: Mina
tinha voltado para casa a pé, pouco depois das duas em ponto. O lacaio lhe tinha aberto a
porta. Tinha subido a seu toucador para arrumar-se. Passadas as duas e quinze, a
garçonete a tinha encontrado sem vida no divã do salão, no mesmo lugar em que a tinham
visto Pitt e Mulgrew.
Ninguém conhecia nenhum motivo que lhe provocasse angústia.
E ninguém lhe conhecia inimigos.
E, certamente, ignoravam que tivesse comido ou bebido algo desde o café da manhã,
tomado no meio da manhã, quer dizer, muito cedo para ingerir o veneno.
Quando partiu o último, e enquanto Harris procurava o estojo de primeiros socorros
que continha os medicamentos estomacais do Alston e efetuava uma inspeção de rotina
na cozinha e demais dependências, Pitt perguntou ao Mulgrew:
—Poderia ter tomado algo em uma das casas que visitou entre a hora do café da
manhã e a de sua volta?
Mulgrew rebuscou em seu bolso em busca de um novo lenço.
—Depende das causas da morte. Se não foi a beladona terá que se começar de
novo. Se foi, então minha resposta é que não. A beladona tem efeitos rápidos. É
impossível que tomasse e depois voltasse tranqüilamente para casa, subisse as escadas,
arrumasse-se, baixasse de novo e de repente se sentisse mal.
De momento será melhor dar por sentado que tomou aqui.
—Um dos criados, pois? -aventurou Pitt-. Não será difícil averiguar qual deles lhe
levou algo ao salão. Mas e o motivo?
—Felizmente não é meu trabalho averiguá-lo. -Mulgrew contemplou com cenho seu
lenço. Pitt lhe ofereceu um dos seu-. Obrigado. O que se propõe fazer agora?
Pitt amarrou o cachecol ao pescoço e colocou as mãos nos bolsos.
—Farei algumas visitas. Harris se ocupará de que se levem o corpo. A autópsia,
naturalmente, correrá a cargo do legista da polícia. Atrevo-me a lhe sugerir que ajude ao
senhor Spencer-Brown. Parece muito afetado.
—Sim. -Mulgrew lhe estendeu a mão e Pitt a estreitou.
Cinco minutos depois estava na rua, invadido pelo frio e tristeza. O próximo passo
estava claro. Não lhe ocorriam motivos para adiá-lo. Se Charlotte estava certa, algo muito
desagradável acontecia no Rutland Place. Estavam-se cometendo pequenos roubos, e
possivelmente alguém se dedicava a espiar a vida de outros.
Provavelmente a morte de Mina não era mais que o trágico corolário de um dos

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aspectos daquele assunto.


Com mão trêmula bateu na porta de sua sogra. As perguntas que tinha que lhe fazer
seriam necessariamente desagradáveis. Ela teria a sensação de que se estavam
intrometendo em sua vida, e o fato de tratar-se do Pitt não melhoraria as coisas.
A criada não o reconheceu.
—Sim, senhor? -Parecia surpreendida. Não era habitual que um cavalheiro batesse
na porta a essas horas, e menos ainda tratando-se de um estranho. Aquele indivíduo
desajeitado, desalinhado e despenteado pelo vento, com seu casaco puído, era uma
aparição certamente inesperada.
—Por favor, diga à senhora Ellison que o senhor Pitt deseja vê-la. –Entrou no saguão
sem dar tempo à criada para protestar-. É um assunto urgente.
O nome não era desconhecido a jovem, mas não foi capaz de relacioná-lo com
aquele indivíduo. Vacilou entre deixá-lo seguir adiante ou pedir ajuda a um criado.
—Bem, senhor. Se fizer o favor de esperar na saleta... -disse, não muito convencida.
—Naturalmente. -Pitt se deixou guiar até a silenciosa habitação. Caroline demorou
pouco em chegar, com expressão de estar a ponto de ter um sufoco.
—Thomas! Aconteceu- algo à Charlotte? Está doente?
—Não; está perfeitamente. -Pitt estendeu suas mãos para ela, querendo tranqüilizá-
la, mas em seguida recordou sua posição-. Receio que se trata de algo muito diferente.
A ansiedade desapareceu do rosto de Caroline.
Entretanto, como alarmada por algum sinal, voltou a ruborizar-se. Para Pitt não foi
preciso explicações para adivinhar o motivo: Caroline temia que Charlotte lhe tivesse
contado o do medalhão e retrato.
Seu instinto de polícia lhe dizia que o medo facilitaria algum deslize, mas não fez
caso dele e preferiu explicar tudo.
—Tenho o dever de lhe informar que a senhora Spencer-Brown morreu esta mesma
tarde, e que ainda desconhecemos as causas.
—Meu deus! -Caroline levou a mão à boca, horrorizada-. Que espanto!
Sabe o pobre Alston... O senhor Spencer-Brown?
—Sim. Encontra-se bem? -Caroline tinha empalidecido, embora não perdesse a
compostura-. Deseja que chame à criada?
—Não, obrigada. -sentou-se no sofá-. Foi muito amável ao vir me informar, Thomas.
Sente-se, por favor. Ter que olhá-lo de baixo acima põe nervosa. -Respirou fundo
enquanto alisava meticulosamente o vestido-. A morte não foi natural? Um acidente

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possivelmente causado por alguma imprudência?


Pitt tomou assento em frente a ela. -Não sabemos ainda. Em todo caso não morreu
que um acidente de tráfico nem de uma queda, se a isso se refere. Ao que parece foi
envenenada.
Caroline ficou sobressaltada e seus olhos se abriram com incredulidade.
—Envenenada? É atroz, além de ridículo! Não; deve ter sido um enfarte, algum tipo
de ataque... -interrompeu-se, com as mãos presas aos joelhos.
—Insinua que foi assassinada, Thomas?
—Não sei. Talvez, ou possivelmente um acidente, um suicídio... -Não teve mais
remédio que continuar. quanto mais o adiar, mais artificial ia ser. - Charlotte me falou de
uma série de roubos de pouca monta na vizinhança. Disse-me, além disso, que você teve
a desagradável sensação de ser espiada.
—Disse-lhe isso? -Tensa, endireitou-se em seu assento-. Teria preferido que
guardasse o segredo, mas suponho que já não importa. Com efeito, várias pessoas
sentiram falta de pequenos objetos. Se pensa em me repreender por não ter ido à polícia...
—Absolutamente! -disse Pitt com mais ênfase do que pretendia. A crítica implícita de
Caroline tinha ferido-o. - Entretanto, agora que as coisas se agravaram com uma morte,
tenho interesse em que me diga se acha possível que a senhora Spencer-Brown fosse a
responsável por esses roubos.
—Mina? -Ante o inesperado da idéia, Caroline arregalou os olhos.
—Isso daria um motivo para a hipótese do suicídio -argumentou Pitt-. Possivelmente
percebeu que era incapaz de reprimir seus impulsos.
Caroline franziu o sobrecenho.
—Não sei a que se refere... Incapaz de reprimir...? Nada justifica o roubo.
Entendo aos que roubam obrigados por sua extrema pobreza, mas Mina tinha quanto
desejava. Além disso, nenhum desses objetos tem valor. Só são quinquilharias, coisas
como um lenço, uma abotoadura, uma caixa de rapé... Para que ia querê-los Mina?
—Às vezes a pessoa se apodera de coisas simplesmente porque é incapaz de
conter-se. -Pitt sabia que as explicações eram inúteis.
Tinham inculcado em Caroline certos valores desde menina, critérios absolutos do
bem e do mal. A vida lhe tinha ensinado como era complexo o comportamento humano,
mas o direito à propriedade era um dos fundamentos da ordem social, marco de toda
moralidade. Nunca tinha questionado esses preceitos.
Para ela não existiam mais impulsos irreprimíveis que os devidos ao medo e à fome,

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ou, no limite, certos apetites carnais que eram aceitos -não consentidos- nos homens e
jamais obviamente, nas mulheres. - Mas falar de problemas graves de solidão ou falta de
adaptação, de frustrações e outras enfermidades sem nome, era de todo impensável.
—Continuo sem saber do que está falando - disse Caroline sem alterar-se-.
Talvez Mina soubesse quem era o culpado. De vez em quando dava a entender que
sabia bastante mais do que achava conveniente dizer. Mas duvido que haja alguém capaz
de cometer um assassinato com a única finalidade de ocultar uns poucos roubos
mesquinhos. Quero dizer que é fácil despedir uma criada ladra, mas levar o caso ante a
justiça é mais delicado.
Mais vale evitar a perturbação de uma investigação e as perguntas graves da polícia.
Em troca, tratando-se de um assassinato não há escolha: pendura-se ao culpado. A polícia
se encarrega disso.
—Sim, desde que o apanharmos. -Pitt não estava com ânimo para enrascar-se em
uma discussão sobre a moralidade do sistema penal. Teria sido impossível chegar a um
acordo, pois nem sequer teriam falado do mesmo. Os mundos em que se moviam um e
outra não tinham nada em comum.
Ela não tinha visto jamais aos detentos fazendo a roda no pátio ou trabalhando na
pedreira.
Desconhecia o aroma dos corpos cheios de piolhos ou prostrados pela febre, as
mãos ensangüentadas pela estopa, para não falar da cela da morte e da forca...
Caroline se afundou ainda mais no sofá. Sentiu calafrios ao pensar em seus recentes
temores, e na morte de Sarah.
—Desculpe-me -disse Pitt, dando-se conta disso-. Ainda não temos dados para
suspeitar de um assassinato. Acima de tudo devemos indagar os possíveis motivos de
suicídio. É uma pergunta delicada, mas o suicídio não tem em conta os sentimentos. Acha
possível que estivesse metida em alguma relação sentimental capaz de mergulhá-la no
desespero? -Pitt pensava em como estava convencida Charlotte da importância das
aventuras de sua mãe.
Tão presente tinha suas palavras que quase esperava de Caroline uma confissão
pessoal, mais que uma resposta à morna pergunta que acabava de lhe formular. Sentiu-se
culpado, como se tivesse sido caçado espiando pela janela de um salão.
Se Caroline se surpreendeu com a pergunta, não deu mostra disso. Talvez depois de
tantas preliminares já esperava algo do gênero.
—Eu, em todo caso, não me dava conta de nada - respondeu-. Deveria ter sido

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extraordinariamente discreta! A menos que...


—O que?
—A menos que se tratasse do Tormod -disse, pensativa. - Rogo, Thomas, que leve
em conta que não faço mais que expressar possibilidades muito remotas.
—Levo isso em conta. Quem é Tormod?
—Tormod Lagarde. Vive no número três da praça. Sarah o conhecia desde há anos e
o apreciava muito.
— É casado?
—OH, não! Vive com sua irmã mais nova. São órfãos.
—Que tipo de pessoa é?
Caroline refletiu um momento antes de responder, sopesando os detalhes que
podiam interessar ao Pitt.
—É muito bonito -disse-, de uma atitude muito romântica. Há algo nele que o faz
parecer inacessível e reservado. É esse tipo de homens que apaixonam as mulheres
porque nunca as deixam aproximar-se o suficiente para que se desvaneça a ilusão.
Sempre se mantém distante. Amaryllis Denbigh está apaixonada por ele, e não é a
primeira.
—E ele alguma vez... ? -Pitt não sabia como formular a pergunta em termos
aceitáveis.
Caroline sorriu, fazendo-o sentir de repente torpe e ingênuo.
—Que eu saiba, nunca -respondeu-. E acredito que saberia, se se tivesse dado o
caso. Movemo-nos em círculo muito reduzido, sabe? Sobretudo aqui, no Rutland Place.
—Entendo. -Pitt sentiu um calor repentino no rosto-. Então não é impossível que a
senhora Spencer-Brown sofresse por um amor não correspondido.
—Não, não é impossível.
—O que sabe do senhor Spencer-Brown? -perguntou Pitt, passando à segunda via
principal de investigação-. É desses homens capazes de ter aventuras com outras
mulheres e causar a sua esposa tanto dano que, uma vez inteirada se tire a vida?
—Quem, Alston? Não, Por Deus! Para mim é quase impossível. Claro que, a sua
maneira, é muito agradável, mas lhe asseguro que não é homem de grandes paixões. -
Caroline sorriu com tristeza-. Pobre Alston! Imagino que estará afetadíssimo, tanto pela
morte de sua esposa como pelo modo em que aconteceu.
Solucione o caso quanto antes possível, Thomas. Não sei se percebe o dano que
podem fazer as conjeturas e suspeitas.

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Pitt não respondeu. Como podia saber-se até que ponto alguém entendia a onda
expansiva da dor, o modo em que um sofrimento gerava outro, e outro mais?
—Fá-lo-ei -prometeu-. Há algo mais que possa me dizer? -Ficava por falar,
evidentemente, da suposta espionagem. Pitt deveria ter perguntado à Caroline se pensava
que o espião podia estar à corrente da hipotética relação entre Mina e Tormod Lagarde, ou
de que Mina era a responsável pelos roubos.
Ou a outra grande possibilidade: sabia Mina algo daqueles roubos? Era essa a causa
porque tivesse sido assassinada?
Restavam ainda outras opções. Talvez Mina fosse à ladra e, em um de seus
inocentes roubos, tomou um objeto comprometedor, tão comprometedor que seu
proprietário tinha preferido o assassinato a ver descoberto seu segredo.
Por exemplo, um medalhão com uma reveladora fotografia, ou alguma prova ainda
mais irrefutável. Que outra coisa podia ter roubado? Acaso se tinha dado conta e tinha
tratado de fazer chantagem, nem tanto por dinheiro como pelo puro prazer de ter a alguém
a sua mercê?
Contemplou o rosto de Caroline, a pele de pêssego de suas faces, suas maçãs do
rosto marcadas, o esbelto pescoço que recordava ao do Charlotte. Olhou suas mãos, tão
longas e delicadas, tão semelhantes às de sua filha. E não foi capaz de lhe fazer aquelas
perguntas.
—Não - disse Caroline, inconsciente da batalha que Pitt travava em seu foro interno-.
Receio que de momento não.
De novo Pitt deixou escapar sua oportunidade.
—Se se lembrar de algo, me mande uma mensagem e acudirei em seguida. -
levantou-se-. Como acaba de dizer, quanto antes saibamos a verdade menos doloroso
será para todos. -encaminhou-se para a porta e, voltando-se, disse: — Por acaso tem idéia
de onde foi à senhora Spencer-Brown a primeira hora da tarde? Pois como o fez
caminhando, teve que visitar um vizinho próximo.
Caroline apertou a mandíbula e aspirou fundo, consciente do alcance de suas
palavras.
—Não sabe? A casa dos Lagarde. Acabo-o de ouvir de alguém em casa dos
Charrington, embora não lembro de quem.
—Obrigado -disse Pitt-. Talvez isso explique tudo. Pobre mulher! E pobre homem! Por
favor, não o mencione a ninguém. É questão de decência deixar que passe inadvertido,
dentro do possível.

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—Naturalmente. -Caroline avançou uns passos para ele-. Obrigada, Thomas.

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Capítulo 4

Charlotte não andou com tantos cuidados como Pitt ao falar com Caroline.
Em grande parte porque estava assustada, e a intensidade e urgência do medo se
sobrepunham à prudência que de outro modo teria suavizado suas palavras. Velhas
lembranças iam a sua mente, como se a surpresa e a decepção fossem coisas de ontem
mesmo.
Não obstante, o impulso de proteger a sua mãe se fez maior. Agora percebia as
coisas com maior nitidez, e as via de fora, sem que suas próprias emoções
entorpecessem, como então, seu raciocínio.
—Acho que é pouco razoável manter a esperança de que o envenenamento de Mina
fosse um acidente -disse no dia seguinte, sentada no salão de sua mãe.
Tinha decidido ir vê-la assim que soube do Pitt as notícias. As fofocas não iriam
demorar. Podiam cometer-se enganos ao primeiro encontro.
"Seria trágico chegar a pensar que a pobre mulher se sentia desventurada até o
ponto de tirar a vida - continuou-, e ainda pior supor que alguém a odiasse tanto para
chegar ao assassinato. Mas por muito que fechemos os olhos não conseguirão fazer
desaparecer a verdade.
—Já contei ao Thomas o pouco que sei - disse Caroline com pesar-. Até me atrevi a
fazer algumas hipóteses muito aventurosas, e agora me arrependo delas. Provavelmente
tenha sido totalmente injusta.
—Além de pouco honesta - acrescentou Charlotte com dureza-. Não lhe disse nada
do retrato de monsieur Alaric no medalhão roubado.
Caroline ficou rígida, apertando os dedos como em um espasmo repentino.
—Fez isso? -disse lentamente.
Charlotte percebeu sua raiva contida, mas estava muito preocupada para perder o
tempo em ofensas.
—Claro que não! -Rechaçou a acusação sem sequer defender-se-. Mas isso não
muda o fato de que, se você perdeu um objeto desse tipo, talvez a outros passasse o
mesmo.
—E o que tem que ver com a morte de Mina? -Caroline continuava crispada pelo
medo.
—Não se faça de idiota! -estalou Charlotte, exasperada. Por que se mostrava

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Caroline tão obtusa?-. Se Mina fosse à ladra, é possível que a assassinassem para
recuperar o objeto em questão. E se, ao contrário, era ela a vítima dos roubos, talvez se
tratasse de algo tão importante e perigoso que não teve forças para suportar que se
fizesse público.

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Fez-se o silêncio. Na cozinha caiu uma frigideira, e o ruído chegou atenuado até o
salão. A raiva desapareceu pouco a pouco do rosto de Caroline, à medida que começava a
compreender. Charlotte a contemplou sem falar.
—E o que seria pior que a morte? -perguntou Caroline finalmente.
—É o que devemos averiguar. -Charlotte relaxou por fim seu corpo, o suficiente para
sentar-se adequadamente em sua cadeira e apoiar-se no espaldar-. Thomas rastreará as
provas, mas possivelmente lhe faça falta nossa ajuda para interpretá-las.
No fim de contas não pode esperar-se da polícia que compreenda os sentimentos de
uma pessoa como Mina. O que lhes pareceria corriqueiro pode ter sido entristecedor para
ela.
Não havia necessidade de explicar todas as diferenças de classe, sexo e a de
costumes e valores que afastavam ao Pitt e Mina. Tanto Charlotte como Caroline
entendiam que nem a acuidade do Pitt nem sua imaginação lhe serviriam para ver com os
olhos de Mina, nem lhe iriam guiar até o motivo de sua morte.
—Preferiria não ter que averiguá-lo - disse Caroline com tom fatigado-. Quanto eu
gostaria de deixá-la descansar em paz! Não me incomoda aceitar um mistério.
Aprendi que averiguar todas as respostas não nos faz necessariamente mais felizes.
Charlotte se dava conta de que os sentimentos que expressava sua mãe nasciam em
grande parte de seu desejo de proteger sua própria intimidade e seus segredos.
O prazer da paquera residia em grande parte em que outros o presenciassem, e o
saber o assustava ainda mais ao Charlotte. O interesse de Caroline por Paul Alaric devia
ser muito forte, se preferia que sua relação passasse inadvertida. Significava que era algo
mais que um jogo.
Naquela relação havia algo muito importante para Caroline, algo mais que pura
admiração.
—Não pode se permitir não saber! -disse Charlotte com dureza, tentando despertar
em sua mãe um medo suficientemente agudo para devolvê-la à realidade-. Se Mina era a
ladra, possivelmente seu medalhão continue em sua casa! Quando se investigarem suas
posses, Alston o achará, ou Thomas!
A mutreta funcionou. O rosto de Caroline adquiriu a rigidez de uma máscara.
Engoliu em seco com dificuldade.
—Se Thomas o achar... -deu-se conta da terrível conclusão-. Meu Deus! Pensará que
eu matei Mina! Alguma vez acreditaria em tal coisa, não é, Charlotte? Ou sim?
O perigo era muito real para andar-se com afetações e dissimulações.

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—Thomas provavelmente não, mas possivelmente outros membros da família. Tem


que haver uma explicação para a morte de Mina, e mais vale que a encontremos logo,
antes que apareça o medalhão e as pessoas comecem a murmurar.
—Mas qual? -Caroline, desesperada-, fechou os olhos, procurando uma explicação
nas trevas de sua mente-. Nem sequer sabemos se foi suicídio ou assassinato! Falei com
o Thomas do Tormod Lagarde.
—O que acontece com Tormod? -Thomas não tinha mencionado que Tormod
estivesse comprometido.
—Talvez Mina estivesse apaixonada por ele - respondeu Caroline-.
Não há dúvida de que o admirava; possivelmente mais do que pensávamos. E visitou
os Lagarde justo antes de morrer. Talvez estivesse interessada pelo Tormod, e sua
rejeição lhe foi insuportável.
A idéia de que para uma mulher casada o final de uma aventura pudesse dar pé ao
suicídio perturbava ao Charlotte. Era algo espantoso e patético, que lhe provocava
repulsão, sobre tudo porque não podia afastar de sua mente Caroline e Paul Alaric.
Não obstante, ignorava até que ponto a vida de casal dos Spencer-Brown era
desagradável ou vazia. Não tinha direito a julgar. Havia tantos matrimônios de
conveniência! E inclusive os que eram fruto do amor podiam azedar-se. Repreendeu-se
por fazer julgamentos tão à ligeira, tendência que criticava em outros.
—Imagino que Eloise Lagarde saberá algo -disse Charlotte-. Teremos que ir com
muito tato ao fazer perguntas. Ninguém gostará de pensar que pode ter provocado um
suicídio, embora seja involuntariamente. Além disso, Eloise quererá proteger a seu irmão.
A esperança se apagou do rosto de Caroline.
—Sim, querem-se muito. Suponho que é por não ter tido a ninguém depois da
prematura morte de seus pais.
—Restam muitas possibilidades além dessa –respondeu Charlotte-. Houve roubos.
Talvez furtaram de Mina uma lembrança amorosa do Tormod, e a pobre não pôde
agüentar o medo a que se fizesse público. Até é possível que a ameaçassem diretamente
dando-lhe ao Alston se não lhes pagava, com dinheiro ou com qualquer outra coisa que
desejassem. -Sua imaginação começou a procurar motivos que pudessem fazer uma
pessoa pensar na morte-.
Talvez esse outro homem a desejasse, e o preço de seu silêncio fosse...
—Charlotte! -Caroline se ergueu de um salto-. Que detestável imaginação, filha! Nos
tempos em que vivia comigo não teria sido capaz de pensamentos como esses.

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À Charlotte ocorreram algumas palavras irritadas sobre Caroline, Paul Alaric e o


assunto da moralidade, mas se conteve.
—No mundo real acontecem coisas detestáveis, mamãe - se limitou a dizer-. Além
disso, fiz alguns anos depois.
—E também parece ter esquecido que classe de pessoas somos. No Rutland Place
não há um só homem capaz de rebaixar-se tanto!
—Talvez não abertamente -disse Charlotte. Tinha idéias próprias sobre que coisas
chegavam a fazer-se, e como se disfarçavam com amáveis palavras-. Mas não tem por
que tratar-se de um dos seus.
Por que não um lacaio, ou inclusive um engraxate? Atreve-te a responder deles com
a mesma segurança?
—Deus santo! Não fala a sério!
—Por que não? Acaso não seria suficiente para empurrar a Mina, ou a qualquer outra
mulher, ao suicídio? Não o faria você?
—Eu...? -Caroline se sentiu surpreendida. Deixou escapar o fôlego muito lentamente,
como se se desse por vencida-. Não sei. Parece-me uma dessas coisas que, de tão
horríveis, fazem impossível prever sua reação até que aconteçam de verdade. -Baixou o
olhar e contemplou o chão-. Pobre Mina! Odiava tudo o que pudesse parecer indecoroso.
Isso que diz a haveria... a teria consumido até as entranhas!
—Não sabemos se aconteceu, mamãe. Pode ter sido algo muito diferente. Talvez
Mina fora a autora dos roubos e não se atreveu a confrontar a vergonha de ser descoberta.
—Mina? OH, é impossível que... -Caroline se deteve; em sua expressão lutavam
incredulidade e suspeita.
—Há um ladrão - indicou Charlotte sensatamente-, e tendo em conta onde foram
roubados os objetos, não parece que possa ser um criado. Em troca sim, alguém como
Mina.
—Mas se lhe roubaram algo - argumentou Caroline-, uma caixa de rapé...
—Quererá dizer que se queixou disso - a corrigiu Charlotte-. Além disso, não era
dela, pertencia a seu marido. O melhor modo de afastar as suspeitas é roubar-se a si
mesmo. Não é preciso ser muito inteligente para saber isso.
—Não, suponho que não. E acha que esse indivíduo que nos espiona estava à
corrente?
—É uma possibilidade.
Caroline meneou a cabeça.

Anne Perry – Thomas Pitt 05 – Os Roubos de Rutland Place


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—É, para mim, muito difícil de acreditar.


—Há algo que não o seja? Ontem mesmo Mina estava viva.
—Sei! É tudo tão desagradável, inútil e estúpido! Às vezes me faz impossível aceitar
que todas estas mudanças irrevogáveis tenham acontecido em algumas horas.
Charlotte provou uma nova direção.
—Continua tendo a sensação de ser vigiada?
Caroline pareceu surpreendida.
—Não tenho a menor idéia! Nem sequer pensei nisso! O que importa um simples
olheiro frente à morte de Mina?
—Poderia estar relacionado. Só tento esgotar todas as possibilidades.
—Pois não parece que haja nenhuma capaz de justificar a morte de uma pessoa. -
Caroline ficou em pé-. Mas é hora de que almocemos. Encarreguei que sirvam a comida a
uma menos quarto, e já passa da hora.
Charlotte seguiu a sua mãe à sala do café da manhã, onde a criada, com a mesa
posta, estava preparada para servir.
Assim que a moça saiu da sala, Charlotte começou a tomar a sopa, enquanto tratava
de recordar partes de sua conversa com Mina uma semana atrás. Mina tinha feito alguns
comentários sobre o Ottilie Charrington, sobre sua morte, sugerindo inclusive que havia
algo misterioso nisso. Era uma idéia desagradável, mas Charlotte se decidiu a explorá-la.
—Mamãe, Mina estava á tempo vivendo aqui, não é?
—Vários anos, sim. Por que o pergunta?
—Nesse caso devia conhecer bastante bem a seus vizinhos. O bastante para, se
fosse ela a ladra e tivesse roubado algo valioso, dar-se perfeita conta de seu significado.
Não acha?
—Por exemplo?
—Não sei. A morte do Ottilie Charrington, possivelmente? Falou muito disso quando
a visitou. Parecia suspeitar de um segredo encoberto, algo que a família preferia ocultar.
Caroline deixou a colher no prato.
—Quer dizer que não foi uma morte natural?
Charlotte franziu o sobrecenho.
—Não, não me refiro a isso. Entretanto, talvez Ottilie não fosse tão respeitável como
teria desejado o senhor Charrington. Mina disse que era muito alegre e frívola, e insinuou
claramente que também era um pouco indiscreta.
Possivelmente se não tivesse morrido nesse momento se teria feito algum

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escândalo...
Caroline partiu uma parte de pão e ficou outra vez a comer.
—É uma idéia muito desagradável - disse-, mas suponho que tem razão. Mina se
despachou com algumas coisas que a gente não sabia. Nunca o perguntei, porque gostava
tanto de Ambrosine que preferiria não respirar as fofocas. Mas admito que por culpa de
Mina cheguei a sentir também certa curiosidade com respeito à Theodora.
Charlotte estava desorientada.
—Quem é Theodora?
—Theodora Von Schenck, a irmã de Amaryllis Denbigh. É viúva, com dois filhos.
Não a conheço muito, mas tenho que reconhecer que gosto dela também.
Charlotte custava entender que uma pessoa aparentada com Amaryllis Denbigh
pudesse ser simpática.
—Seriamente? -disse, sem dar-se conta de seu tom cético.
Caroline sorriu.
—Não se parecem em nada. Para começar, aparentemente Theodora não sentiu
desejo de casar-se outra vez, apesar de que, pelo que se sabe, não dispõe de muitos
recursos. E não é pouco o que se sabe, asseguro-lhe! De fato, quando há uns anos se
mudou a este bairro, suas posses se limitavam à casa que tinha herdado de seus pais.
Agora, em troca, tem um casaco novo, com goal e guarnição até o chão, e eu juraria
que é de Marta. Lembro que, quando o estreou, comentei com Mina. Envergonha-me
reconhecê-lo, mas não posso evitar me perguntar de onde o tirou.
—Algum amante, possivelmente? -Charlotte sugeriu o mais claro.
—Pois nesse caso o leva com uma discrição incrível!
—Aparecer com um casaco de Marta da noite para o dia não me parece o mais
discreto -replicou Charlotte-. Não será tão ingênua para esperar que passe desapercebido.
Com certeza qualquer mulher do Rutland Place seria capaz de lotear as roupas das
demais. E certamente também o nome do alfaiate, e a data de confecção.
—OH, Charlotte, que injusta é! Não somos tão... tão maliciosas e frívolas como
parece pensar.
—Maliciosas não, mamãe. Simplesmente práticas, e com um excelente olho crítico.
—Sim, suponho que sim... -Caroline tomou as últimas colheradas de sopa.
A criada voltou a entrar para servir o prato seguinte. Charlotte e sua mãe tomaram
pausadamente. O prato consistia em um peixe de suave sabor e bem cozido.
Em outras circunstâncias, Charlotte o teria desfrutado a fundo.

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—Salta à vista que agora Theodora dispõe de mais dinheiro que antes -continuou
Caroline-.
Em certa ocasião Mina sugeriu que para consegui-lo tinha feito algo não de todo
correto; mas tenho certeza de que brincava. Às vezes fazia brincadeiras de péssimo gosto.
-Ergueu o olhar-. Acha que poderia ser verdade? Acha que Mina sabia algo?
—Quem sabe... -Charlotte sopesou a hipótese-. Ou também pode ser que Mina o
dissesse com má intenção, ou pelo gosto de chamar a atenção. As intrigas mais estúpidas
às vezes começam assim.
—Mas Mina não era dessas -argumentou Caroline-. Raramente falava de outras
pessoas, ou se limitava a fazer os mesmos comentários que todo mundo.
Preferia escutar.
—Então começo a pensar que a coisa tem que ver com o Tormod –refletiu Charlotte-,
ou com outro homem que não conhecemos. Ou possivelmente com o Alston. Também
pudesse ser, simplesmente, que fosse ela a ladra.
—Um suicídio, então? -Caroline afastou o prato-. Me horroriza pensar que uma
mulher da mesma condição que eu, em nada diferente de mim, e que vivia a poucos
metros de distância, sentisse-se desgraçada até o ponto de preferir o suicídio a viver um
dia mais... e sem que eu tivesse o menor indício!
E passa-se o dia ocupada nas trivialidades cotidianas, pensando no menu,
assegurando-se de que o jogo de mesa seja remendado, programando as visitas... Como
se não houvesse nada mais que fazer!
Charlotte tocou a sua mãe para consolá-la.
—Embora o tivesse sabido, duvido que pudesse fazer algo - disse-. Mina não deu
sinais de estar tão desesperada. Não se pode remexer na intimidade de outros em busca
da verdade. Às vezes a dor se agüenta mais facilmente a sós; a humilhação é a última
coisa que a gente desejaria compartilhar.
O mais amável que podemos fazer é fingir que não nos damos conta de nada.
—Suponho que tem razão. Entretanto não posso deixar de me sentir culpada.
Com certeza teria podido fazer algo.
—Já é muito tarde. A única coisa que pode fazer é falar bem dela.
Caroline suspirou.
—Enviei uma carta ao Alston, naturalmente, mas é muito cedo para lhe fazer uma
visita. Sem dúvida estará muito afetado.

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Mas também a pobre Eloise se encontra mal. Pensei que poderíamos ir vê-la esta
tarde e lhe oferecer nossa ajuda. Sofreu uma comoção muito forte. Começo a acreditar
que sua saúde é mais frágil do que pensava.
A perspectiva não entusiasmava ao Charlotte, mas se deu conta de que se tratava
virtualmente de uma obrigação. Além disso, os Lagarde tinham sido os últimos em ver
Mina viva, além de seus próprios criados. Talvez pudessem proporcionar nova informação.
Charlotte ficou surpreendida quando entrou no salão dos Lagarde atrás de sua mãe.
Eloise não parecia à mesma mulher que tinha visto na semana anterior. Em um primeiro
momento quase esperou que a apresentassem. Eloise estava pálida e seus gestos eram
tão lentos que dava a impressão de mover-se em sonhos. A jovem forçou um sorriso tênue
e apagado.
A morte tinha feito sua aparição no Rutland Place. As formalidades e cortesias de
sempre, a fingida alegria de rigor, pareciam deslocadas.
—Foram muito amáveis ao vir -disse Eloise lentamente-. Por favor, fiquem à vontade.
Deve fazer muito frio ainda. -Sobre o vestido levava um grosso xale.
Charlotte tomou assento em uma cadeira do outro lado da sala, tão longe da lareira
como lhe permitiu a boa educação; o fogo crepitava como se fosse pleno inverno. No
exterior fazia um agradável dia de primavera, ainda um pouco frio, mas ensolarado.
Caroline parecia ter ficado muda. Talvez sua própria ansiedade a impediu de formular
comentários corteses. Charlotte se apressou a tomar a palavra, antes de Eloise se dar
conta.
—Sim, temo que o verão sempre demora mais do que uma espera –disse
corriqueiramente. - Assim que vemos que os dias se fazem mais longos, parece- nos que o
sol tem que ser mais quente, mas poucas vezes é assim.
—Ah- disse Eloise, com o olhar posto no retângulo azul da janela-. Com efeito, é fácil
enganar-se. Brilha com força, mas até que não se sai não se dá conta do frio que faz.
Caroline recordou o propósito de sua visita.
—Ficaremos pouco tempo - disse-, porque não é momento de reuniões sociais.
Charlotte e eu estávamos preocupadas com você, e queríamos saber como se
achava. Se houver algo que possamos fazer para lhe dar ânimo...
Por uns instantes Eloise deu a impressão de não entender. Finalmente caiu na conta
e mudou de expressão.

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—São muito amáveis. -Dedicou-lhes um sorriso-. Não acredito que me tenha afetado
mais que aos outros vizinhos. Pobre Mina! Com que rapidez mudam às vezes as coisas!
Parece-nos que tudo vai como de costume, e em um minuto se produziram as mais
espantosas mudanças, de forma tão completa que se diria que passaram anos.
—Às vezes tais mudanças não são mais que o resultado de lamentáveis acidentes. -
O assunto era muito importante para que Charlotte desperdiçasse a oportunidade de
surrupiar informação-. Em troca, outros estão aí, escondidos, durante muito tempo.
Acontece simplesmente que não soubemos reconhecê-los.
Eloise, desorientada, abriu os olhos, esforçando-se por compreender o estranho
comentário de Charlotte.
—A que se refere?
—Nem eu mesma sei- escapuliu-se Charlotte. Não devo dar a impressão de estar
bisbilhotando-. Pensava simplesmente que, se a pobre senhora Spencer- Brown se tirou a
vida, então é que a tragédia tinha tomado proporções cada vez mais grandes durante um
tempo, sem que nós soubéssemos. -propôs-se ser mais sutil, mas a ingenuidade de Eloise
a impedia de brincar com as palavras, como teria feito com uma interlocutora mais sagaz.
Eloise ficou olhando as dobras de sua saia.
—Acredita que se tirou a vida? -Pronunciou as palavras uma a uma com clareza,
sopesando-as. - Me parece uma covardia por parte de Mina. Sempre a considerei uma
pessoa de sólida força interior.
Suas palavras surpreenderam ao Charlotte. Teria esperado da jovem mais piedade e
compreensão.
—Não sabemos com que classe de sofrimentos teve que lutar -disse, com um tom
não muito amável-. Pelo menos, eu não sei.
—Não... -Eloise deu sinais de arrepender-se, e não levantou o olhar-. Tem razão,
apenas adivinhamos até onde chega o sofrimento de outros. Ignoramos até que ponto é
intenso... -Meneou a cabeça-. Não obstante, continuo pensando que suicidar-se é uma
espécie de capitulação.
—Há quem se cansa tanto que já não pode seguir lutando, ou sofre de uma ferida
impossível de suportar -insistiu Charlotte, perguntando-se no fundo por que defendia com
tanto calor a Mina. Em vida não lhe tinha sido muito simpática, a diferença de Eloise.
—Não sabemos se a pobre Mina se tirou a vida – interveio Caroline finalmente. Pode
haver-se tratado de algum terrível acidente. Resisto a acreditar que não nos déssemos
conta de nada, se seus sofrimentos eram tão horríveis.

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—Não estou de acordo, mamãe -replicou Charlotte-. Diga, senhorita Lagarde, em


sua opinião foi isso o que aconteceu? Você a conhecia bem, não é?
Eloise demorou um momento em responder.
—Não sei. Antes me parecia estar à corrente de tudo. Conseguia me inteirar de todas
as fofocas, e me sentia capaz de julgar seu alcance. Mas agora... -Sua voz se apagou.
Ficou em pé e, dando-lhes as costas, caminhou até a janela que dava para o jardim-.
Agora me dou conta de que quase não sabia nada.
Charlotte se dispunha a seguir interrogando-a quando, de repente, a porta se abriu
deixando passar ao Tormod. Seu olhar posou em Eloise, e depois em Charlotte e Caroline.
Parecia tenso, preocupado.
—Boa tarde -disse-. Que amável visita! -Voltou a olhar ao Eloise com olhos inquietos-
. Me entristece dizê-lo, mas minha irmã reagiu muito mal ante esta horrível tragédia. Pôs-
se virtualmente doente. -Sua voz sugeria que devia ir-se com cuidado e escolher bem as
palavras sob pena de piorar o estado do Eloise.
Caroline murmurou uma frase compreensiva.
—O fato é realmente espantoso -disse Charlotte-. É lógico que uma pessoa sensível
se compadeça dos afetados. Além disso, soube que foram vocês os últimos em vê-la.
Tormod lhe dedicou um olhar intenso.
—Com efeito... E é normal que Eloise se sinta consternada, ao pensar que
possivelmente teríamos podido ajudá-la de uma forma ou outra. Embora naturalmente
seus criados...
—Oh, os criados! -disse Charlotte, relegando-os a seu lugar com um pequeno gesto
dos dedos-. Nunca é o mesmo que ter amigos. Aos amigos pode contar tudo.
—Exato! -disse Tormod-. Por desgraça, ela não o fez. Sinceramente, acredito que se
tratou de um acidente; talvez uma dose equivocada de medicamentos.
—É possível -disse Charlotte-. Eu não a conhecia muito. Seriamente era tão
distraída?
—Não. -Eloise se deu a volta-. Sempre a via perfeitamente consciente de seus atos.
Se cometeu uma imprudência tão fatal, significa que estava aturdida. Do contrário antes de
bebê-lo-teria percebido que tinha pego o frasco ou a caixinha equivocada.
Tormod se aproximou de sua irmã e a rodeou carinhosamente com o braço.
—Deve deixar de pensar nisso, querida - disse-. Já não podemos ajudá-la. Só
conseguirá se atormentar. Ficará doente, e não ajudará a ninguém com isso.
Ao contrário, me entristecerá muito. Amanhã partiremos para o campo, ao Five Elms.

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Ali pensaremos em coisas diferentes. O tempo está melhorando dia a dia. No bosque
já despontarão os primeiros narcisos. Pegaremos a carruagem e iremos vê-los. Se fizer
calor poderíamos levar comida. Gosta da idéia?
Eloise sorriu a seu irmão, e sua expressão se suavizou. Qualquer um diria que era
ela quem se esforçava em consolá-lo.
—Claro que sim! -Puxou-o pela mão-. Obrigado.
Tormod se voltou para o Caroline.
—Senhora Ellison, senhora Pitt, foram muito atentas nos visitando. Amostras de
amizade como a sua ajudam a que as coisas sejam mais suportáveis.
Sem dúvida vocês estão tão afetadas como nós. No fim de contas, Mina era também
amiga sua.
—Tem razão, sinto-me totalmente confundida - disse Caroline com certa
ambigüidade.
Charlotte refletia ainda sobre o significado daquelas palavras quando a criada abriu a
porta e anunciou à senhora Denbigh. Amaryllis seguia à moça a tão pouca distância que
não deu tempo para responder se a visita era bem recebida ou não.
Eloise a olhou com tristeza, como se visse através dela. Tormod sorriu cortesmente,
sem soltar a sua irmã.
O rosto de Amaryllis ficou tenso, e seus redondos olhos faiscaram com acuidade.
—Encontra-se mau, Eloise? -disse com uma mescla de compaixão e impaciência-.
Está enjoada. Deixe que a ajude a subir as escadas e estender-se em sua cama. Se
precisa de sais, eu tenho.
—Obrigado, não estou enjoada. Mas seu oferecimento é muito amável.
—Tem certeza? -Amaryllis lhe deu um repasse com frio ar protetor-. Seu aspecto não
é nada bom, querida. Parece francamente abatida. Já sabe que sou a última pessoa do
mundo com vontade de fatigá-la em excesso com minha visita.
—Não estou doente! -disse Eloísa com certa brutalidade.
Tormod aumentou a pressão de seu braço, quase carregando com todo o peso do
corpo de sua irmã, embora para Charlotte parecia que a jovem podia manter-se em pé sem
problemas.
—Claro que não, querida -disse-, mas sofreu uma terrível impressão...
—...E não é você forte -acrescentou Amaryllis-. O que lhe parece se ordenar que
tragam uma infusão? Quer que chame à criada?

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—Obrigada - se apressou a aceitar Tormod-. É uma boa idéia. Sem dúvida à senhora
Ellison e a senhora Pitt gostarão também de uma xícara de infusão. São momentos duros
para todos. Tomarão um pequeno refrigério, verdade?
—Muito obrigado -disse Charlotte. Não estava muito segura de ganhar algo ficando,
mas queria tentar obter alguma informação, visto que de momento não tinha conseguido
nada. - Mal conhecia a pobre senhora Spencer-Brown, mas mesmo assim sua morte me
entristece profundamente.
—Quão bondoso de sua parte - disse Amaryllis com secura.
Charlotte afetou uma expressão de inocência.
—Não sente o mesmo, senhora Denbigh? Asseguro-lhe que compreendo os
sentimentos da senhorita Lagarde, e que me sinto de tudo solidária. Saber que alguém foi
à última pessoa em ver uma amiga, em falar com ela antes de que um estado de
desespero extremo lhe fizesse insuportável a idéia de continuar vivendo...
Tampouco eu me sentiria muito bem, não o duvide.
Amaryllis arqueou as sobrancelhas.
—Se a entendi bem, senhora Pitt, sugere você que a senhora Spencer-Brown tirou a
vida com suas próprias mãos.
—Meu Deus! -Charlotte pôs em sua voz toda a fingida consternação de que foi
capaz-. Não pensará você que outra pessoa...? Santo Deus, que horror!
Por uma vez Amaryllis foi incapaz de responder. Seu desconcerto indicava que
aquela idéia era a última que se propôs insinuar.
—Não, claro que não! Quer dizer... -Depois de uma breve hesitação voltou a guardar
silêncio. Ruborizada, com o olhar frio, dava-se conta de que a tinham deixado fora de jogo.
—Não me parece muito verossímil - disse Tormod, indo em seu resgate
(possivelmente no do Charlotte)-. Mina não era não mulher capaz de provocar uma
inimizade tão violenta. Até duvido que entre seus conhecidos houvesse alguém capaz de
um ato tão abominável.
—Exatamente! -disse Amaryllis com gratidão-. Não me tinha expresso com a devida
clareza. Uma coisa assim é impensável. Se você tivesse conhecido melhor -olhou ao
Charlotte- a que tipo de gente pertenciam suas amizades, não me teria interpretado mal
até esse extremo.
Charlotte esboçou um sorriso de circunstância.
—Estou convencida de que tem razão. Mas, dado que estou em desvantagem, terá
que me perdoar. Assim queria dizer que foi um acidente?

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Apresentada desse modo, ao nu, a idéia de caminhar até a casa e tomar


tranqüilamente uma dose fatal de veneno por puro descuido era tão ridícula que não havia
resposta verossímil. Amaryllis olhou com olhos grandes e frios ao Charlotte, expressando
uma profunda antipatia.
—Simplesmente ignoro como aconteceu, senhora Pitt. Além disso, para ser sincera,
penso que deveríamos evitar falar disso em presença de Eloise. -Pôs uma nota protetora
em sua voz-. Se deu conta sem dúvida de quão frágil é, de sua marcada
hipersensibilidade. Seria de mau gosto continuar angustiando-a com nossos comentários.
—Eloise, querida... -aproximou-se da jovem com um sorriso tão rutilante que
Charlotte sentiu calafrios, e se apoderou dela tal repugnância que esteve a ponto de
traduzir-se em palavras-. Eloise -continuou Amaryllis-, tem certeza de não querer subir
para descansar um pouco? Está muito pálida.
—Obrigada -disse Eloise inexpressivamente-, mas não desejo me retirar.
Prefiro ficar aqui embaixo, seriamente. Devemos compartilhar esta dor e nos consolar
mutuamente.
Entretanto, Tormod não estava satisfeito.
—Venha. - Afastando Amaryllis, levou Eloise até o divã, estendeu-a e lhe pôs os pés
no alto.
Charlotte percebeu no rosto do Amaryllis um relâmpago de raiva tão ardente que teria
causado queimaduras ao Eloise, e experimentou uma aguda satisfação da qual não se
sentiu orgulhosa mas que não fez nada por reprimir.
Ao contrário, desfrutou dela com singular intensidade, e saboreou o gesto com que
Tormod deu meia volta e alisou suavemente o vestido de Eloise, enquanto Amaryllis
olhava a suas costas.
Abriu-se a porta, e a criada entrou com uma bandeja carregada de xícaras e uma
infusão quente. Amaryllis a deixou em cima da mesa e imediatamente serviu uma xícara à
Eloise. Ao mesmo tempo que a dava, colocou-lhe uma almofada para que descansasse
mais comodamente.
Charlotte fez um comentário comum a respeito de um acontecimento social que tinha
visto mencionado no Illustrated News de Londres. Tormod, agradecido, aproveitou a
ocasião e se espraiou sobre o tema.
Depois de uns goles de infusão, Charlotte e Caroline se despediram, seguidas por
Amaryllis.
—Pobre Eloise! -disse Amaryllis assim que pisaram na rua-. Seu aspecto é

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deplorável. Não esperava que tomasse tão a peito.


Não tenho a menor idéia do que pode ter provocado esta tragédia, mas, tendo em
conta que Eloise foi a última em ver a pobre Mina antes de morrer, pergunto-me se saberá
algo. -Abriu ainda mais os olhos-. Mina o haveria dito no tom mais confidencial, claro! E
isso a coloca em um terrível dilema, pobrezinha. Imaginem-se, saber algo de vital
importância e não poder dizer nada! Francamente, não a invejo.
Charlotte tinha começado a fazer as mesmas perguntas, sobretudo ao ouvir a
decisão do Tormod de levar a sua irmã ao campo, longe do Rutland Place, longe também
do alcance do Pitt e suas perguntas.
—Com efeito -disse, sem comprometer-se muito-. As confidências sempre são um
assunto delicado, sobre tudo quando existem razões poderosas para julgar que o mais
correto moralmente é dá-las a conhecer. O peso é ainda maior se quem nos confiou está
morto e, portanto, não pode nos liberar da responsabilidade. É uma posição pouco
invejável; desde que as coisas tenham acontecido assim, claro.
Não devemos apressar conclusões nem respirar fofocas. -Charlotte dirigiu à Amaryllis
um gélido sorriso-. Seria uma imperdoável irresponsabilidade. Talvez Eloise simplesmente
era mais compreensiva que nós. Eu me sinto muito penalizada, mas mal conheci a
senhora Spencer-Brown. -A indireta ficou flutuando no ar.
Amaryllis não foi insensível a ela.
—Sem dúvida. E enquanto alguns fazem ostentação de suas emoções outros
preferem manter certa reserva, uma atitude digna e contida, receosa com a morte de um
ser querido.
No fim das contas, ninguém deseja converter-se no centro de atenção. É a pobre
Mina quem morreu, não uma de nós!
Charlotte sorriu ainda mais amplamente. Sentia-se como uma fera mostrando os
dentes.
—Que delicado de sua parte, senhora Denbigh! Não duvido que será um grande
consolo para todos. Me alegro de havê-la conhecido. -Acabavam de chegar à casa do
Amaryllis.
—É muito amável -respondeu Amaryllis-. Espero que me acredite se lhe digo que eu
também me alegro. -voltou-se e, recolhendo-se levemente o vestido, subiu pelas
escadarias.
—Charlotte! -exclamou Caroline em um sussurro-. Às vezes me põe em apuros.
Achei que o matrimônio a teria corrigido!

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—Pois sim, melhorei -replicou Charlotte sem deixar de andar-. Agora minto muito
melhor. Antes titubeava mas agora sei sorrir como o melhor, e dizer mentiras sem
pestanejar. Não suporto essa mulher!
—Já me dei conta! -respondeu Caroline secamente.
—E você tampouco a suporta.
—Mas sou capaz de me controlar muito melhor que você!
Charlotte lhe dirigiu um olhar indecifrável, antes de descer da calçada para cruzar o
meio-fio.
Foi então quando, de repente, reparou na elegante silhueta de um homem que saía
de uma casa do outro extremo da rua. Já antes que se voltasse reconheceu-o, por suas
costas erguidas, seu gracioso porte e o modo como lhe assentava o casaco.
Era Paul Alaric, o francês do Paragon Walk que levantava tanta curiosidade e de
quem, entretanto, tão pouco se sabia.
Aproximou-se delas com passo elegante e um meio sorriso em seu rosto.
Saudou-as com o chapéu. Seus olhos pousaram nos do Charlotte com um matiz de
surpresa seguido por uma expressão que podia ser tanto de agrado como de diversão, ou
possivelmente só de cortesia, ao reconhecer a uma pessoa de agradável lembrança com
quem se compartilhou emoções intensas de perigo e piedade.
Mas naturalmente falou primeiro com o Caroline, sendo como era a de mais idade.
—Boa tarde, senhora Ellison. -Sua aveludada voz continuava tal como a recordava
Charlotte. Sua pronúncia, esquisitamente correta, superava em formosura a da maioria de
homens para quem o inglês era a língua materna.
Caroline permaneceu imóvel. Engoliu em seco antes de falar e sua voz soou um
pouco forçada.
—Boa tarde, monsieur Alaric. Que dia tão agradável! Acredito que não conhece
minha filha, a senhora Pitt.
Por um instante Alaric vacilou, com o olhar cravado no Charlotte, que sentiu como
uma multidão de lembranças invadia sua mente: lembranças de medos e paixões
encontradas. Finalmente Alaric fez uma ligeira reverência.
—Como está, senhora Pitt?
—Muito bem, obrigado, monsieur -respondeu Charlotte com tom inexpressivo. -
Embora penalizada pela recente tragédia.
—A senhora Spencer-Brown... -A banal expressão de cortesia se apagou do rosto do
Alaric, e seu tom se fez mais tênue-. Sim, declaro-me incapaz de achar uma solução que

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não seja trágica. Estive espremendo os miolos em busca de um motivo, algo que
explicasse tão lamentável e inútil fato, mas foi em vão.
Charlotte sentiu o impulso de insistir no assunto, embora a urbanidade lhe ditava que
mudasse de assunto depois de uma ou duas frases compassivas.
—Assim, não acredita que fosse um acidente? -perguntou. Tinha a seu lado Caroline,
e era consciente de sua tensão e do modo em que olhava fixamente para Alaric.
A atitude do francês era de grande amabilidade, com certo toque de humor amargo,
como se a franqueza do Charlotte lhe tivesse provocado emoções desencontradas.
—Não, senhora Pitt -disse-. Tomara pudesse! Mas é impossível tomar uma dose de
medicamento que não foi prescrita, ou ficar a beber de um frasco sem etiqueta, a menos
que se seja muito estúpido. E a senhora Spencer-Brown não tinha um pingo de estupidez.
Era uma mulher com grande pragmatismo. Não é certo, senhora Ellison? -voltou-se para
Caroline com um sorriso.
A mãe do Charlotte se ruborizou.
—Sim, certamente! De fato não recordo que Mina cometesse jamais um só
ato...irrefletido.
Charlotte se surpreendeu. Mina não lhe tinha dado a impressão de ser
particularmente inteligente. A conversa que tinham mantido se resumiu a quatro
banalidades e comentários corriqueiros.
—Seriamente? -disse com um ceticismo em parte involuntário. Não desejava ser
descortês-. Talvez não cheguei a conhecê-la-o suficiente, mas me parecia possível que,
com a mente ocupada em outros assuntos, tivesse cometido um engano.
—Confunde a inteligência com bom senso, Charlotte -disse sua mãe-.
Mina não gostava de estudar, nem se ocupava de temas tão estranhos como os que
interessam a você. -Caroline era muito discreta para mencionar esses temas, mas o modo
como baixou as pestanas enquanto olhava de soslaio a sua filha convenceu a esta de que
se referia a suas opiniões políticas, a suas idéias sobre os projetos do rei reformista ou as
leis para a pobreza, entre outros assuntos.
Mas era muito consciente de suas habilidades - continuou-, e do melhor modo de
usá-las. Além de que, por natureza, era muito judiciosa para permitir-se falhas de qualquer
tipo.
Não acha, monsieur Alaric?
Antes de voltar-se para o Charlotte, Alaric olhou por uns instantes além de suas
interlocutoras, para algum ponto longínquo da rua, invisível para elas.

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—Estamos tratando, senhora Pitt, de achar um modo elegante para dizer que a
Senhora Spencer-Brown tinha um sólido instinto de sobrevivência -respondeu-.
Conhecia bem as regras, o que pode dizer-se e o que está permitido fazer. Nunca
agia irreflexivamente, movida pela paixão antes que pelo julgamento.
Parecia superficial às vezes, certo, mas só porque o exigiam as normas sociais.
Em uma mulher, tratar com inteligência tema sérios não se considera atraente. –
Sorriu levemente. Caroline não podia saber que já tinham falado antes entre eles-. Em todo
caso, não para a maioria dos homens. Entretanto, atrás de tanto falatório, Mina era uma
mulher prudente e hábil, que sabia com precisão o que queria e o que podia alcançar.
Charlotte olhou-o.
—Apresenta-a de forma um pouco inquietante -disse lentamente-. Uma mulher
calculista?
Caroline a pegou pelo braço.
—Tolices! Para sobreviver deve-se agir com sensatez. Monsieur Alaric só quer dizer
que Mina não era caprichosa, que não era uma dessas atordoadas que não põem atenção
no que fazem. Equivoco-me? -Olhou ao Alaric com olhos brilhantes.
Charlotte se surpreendeu ao mesmo tempo que cresceu sua inquietação ao ver quão
bonita era ainda sua mãe. Nem a cor da pele, nem seu brilho, nem aquele rubor tinham
nada que ver com o vento de março. A causa era a presença daquele homem de tez
morena e ombros erguidos que, de pé em meio da rua, falava cortesmente da morte, e
expressava sua piedade pela tragédia que implicava.
—Então, receio muito que se trate de um suicídio! -disse de repente Charlotte em voz
bastante alta-. Possivelmente a pobre mulher se meteu em um enredo sentimental, travou
relação com outro homem, e a situação se fez insustentável. Não me custa nada imaginar
o modo em que aconteceu. -Não teve a ousadia de olhar a sua mãe nem ao Alaric.
Na rua reinava um silêncio absoluto, nem sequer perturbado pelos pássaros ou por
um longínquo ruído de cascos.
Esse tipo de aventuras acaba freqüentemente de forma desastrosa - continuou,
depois de respirar rapidamente-, em um sentido ou outro. Talvez preferiu morrer antes que
presenciar o escândalo que, uma vez público o assunto, teria sido inevitável.
Caroline ficou como paralisada.
—Seriamente acredita que ela, ou o homem em questão, teriam consentido que se
soubesse o seu? -perguntou Alaric com expressão impenetrável.
—Não tenho a menor idéia -disse desafiante Charlotte. Imediatamente se

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arrependeu, mas teve que continuar adiante. Alaric sempre conseguia fazê-la perder as
precauções-. Possivelmente uma carta indiscreta, ou um objeto de amor? Os apaixonados
costumam ser imprudentes, embora quando na vida normal sejam gente sensata.
Sua mãe estava tão rígida que Charlotte a sentia a seu lado como uma coluna de
gelo.
—Tem razão -sussurrou Caroline-. Mas a morte me parece um preço muito alto para
essa classe de deslizes.
—É sim! -Pela primeira vez Charlotte olhou com franqueza a sua mãe. Depois se
voltou para o Alaric, encontrando seu olhar escuro e penetrante; um olhar inescrutável que
lia nela como se tivesse o poder de penetrar em sua mente.
Mas quando alguém embarca em semelhante assunto -continuou com um nó na
garganta-, não costuma dar-se conta do preço até que chega o momento de pagar. -
Engoliu e seco e tratou de adotar um tom mais ligeiro, como se se estivesse limitando a
fazer conjeturas sem relação com a realidade.
Isso ao menos é o que observei. -Sem dúvida Alaric também estava recordando seu
primeiro encontro no Paragon Walk. Continuaria vivendo ali?
Os lábios do francês se relaxaram um pouco e esboçaram um tênue sorriso.
—Esperemos não estar certos, e que a explicação seja menos trágica. Não me
agrada ter que imaginar um sofrimento tão grande.
Charlotte voltou para o presente. Aquilo tinha passado tempo atrás.
—A mim tampouco. Estou segura de que estará de acordo, mamãe. –Estreitou a mão
do Caroline-. Mas será melhor que voltemos para casa, agora que cumprimos com as
visitas. Papai nos estará esperando para tomar o chá.
Caroline pareceu disposta a dizer algo, mas não o fez. Mesmo assim Charlotte teve
que arrastá-la pela mão.
—Bom dia, monsieur Alaric -disse-. Foi um prazer conhecê-lo.
Alaric fez uma reverência, tirando o chapéu.
—O mesmo digo, senhora Pitt. Boa tarde, senhora Ellison.
—Boa tarde, monsieur Alaric.
Caminharam uns passos. Charlotte continuava puxando o braço de Caroline com
firmeza.
—Às vezes me desespera! -Caroline fechou os olhos para rememorar a cena.
—De verdade? -respondeu Charlotte com aspereza, sem reduzir a velocidade-.
Mamãe, não é necessário que nos entretenhamos em palavras que não fariam mais

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que nos zangar. Conhecemo-nos o suficiente. Tampouco é preciso que me diga que papai
não está em casa porque já sei.
Caroline não replicou. Subiu a gola do casaco, pois o vento se pôs a soprar com mais
força.
Charlotte se dava conta de sua brutalidade, crueldade inclusive; mas estava
realmente assustada. Paul Alaric não era homem de paqueras frívolas. Não era um pálido
sedutor cheio de frases bonitas e pequenas amostras de amizade, válido apenas para
adornar a monotonia de trinta anos de matrimônio. Era um homem com força e presença,
poderoso e excitante.
Sugeria a existência de coisas inalcançáveis, emocionantes, talvez inclusive
imensamente belas. A própria Charlotte não se recuperara ainda do encontro.

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Capítulo 5

Charlotte não revelou ao Pitt seus sentimentos a respeito de sua mãe e Paul Alaric.
Nem sequer lhe disse que já conhecia antes ao Alaric. De fato, embora tivesse querido lhe
teriam faltado palavras. Tinha saído daquele encontro mais desorientada que nunca.
Recordava a cálida onda de emoções e invejas que a presença do francês tinha levantado
no Paragon Walk, e a confusão que tinha suscitado inclusive nela.
Não lhe custava compreender os sentimentos do Caroline. Alaric era algo mais que
um homem bonito e encantador capaz de dar pé a românticos devaneios. Possuía o dom
de surpreender, inquietar e permanecer na lembrança muito depois de haver partido. Teria
sido uma amostra de cegueira reduzir aquilo a uma mera paquera, algo que se apagaria
por si mesmo.
Não podia explicar ao Pitt, e tampouco tinha vontade de tentá-lo.
Em troca, teve que lhe dizer que Tormod e Eloise Lagarde pensavam partir do
Rutland Place no dia seguinte. Se Pitt queria interrogá-los sobre a morte de Mina, teria que
agir com presteza.
Havia muitas perguntas que Pitt desejava lhes fazer, já que pelo que se sabia tinham
sido os últimos em ver mina com vida.
Entretanto, ainda não tinha achado as palavras adequadas para expressar seus
pensamentos, que continuavam sendo confusos e se limitavam à consciência de uma
tragédia inexplicável. Mas não havia tempo de fazer malabarismos com frases corteses e
sugestões encobertas.
As nove e quinze, o mais cedo que permitiam as boas maneiras, plantou-se ante a
porta, transido.
Abriu-lhe um assombrado lacaio, com a gravata torcida e as botas cheias de barro.
—Senhor? -disse, ficando boquiaberto.
—Inspetor Pitt. Posso falar com o senhor Lagarde, por favor? E se não for muita
perturbação, com a senhorita Lagarde?
—É bastante de perturbação. -A surpresa fez esquecer ao lacaio os ensinos de
gramática que o mordomo lhe tinha inculcado com esforço-. Hoje partem ao campo. Não
desejam... não desejam receber visitas. A senhorita Lagarde está bastante indisposta.
—Lamento que a senhorita Lagarde se encontre mal - disse Pitt, que não tinha
intenção de ceder-, mas pertenço à polícia e minha obrigação é investigar a morte da

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senhora Spencer-Brown. Soube que era amiga do senhor e a senhorita Lagarde.


Estou seguro de que quererão ajudar em todo o possível.
—OH! Bom... -Evidentemente o lacaio não tinha previsto aquela situação, nem o
mordomo o tinha preparado para enfrentar a ela.
—Talvez chame menos a atenção se esperar em outro lugar, não ante a porta -
ajudou-o Pitt. Olhou a rua, sugerindo que todos no lugar conheciam sua identidade, e
portanto, seu trabalho.
—OH! -O lacaio tomou consciência da iminente catástrofe-. Sim, claro, será melhor
que espere na saleta. A lareira está apagada... -Recordou de repente que Pitt era da
polícia, com cujos membros não era preciso explicações, e menos ainda lareiras acesas.
—Espere aqui. -Abriu a porta e observou como Pitt entrava na sala-. Avisarei ao
senhor que está aqui. Não se mova. Volto já mesmo e lhe digo o que - acrescentou,
enredando a sintaxe mais elementar.
Quando fechou a porta, Pitt sorriu para si mesmo. O emprego do moço dependia de
que soubesse comportar-se segundo as normas da conveniência social, e que um
mordomo irritável e descontente lhe podia custar muito caro.
Não lhe dariam direito a réplica, nem ocasião de explicar-se; os enganos raramente
eram tolerados. Que a polícia se metesse em casa era muito lamentável, mas deixá-la
esperando na porta à vista de todos teria sido imperdoável. Pitt conhecia bem a vida da
criadagem, começando por seu próprio pai, que tinha trabalhado um tempo como guarda-
florestal em uma grande propriedade rural.
De menino, Pitt fazia esfarela com o herdeiro da casa, filho único, contente de ter um
companheiro de brincadeiras, fosse quem fosse. Pitt tinha aprendido com rapidez a imitar
suas maneiras e acento, e a copiar as lições do colégio. Conhecia as regras vigentes nos
dois níveis das casas elegantes.
Tormod não demorou para acudir.
Pitt, que mal tinha começado a examinar as agradáveis paisagens que pendiam das
paredes e a velha escrivaninha de palisandro com adornos de marchetaria, ouviu passos
no corredor.
Tormod era tal como esperava: um homem de largas costas, vestido com uma
jaqueta de elegante corte e gola um pouco alta. Sua escura cabeleira coroava uma branca
e espaçosa fronte.
Sua boca era carnuda, com o lábio inferior muito marcado.
—Pitt? -disse-. Não sei o que lhe dizer. Não tenho a menor idéia do que aconteceu a

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pobre Mina, quero dizer a senhora Spencer-Brown. Se a atormentava alguma classe de


temor, por desgraça não nos revelou isso nem a minha irmã nem a mim.
Aquilo era uma barreira infranqueável. Não ocorria a Pitt como superá-la.
Entretanto, era a única pista humana que tinha.
—Não obstante, visitou a vocês aquele mesmo dia e partiu uma hora antes de
morrer, não é assim? -disse enquanto sua mente trabalhava com frenesi em busca de uma
pergunta pertinente e capaz de alterar a compostura do Tormod, de dar indícios daquela
paixão que tinha albergado. A menos que realmente se tratasse de um acidente fortuito e
ridículo...
—OH, sim -disse Tormod com um leve encolhimento de ombros- mas até com a
perspectiva que dá saber-se o que aconteceu depois, não consigo recordar nela nada que
fizesse suspeitar um suicídio.
Parecia tranqüila e de bom ânimo. Tentei me lembrar do que falamos, mas não me
ocorrem mais que trivialidades. -Olhou ao Pitt com sorriso de pesar-. A moda, menus para
o almoço, alguma ou outra piada tola sobre nossos conhecidos... As coisas que uma
pessoa fala habitualmente quando se trata de matar o tempo.
Uma conversa agradável, mas que se escuta só pela metade.
Pitt sabia perfeitamente a que se referia. A vida estava cheia de bate-papos sem
objetivo. O que importava era dizer algo, mais que as palavras concretas.
Era possível que Mina não tivesse a menor suspeita de que restava menos de uma
hora de vida? Tinha sido um acidente repentino, um relâmpago caído sem tormenta prévia,
sem rumor de trovões longínquos nem crescente sensação de opressão? O assassinato
não costumava golpear desse modo.
Até um louco tinha suas razões para matar. A loucura se cozinha a fogo lento, como
a primavera derrete as neves invernais até que de repente uma gota enche a represa e o
dique explode com violência destruidora.
Entretanto, Pitt recordava casos de mortes causadas por lunáticos: não costumavam
utilizar veneno, e menos ainda com uma mulher só no salão de sua casa, lindamente
estendida no divã.

Se Mina tinha sido assassinada, o assassino era alguém em seu são julgamento; e
os motivos eram também perfeitamente sensatos.
—Pergunto-me... -disse Pitt, voltando para o assunto-. E se a senhora Spencer
Brown estava inquieta por algo e tivesse vindo para consultar-se com vocês?

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Possivelmente se sentiu incapaz de expor com clareza seus problemas, e justamente


por isso não disse mais que banalidades.
Tormod pareceu sopesar a hipótese com olhar inexpressivo.
—É possível -disse-. Pessoalmente não acredito. Parecia à mesma de sempre; quero
dizer que não a lembro especialmente agitada nem indiferente à conversa, como teria
estado em caso de estar procurando uma oportunidade para mudar de assunto.
—Mas acaba de dizer que você mesmo só escutava pela metade –indicou Pitt.
Tormod sorriu.
—Bom... -Estendeu as Palmas para cima-. E quem escuta as conversas das
mulheres sem perder uma palavra? Para falar a verdade, minha intenção era me ausentar,
mas meus planos se cancelaram no último momento; de outro modo não teria estado em
casa.
Não tenha dúvida de que devia guardar as maneiras, mas, me diga, como é possível
interessar-se pela cor do vestido da senhora Zutana, ou pelo que disse a duquesa de
Beltrano no serão? Isso é assunto de mulheres.
Em qualquer caso, tudo me pareceu igual à sempre. Não percebi mudanças de tom
nem matizes de ansiedade. A isso me refiro.
Pitt o compreendeu perfeitamente. Devia ser todo um exercício de disciplina manter a
compostura constantemente. Só aquelas rígidas convicções que punham as boas
maneiras por cima de tudo permitiam ao Tormod fazê-lo sem esforço aparente.
Essas convicções lhe tinham sido inculcadas desde que estava no regaço de sua
babá, passando pelos tutores e a escola privada. Pitt aproveitou de todos os modos a
oportunidade que lhe dava.
—Nesse caso, talvez sua irmã se deu conta de algo, ou percebeu algum desses
matizes que só uma mulher compreende -sugeriu.
Tormod arqueou levemente as sobrancelhas, por causa da pergunta ou talvez do
modo de falar do Pitt.
—Preferiria que não a incomodasse, inspetor - disse depois de certa vacilação. - Está
muito afetada. De fato levá-la-ei longe de Rutland Place durante um tempo, para que se
recupere. As lembranças são muito desagradáveis. Minha irmã e eu somos órfãos. A morte
nos golpeou duramente em tempos passados, e temo que para Eloise continua sendo
difícil de suportar. Suponho que não é impossível que Mina lhe fizesse alguma confidência
nesse dia; não estive com ela todo o tempo.
Talvez Eloise se sinta culpada por não ter sabido entender o desespero daquela

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pobre mulher, e não ter agido em conseqüência. Isso a atormenta ainda mais. Embora,
para falar a verdade, quando uma pessoa está decidida a tirar a vida, não se pode fazer
nada, exceto adiar o inevitável. -De repente seu rosto se alegrou.
—Sabe o que? Perguntarei eu mesmo. Se houver algo Eloise me dirá. E se tiver
relação com a morte de Mina, informarei a você imediatamente. Parece-lhe bem? Tenho
certeza de que não quererá afligi-la mais do que o necessário.
Pitt vacilou. Recordava outros casos em que tinha visto gente recém saída de um
enfrentamento com a morte, especialmente com uma morte repentina. Seus rostos, pálidos
e ansiosos, voltavam-lhe a a memória cada vez que algo semelhante voltava a ocorrer.
Primeiro aparecia à surpresa, depois a dor, e finalmente a lenta aceitação de que a
verdade não pode ser esquivada, de que, enquanto a primeira impressão se desvanece, a
realidade se impõe penetrando profundamente em nós.
Entretanto, não podia arriscar-se que Tormod Lagarde o suplantasse em seu
trabalho.
—Receio que não é possível.
Viu como Tormod mudava de expressão. Sua boca se endureceu e seu olhar se fez
frio.
—Agradecer-lhe-ei que esteja presente - continuou Pitt, sem modificar o tom de sua
voz e mantendo um impassível sorriso em seus lábios-. De fato, não me oponho que você
mesmo lhe faça as perguntas, se o preferir. Compreendo que o preocupe preservá-la de
lembranças dolorosas.
Mas eu possuo mais dados que você sobre a morte da senhora Spencer-Brown e
por isso tenho que ouvir pessoalmente as respostas da senhorita Lagarde.
Não posso me conformar com a interpretação que você me oferece de boa fé.
Tormod olhou nos olhos por uns momentos, surpreso. Depois retrocedeu uns passos
e alcançou o puxador da campainha.
—Por favor, Bevan, diga à senhorita Lagarde que desça a saleta -disse quando
apareceu o mordomo.
—Obrigado -disse Pitt.
Tormod não respondeu. Voltou-se para olhar pela janela. Uma garoa cinza começava
a carregar o ar, apagando os contornos das casas que rodeavam a praça.
Da ponta das folhas de louro caíam pequenas e reluzentes gotas.
Eloise fez sua entrada, pálida, mas perfeitamente serena. Embrulhada em seu xale,
enfrentou Pitt com olhar franco.

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Assim que se abriu a porta, Tormod correu para sua irmã e lhe rodeou os ombros
com um braço.
—Eloise, querida, o inspetor Pitt tem umas perguntas para lhe fazer sobre a pobre
Mina. Compreenderá que, tendo sido nós os últimos em vê-la, o inspetor acha que
podemos lhe proporcionar dados sobre seu estado de ânimo imediatamente antes de
morrer.
—Naturalmente -disse Eloise com quietude. Sentou-se no sofá e examinou ao Pitt,
sem mais interesse que o que ditava a cortesia. Aparentemente a brutal realidade da morte
prevalecia sobre toda curiosidade.
—Não tem nada que temer -disse Tormod com doçura.
—Temer? -Eloise pareceu surpreendida-. Não temo nada. -Endireitou a cabeça para
olhar ao Pitt. -Entretanto, não acredito que tenha nada importante que lhe dizer.
Tormod dirigiu ao Pitt um olhar de advertência e em seguida voltou a concentrar-se
no Eloise.
—Recorda que saí uns minutos? -perguntou-lhe com tom muito suave, quase como
se estivesse falando com uma menina-. Até aquele momento só tinham falado de coisas
corriqueiras, moda e fofocas. Fez-lhe alguma confidência quando ficaram a sós? Algo
relacionado com seus sentimentos? Amor, medo? Falou-lhe de alguém em particular?
A boca de Eloise se torceu em um esboço de sorriso.
—Se referir-se a se amava a alguém mais que a seu marido – disse
inexpressivamente-, não tenho razões para acreditar nisso. Em todo caso não me disse
nada, nem então nem em nenhum outro momento. Não tenho certeza de que acreditasse
nesse tipo de amor novelesco. Acreditava nas paixões: desejo, compaixão, solidão... Mas
isso é muito diferente ao amor.
O desejo cessa quando foi satisfeito, e a compaixão quando já não tem motivos; e
também a solidão acaba por morrer, de puro esgotamento. Nada disso tem que ver com o
amor.
—Eloise! -Tormod pegou a mão de sua irmã e a apertou com tanta força que deixou
marcas brancas em sua pele-. Quanto o lamento! -Sua voz era quase um sussurro-. Se
tivesse sabido que Mina falava com você dessas coisas, nunca as teria deixado a sós. -
voltou-se para Pitt. - Eis aqui sua resposta, inspetor!
A senhora Spencer-Brown era uma mulher desiludida por algum trágico fracasso, e
queria compartilhar sua carga com alguém. Desgraçadamente escolheu a minha irmã, uma
garota solteira. Acho isso imperdoável, a menos que estivesse realmente desesperada!

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Que Deus dela tenha piedade!


Acho que já lhe dissemos muitas coisas. Levo Eloise longe daqui, longe do Rutland
Place, até que supere um pouco a impressão. No campo poderá descansar e afastar essas
idéias de sua mente. Ignoro até que ponto a senhora Spencer-Brown lhe explicou suas
agonias privadas, mas não vou consentir que você continue interrogando-a.
Evidentemente se trata de um... um assunto íntimo e extremamente doloroso. Confio
em que, como cavalheiro, você saiba compreendê-lo.
—Tormod... -começou Eloise.
—Não, querida. O inspetor pode conseguir a informação que lhe falta por outros
caminhos. Parece indiscutível que a pobre Mina-se suicidou. Não estava em sua mão
evitá-lo, e não consentirei que se sinta culpada. Talvez nunca cheguemos a saber o que a
atormentou até esse ponto, e possivelmente seja melhor assim.
Os sofrimentos mais graves de uma pessoa devem ser enterrados com ela. Há coisas
tão íntimas que a decência humana e divina exige mantê-las em segredo. -Levantando a
cabeça, cravou seu olhar em Pitt, como desafiando a que lhe contradissesse.
Pitt contemplou aos dois irmãos juntos no sofá. Não ia conseguir nada mais de
Eloise; de fato, compartilhava a opinião de que o sofrimento de Mina, fosse qual fosse,
devia ser enterrado junto com ela, em vez de ser examinado, sopesado e medido por mãos
alheias, embora fossem as impessoais mãos da polícia.
Levantou-se.
—Sem dúvida -disse-. Assim que nos asseguremos de que foi simplesmente uma
tragédia, sem nenhuma implicação criminosa, nem sequer por negligência, o melhor para
todos será relegar os detalhes ao esquecimento, e conservar uma lembrança mais grata.
Tormod se tranqüilizou e relaxou os ombros. Ficando a sua vez em pé, estreitou a
mão do Pitt com vigor.
—Me alegro de que estejamos de acordo. Que passe um bom dia, inspetor.
—O mesmo digo, senhor Lagarde. Senhorita Lagarde, espero que sua estadia no
campo lhe seja agradável.
Eloise lhe sorriu com indecisão. Algo a fazia vacilar, como um temeroso presságio.
—Obrigado - disse com um sussurro.
Já na rua, Pitt pôs-se a caminhar pausadamente enquanto tentava ordenar suas
idéias.
Até o momento todo apontava a problemas pessoais, alimentados na intimidade; à
longo prazo, esses problemas tinham transbordado a Mina Spencer-Brown, impulsionando-

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a a administrar uma overdose de um medicamento que já possuía.


Provavelmente fosse o de seu marido, aquele que tinha mencionado o doutor
Mulgrew e que continha beladona.
Mas antes de arquivar o caso era necessário interrogar a outras mulheres que tinham
conhecido Mina. Se alguém estava à corrente do segredo, tinha que ser uma delas, ou
através de uma confidência, ou por pura dedução. A experiência tinha demonstrado a Pitt
que com que perspicácia sabia ler nas vidas alheias.
Uma mulher ociosa, por causa precisamente de não ter nada em que ocupar-se.
Todo seu interesse se concentrava nas pessoas: relações pessoais, segredos que se
compartilham e que se guardam para si.
Decidiu ir primeiro a casa do Ambrosine Charrington, porque, sendo a mais afastada,
satisfazia sua vontade de caminhar. Apesar da pertinaz garoa, Pitt ainda não se sentia
capaz de enfrentar outra pessoa. Em um momento dado parou.
Um gato de cor avermelhada caminhava pela calçada; o animal se sacudiu, irritado
pela chuva, e logo se escondeu entre os arbustos. Pitt pensou que talvez fosse preferível
deixar repousar a dor.
Possivelmente aquele não era assunto para a polícia; em tal caso já podia partir,
pegar o primeiro ônibus para a delegacia de polícia e, uma vez ali, ocupar-se de algum
roubo ou falsificação, até que Mulgrew e o legista apresentassem seus informes.
Com essas idéias na cabeça, pôs-se de novo a caminhar. A chuva, que começava a
aumentar, lhe escorria pelo pescoço da camisa e lhe provocava calafrios. alegrou-se de
chegar à entrada dos Charrington.
O mordomo o recebeu com tênues mostras de desagrado, e o contemplou como a
um animal extraviado que se refugiasse das inclemências do tempo, mais que como a uma
pessoa com motivos para estar aí.
Dando-se conta de seu aspecto, com o cabelo grudado sobre a testa, as calças
empapadas nos tornozelos e o cordão roto de um sapato, Pitt chegou à conclusão de que
o olhar reprovador do mordomo não era injustificado.
Fazendo um esforço por sorrir, apresentou-se.
—Inspetor Pitt, da polícia.
A expressão de cortês paciência se desvaneceu do rosto do mordomo, como o sol
atrás de uma nuvem.
—Queria ver a senhora Charrington, por favor - prosseguiu Pitt-. É com respeito à
morte da senhora Spencer-Brown.

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—Não acredito que... -respondeu o mordomo; mas, examinando mais atentamente ao


Pitt, percebeu que seus protestos só iriam conseguir prolongar a entrevista-. Passe a
saleta. Irei ver se a senhora Charrington está em casa. –Pitt estava acostumado a aquela
comedia.
Teria sido uma falta de cortesia dizer "vou perguntar se quer recebê-lo", embora mais
de uma vez se achou com aquela resposta.
Acabava de sentar-se quando o mordomo voltou para acompanhá-lo ao salão.
Um bom fogo crepitava na lareira. Junto à parede havia três jardineiras cheias de
flores.
Ambrosine se endireitou em seu canapé de brocado verde, olhando ao Pitt de acima
a baixo com interesse.
—Bom dia, inspetor. Tenha a gentileza de se sentar e tirar o casaco. Ao que parece
se molhou um pouco.
Pitt o fez com prazer, estendendo ao mordomo o inapresentável traje. Depois se
acomodou em uma poltrona, de maneira a receber o máximo calor da lareira.
—Obrigado, senhora -disse.
O mordomo se retirou, fechando a porta atrás de si. Ambrosine arqueou suas
formosas sobrancelhas.
—Disseram-me que está investigando a morte da pobre senhora Spencer-Brown -
disse-. Temo não saber nada que possa lhe ser de interesse. De fato, eu mesma me
assombro do pouco que sei. Teria esperado ouvir alguma coisa. Em nossos círculos terá
que ser excepcionalmente hábil para guardar um segredo, sabe você?
Apesar de se supor que há muitas coisas que seriam de mau gosto mencionar, ao fim
uma pessoa se dá conta de que todo mundo sabe isso.
E essas caras de suficiência! -Olhou ao Pitt para certificar-se de que a entendia e se
alegrou ao ver que assim era.
É um prazer indescritível estar a par de um segredo, sobre tudo quando outros se
dão conta de que alguém sabe, e eles não. -Franziu o sobrecenho-. Mas ultimamente não
vi essa atitude em ninguém, exceto em Mina.
E nunca soube se sabia algo importante, ou só queria que nós acreditássemos...
Pitt estava tão perplexo como ela.
—Não acredita que, agora que se produziu uma morte, alguém poderia estar disposto
a falar para evitar mal-entendidos, ou inclusive injustiças?
Ambrosine respondeu com um sorriso afetado.

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—É um otimista, inspetor. Faz-me sentir muito mais velha, ou como se fosse você
muito jovem. A morte é a melhor desculpa para ocultar para sempre muitas coisas. Há
poucos que se oponham à injustiça; de fato o mundo está governado por ela. No fim de
contas é parte do credo: De mortuis nil nisi bonum.
Pitt esperou a que se explicasse, embora achava saber a que se referia.
—"Não fale mal dos mortos" -disse a senhora Charrington sombriamente-.
Me refiro, claro, ao credo da boa sociedade, não ao da Igreja. A primeira vista parece
uma idéia muito caridosa, mas no fundo translada todo o peso das críticas sobre os vivos.
Essa é a intenção, claro. Que diversão tem caçar uma raposa morta?
—Que críticas? -perguntou Pitt sobriamente, fazendo um esforço por não afastar-se
do assunto principal, Mina.
—Depende do que estejamos discutindo. Se se referir a Mina, não sei. Esperava que
você estivesse melhor informado que eu a respeito. No fundo, por que se interessam
tanto? Morrer não é nenhum crime. Dou-me conta, claro está, que suicidar-se sim o é;
mas, tendo em conta que já não se pode castigar ao culpado, não consigo ver o que
pretendem.
—Minha única intenção é me certificar de que efetivamente não foi mais que isso -
respondeu Pitt-, um caso de suicídio. Ninguém parece capaz de indicar um só motivo que
explique que o fizesse.
—Não... -disse, pensativa, a senhora Charrington-. Nos conhecemos tão pouco os
uns aos outros, que às vezes até me pergunto se sabemos o porquê das decisões mais
importantes.
Não acredito que a resposta se encontre nos motivos mais evidentes, como o
dinheiro ou o amor.
—A senhora Spencer-Brown não parecia ter problemas de dinheiro. -Pitt tentou uma
estratégia mais direta-. Pensa que pode estar relacionado com um sentimento amoroso?
A boca do Ambrosine se curvou em um sorriso de surpresa.
—Com que delicadeza se expressa, inspetor! Sinto muito, tampouco posso dizer
nada sobre isso. Se tinha um amante, então era mais discreta do que eu imaginava.
—Possivelmente amasse a alguém sem ser correspondida -sugeriu Pitt.
—É possível. De qualquer forma, se toda a gente que estiver na mesma situação se
suicida, a metade de Londres estaria ocupada enterrando à outra metade. - Rechaçou a
idéia com um gesto da mão. - Olhe, Mina não era uma pessoa romântica nem melancólica.
Era uma mulher com praticamente, plenamente familiarizada com a vida real. Além disso,

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tinha trinta e cinco anos, não dezoito.


—Também há quem se apaixona com trinta e cinco anos. -Pitt sorriu levemente.
A senhora Charrington o olhou dos pés a cabeça, deduzindo sua idade com uma
margem de engano de não mais de um ano.
—Claro que sim. -Expressou sua conformidade, matizada por um sorriso-. Uma
pessoa pode apaixonar-se a qualquer idade. Entretanto, é provável que aos trinta e cinco a
pessoa já tenha vivido essa experiência repetidas vezes, e se lhes sai mal não tomam
como se fosse o fim do mundo.
—Então, senhora Charrington, porquê acha que se suicidou a senhora Spencer-
Brown? -Pitt se surpreendeu a si mesmo ouvindo-se falar tão abertamente.
—Eu? Seriamente quer que lhe diga minha opinião, inspetor?
—Sim.
—Inclino-me a pensar que não o fez. Mina era uma mulher prática para achar solução
a seus problemas, fossem quais fossem. Não era uma sentimental, e não conheci a
ninguém menos propenso à histeria.
—Um acidente, então?
—Não por sua culpa. Possivelmente uma criada idiota manipulou frascos ou caixas,
ou mesclou duas coisas para economizar espaço, criando um veneno por descuido.
Duvido que você o averigúe, a menos que seus agentes se apoderem de todos os
recipientes da casa antes que os criados tenham oportunidade de destruí-los ou esvaziá-
los.
—Eu se fosse você não espremeria os miolos; não há nada a fazer, nem para repará-
lo nem para evitar que volte a ocorrer a outras pessoas.
—Um acidente doméstico.
—Acredito nisso. Se alguma vez tivesse tido você a seu cargo uma casa grande,
inspetor, teria comprovado até que ponto acontecem coisas extraordinárias.
Se soubesse o que chegam a fazer alguns cozinheiros e que estranhos objetos
acabam na despensa, possivelmente até se negaria a continuar comendo!
Contendo um indecoroso impulso de rir, Pitt ficou em pé. Na senhora Charrington
havia algo que lhe atraía.
—Obrigado, senhora. Se sua explicação for correta, suponho que tem razão ao dizer
que nunca o averiguaremos.
Ambrosine fez soar o sino, avisando ao mordomo para que acompanhasse Pitt à
porta.

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—É sinal de sabedoria deixar de lado o que não se pode mudar – disse


amavelmente-. Se ficar passando pela peneira toda a palha para descobrir um só grão de
verdade, fará mais mal que bem. Muita gente sentirá medo, mais de um ficará sem
trabalho para sempre, e mesmo assim não terá ajudado a ninguém.
Pitt visitou depois Theodora Von Schenck, uma mulher muito distinta. Era formosa,
mas carecia do toque aristocrático de Ambrosine e de matiz etéreo e delicado de Eloise.
Entretanto, mais que seu aspecto lhe surpreendeu encontrá-la ocupada, como
Charlotte, em tarefas domésticas bastante vulgares. Quando Pitt a viu pela primeira vez,
estava classificando a roupa branca, amontoando as peças que precisavam ser
remendadas ou substituídas.
Não parecia sentir vergonha de afastar a um lado as que, desgastadas pelo uso,
podiam ser recortadas em peças de menor tamanho, como capas de travesseiro ou trapos
para secar e dar brilho.
Mas, apesar de toda sua afabilidade, Theodora não soube ajudá-lo a descobrir os
motivos da morte de Mina. A idéia do suicídio a entristecia; causava-lhe pena que a gente
caísse em tais abismos de desespero. Por outro lado, por não ter muita intimidade com
Mina, não tinha percebido nela nenhum sinal de que tivesse chegado a esse ponto.
Theodora era viúva, com dois filhos, e isso limitava grandemente sua atividade
social. Preferia dedicar seu tempo aos filhos e a casa, em lugar de visitar suas vizinhas ou
assistir a serões e atos sociais. Daí que não estivesse a par das fofocas.
Pitt partiu tal como tinha chegado, e certamente não mais animado. Se, como Tormod
Lagarde, pudesse ter a certeza de que se tratava de uma tragédia não resolvida,
contentar-se-ia deixando o assunto em paz, como ditava a decência.
Ambrosine Charrington, em troca, estava convencida de que algo assim era
impossível. Se não tinha sido mais que um acidente absurdo, era sua obrigação insistir até
dar com a causa precisa? O devia à própria Mina? Ser enterrada como suicida era uma
desonra, um estigma duro de agüentar para seus familiares. Tinha o dever de demonstrar
ao Alston Spencer-Brown que sua mulher não tinha sido tão desgraçada para escolher
voluntariamente a morte?
De outro modo, o mais provável seria que Alston não deixasse de torturar-se
pensando que Mina amava a outro homem, e que a vida lhe tinha sido insuportável longe
dele.
E os outros? Não iriam pensar que Alston ocultava algum escuro segredo que tinha
levado a sua esposa a esse trágico final?

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A verdade, por desagradável que fosse, ou cara que custasse, parecia com o fim e ao
cabo preferível. A verdade golpeia só uma vez, mas a suspeita o faz infinitas vezes.
Sabendo pela Theodora que Amaryllis Denbigh e ela eram irmãs, Pitt ficou
desconcertado ao conhecer Amaryllis. Tinha esperado achar a uma mulher da mesma
classe. Teve que reajustar suas expectativas, com certo desagrado, ante aquela mulher
bastante mais jovem, não só em anos mas também, sobre tudo, em modo de vestir,
maneiras e porte.
Amaryllis o recebeu com morna cortesia. Entretanto, seus olhos traíam uma faísca de
interesse, e também o fazia sua tensão contida. Nem por um momento temeu que Pitt que
se negasse a falar. Havia nela uma espécie de avidez, uma curiosidade que se mesclava
não obstante com certo ar depreciativo, pois não tinha esquecido que estava frente a um
policial.
—Claro que compreendo sua situação, inspetor... Pitt? -sentou-se, arrumando o
vestido com seus estilizados dedos, que percorreram a seda com delicadeza. Pitt quase
sentiu deslizar-se sobre sua própria pele a suavidade e frescura do tecido.
—Obrigado, senhora. -acomodou-se em uma cadeira ao outro extremo da pequena
mesa.
—Sente-se obrigado a comprovar que não aconteceu nada de delito – raciocinou
Amaryllis-; e isso, naturalmente, requer que se averigúe a verdade. Eu gostaria de poder
ajudá-lo. -Não afastava os olhos do Pitt, que teve a sensação de que estava memorizando
todos seus traços. - Mas receio que não sei grande coisa. -Sorriu-. Só vagas impressões
que seria injusto apresentar como fatos.
—Compreendo. -Por algum motivo ao Pitt custou pronunciar aquela palavra.
Fez um esforço por concentrar-se em Mina e nos motivos que o tinham levado até ali-
. Sem dúvida se teria evitado a tragédia se alguém tivesse estado à corrente dos fatos.
Mas a causa de que aconteçam coisas tão inesperadas é, justamente, que ninguém tem
mais que impressões, coisas que se intuem, mas, só se compreendem depois, refletindo
sobre o ocorrido.
Uma morte como a de Mina só deixa um rio de mistérios e hipóteses, injustas
possivelmente. -Esperava não parecer sentencioso. Só tentava desenvolver o raciocínio de
Amaryllis, e assim convencê-la de que falasse.
Sentia-se capaz de discernir entre o que era digno de confiança e o que devia
descartar-se como mal-intencionado ou desconexo.
—Não me tinha exposto isso desse modo. -Os olhos do Amaryllis eram grandes e

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azuis, e olhavam de forma muito direta. Sem dúvida tinha tido já esse mesmo aspecto na
época em que usava tranças e vestido até os joelhos: a mesma franqueza, a mesma
curiosidade ligeiramente atrevida, e a mesma suavidade da pele em suas faces e seu
pescoço-. Tem toda a razão, é claro.
—Então, será amável de me contar suas impressões? - Pitt se desprezou a si mesmo
por atuar desse modo. Desagradava-lhe aquela classe de especulações malévolas que
estava fomentando; mais ainda, que estava a ponto de escutar com a mesma avidez com
que uma comadre se dispunha a fazer provisão de falatórios para degustar e refinar antes
de sussurrá-los entre risadas e desqualificações ao ouvido de outro ávido periquito.
Amaryllis era muito sutil para voltar a pedir desculpas. Fazê-lo teria significado que
necessitava delas. Em vez disso, fixou seu olhar no ramo de uma mesa cantoneira e
começou a falar.
—Naturalmente Mina, quero dizer a senhora Spencer-Brown, tinha muita amizade
com o senhor Lagarde. Suponho que sabe. -Não olhou ao Pitt e parecia tensa-. Nada mais
longe de minha intenção que sugerir algo indecoroso.
Entretanto, sempre há pessoas dispostas a interpretar mal uma sincera amizade.
Mais de uma vez me perguntei se alguém interpretaria mal os sentimentos de Mina, e
como resultado disso se sentiria desventurado.
—Alguém? -perguntou Pitt com certa surpresa. Não lhe tinha ocorrido essa
possibilidade: um simples mal-entendido que desembocasse em uma crise de ciúmes. Até
agora se tinha limitado à hipótese de um amor não correspondido.
—Bom, imagino que o candidato mais claro é o senhor Spencer-Brown - respondeu
Amaryllis, cravando finalmente seus olhos no Pitt-. Mas nem sempre o mais claro é o certo,
não é?
—Não - se apressou a admitir Pitt-. Mas, se não ele, quem então?
Amaryllis suspirou e por uns momentos pareceu refletir.
—Não sei. -de repente levantou a cabeça, como se acabasse de tomar uma
resolução-. Suponho que não é impossível que... -interrompeu-se-. Bom, o que costuma
acontecer. Outros casos? Pois, por exemplo, sei que Inácio Charrington esteve muito
apaixonado por Eloise em outros tempos.
Não lhe fazia caso, não sei por que! Parece uma pessoa bastante agradável, mas
para Eloise, nesse sentido, era como se não existisse. Tratava-o com a devida cortesia,
claro.
Mas isso é o normal.

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—Não vejo que relação tem isso com a morte da senhora Spencer-Brown - disse Pitt.
—Não? -Amaryllis o olhou com seus grandes olhos azuis-. Eu tampouco.
Suponho que não a há. Limito-me a procurar qualquer possibilidade, gente que, em
um momento ou outro, pudesse haver dito algo que desse pé a mal-entendidos. Já lhe
disse, inspetor, que não sei nada! Pediu-me minhas impressões.
—Assim, pois, sua impressão é que a senhora Spencer-Brown estava com bom
ânimo? -Sem dar-se conta, Pitt usou as palavras do Tormod.
—OH, sim! Se algo a afligiu, deve ter acontecido muito de repente, sem avisar.
Possivelmente soube de uma coisa terrível.
—O senhor Lagarde assegura que estava tranqüila quando partiu de sua casa -
indicou Pitt-. E, pelo que dizem os criados da senhora Spencer-Brown sobre à hora de sua
morte, deve ter ido diretamente a casa.
—Talvez se encontrou com alguém na rua. Ou possivelmente houvesse uma carta
esperando-a...
Pitt não tinha pensado em uma carta. Deveria ter perguntado aos criados se alguém
tinha deixado uma mensagem. Talvez Harris tivesse pensado nisso.
Era muito tarde para dissimular seu engano; Amaryllis o tinha lido em seu rosto.
Seu sorriso adquiriu mais segurança.
—Se se desfez dela, como cabe supor -disse afavelmente-, nunca conheceremos seu
conteúdo. Pode ser que seja o melhor, não acha?
—Não se se tratava de uma chantagem, senhora -respondeu Pitt com dureza.
Estava zangado consigo mesmo, e também com ela, por ter visto o que lhe tinha
passado por cima. E porque tinha a sensação de que ria um pouco dele.
—Chantagem! -Amaryllis parecia assombrada-. Uma idéia horrível! Não suportaria
pensar nisso. Pobre Mina! Pobrezinha... -Respirou fundo e encolheu com força as coxas
através do vestido-. Mas suponho que você sabe mais disso que nós. Seria uma criancice
negar-se a ver a realidade.
Inspetor, tenha paciência se nos vir reticentes ou lerdos em reconhecer a verdade.
Acostumamo-nos a uma vida fácil.
Custa-nos admitir a primeira a existência de coisas tão desagradáveis. Ou talvez nos
deva forçar um pouco?
Pitt sabia que Amaryllis estava certa, e seu bom senso aplaudiu aquelas palavras.
Talvez a tivesse julgado injustamente.
Os preconceitos não eram patrimônio exclusivo dos ricos.

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Pitt conhecia por experiência o gosto amargo das opiniões que depois se revelam
injustas, nascidas da inveja ou medo, da necessidade de racionalizar nossos temores.
—Naturalmente. -ficou em pé. Não esperava nada mais da entrevista. Amaryllis lhe
tinha dado já muitos elementos para refletir. Quanto ao da chantagem, Pitt o tinha
mencionado para assustá-la, mas ao final se viu obrigado a reconhecê-lo.
—De momento não tenho dados seguros, nem agradáveis nem desagradáveis.
Assim, quanto menos se fale mais sofrimentos se evitarão. Não deixa de ser possível que
estejamos ante um trágico acidente, sem mais.
O rosto de sua interlocutora estava bastante tranqüilo, plácido quase, com sua tez
branca e rosada e seus traços infantis.
—Assim o espero. Qualquer outra solução não faria mais que aumentar a angústia de
todas as pessoas afetadas. Bom dia, inspetor.
—Bom dia, senhora Denbigh.

Pitt tinha afastado o assunto de sua mente, e se ocupava de diversos incêndios - dois
dos quais, provavelmente intencionais, caíam em sua jurisdição-, quando, às quatro e meia
da tarde, bateu na porta um agente de cabelo negro cuidadosamente penteado. Devia
anunciar a visita de um distinto cavalheiro.
—Quem é? -Pitt não esperava a ninguém e pensou que aquele cavalheiro tinha sido
mal orientado no escritório do guarda. Umas poucas palavras de ajuda bastariam para
desfazer-se dele.
—Um tal Charrington, senhor -respondeu o agente-. O senhor Lovell Charrington, do
Rutland Place.
Pitt deixou de barriga para baixo o documento que estava lendo.
—Diga-lhe que entre - ordenou com certa apreensão. Não lhe ocorria nenhum motivo
que explicasse a presença do Lovell Charrington na delegacia de polícia, a menos que
fosse algo ao mesmo tempo confidencial e urgente.
Se tratava-se se de um assunto sem importância, poderia ter mandado chamar Pitt,
ou inclusive esperado que o curso de sua investigação o fizesse voltar à praça.
Lovell Charrington entrou com o chapéu ainda posto, salpicado de chuva. Um guarda-
chuva pendia de sua mão. Estava pálido. Da ponta de seu nariz pendia uma gota de água.
Pitt se levantou.
—Boa tarde, senhor. No que posso ajudá-lo?
—Soube que você é o inspetor Pitt -disse Lovell entorpecido.

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Pitt teve a impressão de que aquele homem não desejava ser grosseiro, mas sim se
sentia violento, como esmigalhado entre o desejo de dizer algo que lhe era difícil
expressar, e uma compreensível repugnância por aquele lugar. Havia poucas dúvidas
sobre o fato de que era a primeira vez que pisava em uma delegacia de polícia. Terríveis
idéias de pecado e miséria deviam bulir em sua imaginação.
—Com efeito, senhor. Deseja sentar-se? -Assinalou uma cadeira de madeira com
espaldar rígido, a um lado da mesa-. Se trata da morte da senhora Spencer- Brown?
Lovell se sentou.
—Sim. estive... considerando... sopesando até que ponto seria correto falar com
você. -Era notável a habilidade que possuía para parecer ao mesmo tempo alarmado e
ligeiramente empolado, cheio de uma aguda consciência de si mesmo, como um galo que
se surpreendesse cacarejando em pleno meio-dia. - Uma pessoa deseja cumprir com seu
dever, por muito doloroso que seja. -Cravou no Pitt um olhar solene.
Pitt se sentiu desconfortável por ele. Pigarreou, tratando de pensar em alguma frase
inócua que não lhe engasgasse à força de hipocrisia.
—Naturalmente - respondeu-. Nem sempre é fácil.
—Com efeito. -Lovell tossiu-. Tem muita razão.
—O que quer me contar, senhor Charrington?
Lovell tossiu outra vez e remexeu em seus bolsos em busca de um lenço.
—Não é a palavra mais adequada. Não "quero" explicar-lhe inspetor. Sinto-me na
obrigação de fazê-lo, o que é muito diferente.
—Certamente. -Pitt suspirou-. Muito diferente. Perdoe minha estupidez. O que se
sente no dever de me explicar?
—A senhora Spencer-Brown... -Lovell assoou o nariz, dobrou o lenço entre os dedos
e o meteu no bolso-. Inspetor, a senhora Spencer-Brown não era uma mulher feliz.
Falando com franqueza, atrever-me-ia a dizer que era um pouco neurótica. -
Pronunciou aquela palavra como se tivesse conotações obscenas, e devesse limitar-
se a conversas de homens.
Pitt teve dificuldades para não deixar transparecer a surpresa que sentia. Todos
haviam dito, ao contrário, que Mina era uma mulher pragmática e perfeitamente adaptada
à realidade.
—Seriamente? O que o faz dizê-lo, senhor Charrington?
—O que? Bom... pelo amor de Deus, inspetor! -Começava a impacientar-se. Tive
anos para observar de perto a essa mulher. Vivíamos na mesma rua, sabe? Era amiga de

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minha esposa. Tínhamo-nos visitado mutuamente. Conheço seu marido.


Uma mulher muito instável, propensa a emoções caprichosas. Muitas mulheres o são,
naturalmente; e não o critico. Faz parte de sua natureza.
A experiência dizia ao Pitt que as mulheres, sobre tudo na alta sociedade, tinham
uma imaginação solidamente prática, e estavam muito bem dotadas para distinguir a
fantasia da realidade. Eram os homens quem se casavam com um rosto bonito ou uma
boca aduladora. As mulheres, em troca - e Charlotte lhe tinha mostrado mais de um
exemplo-, costumavam inclinar-se por um caráter agradável e uma carteira bem provida.
—São mais românticas?
—Efetivamente -disse Lovell-. Vivem nas nuvens, sem contato com a dura realidade.
Não são feitas para ela. Os homens são diferentes. A pobre Mina Spencer-Brown se
engraçou romanticamente do jovem Tormod Lagarde, um homem decente e honesto,
claro. Consciente de que Mina era uma mulher casada, e além disso muito mais velha que
ele...
—Pensava que a senhora Spencer-Brown tinha uns trinta e cinco anos.
—Sim, acredito que sim. -Lovell abriu muito os olhos-. Pelo amor de Deus, inspetor,
Lagarde tem só vinte e oito! Quando quiser casar-se buscará uma de dezenove ou vinte. É
o indicado.
Não convém casar-se com uma mulher de caráter já formado, pois não há maneira
de mudá-la. O homem tem que guiar à mulher, sabe? Moldar seu caráter na boa direção.
Mas me estou afastando do tema.
A senhora Spencer-Brown já estava casada. É claro que se deu conta de que estava
fazendo uma tolice; teve medo de que seu marido o descobrisse, e não pôde suportar mais
tempo. -Pigarreou-. tive que dizer-lhe Tudo, muito desagradável, mas não podia permitir
que você andasse colocando o nariz por aí com suas perguntas, levantando suspeitas
sobre gente inocente.
Um assunto funesto, patético, muito sofrimento... Pobre mulher! Cometeu uma
grande imprudência, e a pagou a preço muito alto. Não sairá nada bom daí. -Fez um leve
ruído com o nariz, tampando-o com o lenço.
—Costuma ser assim -disse Pitt secamente-. Mas como se inteirou do amor da
senhora Spencer-Brown pelo senhor Lagarde?
—O que?
Pitt repetiu a pergunta.
O rosto do Lovell se azedou.

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—Esse é um ponto muito delicado, inspetor.


—Não tenho mais remédio que perguntar-lhe senhor. -Pitt sentia vontade de sacudir
a aquele homem, de tirá-lo de sua estreita e estúpida casca de ovo; em parte, entretanto,
era consciente de que teria sido inútil, além de cruel.
—Por dedução, naturalmente! -disse Lovell com impaciência-. Já lhe disse que
conhecia a senhora Spencer-Brown desde há anos. Encontramo-nos em inumeráveis
acontecimentos sociais. Acha acaso que vou por aí com os olhos fechados?
Pitt evitou a pergunta.
—Deu-se conta alguém mais dessa... relação, senhor Charrington?
—Se ninguém o disse ainda, inspetor, foi por delicadeza, não por ignorância.
Não é costume trazer à tona os assuntos alheios ante um desconhecido,
especialmente se se trata de algo desagradável. -Um pequeno músculo se contraiu em sua
face. - Eu mesmo acho muito violento lhe contar tudo isto, mas sei que é meu dever
economizar sofrimentos a quem está ainda em vida. Esperava de você que o entendesse,
e me agradecesse isso. -Depois de ficar em pé, ajustou-se a jaqueta puxando as lapelas-.
Confio em que acabe por compreender isso e cumpra com suas responsabilidades no
assunto.
—Espero que assim seja, senhor. -Pitt se levantou também-. O agente Mclnnes o
acompanhará até a saída. Obrigado por vir e por sua franqueza.
Ficou olhando um momento a porta fechada, sem tocar nos informes que
continuavam de barriga para baixo sobre a mesa, até que, vinte minutos mais tarde, o
agente Mclnnes entrou no escritório.
—O que acontece? -disse Pitt com irritação. Charrington o tinha desconcertado. O
que havia dito sobre Mina contradizia todo o ouvido até então.
Certo que Caroline tinha insinuado aquele afeto por Tormod Lagarde, mas
acompanhando-o com a certeza de que Mina era uma mulher sensata e judiciosa.
Agora, em troca, Charrington lhe vinha com que era uma mulher volúvel e romântica-.
E bem, o que acontece? -voltou a perguntar.
—O informe do médico, senhor. -Mclnnes mostrou um dossiê de documentos.
—O médico? -Por um momento Pitt não soube a que se referia.
—A propósito da senhora Spencer-Brown. Morreu envenenada. Com beladona,
senhor; uma quantidade considerável.
—Assim lê os informes? -disse Pitt, assinalando o papel.

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Mclnnes se ruborizou.
—Só uma olhada, senhor. Simples curiosidade por... só... -Renunciou a seguir,
incapaz de dar com uma boa desculpa.
Pitt estendeu a mão.
—Obrigado.
Concentrou a vista no papel, percorrendo rapidamente a caligrafia. O exame
demonstrava que a morte da Wilhelmina Spencer-Brown se devia a uma parada cardíaca
produzida por uma dose maciça de beladona. Como não havia tornado a comer nada
depois de um ligeiro café da manhã, a dose devia ter sido consumida mesclada em um
cordial com aromas de gengibre, única substância que se achou em seu estômago.
Harris se tinha expropriado da caixa de remédio em pó receitada ao senhor Spencer-
Brown pelo doutor Mulgrew. Estava cheia três quartos. A quantidade que faltava, incluindo
as dose que Spencer-Brown dizia ter tomado, era grandemente menor que a detectada na
autópsia.
O que tinha matado a Mina não era uma dose de medicamento tomado acidental ou
intencionalmente. Sua procedência era outra.

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Capítulo 6

Charlotte passou um dia terrível, dando voltas ao que devia fazer com respeito à
Caroline e Paul Alaric. Por três vezes chegou à conclusão definitiva de que a coisa não era
tão grave, e que o mais aconselhável era fazer caso ao dito por Pitt e não intrometer-se.
Caroline não lhe ia agradecer que interferisse em seus assuntos, e provavelmente
Charlotte não conseguiria mais que incomodar a ambos, fazer que tudo parecesse mais
importante do que realmente era.
Mas uma e outra vez lhe aparecia à imagem do Caroline com as faces ardendo, o
corpo em tensão, e aquele momento em que, ao falar com o Paul Alaric em meio da rua, a
agitação a tinha obrigado a travar saliva. Também recordava o aspecto de Alaric naquele
dia, com sua elegante e erguida compostura, seus olhos claros e harmoniosa voz.
Não lhe tinha impressionado sua dicção, irrepreensível mas nada afetada, em que
cada consoante se distinguia da outra, como se suas palavras se ajustassem a um guia
preestabelecido.
Sim, decididamente terei que fazer algo, e rápido... a menos que naquele momento
fosse já muito tarde!
Tinha cozinhado já toda uma fornada de pão sem sal, e depois tinha ofendido ao
Gracie lhe pedindo que limpasse o chão quando acabava justamente de fazê-lo.
Eram três da tarde.
Pegou uma das golas de camisa do Pitt e, depois de lhe dar uma volta, costurou-o na
mesma posição. Arrancou-o com raiva, murmurando uma série de palavras que em boca
de outro a teriam escandalizado. Decidiu então escrever a sua irmã Emily, lhe pedindo que
a visitasse assim que recebesse a mensagem, fosse ou não adequado o momento.
Provavelmente Emily, que se tinha casado com Lorde Ashworth em datas muito
próximas às do matrimônio do Charlotte com Pitt, teria que cancelar algum interessante
compromisso; em troca, a viagem em si não tinha mais dificuldade que chamar o cocheiro
e subir à carruagem.
Além disso, Charlotte tinha ido à casa do Emily sem tardança quando aquele horrível
assunto do Paragon Walk, na época em que Emily estava grávida. Não era muito delicado
recordar-lhe mas o momento não era para convites corteses.
Procurou papel de carta e ficou a escrever.

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Querida Emily:
Durante as duas últimas semanas visitei mamãe com freqüência. Ocorreram coisas
terríveis, que poderiam lhe causar um dano irreparável se não intervir. Posto que o assunto
é longo e complexo, preferiria não lhe explicar isso por escrito.
Considero melhor lhe contar isso pessoalmente.
Queria pedir-lhe conselho a respeito de como agir, antes de que seja muito tarde e se
produza uma tragédia.
Sei o ocupada que está, mas novos acontecimentos nos exigem que obremos sem
demora.
Portanto, peço-lhe que adie todos seus planos e venha para ver-me assim que leia
estas linhas. Ambas sabemos, por nossa passada experiência no Paragon Walk e outros
lugares, que os desastres não esperam decentemente a que finalizem os acontecimentos
sociais para fazer sua aparição.
Produziu-se já uma morte.
Sua irmã que a quer,
CHARLOTTE
Dobrou a nota, meteu-a em um envelope e, depois de escrever o endereço, ordenou
à Gracie que jogasse imediatamente no correio.
Era consciente de ter exagerado as coisas. Talvez Emily se zangasse. Não havia
motivo para supor que a morte de Mina estivesse relacionada com sua mãe, nem que esta
estivesse em perigo.
Não obstante, se Charlotte se limitasse a escrever que Caroline corria o grave risco
de perder a cabeça por um homem, até tratando-se do Paul Alaric, suas palavras não
teriam sortido grande efeito.
Evidentemente seu pai, caso de inteirar-se, sentir-se-ia profundamente ferido e
incapaz de compreensão. O fato de que, pelo menos em uma ocasião, ele mesmo tivesse
levado mais longe suas aventuras extramatrimoniais, parecia-lhe irrelevante. O que era
aceitável em um homem enquanto o fizesse com discrição, não estava permitido à esposa
desse mesmo homem.
E, para falar a verdade, Caroline não estava sendo precisamente discreta. Tudo isso,
entretanto, não teria conseguido mobilizar Emily, pela simples razão de que teria resistido
a acreditar.
Em troca, a menção de uma morte, acompanhada por uma alusão aos horrendos
acontecimentos do Paragon Walk, garantia que Emily acudisse tão rápido como o

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permitisse o tráfico.
E assim foi, em efeito. Emily bateu energicamente à porta no dia seguinte, antes de
meio-dia.
Charlotte foi abrir.
Apesar da hora que era, Emily mostrava um aspecto muito elegante. Seus loiros
cabelos se ocultavam sob um delicioso chapéu na moda. Trazia um vestido verde, a cor
que mais a favorecia.
Dirigiram-se à cozinha, onde estava Gracie, que fez uma rápida reverência e subiu ao
piso de cima para fazer limpeza no quarto da menina.
—E então? -disse Emily imperativamente-. Que demônios se passou? Conta-me pelo
amor de Deus!
Charlotte se alegrava de vê-la - fazia certo tempo que não passavam um bom
momento juntas- e de repente a rodeou com seus braços.
Emily correspondeu ao abraço, carinhosa, mas impacientemente.
—O que aconteceu? -apressou-. Quem morreu? E o que tem que ver com mamãe?
—Sente-se. -Charlotte lhe indicou uma das cadeiras da cozinha-. É uma longa
história, e não lhe verá muito sentido se não lhe explicar desde o começo. Quer comer
algo?
—Se insistir... Mas me diga quem morreu, antes de que estale! E que relação tem
com mamãe. Pelo que deduzi de sua nota, está em perigo.
—Morreu uma mulher chamada Mina Spencer-Brown. A princípio parecia um suicídio,
mas agora Thomas acredita que foi um assassinato. Tenho sopa de cebola.
Quer um pouco?
—Não. Que coisa lhe deu para fazer sopa de cebola?
—Gosto. Estou há dias com vontade de tomar sopa de cebola.
Emily a contemplou com perplexidade.
— Já que tem desejos por causa de seu estado, não poderia ter escolhido algo um
pouco mais civilizado? As cebolas, Charlotte, são socialmente inaceitáveis! A quem diabos
quer que visitemos depois de tomar sopa de cebola?
—Não posso evitá-lo. Ao menos não é algo fora de temporada, nem está a um preço
ridiculamente alto. Talvez você possa se permitir desejos de damascos frescos ou faisão
polido, mas eu não.
O rosto de Emily se retesou.
—Quem é Mina Spencer-Brown? O que tem que ver com mamãe? Charlotte, se me

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fez vir até aqui só porque quer se entremeter em um dos casos do Thomas... -respirou
fundo e fez uma careta- eu adorarei ter uma desculpa para intervir! Os assassinatos são
mais apaixonantes que a vida social, embora às vezes me ponha doente de medo ou me
faça chorar a horrível solução. -Apoiou o punho fechado sobre a mesa-. Confio em que me
haja dito a verdade, e não uma fileira de tolices sobre mamãe.
Renunciei a um delicioso almoço para vir aqui, e a única coisa que encontro é... sopa
de cebola!
Por uns momentos Charlotte evocou imagens do passado: aqueles horríveis
cadáveres no jardim do Callander Square, e o momento em que Paul Alaric as tinha
encontrado, paralisadas de medo, ao cabo dos assassinatos do Paragon Walk. Depois
voltou para o presente, enquanto seu pulso recuperava a normalidade.
—Está relacionado com mamãe - disse com seriedade. Depois de servir a sopa e o
pão, sentou-se-. Falta-lhe sal, sinto muito. Lembra-se de monsieur Alaric?
—Não seja tola! -disse Emily arqueando as sobrancelhas. Agarrou o saleiro e jogou
um pouco em seu prato-. Acha que poderia tê-lo esquecido, embora não continuasse
sendo meu vizinho? É um dos homens mais encantadores que conheci. É capaz de falar
sobre qualquer assunto, e parecer interessado.
Por que será que nas reuniões sociais se considera elegante adotar uma pose de
aborrecimento? É algo francamente tedioso. -Sorriu-. Nunca cheguei a saber com certeza
se se dava conta de como fascinava a todas.
Até que ponto pensa que não foi mais que o desafio do mistério, uma espécie de
competição por ver quem conseguia primeiro ganhar sua atenção?
—Só em parte. -Inclusive nesse momento, em sua própria cozinha, Charlotte tinha
em sua mente uma imagem tão nítida do Alaric que a explicação tinha que ser outra-.
Tinha a capacidade de tomar a brincadeira e, entretanto, nos fazer acreditar de uma vez
que nos apreciava.
—Seriamente? -Emily abriu muito os olhos, e seu fino nariz deu um pulo-. Me parece
uma mescla desajustada. Além disso, estou convencida de que pelo menos Selena queria
dele algo mais que ser "apreciada". A pura amizade não provoca em ninguém tanta
agitação e inquietação!
—Ele e mamãe se conheceram. -Charlotte esperava de Emily uma reação clara, mas
sua irmã não deu amostras de interesse.
—Com um pouco de sal esta sopa está muito boa! -respondeu Emily-. De qualquer
modo, terei que me sentar ao outro extremo do salão e falar com gritos com as pessoas.

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Podia ter pensado nisso! O que tem de estranho que mamãe tenha conhecido ao Alaric?
Movem-se em círculos muito reduzidos.
—Mamãe leva seu retrato em um medalhão.
Desta vez se produziu o efeito desejado: Emily deixou cair a colher e ficou
boquiaberta.
—O que disse? Não acredito! Não seria capaz de semelhante... idiotice!
—Foi.
Emily fechou os olhos, aliviada.
—Então já não o leva!
—Não. O medalhão se extraviou, provavelmente foi roubado. Houve uma série de
pequenos roubos no Rutland Place: uma abotoadura de prata, uma correntinha de ouro,
uma caixa de rapé...
—Isso é terrível! -Emily arregalou os olhos, cheios de angústia-. Simplesmente
espantoso, Charlotte! Já sei que o assunto dos criados está muito mal, mas isto é ridículo.
Todos temos o dever, por atenção a nossas amizades, de nos assegurar de que
sejam honrados. E se alguém encontra o medalhão? E se se inteira de que pertence a
mamãe, com o retrato desse... desse francês? O que diriam? O que pensaria papai?
—Exatamente -disse Charlotte-. E agora, a poucos passos de casa de mamãe, Mina
Spencer-Brown morreu, provavelmente assassinada.
Mesmo assim mamãe não tem intenção de deixar de vê-lo. Tentei dissuadi-la, mas foi
como falar com uma parede.
—Mas não a advertiu que...? -respondeu Emily com incredulidade.
—claro que sim! Mas quando viu que uma pessoa apaixonada faça caso dos
conselhos?
Emily perdeu a compostura.
—Não diga ridicularias! Mamãe tem cinqüenta e dois anos, e está casada!
—O que importam os anos? -Charlotte desprezou com um gesto o argumento da
idade-. Não acredito que alguém se sinta diferente. Quanto a pensar que o matrimônio seja
um antídoto contra o amor, não é preciso que lhe diga quão ingênuo é.
Se pensa se colocar de cheio na alta sociedade, Emily, o menos que pode fazer é
adotar seu realismo, tanto como sua sofisticação e tolas maneiras!
Emily, com os olhos fechados, afastou o prato de sopa.
—Charlotte, é espantoso! -disse com voz tensa e angustiada-. Seria um absoluto
desastre. Tem idéia do que acontece com uma mulher com reputação de...imoral? OH, não

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haveria problema se se tratasse da esposa de algum conde ou duque, uma pessoa


importante! Mas para alguém como mamãe... Papai inclusive poderia divorciar-se! OH,
céus! Seria o final de todos nós. Nunca voltariam a me receber em nenhuma parte!
—Isso é a única coisa que lhe importa? -replicou Charlotte com aspereza-. Que a
convidem ou não? Não poderia pensar em mamãe? E como acha que se sentiria papai?
Para não falar das causas da morte de Mina Spencer-Brown!
Emily empalideceu, repentinamente envergonhada de seus pensamentos.
—Não pensará que mamãe está relacionada com um assassinato, não é? -
murmurou-. É inconcebível!
—Claro que não penso -disse Charlotte-, mas o que é perfeitamente verossímil, e até
provável, é que o assassinato de Mina tenha relação com os roubos.
E isso não é tudo. Mamãe me disse que de um tempo a esta parte tem a sensação
de que alguém a espiona. Também isso poderia ter que ver com o assassinato.
Dois pontos vermelhos apareceram nas faces de Emily.
—Por que esperou tanto para me contar isso A indignação voltou à sua voz, uma vez
superada a vergonha-. Deveria me ter avisado em seguida. Por muito esperta que se acha,
não tinha razão para tentar sozinha. Note em como se complicou tudo! Tem um conceito
pretensioso de você mesma, Charlotte.
Acha que é tão inteligente que ninguém pode enganá-la, só porque em um ou dois
dos casos do Thomas topaste com a verdade.
Agora já vê o que aconteceu sem que pudesse impedi-lo!
—Não soube que se tratava de um assassinato até o dia antes de lhe escrever. -
Charlotte se controlou com esforço. Emily estava assustada. Admitiu para si ter confiado
muito em suas habilidades. Provavelmente teria feito melhor em pedir conselho à Emily, ao
menos com respeito à Caroline e Paul Alaric.
Emily voltou a aproximar o prato de sopa.
—Está fria. Não entendo que não possa ter desejos razoáveis, por exemplo pepinos
japoneses. Quando eu estava grávida, morria pela geléia de framboesa.
Comia-a, contudo. Pode me servir um pouco de sopa quente, por favor?
Charlotte se levantou e serviu um par de colheradas em ambos os pratos.
—O que fazemos? -perguntou logo.
Emily a olhou, e toda sua raiva se diluiu. Era consciente de seu egoísmo, embora não
havia necessidade nem para ela nem para sua irmã de dizê-lo.
—Bom, o melhor é que esta mesma tarde convençamos a mamãe de que está em

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perigo, e a dissuadamos de voltar a ver monsieur Alaric, salvo em um encontro casual e


inevitável. Não nos interessa nos pôr em evidência. Produzir-se-iam rumores.
Depois, se por acaso há alguma relação com os roubos e o maldito medalhão está
em mãos de alguém, deveremos tentar averiguar a identidade do assassino da senhora
Spencer-Brown. Tenho dinheiro suficiente para resgatar o medalhão em caso de
chantagem.
Charlotte expressou surpresa.
—Fá-lo-ia?
Os olhos azuis de Emily se abriram com incredulidade.
—Naturalmente que sim! Primeiro pagaríamos pelo medalhão, e em seguida
avisaríamos à polícia. O que dissessem depois não teria importância. Sem o medalhão
ninguém acreditará. Só conseguiriam piorar sua condenação, por delito de calúnia.
Destruiríamos o retrato e mamãe negaria tudo. Não acredito que monsieur Alaric pretenda
contradizê-la! Apesar de ser estrangeiro, é um cavalheiro.
Uma sombra passou fugazmente por seu rosto.
—A menos, claro, que quem matou a senhora Spencer-Brown seja ele.
A idéia de que Paul Alaric pudesse ser um assassino repugnava particularmente
Charlotte. Nunca tinha pensado nele desse modo, nem sequer no Paragon Walk, e não era
leal nem amável fazê-lo agora.
—OH, não acredito! -disse impulsiva.
Emily a olhou com acuidade.
—Por que não?
Então deu mostras de entendê-lo. Conhecia bem a sua irmã; de fato, sempre tinha
demonstrado uma aguda capacidade de julgamento sobre outros, tanto sobre o que
pretendiam como, sobre por que o pretendiam. Essa facilidade natural, unida ao marcado
pragmatismo de seus desejos e à capacidade de manter em silêncio seus pensamentos,
tinha-lhe proporcionado um êxito social considerável.
Charlotte era mais fantasiosa, mas lhe faltava controle sobre si mesma. Muitos dos
motivos das pessoas lhe escapavam, por sua incapacidade de ter em conta as convenções
sociais.
Só quando entravam em cena as paixões mais escuras, elementares e trágicas, dava
provas de uma compreensão instintiva, acompanhada freqüentemente por um doloroso
sentimento de piedade.
—Por que não? -repetiu Emily enquanto acabava a sopa-. Acha que ser bonito o faz

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automaticamente decente? Não seja criança! Terá que ser muito idiota para imaginar que
as pessoas atraentes são incapazes de cometer os atos mais ligeiros ou repugnantes. A
beleza freqüentemente torna egoístas às pessoas. A capacidade de seduzir pelo aspecto é
perigosa para o caráter.
Essa gente se surpreende quando lhes negam algo, e às vezes não conseguem
aceitá-lo. Não seria o primeiro em optar simplesmente por agarrá-lo à força!
Se o tiverem feito acreditar que basta um sorriso para que as pessoas façam o que
ele espera... Por Deus, Charlotte, lembre-se da Selena! De tanto ouvir como era bonita lhe
quebraram o caráter!
—Não é necessário que se instigue -respondeu Charlotte-. Compreendo-a
perfeitamente. Eu também conheci a gente mimada! Não esqueci como todas
borboleteavam ao redor do Alaric. Basta sua presença para que a metade das mulheres do
Paragon Walk se voltem para ele!
Emily a olhou com azedume. Suas próprias lembranças não deixavam de incomodá-
la.
—Então -disse-, ponha seu melhor vestido e vamos agora mesmo ver mamãe, antes
de que saia ou receba alguma visita.
Caroline reagiu com surpresa e júbilo ante sua chegada.
—Queridas, que alegria! Entrem e sentem-se. Que estupendo é ver às duas!
Trazia um vestido lavanda, com um lenço de suave renda.

Em outras circunstâncias, Charlotte o teria invejado. Um vestido como esse lhe teria
sentado às mil maravilhas; mas, sobre tudo, a teria feito sentir-se formosa, o que importava
muito mais que o mero aspecto. Agora, em troca, não conseguiu pensar mais que em
como estava acalorada Caroline, e como seu corpo respirava alegria e inclusive
entusiasmo por todos seus poros.
Olhou de esguelha ao Emily, lendo em seus olhos surpresa e confusão.
—Emily, sente-se onde possa ver-te - disse sua mãe carinhosamente-. Faz séculos
que não passa por aqui! Ou pelo menos me parece isso. É muito cedo para o chá, e
suponho que já almoçaram.
—Sopa de cebola -disse Emily, enrugando um pouco o nariz.
Sua mãe franziu o sobrecenho.
—OH, querida! Para que?
Emily pegou sua bolsa, abriu-o e tirou um frasco de perfume. Deu-se uns toques

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antes de oferecê-lo à Charlotte.


—Mamãe, Charlotte diz que ultimamente aconteceram fatos trágicos por aqui -disse,
evitando a pergunta a respeito da sopa-. Lamento muito. Deveria me ter escrito. Eu
gostaria de lhe ter oferecido meu apoio.
Tendo em conta o aspecto radiante do Caroline, o comentário parecia algo
deslocado. Charlotte não tinha visto jamais uma pessoa menos angustiada.
Caroline recuperou rapidamente a compostura.
—OH, sim, Mina Spencer-Brown! Muito triste, com efeito. Mais ainda, francamente
trágico. Não me ocorre como pôde chegar tão longe. Teria gostado de poder ajudá-la.
Sinto-me terrivelmente culpada, mas não tinha a menor idéia de que algo andasse mal.
Charlotte seguia mentalmente o passar do tempo, minuto a minuto, consciente de
que a partir das três as primeiras visitas podiam chegar a qualquer momento.
—Não se suicidou -disse bruscamente. - Foi assassinada.
O silêncio foi total. Caroline empalideceu e seu corpo se contraiu.
—Assassinada? -repetiu-. Como pode sabê-lo? Tenta me assustar, Charlotte?
Isso era justamente o que pretendia, mas reconhecê-lo teria atenuado o efeito.
—Disse-me Thomas -respondeu-. Morreu envenenada com beladona, mas a dose
utilizada era maior da que tinham em casa. Teve que vir de fora. Ninguém lhe teria dado
veneno para suicidar-se, de modo que só fica o assassinato, não acha?
—Não o entendo. -Caroline meneou a cabeça-. Quem quereria matar a Mina? Não
fazia mal a ninguém. Não deixou dinheiro, nem era candidata a nenhuma herança, que eu
saiba. -Parecia perplexa-. Não tem sentido. Alston seria o último em... em ter uma aventura
com outra mulher e querer... Não, isso é ridículo! -
Levantou a cabeça e sua voz recuperou a convicção-. Thomas deve estar em um
engano. A explicação é outra. Simplesmente não nos ocorreu ainda. -endireitou- se em seu
assento-. Deve tê-lo trazido de algum lugar. Estou segura de que se olhe em...
—Thomas é um policial excelente e não comete enganos -disse Emily, para
assombro de Charlotte. Era uma afirmação muito cortante e não de todo certa; não
obstante, Emily continuou-: Já teria pensado em tudo. Se disser que foi assassinada, é que
foi. Mais vale que o aceitemos e atuemos em conseqüência. -
Fixou os olhos em sua mãe; depois os afastou um pouco, incapaz de olhá-la
enquanto atirava o golpe de graça-. Obviamente, isso significa ter à polícia por toda parte,
investigando tudo, e a todo mundo. Não ficará em pé um só segredo em toda a vizinhança.
Caroline demorou um pouco em compreender. O primeiro que imaginou foram os

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aborrecimentos conseguintes; dificilmente podia ter esquecido o acontecido no Cater


Street. Previa os perigos que comportava uma investigação para os mais amealhados a
Mina, mas não o que corria ela mesma.
Emily se reclinou no assento com o rosto contraído de piedade e certo sentimento de
culpa.
—Mamãe -murmurou-, Charlotte me disse que perdeu um medalhão, e que por suas
características preferiria perdê-lo a que caísse em mãos alheias. Neste momento devemos
guardar a maior discrição. Inclusive os atos mais inocentes podem parecer suspeitos se
fizerem-se de domínio público, e começam a comentar- se nas reuniões. Já sabe que as
histórias crescem de boca em boca.
Sempre crescem de boca em boca, pensou Charlotte com pesar, e quase sempre
para pior; a menos, claro, que seja a própria pessoa quem as conta! perguntou-se se tinha
feito bem em levar ao Emily até ali. Possivelmente em seu lugar ela haveria dito o mesmo,
mas de seu posto de observadora e ouvinte tudo lhe soava mais cruel do que tivesse
desejado.
E com um toque, além disso, de egoísmo, como se o primeiro motivo de inquietação
fosse a reputação do Emily, e Charlotte atuasse motivada por seus sonhos de detetive, de
forma farisaica e inquisitiva.
Decididamente, não faziam demonstração de muita sutileza.
Lançou uma olhada a sua irmã: lhe tinham subido as cores até as orelhas. Emily
também tinha tomado repentina consciência disso.
Charlotte se inclinou para sua mãe e tomou as mãos. Estavam rígidas.
—Mamãe! -disse-. Devemos averiguar tudo o que possamos sobre o assassinato de
Mina. Desse modo a investigação terá concluído antes de que a polícia tenha tempo de
ocupar-se das vidas de outros. Sem dúvida foi assassinada por algum motivo: amor, ódio,
inveja, avareza... Algum motivo! -Suspirou com um leve assobio-. O mais provável é que
fosse por medo. Disse que Mina era preparada; uma mulher de mundo e muito
observadora.
Talvez soubesse algo sobre outras pessoas, algo que justificasse assassiná-la antes
de que falasse. Há um ladrão na praça, isso é inegável. Possivelmente Mina sabia quem
era, e foi bastante imprudente para dar amostras disso à pessoa em questão. Ou poderia
ser que fosse ela mesma a ladra, que roubasse algo comprometedor e fora assassinada
por seu dono.
Emily colocou palavra na conversa para cobrir aquele tumulto de emoções.

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—Pelo amor de Deus, acaso Thomas não revistou a casa? Deveria ter pensado
nisso! Não é muito complicado!
—Claro que o fez! -replicou Charlotte, reparando no brusco de seu tom.
Não era preciso que defendesse ao Thomas. Emily tinha boa opinião dele e, a seu
modo, apreciava-lhe muito-. Não acharam nada. Pelo menos nada que possa considerar-
se importante.
Mas se nós fizermos algumas perguntas e investigamos por nossa conta, talvez
distingamos matizes que lhes escaparam. A gente não dirá à polícia mais que o
estritamente necessário, verdade?
—Naturalmente! -disse Emily com impaciência-. Mas conosco falarão! E, como os
conhecemos, daremo-nos conta de detalhes que Thomas seria incapaz de perceber,
inflexões de voz, dissimulações... Sim, definitivamente isso devemos fazer!
Mamãe, esta tarde a acompanharemos em suas visitas, a partir de agora mesmo.
Por onde começamos?
Caroline sorriu fracamente. Não tinha sentido discutir.
—Pelo Alston Spencer-Brown -respondeu Charlotte-. Lhe daremos o pêsames e lhe
ofereceremos nosso apoio. Parece-me bastante apropriado. Mostraremo-nos aflitas pela
tragédia, incapazes de pensar em outra coisa.
—É claro - disse Emily, ficando em pé e arrumando o vestido-. Eu me sinto
profundamente desolada.
—Se nem sequer a conhecia! -respondeu sua mãe.
Emily a olhou.
—Temos que ser práticos, mamãe. Encontrei-a em diversas reuniões.
Apreciava-a muito. Seriamente, estávamos no início de uma longa e íntima amizade.
Não se dará conta de nada. Que aspecto tinha? Por-me-ei em evidência se não for
capaz de reconhecê-la em retrato ou fotografia. Embora sempre posso dizer que sou curta
de vista... Mas prefiro não fazê-lo. Teria que me pôr a tropeçar com tudo para que
parecesse verossímil.
Caroline fechou os olhos, tampando-os com seus dedos em gesto de cansaço.
—Era mais ou menos de sua estatura -disse-, mas muito esbelta, quase magra; e
tinha um pescoço muito longo. Não aparentava sua idade. Tinha uma esplêndida cútis
branca.
—E seus traços, seu cabelo...?
—OH, seus traços eram muito regulares; um pouco pequenos possivelmente. E

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cabelos finos. Quando queria era encantadora.


Além disso, vestia-se com gosto; quase sempre cores pálidas, com predileção pelos
tons pastel. Uma boa escolha. Dava-lhe esse toque de frágil inocência que atrai aos
homens.
—Bem - disse Emily-. Vamos, então? Não nos convém encontrar uma multidão de
visitantes. Temos que ficar pouco tempo, para não levantar suspeitas.
Mas terá que falar com ele a sós. Santo Deus! Espero que nos receba! Não estará
guardando cama, ou algo assim?
—Não acredito. -Caroline ficou em pé a contra gosto-. Me teria informado. Os criados
costumam comentar essas coisas.
Charlotte percebeu sua indecisão, seu desejo de escapar ao indesculpável.
—Tem que vir, mamãe. Não podemos ir sozinhas. Seria um pouco violento. É a única
que o conhece.
—De acordo -disse Caroline com pesar. - Mas não quererá que finja que gosto. Tudo
isto é muito desagradável. Tomara não tivesse nada que ver conosco!
Preferiria que tivesse sido um suicídio; assim poderíamos deixá-la descansar em paz,
compadecendo dela, mas sem pensar mais nisso.
—Já - respondeu Emily com certa rudeza-. Mas não podemos. E se nossa intenção é
ajudar a que o assunto tenha um final decoroso, teremos que nos ocupar nós mesmas.
Charlotte tem toda a razão.
Esta se sentiu ofendida pela implicação de que tudo era idéia dela.
Entretanto, não iriam ganhar nada discutindo. Seguiu-as submissamente para a
saída.
Alston Spencer-Brown as recebeu em uma sala em penumbra, como mandava a
tradição. As persianas estavam baixadas até a metade, e havia braçadeiras de luto negros
junto ao espelho e várias fotografias e também sobre o piano. O próprio Alston estava
vestido com traje escuro e sóbrio, severidade aliviada só pelo branco da camisa.
—São muito amáveis me visitando - murmurou. Dava a impressão de estar
atordoado, e era mais baixo e enxuto do que tinha imaginado Charlotte.
—É o mínimo -respondeu Caroline com tristeza, enquanto se sentavam nos assentos
que lhes tinha oferecido. - Apreciávamos muito a Mina.
Alston olhou ao Emily com expressão interrogante; obviamente não estava certo de
quem era ou que fazia ali.
Emily mentiu sem piscar. Era uma perita.

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—Com efeito -disse com um sorriso de pesar-, muito. Eu a encontrei em muitas


reuniões, e a considerava encantadora. Mal começávamos a nos conhecer e a descobrir
quanto tínhamos em comum. Era uma pessoa realmente inteligente.
—É certo -disse Alston com um matiz de surpresa-. Uma mulher muito inteligente.
—Exatamente. -Emily aprofundou essa via-. Se dava conta de muitas coisas, coisas
que outros menos agudos que ela passavam por cima.
—Pensa você o mesmo? -Charlotte olhou a um e outra.
—OH, sim! -assentiu Alston-. Receio que a pobre Mina fosse freqüentemente muito
aguda, e que isso atuasse contra sua própria felicidade. Era capaz de perceber em outros,
traços e qualidades não sempre agradáveis. -Meneou a cabeça-. Costume que não
deixavam muito bem contentes essas pessoas. -Suspirou, passeando o olhar do Emily ao
Caroline, e vice-versa.
—Naturalmente. -Emily se apoiava contra o espaldar em uma postura quase afetada-.
Mas é inevitável adquirir certo... -titubeou delicadamente- conhecimento da conduta
humana se a uma pessoa permite-o sua inteligência.
Contudo, estou certa de não ter ouvido nunca a Mina falar mal de ninguém.
—Certamente -disse Alston sinceramente-. Sabia guardar silêncio, pobrezinha.
Talvez isso fosse sua ruína.
Charlotte se misturou na conversa antes que se precipitasse à pura suscetibilidade. A
Mina não tinha faltado malícia, embora a astúcia do Emily não tivesse chegado a adivinhá-
lo.
—Entretanto, é impossível não inteirar-se de certas coisas. -Charlotte se surpreendeu
ao ouvir que sua própria voz continuava precisamente com o mesmo tom-.
Ou não vê-las, se uma pessoa viver em uma vizinhança reduzida, onde tudo está à
vista de todos. Lembro que a senhora Spencer-Brown se referia com funda compaixão -
quase se engasgou com as hipócritas palavras - no falecimento da filha da senhora
Charrington.
Deve ter lhe causado uma impressão terrível. É inevitável perguntar-se como
aconteceu, embora só seja para saber que tipo de consolo devemos oferecer.
Uma cotovelada do Emily fez Caroline dar um pulo.
—Assim é - disse esta-. Ninguém sabe bem como pôde morrer tão de repente. Deve
ter sido espantoso! Sim, lembro que Mina o mencionou.
—Era muito perspicaz -repetiu Alston-. Se dava conta de que ali se escondia algo
terrível, muito mais do que estava à vista. A maioria de pessoas se deu por satisfeita, mas

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Mina não. -Havia em sua voz um toque perverso de orgulho-. Não lhe escapava nada. -
Adotou uma expressão severa. Claro está que não comentava com ninguém, salvo
comigo; mas tinha certeza de que algo trágico tinha ocorrido aos Charrington, algo que não
ousavam revelar.
Mais de uma vez a ouvi dizer que não lhe surpreenderia que Ottilie tivesse morrido
de forma violenta.
Evidentemente, se aconteceu em algum lugar longe daqui a família se apressou a
jogar terra ao assunto. Quero dizer em caso de que tivesse sido algo... vergonhoso!
Charlotte deu rédea solta a seus pensamentos. Queria dizer outro assassinato?
Assassinada por um amante, possivelmente? Ou talvez Ottilie tinha morrido com um
filho ilegítimo em suas entranhas? Ou, pior ainda, do resultado de um aborto mal realizado!
Ou acaso a acharam em um lugar inominável, o dormitório de um homem, ou um bordel?
Era possível morrer tão jovem de uma enfermidade socialmente inaceitável? Não
acreditava.
Provavelmente as enfermidades desse tipo demoravam anos a chegar a um
desenlace fatal. Entretanto, cabia a possibilidade de que a família se inteirasse e optasse
por uma solução drástica antes que os sintomas fossem muito evidentes.
Eram idéias obscenas, mas não impossíveis. E justificavam perfeitamente um
assassinato, em caso de que Mina tivesse cometido a imprudência de revelar o que sabia.
Emily havia tornado a tomar a palavra, com o fim de surrupiar mais dados sem
parecer muito curiosa. Tinham deixado de lado o tema do Ottilie Charrington, para não
pecar como indiscretas; agora falavam da Theodora Von Schenck. Charlotte e Caroline
tinham preparado Emily.
—Indiscutivelmente - disse Emily assentindo com a cabeça-, todo o mistério dá pé a
fofocas. É natural. Seria incapaz de criticar a Mina. Eu mesma confesso me haver
perguntado pela repentina prosperidade da Theodora.
Admitirá você que é inexplicável! -inclinou-se com expectativa. - Especular é humano!
Não deve sentir-se mal por isso.
Charlotte sentiu certa vergonha alheia, mas ao mesmo tempo um pingo de orgulho.
Emily era muito hábil.
Alston mordeu o anzol à primeira.
—OH, nisso Mina se mostrava realmente perspicaz! -disse com ar de triste
satisfação-. De tão discreta que era não abria a boca, já sabe; além disso, não era nada
severa. Mas observava muito, e estou convencido de que conhecia a verdade sobre muitos

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assuntos. -reclinou-se em seu assento, olhando a suas interlocutoras.


Emily abriu exageradamente os olhos, maravilhada.
—Acha - seriamente? Já sabe que nunca lhe escapava uma palavra indiscreta! OH,
que autodomínio admirável!
Uma idéia vil e repugnante rondou ao Charlotte. Também ela se inclinou para o
Alston, ruborizada pelos repulsivos pensamentos que a assaltavam.
—Sem dúvida era uma mulher muito observadora - disse suavemente-. Devia ver
muitas coisas.
—OH, sim! -disse Alston-. Se dava conta de tudo. Receio muito que um montão de
detalhes passaram por meu lado sem que eu reparasse neles. –de repente as lembranças
o afligiram.
Um sentimento de culpa o embargou, por ter sido tão cego e não ter previsto o
trágico desenlace. Ah, se tivesse sido capaz de ver, de entender! Possivelmente então
Mina não teria sido assassinada.
Todos esses pensamentos se liam em seu rosto, na forma como torceu a boca, no
esquivo de seu olhar, alagado em graves lágrimas.
Charlotte não pôde suportar. Embora achava saber a verdade, e sentia por Mina
tanta raiva como compaixão, inclinou-se para o Alston e apoiou a mão em seu braço.
—Entretanto, - disse com firmeza-, tal como indicou você e sabemos todos, não era
uma fofoqueira. Era muito prudente para comentar suas observações. Estou convencida
de que é você o único que estava a par de sua... perspicácia.
—Seriamente acredita? -Alston a olhou com ansiedade, impaciente por ser absolvido
da acusação de cegueira-. Não gostaria de saber que... fofocava! São coisas que
deveriam... evitar-se.
—Claro que sim -o tranqüilizou Charlotte-. Não está de acordo, mamãe? Emily?
—OH, sim! -responderam ao uníssono. Seus olhos, entretanto, revelavam que não
sabiam muito com o que tinham que estar de acordo.
Afastando a mão da manga do Alston, Charlotte se levantou. Já tinha toda a
informação que desejava; agora queria partir.
Parecia-lhe indecente permanecer aí mais tempo, murmurando palavras compassivas
que não serviam de nada, sabendo, além disso, que a nenhuma das três lhes importava
grande coisa, salvo em abstrato, como se teriam de penalizar por qualquer pessoa.
Emily não dava sinais de querer mover-se.
—Deve você cuidar-se - disse olhando ao Alston nos olhos-. Naturalmente, terá que

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esperar um tempo antes de sair. Não seria oportuno, além de que duvido que se sinta com
vontade. -Emily era uma perita em urbanidade-. Mas deve tentar não ficar doente.
Caroline aferrou os braços da poltrona e olhou ao Charlotte, que sentiu um
estremecimento. Acaso Emily estava aludindo a outro assassinato?
Alston abriu os olhos e toda sua dor se permutou em medo.
Antes que alguém pudesse pensar em alguma frase decorosa com que apagar o
efeito de tão terrível sugestão, a criada abriu a porta e anunciou a visita do Alaric.
Perguntou ao senhor Spencer-Brown se devia fazê-lo entrar.
Alston murmurou uma resposta incoerente, que a moça interpretou como um sim.
Transcorreram uns momentos de agônico silêncio. Charlotte mantinha a vista fixa em
Emily, sem atrever-se a olhar a sua mãe.
Finalmente Paul Alaric entrou na sala.
—Boa tarde... -Titubeou. Obviamente a criada não lhe tinha advertido de que havia
mais visitas. - Senhora Ellison, senhora Pitt. -voltou-se para Emily, mas, antes de que
pudesse falar, Alston se apressou a fazer-se responsável pela situação, aliviado e refeito
ante a oportunidade de poder cumprir com seus deveres de anfitrião.
—Lady Ashworth, me permita lhe apresentar a monsieur Paul Alaric -disse, e depois,
dirigindo-se ao Alaric-: Lady Ashworth é a filha menor da senhora Ellison.
Alaric cravou em Charlotte um rápido olhar interrogativo. Depois, com perfeita
compostura, pegou a mão que Emily lhe estendia.
—Encantado, Lady Ashworth. Como está?
-Muito bem, obrigada -respondeu Emily tibiamente-. Viemos dar os pêsames ao
senhor Spencer-Brown. Como já o fizemos, economizaremos-lhes a obrigação de manter
conosco uma conversa de mera cortesia. -ficou em pé com elegância, acompanhando seu
gesto com um sorriso de puro compromisso.
Charlotte se levantou também. Já tinha estado a ponto de empreender a retirada
quando a criada tinha anunciado ao Alaric.
—Vamos, mamãe -disse-. O que lhe parece se visitarmos a senhora Charrington?
Achei-a muito simpática.
Mas Caroline não se moveu.
—Francamente, querida -se reclinou em seu assento com um sorriso-, se partirmos
agora que monsieur Alaric acaba de chegar, tomar-nos-á por mal educadas.
Resta muito tempo para as demais visitas.
Emily e Charlotte se olharam, avaliando a teima de sua mãe. Depois Emily se voltou

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para Caroline.
—Tenho certeza de que monsieur Alaric não pensará tal coisa. -Desta vez o sorriso
que dirigiu ao Alaric foi mais sedutor-. Se nos retirarmos, é por atenção para o senhor
Spencer-Brown, não porque nos desagrade sua companhia.
Temos que pensar antes em outros que em nós mesmas. Não é verdade, Charlotte?
—Certamente - se apressou a dizer esta-. É nos momentos de abatimento quando
mais agradeceria ter companhia do mesmo sexo que eu. -voltou-se para o Alaric e lhe
sorriu. Desconcertou-a um pouco achar-se com ele a olhar fixamente, com olhos brilhantes
e ligeiramente perplexos.
—Senhora, considerar-me-ia adulado além do razoável se me dissesse que há um
homem que prefere minha companhia a de vocês -disse, embora fosse difícil saber se se
tratava de ironia ou de um mero traço de humor.
—Que tal um pouco de cada coisa, então? -sugeriu Charlotte, arqueando as
sobrancelhas-. Inclusive o mais doce se faz aborrecido durante muito tempo, e a gente
acaba por desejar certa variação.
—O mais doce... -murmurou Alaric.
Charlotte já não teve dúvidas de que estava zombando dela, embora nada no rosto
do francês o revelasse, razão pela qual acreditou ser a única em haver-se dado conta.
—Para não falar do que tem um gosto ácido -disse.
Embora Alston não tinha seguido a conversa, suas boas maneiras inatas foram mais
fortes que sua perplexidade. As convenções sociais permitiam certo desafogo, a
segurança que proporcionava o respeitar as normas.
—Me é difícil aceitar que alguma de vocês queira partir. -Fez um gesto que os
abrangeu a todos-. Fiquem um pouco mais, por favor; foram tão amáveis...
Caroline aceitou na hora, e suas filhas não puderam fazer outra coisa que voltar para
seus assentos e preparar-se para reatar a conversa com toda a paciência de que foram
capazes.
Caroline tornou isso fácil. De repente, depois de haver-se mostrado meramente
cortês e silenciosamente compassiva, mostrou-se radiante, e falou com uma intensidade
desmedida.
—Acabávamos de dizer ao senhor Spencer-Brown que devia cuidar-se muito - disse
olhando ora ao Alston ora ao Alaric-. É tão fácil cair no abandono depois da morte de um
ser querido! Sem dúvida você poderá lhe ajudar melhor que nós.
—Esse é o motivo de minha visita - disse Alaric-. Assistir a reuniões sociais seria

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impensável, claro, mas se alguém fica em casa só, tudo se torna mais difícil. -dirigiu-se ao
Alston-. Agradaria que fizéssemos uma excursão em carruagem um destes dias? Com
bom tempo seria muito agradável. Além disso, economizar-lhe-ia achar-se com gente
conhecida.
—Acredita que me conviria? -Alston parecia indeciso.
—Por que não? Cada qual deve agüentar a dor a seu modo. Quem o estima não o
criticará porque procura algum modo de aliviar a sua. Eu, pessoalmente, amo a música, e
também contemplar as grandes obras de arte, aquelas cuja beleza sobrevive a seus
criadores e se oferece como bálsamo aos sofrimentos e aspirações de todos nós.
Eu adoraria acompanhá-lo a uma galeria, a que você prefira, ou se não a qualquer
outro lugar.
—Não acredita que a gente esperará de mim que fique em casa? –Alston franziu o
sobrecenho-. Pelo menos até o funeral. Não falta muito, sabe? Na sexta-feira. Sim. -
Piscou-. Claro que sabe! Que idiota sou.
—Deseja que o acompanhe? -ofereceu-se Alaric-. Não me ofenderá se prefere estar
só. Entretanto, se eu me achasse em sua situação preferiria não estar.
O cenho do Alston se suavizou.
—Seriamente o faria? É muito amável de sua parte.
Charlotte pensava o mesmo, sem que isso a alegrasse muito. Teria preferido ter
motivos para censurar ao Paul Alaric. Olhou de esguelha para Caroline, percebendo a
radiante expressão de seus olhos e a complacência com que assentia.
Depois olhou ao Emily. Também ela percebera.
—Que amável! -disse Emily com uma aspereza que, mais que preocupação pelo
Alston, expressava medos mais íntimos-. Tenho certeza de que será o melhor.
É em momentos como estes quando se vê que a amizade não tem preço. Em meus
momentos de aflição, o apoio de minha mãe e minha irmã foi o que mais me ajudou.
Charlotte não sabia do que estava falando. Sem dúvida não se referia à morte de
Sarah, que tinha afetado a todas por igual. Não obstante, não sabia de nenhuma outra
grande aflição.
Emily continuou.
—Além disso, não vejo por que não ia dar um passeio, se monsieur Alaric tiver a
generosidade de lhe oferecer sua companhia. Ninguém com um pouco de sensibilidade se
atreverá a pensar mal; ao menos entre as pessoas que podem lhe importar. -Ergueu a
cabeça.

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Claro, às vezes a gente interpreta mal determinadas amizades, mas isso passa
quando se trata de uma dama e um cavalheiro. Coisas assim sempre dão pé a falações,
até nos casos em que a relação é do todo inocente.
Não acha, monsieur Alaric?
Charlotte escrutinou o rosto do Alaric em busca de algum sinal, algo que revelasse
que compreendia o alcance daquelas palavras, na aparência superficiais.
Mas Alaric não se alterou. Aparentemente sua atenção continuava concentrada no
Alston.
—Nunca falta gente malpensada, Lady Ashworth -respondeu-. Em todas as
circunstâncias. Seria inútil procurar contentar a todos. Devemos agir segundo os ditados
de nossa consciência, sem deixar de respeitar as normas elementares que nos
economizam ofensas desnecessárias. Isso é tudo, no meu entender.
A partir daí, terá que estar em paz consigo mesmo. -voltou-se para o Charlotte com
olhar penetrante, como se de algum modo adivinhasse que, se falasse com sinceridade,
Charlotte haveria dito exatamente o mesmo-. Não opina você como eu, senhora Pitt?
Charlotte se achou em um dilema. Detestava os equívocos, e sua própria língua tinha
provocado muitos desastres sociais para que fosse conveniente contradizê-lo.
Também a empurrava a mostrar-se de acordo aquela qualidade que havia no Alaric
além de seu verniz de elegância e inteligência, uma reserva de emoção secreta que a
fascinava, como um dia de tormenta ou o esplendor do vento levantando-se no meio do
oceano.
Algo perigoso e, ao mesmo tempo, de irresistível beleza.
Fechou os olhos por um breve instante e em seguida respondeu.
—Acredito que isso pode ser uma amostra de egoísmo complacente, monsieur Alaric
-disse com uma afetação que a surpreendeu-. Não se pode fechar os olhos à sociedade,
embora às vezes nos sintamos tentados a fazê-lo.
Seria diferente se o preço de ofender a sensibilidade do próximo o pagasse
unicamente a gente mesmo, mas não é assim. As fofocas prejudicam quase sempre gente
inocente.
Não estamos sós. A menor mancha pode acabar recaindo sobre uma família inteira.
A idéia de que podemos fazer o que nos agrade sem prejudicar a ninguém é uma
ilusão, e das mais imaturas. Muita gente o utiliza como desculpa para seu cômodo
egoísmo.
Depois alegam ignorância, e se assombram de que outros sejam arrastados por sua

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culpa, como se não tivessem podido prevê-lo com um pingo de bom senso! -Fez uma
pausa para tomar ar. Não se atrevia a olhar aos assistentes, e menos ao Alaric.
—Bravo - sussurrou Emily, em voz tão baixa que outros a confundiram provavelmente
com um suspiro.
—Charlotte... -Caroline estava assombrada, incapaz de achar as palavras precisas.
—Falou muito sensatamente. -Emily se apressou a romper o tenso silêncio-. E com
que propriedade! Já era hora de que alguém opinasse com franqueza sobre o assunto.
Muito freqüentemente chegamos a nos enganar a nós mesmos com o fim de nos
perdoar isso tudo. Embora sendo minha irmã possivelmente não devesse fazê-lo, felicito-a
por sua honestidade.
Tendo em conta que Charlotte tinha sido sempre a última em fazer caso a tais
conceitos, o comentário do Emily era necessariamente irônico, apesar de que seus olhos
azuis só traduzissem boa fé.
—Obrigado - respondeu Charlotte-. Me adula. -ficou em pé-. Agora terei que partir;
ainda tenho que visitar a senhora Charrington. Quer me acompanhar, mamãe? Ou prefere
que lhe diga que considerou que seu dever era ficar com o senhor Spencer-Brown... e com
monsieur Alaric?
Evidentemente teria sido ridículo por parte de Caroline preferir tal coisa.
Assim, não teve mais remédio que levantar-se também.
—Claro que não -disse secamente-. Será um prazer acompanhá-la.
Gosto muito de Ambrosine, e me alegra visitá-la. Além disso, apresentarei Emily. Ou
também a conhece? -acrescentou mordazmente.
Emily não se alterou.
—Não, acho que não. Mas Charlotte me falou tão bem dela que faz tempo que sinto
vontade de conhecê-la.
Outra mentira. Charlotte jamais tinha mencionado ao Ambrosine em presença do
Emily. Entretanto, era uma boa desculpa.
Alaric se levantou, muito erguido e largo de ombros. Em seu olhar ficavam traços de
brincadeira. Parecia ler nelas com toda clareza, como sabem fazer às vezes os
estrangeiros.
—Parecer-lhe-á uma pessoa excepcional - disse com uma ligeira reverência-. E, o
mais importante, não se aborrecerá nem um minuto.
—Uma estranha virtude -murmurou Charlotte, ruborizando-se-, não ser nunca
aborrecida.

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A frustração fez Caroline perder a compostura e deu um pulo e tentou dar um chute
em Charlotte através da saia, mas falhou. A segunda vez, em troca, deu-lhe em pleno
tornozelo e esboçou um sorriso de satisfação.
—Sem dúvida - disse. Depois olhou ao Alston, quem se tinha levantado também para
despedir-se. - Não duvide em me chamar se acreditar que podemos lhe ajudar em algo.
Curiosamente não mencionou ao Edward, salvo por implicação-. Somos vizinhos próximos,
e nos agradaria lhe dar nosso apoio em qualquer assunto prático.
—É muito amável - respondeu Alston-. Agradeço.
Charlotte olhou sem dissimulação pra Alaric e encontrou seu olhar. Respirou fundo.
—Não duvide que meu pai estará encantado de lhe ajudar no que toca a sua
assistência ao funeral. -Ergueu a cabeça-. O que lhe parece se o visitar e decidem a
melhor solução? Também nós sofremos uma grave perda, e meu pai é uma pessoa
sensível.
Estou convencida de que você saberá lhe apreciar no que vale. -Não afastou o olhar,
apesar do calor que pouco a pouco subia a seu rosto.
Finalmente foi recompensada por uma faísca de compreensão no fundo do olhar do
Alaric, acompanhada por um imperceptível rubor.
—Certamente - disse Alaric com serenidade-. Pensarei nisso com a devida seriedade.
Charlotte fracassou em seu esforço de sorrir.
—Obrigada -disse.
Acabadas as despedidas formais, mãe e filhas caminharam para a porta principal,
onde as esperava a criada, avisada pelo Alston.
Abriram-se ambas as portas, a fim de que pudessem passar amplamente sem ter que
ficar em fila.
Ao sair ao saguão, Charlotte se voltou e, com confusão, viu que Paul Alaric seguia de
frente a elas. Seus olhos, grandes e negros, não olhavam ao Caroline nem ao Emily - que
também tinha dado uma olhada para trás - mas à própria Charlotte.
Olhar para sua mãe era a última coisa que Charlotte desejava; entretanto, acabou por
ceder à curiosidade e topou com um olhar de mulher a mulher, como se nem sequer se
conhecessem. A única nota perceptível era a súbita e total tomada de consciência de sua
rivalidade.

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Capítulo 7

Charlotte esperava com impaciência a chegada de Pitt. Preparou um jantar simples,


que meteu no forno; logo borboleteou de tarefa em tarefa sem acabar nenhuma.
As seis e quinze ouviu por fim como se abria a porta de entrada.
Instantaneamente deixou cair à toalha que tinha entre mãos e saiu a seu encontro.
Habitualmente esperava que Pitt se esquentasse um pouco junto ao fogo, tirasse o
casaco e se sentasse, antes de começar a comentar as coisas do dia. Desta vez, em troca
já antes de que Pitt pusesse seus pés no saguão Charlotte exclamou:
—Thomas, hoje vi Alston Spencer-Brown e fiz uma descoberta! -
Atravessou correndo o corredor e lhe pegou pelas mãos-. Acredito que sei algo sobre
Mina. Possivelmente a razão porque fosse assassinada!
Pitt estava empapado, cansado e de um humor não precisamente radiante.
Seus superiores continuavam obstinados à hipótese do suicídio, causado
supostamente por um desequilíbrio devido a problemas privados.
Desse modo tudo era mais fácil de arrumar, sem comprometer o decoro, sem
necessidade de escavar na vida de numerosas pessoas para trazer à luz assuntos que
convinha deixar em paz.
Desentupir motivos de inimizade era um trabalho sempre desagradável e impopular,
além de pouco proveitoso para a carreira da pessoa que o empreendia, se o elevado
status dessa pessoa o impedia de alegar que se limitava a cumprir ordens.
O chefe do Pitt, o ambicioso Dudley Athelstan, era o irmão menor da família e tinha
melhorado sua posição através do matrimônio. Athelstan se tinha passado a tarde tratando
de convencer ao Pitt de que não havia caso que investigar.
Se o propusesse, disse, uma mulher desequilibrada tinha a seu alcance muitas
maneiras de conseguir veneno para tirar a vida.
Depois de Pitt partir, o mau humor do Athelstan foi crescendo; nem sequer conseguia
convencer-se a si mesmo - e menos ainda ao Pitt, ou ao sargento Harris- de que o assunto
estava resolvido, pois, apesar da diligência das investigações, não se tinha encontrado a
nenhum farmacêutico ou boticário que tivesse em venda aquela substância.
Mais difícil ainda era que um médico a tivesse receitado.
Pitt começou a tirar o casaco, salpicando de água o chão do vestíbulo.
Justamente no dia anterior tinha sido objeto por parte do Gracie de uma dura crítica

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sobre quão difícil era manter bem encerado o chão quando pessoas descuidadas se
dedicavam a salpicá-lo.
—Por que foi à casa do Alston Spencer-Brown? -perguntou ao Charlotte com certa
aspereza-. Não acredito que tenha nada que ver com você nem com sua mãe.
Charlotte percebeu um tom irritado, como se Pitt houvesse trazido consigo todo o frio
da rua. Entretanto, estava muito agitada para fazer caso disso.
—O assassinato está relacionado com mamãe - disse com ênfase, enquanto, em vez
de levar o casaco para secar na cozinha, deixava-o gotejar no varal-.
Temos que achar o medalhão. O caso é que Emily queria visitar mamãe, e eu a
acompanhei. -Se o lampião do saguão tivesse brilhado com chama mais forte, Pitt teria
podido ver como sua esposa se ruborizava de sua meia mentira.
Dando à volta, Charlotte voltou para a cozinha, junto ao fogo-. Mamãe decidiu visitá-
lo para lhe dar o pêsames -explicou-. Enfim, não importa. -voltou-se para o Pitt.
Conheço uma boa razão que explica o assassinato de Mina, e talvez inclusive duas!
- Esperou, vermelha de entusiasmo, a reação de seu marido.
—Me ocorre uma dúzia - disse Pitt sobriamente-. Mas não tenho provas de nenhuma.
Nunca faltaram hipótese, mas não basta tê-las. O superintendente Athelstan quer arquivar
o caso.
O suicídio permitirá deixar tranqüila às pessoas.
Charlotte estalou de impaciência.
—Não falo de hipótese mas sim de fatos! Lembra-se quando lhe disse que mamãe se
sentia observada e seguida?
—Não -disse Pitt com franqueza.
—Sim, disse-lhe isso! A maior parte de tempo mamãe se sentia espiada. E
Ambrosine Charrington disse o mesmo. Pois bem, acredito que se tratava de Mina!
Espiava as pessoas; era o que se costuma chamar uma olheira. Alston o admitiu
indiretamente, embora sem conseguir entender o que significava, claro.
Não percebe, Thomas? Se começou a seguir a uma pessoa que guardava um
segredo, um segredo de verdade, pôde inteirar-se de algo comprometedor, e ser
assassinada por isso. E, pelo que disse Alston, me ocorrem ao menos duas possibilidades.
Pitt se sentou, tirando-as botas molhadas.
—Quais?
—Não me acredita? -Charlotte tinha esperado que Pitt acolhesse com mais
entusiasmo as notícias; em troca, ele parecia escutar pela metade, só para agradá-la.

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Pitt estava muito cansado para andar com rodeios.


—Minha opinião é que sobre sua mãe é menos importante do que imagina.
Muita gente se permite pequenas aventuras, sobretudo entre as ociosas mulheres da
alta sociedade. A estas alturas deveria sabê-lo. Duvido que passe de alguns lenços caídos
e um par de Ramos de flores; algo com tão pouca entidade como um bonito bordado. E
acrescentaria que, se alguém a observava, seria por puro aborrecimento.
Está tomando isso muito a sério, Charlotte. Se não se tratasse de sua mãe não
prestaria atenção ao caso.
Charlotte se dominou com esforço. Por uns momentos quase perdeu a paciência,
replicar sem rodeios que, embora por suas manifestações externas o assunto parecia
trivial, atrás dele se ocultavam sentimentos tão reais e potencialmente violentos como os
que reinavam nos subúrbios, ou em outros estratos sociais menos marginalizados.
Mas em seguida se deu conta de quão cansado estava seu marido, de quanto lhe
tinham desanimado os esforços por parte do Athelstan de ocultar ou evitar o que não
convinha a suas ambições. A indignação não a conduziria a nenhum lado.
—Quer uma xícara de chá? -perguntou, observando os pés molhados do Pitt e a pele
branca de suas mãos ali onde o frio tinha entorpecido a circulação. Sem esperar resposta,
encheu de água a chaleira e a pôs sobre o fogo.
Passaram uns momentos de silêncio, enquanto Pitt vestia meias três-quartos secas;
finalmente levantou o olhar.
—Quais são essas duas possibilidades?
Charlotte esquentou o bule e verteu o chá.
—Ultimamente Theodora Von Schenck goza de uns ganhos que ninguém consegue
explicar. Seu marido não lhe deixou nada, nem tampouco outras pessoas, que se saiba.
Quando se instalou no Rutland Place não possuía mais que a casa.
Agora tem casacos de Marta e outras coisas valiosas. Possivelmente Mina chegasse
a algumas hipóteses interessantes sobre a procedência desse dinheiro.
—Por exemplo?
Charlotte sacudiu com impaciência o bule enquanto a chaleira desprendia débeis
baforadas de vapor. A água estava quente, mas não fervia ainda.
—-Um bordel -respondeu Charlotte-. Ou um amante. Ou talvez um caso de
chantagem. Quando o que está em jogo é o dinheiro muitas coisas podem justificar um
assassinato. Possivelmente Theodora estava chantageando a algumas pessoas com a
ajuda dos dados de Mina, e tivessem uma briga pelo dinheiro.

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Pitt sorriu com amargura.


—Ah! Sua Mina parece ter tido uma maneira de pensar muito pouco caridosa, e uma
língua que não ia atrás. Tem certeza de que dizia essas coisas? Não lhe estará
emprestando sua própria voz?
—Alston fez vários comentários a respeito de quão perspicaz era sua esposa na hora
de julgar o caráter da pessoa, em especial os aspectos menos agradáveis.
Entretanto, disse também que unicamente confiava suas impressões a ele. –Chegou
o momento de afastar a água do fogo-. De todo modo, acredito que esta possibilidade é a
menos verossímil.
A outra a ouvi da boca da própria Mina; saboreava tanto suas palavras que me fez
pensar que realmente sabia algo. -
Mesclou a água com o chá, colocou a tampa e levou o bule à mesa, colocando-o
sobre a base de estanho. Enquanto a infusão repousava, continuou-. Tem que ver com a
morte do Ottilie Charrington, que ocorreu repentinamente e sem explicação.
Poucos dias antes a garota estava em perfeito estado de saúde, e da noite para o dia
sua família voltou do campo com a notícia de que tinha morrido.
Assim, sem mais! Não se mencionou causa alguma, nem houve convites a nenhum
funeral, nem se voltou a falar dela. Mina pareceu sugerir que atrás disso se escondia algo
vergonhoso. Um aborto mal realizado, talvez? -estremeceu-se pensando na Jemima, que
dormia no piso de cima em seu berço rosa-. Ou possivelmente foi assassinada por algum
amante, ou em um lugar inominável, um bordel por exemplo.
Inclusive é possível que cometesse um ato tão terrível que sua própria família
preferisse assassiná-la a que chegasse a saber-se.
Pitt, muito sério, olhava-a sem dizer uma palavra.
Charlotte lhe serviu uma xícara de chá.
—Já sei que parece violento e inverossímil - continuou-, mas o assassinato sempre é
inverossímil, até o momento em que acontece. E Mina foi assassinada, não é verdade?
Agora tem certeza de que não se suicidou.
—Não. -Pitt sorveu o chá e queimou a língua. Suas mãos estavam muito
intumescidas para perceber o calor-. Não, acredito que alguém pôs veneno no cordial que
achamos em seu estômago ao fazer a autópsia.
Encontramos um sedimento na garrafa vazia que tinha deixado em seu dormitório, e
também no copo.
Foi simples casualidade que tomasse justo então. Poderia ter querido mais cedo ou

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mais tarde. Quem o pôs ali pôde ser qualquer pessoa, em qualquer momento.
—Não se o que queriam era silenciá-la - indicou Charlotte-. Quando se tem medo de
alguém, quer vê-lo morto antes que fale, e isso significa quanto antes.
—Thomas, Mina era uma olheira. Quanto mais voltas lhe dou, mais sentido lhe vejo.
Espiou quando não devia, e o que viu lhe custou à vida. -Concentrou o olhar no chá, nas
voltas de fumaça que se desprendiam da xícara. - Me pergunto se as vítimas de
assassinatos costumam ser pessoas desagradáveis, se houver algo em seu modo de ser
que convida a acabar com elas.
Não me refiro, claro, a quem é assassinado por dinheiro. É como nos personagens
trágicos do Shakespeare: uma má formação fatal da alma que corrompe todo o resto. -
Mexeu seu chá, apesar de não levar açúcar. A fumaça se fez mais densa-. A curiosidade
pode ser fatídica. Se Mina não tivesse querido saber tantas coisas das pessoas...
Saberia o de monsieur Alaric e o medalhão de mamãe? -Curiosamente, Charlotte
não estava inquieta.
Caroline era um pouco amalucada, mas carecia da ferocidade e do medo necessários
para chegar ao assassinato. E Paul Alaric não tinha motivos para isso.
Pitt a olhou com olhos escrutinadores. Charlotte se deu conta, muito tarde, de que
não tinha mencionado ao Alaric até então. Era impossível que Pitt tivesse esquecido sobre
Paragon Walk.
Naquele tempo Alaric tinha chegado a ser suspeito de assassinato... ou de algo pior!
—Alaric? -pronunciou lentamente Pitt, esquadrinhado o rosto de Charlotte.
Charlotte sentiu com raiva como se ruborizava. Era Caroline quem se estava
comportando imprudentemente; ela não tinha cometido nenhuma indiscrição.
—Monsieur Alaric é o homem cujo retrato tem mamãe em seu medalhão – disse para
defender-se, sustentando o olhar do Pitt. Mas este era muito nítido, muito lúcido.
Baixou a cabeça e voltou a mexer o chá energicamente. Tentou adotar um tom
ligeiro-. Não lhe tinha falado disso?
—Não. -Pitt a estava observando-. Não, não o fez.
—OH...-Charlotte manteve seu olhar fixo nos redemoinhos do chá.
—Bom, pois já o ouviu.
Produziu-se um longo silencio.
—Seriamente? -disse Pitt finalmente-. Pois sinto dizer que não encontramos o
medalhão, nem outros objetos roubados. E se Mina era uma olheira, alguém que roubava
para satisfazer uma necessidade mórbida de intrometer-se na vida de outros, de fazer-se

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com alguma de seus pertences... -Vendo que Charlotte estremecia, suspirou-. Não é isso o
que está dizendo, que era uma mulher anormal, uma pervertida?
—Suponho que sim.
Pitt voltou a provar o chá.
—E até existe outra possibilidade - acrescentou-: que conhecesse ladrão.
—Trágico e ridículo! -respondeu Charlotte com repentina irritação-. Que alguém
morra por algo tão insignificante como um medalhão ou uma abotoadura!
—Muitos morreram por menos disso -disse Pitt. As miseráveis casas de vizinhança
dos subúrbios voltaram à sua mente, formigueiros de miséria e necessidade-. Alguns por
um xelim, outros de forma acidental, enquanto procuravam o que necessitavam, ou por
culpa do engano de outra pessoa.
Charlotte tomou um gole de chá.
—Vais investigá-lo? -perguntou finalmente.
—Não tenho outra opção. Verei o que posso averiguar a respeito da Ottilie
Charrington. Pobre criatura! Detesto remexer nas tragédias e desgraças das pessoas.
Já deve ser bastante horrível perder uma filha, para por cima ter que suportar que a
polícia examine com lupa amores e ódios. Ninguém gosta que o examinem tão a fundo!

Chegou à manhã seguinte, e continuava sendo claro que não havia outra opção.
Se Charlotte estava certa, se Mina tinha estado bisbilhotando em vidas alheias, então
era mais que provável que certa informação solicitada dessa forma tivesse sido a causa de
sua morte.
Não era a primeira vez que Pitt ouvia falar de pessoas que, sob uma aparência de
absoluta e respeitável normalidade, viviam dominadas por um mórbido impulso de espiar
os outros, de misturar-se em assuntos privados, seguir às pessoas às escondidas, afastar
as cortinas e até abrir cartas e escutar atrás das portas.
Semelhante obsessão provocava sempre medo e rechaço, e freqüentemente
acabava no cárcere. Era inevitável que um dia ou outro conduzisse também ao
assassinato.
Ir falar com os Charrington era impossível. De momento não dispunha de desculpas
que fizessem aceitável trazer à luz o tema da morte de Ottilie, depois de tanto tempo.
A menos que lhes comunicasse suas suspeitas, coisa que de momento era
inadmissível. Poderiam acusá-lo no mínimo de calúnia. E, em situação tão delicada, nem
sequer teriam por que responder a suas perguntas.

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Em lugar disso, foi visitar o Mulgrew. O doutor tinha atendido a quase todas as
famílias do Rutland Place. Se ele não tinha conhecido pessoalmente a Ottilie, saberia de
alguém que o tivesse feito.
-Grande dia! -Mulgrew lhe deu boas-vindas entusiastas. - Lhe devo um par de lenços.
Muito agradecido. Um gesto cavalheiresco. Como vai? Entre e seque-se. -Agitou os
braços, assinalando o corredor-. As ruas parecem rios, inclusive esgotos! O que acontece
agora? Não estará doente, não é verdade? Não se podem curar os resfriados, já sabe.
Nem a dor de costas. Ninguém pode fazê-lo! Eu ao menos não conheci ninguém que
o tenha conseguido. -Guiou ao Pitt até uma sala abarrotada de fotografias e lembranças,
com prateleiras em todas as paredes, montanhas de papéis e notas desmoronando de
mesas e cadeiras.
Diante da lareira dormitava um grande cão lavrador.
—Não, não estou doente. -Pitt o seguiu, invadido por um sentimento de alívio e leve
euforia. De repente o desagradável lhe parecia mais fácil de suportar, e a escuridão que
devia sondar lhe figurava cheia não já de medos difusos, mas sim de coisas conhecidas e
das quais alguém podia enfrentar.
—Sente-se. -Mulgrew fez um gesto com o braço-. OH, afaste à gata! Assim que dou a
volta sobe à poltrona. Lástima que seja tão branca. Seus malditos pêlos grudam a minhas
calças! Mas não me incomoda. E a você?
Pitt tirou com cuidado ao animal do assento. Depois se sentou, sorridente.
—Absolutamente. Obrigado.
Mulgrew se sentou em frente a ele.
—Então, se não está doente, o que o traz por aqui? Não me virá outra vez com o de
Mina Spencer-Brown? Pensei que tínhamos provado que a matou a beladona.
A pequena gata se esfregou pelas pernas do Pitt com um suave ronronar.
De repente saltou sobre seus joelhos, fez-se um novelo e dormiu na hora.
Pitt a acariciou com prazer. Charlotte queria um gato. Teria que lhe conseguir um
como esse.
—É também médico de cabeceira dos Charrington? -perguntou.
Mulgrew abriu os olhos, surpreso.
—Tire-a de cima se quiser - disse apontando à gata-. Sim, sou. Por que?
Não terá acontecido nada a um membro da família, não é?
—Não que eu saiba, salvo a sua filha, que morreu. Conhecia-a você?
—A Ottilie? Sim; uma jovem encantadora. -Subitamente seu rosto se escureceu de

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pesar. - Sua morte é a mais triste que lembro. Sinto falta dela. Era uma garota adorável.
Pitt se dava conta de que a dor do Mulgrew ultrapassava com acréscimo o do médico
que perde a um paciente. Era uma aflição mais pessoal, a nostalgia de uma alegria que se
desvanecera. Foi-lhe violento ter que continuar. Não tinha previsto tais emoções.
Preparou-se unicamente para o exercício mental e a investigação acadêmica. O
mistério do assassinato era algo anômalo, inclusive mesquinho. O único real eram as
emoções, a ardente dor, as vastas e ermas estepes que deixava a sua passagem.
Suas mãos apalparam de novo o quente corpinho da gata; acariciou-a suavemente,
confortando-se a si mesmo tanto como ao animal.
—Do que morreu? -perguntou.
Mulgrew ergueu o olhar.
—Não sei. Não morreu aqui, mas no campo. Em Herfordshire.
—Mas você era o médico da família. Não o disseram?
—Não. Mal fizeram comentários. Não pareciam querer falar disso. Muito natural,
suponho. Nem todo mundo reage igual ante a dor.
—Soube que foi muito rápido.
Mulgrew contemplava as chamas da lareira sem olhar ao Pitt; o que via não podia ser
compartilhado.
—Sim. De improviso.
—Então não lhe disseram qual foi à causa?
—Não.
—E você não perguntou?
—Suponho que devia tê-lo feito. Só recordo a impressão que causou, e que ninguém
disse uma palavra, como se pudessem repará-lo só em não mencionar o assunto. Como
se não fosse real. Não quis pressioná-los. Que direito tinha eu?
—Mas quando a garota deixou Rutland Place sua saúde era boa, pelo que você
sabia, não é assim? -inquiriu Pitt.
Mulgrew olhou-o.
—Das melhores que vi. Por que? Evidentemente está interessado; do contrário não
me faria tantas perguntas. Pensa que tem alguma relação com a morte da senhora
Spencer-Brown?
—Não sei. É uma de tantas hipóteses.
—Que tipo de hipótese? -A careta de dor do Mulgrew se fez mais intensa-.
Ottilie era excêntrica, inclusive de mau gosto para alguns, mas não havia nada mau

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nela. Era uma das pessoas mais generosas que conheci.


Generosa com seu tempo, quero dizer; nunca estava muito ocupada para escutar
quem precisasse falar. E generosa também em seus julgamentos. Não procurava elogios
nem invejava o êxito de outros. Assim, de algum modo Mulgrew a tinha querido. Pitt não
necessitava mais.
O calor que gotejava a voz do Mulgrew revelava que a dor continuava aí, como um
persistente vazio em seu interior.
Tudo isso fazia mais penosos os pensamentos do Pitt, induzidos pelo Charlotte.
Era-lhe muito difícil para preferir a mentira. Precisava pensar com tempo, chegar
passo a passo à conclusão. Falou sem olhar ao Mulgrew.
—Pelos dados que acabam de me dar - disse, medindo suas palavras-, é possível
que Mina Spencer-Brown fosse uma mulher que sentisse uma indevida curiosidade pelos
assuntos alheios. Aparentemente escutava, espiava. Acredita que pode ser verdade?
Mulgrew cravou o olhar no Pitt. Sua resposta se fez esperar. O fogo chispava.
Sobre os joelhos do Pitt, a gata despertou e começou a lhe cravar suavemente suas
garras. Pitt a colocou com gesto ausente em cima de sua jaqueta, onde não pudesse lhe
fincar as garras.
—Sim - disse Mulgrew finalmente-. Não me tinha ocorrido, mas sim; era uma pessoa
que observava sem perder detalhe. Há gente assim. Suponho que o conhecimento lhes dá
uma ilusão de poder.
Converte-se em algo obsessivo.
Talvez Mina fosse uma delas. Uma mulher inteligente, mas de vida vazia; de festa em
festa, cada qual mais estúpida e cheia de intrigas. Pobrezinha. -inclinou-se para colocar
mais carvão no fogo-. Dia após dia, sem perder detalhe, e sem que houvesse nenhuma
necessidade disso. Que maneira mais idiota de morrer! Por causa de alguma informação
solicitada por estúpida curiosidade, sem que em realidade lhe servisse de nada. -Afastou
seu rosto da luz da lareira-. E você acredita que tem algo que ver com Ottilie Charrington?
—Não sei. Ao que parece Mina opinava que sua morte era um mistério, sugerindo
que atrás dessa morte se escondiam mais coisas do que se haviam dito, e que ela sabia
do que se tratava.
—Estúpida, triste, cruel mulher... -disse Mulgrew com pesar. – Que demônios
imaginaria?
—Ignoro-o. Há toda uma série de possibilidades. -Não queria causar pena ainda mais
a aquele homem explicando-lhe em detalhe, mas tinha que mencionar uma, embora só

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fosse para descartá-la-. Um aborto mal realizado, por exemplo.


Mulgrew permaneceu imóvel.
—Duvido-o -disse com tom monocórdio-. Não poria a mão no fogo, mas duvido. Você
tem que seguir essa pista?
—Pelo menos até confirmar que é falsa.
—Pergunte então a seu irmão Inácio Charrington. Tinham muita intimidade. Não o
pergunte ao Lovell; é um idiota presunçoso, incapaz de ver além da qualidade tipográfica
de um cartão de visita.
Ottilie o punha frenético. Costumava entoar canções das que cantam nos teatros.
Sabe Deus onde as aprenderia! Um domingo cantou uma sobre brinde e cerveja... Nem
sequer sobre um clarete decente! Ambrosine me chamou. Pensava que Lovell ia ter um
ataque. O pobre idiota estava vermelho até as orelhas.
Em outras circunstâncias Pitt teria posto-se a rir, mas a consciência de que Ottilie
tinha morrido, e possivelmente assassinada, despojava à anedota de todo seu humor.
—Uma pena -disse com calma-. Nos damos tão pouca conta de que coisas importam
de verdade! Não saímos de nosso engano até que é muito tarde, até que já não importa.
Obrigado, falarei com Inácio. -levantou-se, colocando a gatinha no assento que acabava
de esquentar com seu corpo. O animal se espreguiçou, e em seguida voltou a fazer-se um
novelo.
Mulgrew ficou em pé de um salto.
—Mas tem que haver algo mais! Se Mina, essa desventurada mulher, era uma
olheira, deve ter visto outras coisas, sabe Deus o que! Alguma ou outra aventurazinha!
Conheço mais de um mordomo nesta zona que deveria perder seu trabalho... e mais
de uma criada, se sua chefe soubesse como gasta seu tempo!
Pitt fez uma careta.
—Sem dúvida. Terei que investigá-los a todos. A propósito, sabe que pelo Rutland
Place ronda um ladrão?
—Meu deus, ainda por cima isso! Não, não sabia, mas tampouco estranho. Acontece
de quando em quando.
—Não é um criado, mas um dos vizinhos.
—Mas o que...! -Mulgrew perdeu a compostura-. Tem certeza?
—Além de toda dúvida razoável.
—Grande assunto desgraçado. E suponho que não cabe que fosse a própria Mina...
—Sim cabe. Ou seu assassino.

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—Pensava que meu trabalho era um asco. Pois o prefiro mil vezes ao dele!
—Neste momento compartilho sua opinião - disse Pitt-. Mas, por desgraça, não
podemos trocá-los. Embora estivesse você disposto, eu não poderia ocupar seu lugar.
Obrigado por sua cooperação.
—Não duvide em voltar se acreditar que posso lhe ser de ajuda. –Mulgrew estendeu
a mão e Pitt a estreitou com firmeza.
Minutos mais tarde estava outra vez na rua, sob a chuva.
Demorou duas horas e meia para encontrar Inácio Charrington. Localizou-o passadas
as onze do meio-dia, em seu clube, a ponto de almoçar.
Pitt teve que esperar na sala de fumantes, sob o olhar de reprovação de um garçom
dispéptico, que pigarreava com irritante freqüência; ao final se surpreendeu contando os
segundos que o homem demorava para voltar a fazê-lo.
Finalmente Inácio fez sua aparição, sendo informado entre sussurros da presença do
Pitt. O jovem se aproximou com uma expressão peculiar que combinava a diversão
produzida pelo dilema do garçom -e também dele, tendo em conta como começavam a
olhá-lo- com a apreensão que lhe produzia o ignorar o que queria Pitt.
—Inspetor Pitt? -Inácio se deixou cair com certa brutalidade na poltrona de frente-. Da
polícia?
—Sim, senhor. -Pitt o observou com interesse. Era magro, trinta anos no máximo,
cabelo castanho avermelhado e um rosto peculiar, impreciso e cambiante como o
mercúrio.
—Aconteceu algo de novo? -perguntou Inácio ansiosamente.
—Não, senhor. -Pitt sentia tê-lo assustado. Por alguma razão lhe era impossível
imaginá-lo assassinando a sua irmã, ou a Mina, só para evitar um escândalo. Seu rosto
traduzia muito bom aspecto-. Nada que eu saiba. Mas continuamos sem ter nenhuma
explicação satisfatória sobre como morreu a senhora Spencer-Brown.
Por agora nenhuma das hipóteses contempla a possibilidade de um acidente ou um
suicídio.
—OH. -Inácio se reclinou no espaldar-. Suponho que em tal caso só fica o
assassinato. Pobre mulher.
—Assim é. E me atrevo a adiantar que, antes de que o assunto possa dar-se por
fechado, provocará ainda grandes sofrimentos.
Inácio o olhou com gravidade.
—Sim, suponho que sim. Para que veio ver-me? Não acredito que possa lhe dizer

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nada. Não é que conhecesse muito a Mina. -Sua boca se torceu em um amargo sorriso-.
Não tinha nenhum motivo para matá-la, mas imagino que não se conformará com minha
palavra. Embora se fosse o autor do crime, diria exatamente o mesmo!
Pitt reprimiu um sorriso.
—Ah. O que esperava de você eram certas informações. -Não podia permitir-se ser
franco. Inácio era muito arguto para não adiantar-se a qualquer suspeita, e jogar terra
sobre toda pista valiosa.
—A respeito de Mina? Faria melhor em dirigir-se às demais mulheres; a minha mãe,
inclusive. Às vezes mais despista e distorce os falatórios que ouça por aí, mas atrás de
tudo isso se esconde uma grande sagacidade para julgar às pessoas.
Pode ser que não entenda bem os dados concretos, mas suas intuições são
invariavelmente exatas.
—Irei vê-la -disse Pitt-. Mas talvez se falar antes com você sua mãe responda a
minhas perguntas com maior liberdade. Não é muito habitual que mulheres como à
senhora Charrington confiem à polícia a opinião que lhes merecem seus vizinhos.
O rosto do Inácio se suavizou com um sorriso fugaz.
—Disse com muito tato, inspetor. Suponho que tem razão. Entretanto, mamãe tem
certo gosto pelo estranho. Comentarei isso esta mesma tarde. Talvez lhe dê uma surpresa,
e comece a lhe contar de tudo; embora, para falar a verdade, não é uma pessoa
fofoqueira.
Não tem suficiente má fé. Em jovem costumava divertir-se escandalizando as
pessoas de vez em quando. Aborrecia-se de ouvir todo mundo repetir as mesmas sandices
dia após dia, sempre nas mesmas festas; vestidos e casas diferentes, mas idênticas
conversas. Um pouco como Tillie.
—Tillie? -Pitt se tinha perdido.
—Minha irmã Ottilie. Melhor não o repetir. Meu pai costumava ficar à beira da
apoplexia quando em crianças me ouvia chamá-la Tillie.
—Gostava de escandalizar as pessoas? -perguntou Pitt.
—Adorava. Nunca ouvi risada como a de Tillie. Era formosa, plena; a classe de risada
que te arrasta embora não tenha a menor idéia do que é tão divertido.
—Pelo que diz, devia ser encantadora. Lamento não ter podido conhecê-la. -Aquilo
era algo mais que uma banal amostra de simpatia. Pitt o dizia de coração. Ottilie era uma
das coisas boas que se perdeu.
Os olhos do Inácio se abriram por uns instantes, como se não compreendesse.

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Depois emitiu um pequeno suspiro.


—OH! Sim, Teria gostado dela. Agora que já não está, tudo parece mais frio e
ninguém se vê da mesma cor. Mas você não veio por isso. O que quer saber?
— Soube que morreu repentinamente.
—Com efeito. Por que?
—Deve ter sido uma grande tragédia para sua família. Sinto muito.
—Obrigado.
—Essas febres costumam chegar de repente, sem avisar. -Pitt estava tentando
diversas estratégias.
—Como? Ah, sim; com efeito. Mas não queria fazê-lo perder seu tempo. O que tem a
ver com Mina Spencer-Brown? Ela não morreu de febre, não há dúvida. Asseguro- lhe
além disso que Tillie não tomou nenhum fármaco com beladona. Posso jurar. Seja como
for, aquele dia nós não estávamos na cidade, mas no campo.
—Têm casa de campo?
—No Abbots Langley, Herfordshire. -Inácio sorriu-. Mas não achará beladona por lá.
Em nossa família ninguém tem problemas de digestão.
Forçosamente, com os cozinheiros que tivemos! Se os escolhe papai, tudo são sopas
e molhos; se mamãe, bolos e confeitaria.
Pitt se sentiu como um intrometido. Quem demônios podia gostar de exercer de
olheiro?
—Não pensava na beladona - disse-. Devo achar motivos. Algo teve que fazer a
senhora Spencer-Brown para que quisessem assassiná-la. Encontrar beladona é muito
fácil.
—Seriamente? -Inácio arqueou as sobrancelhas-. Não prefere saber quem foi antes
que por que o fez?
—Naturalmente, mas qualquer um é capaz de destilar o veneno a partir de uma
planta de beladona. Estes velhos jardins estão repletos dela. Podem-se arrancar em
qualquer parte. Não como a estricnina ou o cianeto, que em geral têm que se comprar.
Inácio estremeceu.
—Que terrível idéia! Sair para pegar plantas para matar alguém! -Fez uma breve
pausa-. Mas lhe asseguro que não me ocorre nenhum motivo para que alguém
assassinasse a Mina. Pessoalmente não gostava dela; sempre a achei muito... -demorou
um pouco em achar o termo preciso- muito intencionada e perspicaz. Sem coração, todo
cérebro.

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Não parava de pensar. Nada passava por cima. Eu prefiro às pessoas menos
inteligente, ou que não esteja tão à espreita.
Assim, se cometer alguma tolice, sei que se esquecerão dela na hora. Sorriu com um
pingo de malícia-. Mas daí a destilar veneno para matar a uma pessoa, só porque não
simpatiza com ela...! Nem sequer pode dizer-se que me desagradasse.
Simplesmente não estava à vontade em sua companhia, que por outro lado não era
muito freqüente.
Tudo se ajustava com a precisão de um quebra-cabeças ao esquema do Charlotte:
uma olheira que o escutava tudo, depois o relacionava em sua mente e formulava teorias,
achando estreitas correspondências entre as coisas.
Mas como, e para quem, transformou-se o "não estar à vontade" em "não poder
suportar"?
Pitt tratou de pensar em alguma pergunta útil, que fizesse Inácio acreditar que se
interessava por Mina e não pelo Ottilie.
—Não a conheci em vida. Era uma mulher atraente para os homens?
Inácio esteve a ponto de pôr-se a rir.
—Não muito sutil, inspetor. Não, não o era, pelo menos não para mim. Prefiro
mulheres menos enrijecidas, com mais senso de humor. Se perguntar pelo Rutland Place,
sem dúvida lhe responderão que costumo me entreter com mulheres de temperamento
cordial, ligeiramente excêntricas; e se tivesse que me casar não tenho a menor idéia de
quem seria a escolhida.
Alguém que eu gostasse seriamente, mas não Mina, em todo caso!
—Interpretou-me mal -disse Pitt com um leve sorriso-. Pensava em algum amante,
inclusive não correspondido. Dizem que todas as torturas do inferno não podem comparar-
se com uma mulher que foi rejeitada, mas eu vi freqüentemente homens que não se
levavam muito melhor, especialmente pessoas vaidosas e de pouco êxito.
Muitos acreditam que, quando se apaixonam por alguém, a pessoa em questão
contrai algum tipo de dívida com eles e lhes confere certos direitos.
Mais de um homem matou a uma mulher só porque pensava que estava dedicando
seu tempo a outro que não a merecia. Conheci a homens que se achavam donos da
virtude de uma mulher; qualquer mancha em sua reputação era para eles não uma ofensa
a ela mesma ou a Deus, mas uma ofensa pessoal.
Inácio ficou olhando a polida superfície da mesa, enquanto sorria por causa de uma
lembrança ao mesmo tempo graciosa e amarga, algo que não estava disposto a explicar

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ao Pitt.
—Absolutamente certo -disse-. Soube que na época do feudalismo, quando uma
mulher perdia sua virgindade tinha que pagar uma multa ao suserano; com efeito, não ser
virgem baixava grandemente o preço que um possível pretendente teria que pagar a seu
senhor para casar-se com ela.
Não mudamos tanto! Somos muito refinados para pagar com dinheiro, claro está,
mas mesmo assim continuamos pagando.
Pitt quereria saber a que se referia; perguntar-lhe, entretanto, teria sido vulgar, além
de que provavelmente não teria respondido.
—Talvez tinha um amante? -disse, retomando o tema principal-. Ou um admirador?
Inácio meditou sua resposta.
—Mina? Não o tinha pensado, mas sim, suponho que é possível. Inclusive a pessoa
mais estranha tem suas aventurazinhas.
—Por que diz isso? Deu-me a impressão de ter sido pelo menos atraente, e
possivelmente até formosa.
O próprio Inácio pareceu surpreso.
—Por sua personalidade. Não se apreciava nela a menor faísca de entusiasmo, de...
doçura. Mas disse admiradores, não é? Era delicada, com um ar muito feminino que sem
dúvida atraía a mais de um, uma espécie de austera pureza. E seu modo de vestir
realçava essas qualidades. -Sorriu como pedindo perdão-. Mas é inútil que me pergunte
quem; não tenho nem idéia.
—Obrigado. -Pitt ficou em pé-. Não me ocorrem mais perguntas. Foi muito cortês ao
aceitar me receber, especialmente neste lugar.
—Não achei. - Inácio se levantou também-. Não me dava muitas opções
apresentando-se aqui intempestivamente. Se me tivesse negado, teria dado a impressão
de ser um idiota pretensioso. Ou, pior ainda, que tinha algo que ocultar.
Essa tinha sido a intenção. Pitt não pensava negá-lo.

No dia seguinte, em vez de visitar Ambrosine Charrington, Pitt colocou uma camisa
limpa e um par de meias três-quartos em uma maleta e pegou o trem que saía da estação
do Euston para o Abbots Langley. Sua intenção era conseguir detalhes sobre a morte de
Ottilie Charrington.
Passou dois dias ali, e quanto mais informação lhe davam mais desorientado se
sentia. Não teve problemas em localizar a casa, pois os Charrington eram personagens

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populares e muito respeitados.


Depois de um abundante almoço na hospedaria, dirigiu-se ao cemitério paroquial:
nem rastro de Ottilie. Nem ela nem nenhum Charrington repousavam ali.
—Bom, só levam uns vinte anos vindo por estes lados- foi à razoável explicação do
sacristão-. São novos aqui. Não achará ninguém da família enterrado neste cemitério.
Provavelmente estão em algum lugar de Londres.
—Mas e a filha? -perguntou Pitt-. Morreu aqui mesmo, fará alguns anos.
—É possível, mas não a enterraram aqui - assegurou o sacristão-.
Comprove você mesmo. E assisti a todos os funerais nos últimos vinte e cinco anos.
Nem um só Charrington.
Pitt teve uma idéia repentina.
—E entre os católicos ou os protestantes? -perguntou-. Que outras igrejas há pelos
arredores?
—Estou à corrente de todos os funerais que se produzem nesta vizinhança -
respondeu o sacristão-. É meu trabalho. E os Charrington não pertencem a nenhuma
crença extravagante dessas. São gente de bem. Anglicanos, como todo o que sabe o que
lhe convém. Todo domingo na missa, quando estão no povoado. Se a enterraram nesta
zona, teve que ser neste cemitério. Acredito que se equivoca, e que morreu lá por Londres.
Ou em todo caso, se morreu aqui, a levariam a Londres para enterrá-la.
No panteão familiar, certamente. É o que sempre digo: "Descansa perto dos teus." A
eternidade é longa.
—Não acredita na ressurreição? -perguntou Pitt.
O sacristão fez expressão de desagrado ante uma idéia de tão mau gosto: introduzir
questões abstratas, de doutrina, na realidade cotidiana da vida e da morte.
—A que vem essa pergunta? Você tem idéia de quando chegará isso? Na tumba nos
toca estar um longo tempo, muito, mas que muito longo.
As coisas têm que fazer-se como é devido. Será nossa morada durante muito mais
anos que qualquer luxuosa mansão aqui na terra!
Isso estava fora de discussão. Pitt lhe agradeceu e se dispôs a procurar o médico
local.
O doutor conhecia os Charrington, mas não tinha atendido ao Ottilie em sua agonia,
nem tinha escrito nenhum certificado de falecimento.
No dia seguinte, ao meio dia, depois de entrevistar a criados, vizinhos e a chefe de
correios, Pitt tomou o trem de volta a Londres, convencido de que Ottilie Charrington tinha

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estado em Abbots Langley na semana em que morreu, mas que não havia falecido ali.
O empregado da bilheteria recordava havê-la visto uma ou duas vezes pela estação,
mas não estava muito seguro das datas; e, em que pese a que Ottilie tinha comprado um
bilhete para Londres, aquele homem não sabia dizer se havia tornado.
Parecia inevitável concluir que Ottilie não tinha morrido no Abbots Langley, mas em
outro lugar desconhecido, tão desconhecido como as causas de sua morte.

Pitt já não podia permitir-se adiar mais a entrevista com o Ambrosine e Lovell
Charrington. Até o próprio superintendente Athelstan, por muito que lhe pesasse, foi
incapaz de aduzir razão alguma para continuar demorando.
Consertou-se uma entrevista seguindo o protocolo social, como se se tratasse de
uma visita de cortesia.
Pitt teria preferido apresentar-se de improviso e entrevistar ao Lovell e Ambrosine por
separado. Mas Athelstan tinha decidido tomar o assunto em suas mãos depois de ouvir o
informe da viagem ao Abbots Langley.
Lovell recebeu ao Pitt no salão. Ambrosine não estava com ele.
—Sim, inspetor? -disse com desapego-. Não me ocorre que mais posso lhe dizer
sobre esse desafortunado incidente. Já cumpri com meu dever lhe informando de tudo que
sabia. A pobre senhora Spencer-Brown era muito instável, embora me doa ter que dizê-lo.
Não estou interessado na vida privada das pessoas, daí que não saiba que tipo de crise
em concreto precipitou a tragédia.
—Não, senhor -disse Pitt. Ambos continuavam de pé, Lovell em posição tensa e sem
mostra de estar disposto a fazer concessões à comodidade-. Não, mas neste momento já
não há dúvida de que a senhora Spencer-Brown, longe de suicidar-se, foi assassinada.
—Sério? -Lovell empalideceu. Bruscamente tomou a cadeira que havia atrás dele-.
Estará de todo certo, imagino! Não terá precipitado as conclusões? Por que a
assassinaram? É absurdo! Era uma mulher respeitável!
Pitt se sentou.
—Não tenho motivos para duvidar disso, senhor. -Decidiu mentir, ao menos
indiretamente. Não lhe ocorria nenhuma outra maneira de introduzir o tema-. Às vezes,
inclusive os mais inocentes são vítimas de um assassinato.
—Algum perturbado? -Lovell se aferrou à hipótese mais cômoda. Como toda
enfermidade, a loucura golpeava indiscriminadamente. Acaso o príncipe Albert não tinha
morrido de tifo-. Claro, tem que ser essa a resposta. Receio que não vi estranhos por esta

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zona, e nossos criados foram escolhidos com o maior cuidado.


Sempre nos guiamos por referências.
—Muito prudente de sua parte. -Pitt se ouviu mentir hipócritamente-.
Soube que perdeu a sua filha em circunstâncias trágicas, senhor.
O rosto do Lovell adotou uma hermética expressão de defesa quase hostil.
—Com efeito. Sobre esse assunto preferiria não falar.
Não tem nenhuma relação com a morte da senhora Spencer-Brown.
—Então sabe mais da morte da senhora Spencer-Brown que eu, senhor - não
retrocedeu Pitt-. De minha parte, continuo sem ter o menor dado a respeito das causas,
quem o fez, e menos ainda o motivo.
Lovell estava branco como o papel, com a boca e a mandíbula em dolorosa tensão.
Sob os músculos suspensórios, a alta gola de sua camisa se torceu estranhamente.
—Senhor, minha filha não foi assassinada, se imagina tal coisa. Isso está fora de
discussão. assim, qualquer tipo de relação é impossível. Não deixe que suas ambições
profissionais o façam ver um assassinato onde não há mais que uma simples tragédia.
—Do que morreu, senhor? -Pitt controlou o tom de sua voz, consciente de até que
ponto estava provocando intensos sofrimentos. A consciência disso era mais forte que o
abismo que afastava os sentimentos e crenças de ambos os homens.
—Uma enfermidade repentina -respondeu Lovell-. Mas não foi envenenada.
Se lhe ocorreu essa idéia como conexão entre as duas, está totalmente equivocado.
Faria melhor em empregar seu tempo investigando a senhora Spencer-Brown, em
vez de misturar-se nas tragédias familiares de outras pessoas. E o proíbo que incomode a
minha esposa com perguntas idiotas. Já sofreu bastante. Não sabe o que está fazendo!
—Tenho uma filha, senhor.
Pitt estava pensando em si mesmo, tanto como no orgulhoso homenzinho que tinha
em frente.
E se Jemima tivesse morrido de repente, sem lhes dar tempo a fazer à idéia? E se
um dia estivesse cheia de vida e no seguinte não fosse mais que uma formosa, vivida e
agônica lembrança?
Opor-se-ia tanto como Lovell a que se mencionasse o assunto? Não podia assegurar.
Semelhantes tragédias estavam fora do alcance da imaginação.
E, entretanto, também Mina era filha de alguém.
—Onde faleceu, senhor?
Lovell o olhou fixamente.

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—Em nossa casa do Herfordshire. Que interesse pode ter isso para você?
—E onde foi enterrada, senhor?
Lovell se ruborizou de ira.
—Nego-me a responder uma pergunta mais! Sua rabugice é monstruosa, e
extremamente ofensiva! Pagam-lhe para que descubra como morreu Mina Spencer-Brown,
não para que exerça sua infernal curiosidade a minha família e seus padecimentos.
Se tiver alguma pergunta que me fazer em relação ao primeiro, faça-a! Tentarei
responder o melhor que possa, como é meu dever. De outro modo, peço-lhe que
abandone esta casa e não volte a menos que tenha motivos legítimos.
Entendeu-me, inspetor?
—Sim, senhor Charrington -disse Pitt com extrema suavidade-, entendo-o
perfeitamente. Sua filha e a senhora Spencer-Brown eram amigas?
—Não especialmente. Acredito que se limitavam a tratar-se com cortesia. Havia uma
considerável diferencia de idade.
Ocorreu a Pitt uma idéia completamente ao acaso.
—Como se dava sua filha com o senhor Lagarde?
—Conheciam-se desde há tempo - respondeu Lovell tenso-, mas não havia
nenhuma... -vacilou ao escolher suas palavras- amizade entre eles. Uma lástima. Teria
sido um excelente matrimônio.
Minha esposa e eu tentamos convencê-la, mas Ottilie não... -interrompeu-se,
novamente aborrecido-. Isso não tem muito que ver com sua investigação, inspetor. De
fato, não é absolutamente pertinente. Me perdoe, mas acredito que está esbanjando seu
tempo e o meu.
Não posso lhe dizer nada mais. Que tenha um bom dia.
Pitt pensou em discutir e seguir insistindo. Mas supôs que Lovell não lhe ia explicar
nada mais.
Ficou em pé.
—Obrigado por sua ajuda. Confio em que não haverá necessidade de voltar a
incomodá-lo. Bom dia, senhor.
—Assim o espero. -Lovell se levantou-. O lacaio o acompanhará à saída.
Rutland Place brilhava desvaidamente sob a pálida luz solar. Em algum ou outro
jardim o narciso erguia suas folhas, erguidas como baionetas, com amarelas bandeiras de
flores na ponta.
Pitt teria preferido que as pessoas não os plantassem em fileiras, como se fossem

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batalhões armados.
Até no caso de serem falsas as conjeturas sobre a perversa natureza de Mina
Spencer-Brown, certamente havia algo misterioso na morte do Ottilie Charrington. Nem
sua morte nem seu enterro se produziram onde dizia sua família.
O que os tinha levado a mentir? O que a tinha matado em realidade, e onde?
Só havia uma resposta: a causa tinha sido tão dolorosa ou atroz que não se atreviam
a revelar a verdade.

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Capítulo 8

Transcorreram três dias sem nenhum progresso. Pitt seguiu a pista de todo indício
material que teve a seu alcance. O sargento Harris interrogou aos criados, tanto aos da
cozinha como aos do resto da casa. Ninguém revelou nenhum dado importante.
Se fazia cada vez mais evidente que Mina, tal e como tinha aventurado Charlotte,
tinha sido uma olheira obsessiva. Confirmavam-no pequenos retalhos de informação,
impressões recolhidas aqui e lá. Mas o que tinha visto? Sem dúvida algo mais
comprometedor que a mera identidade de um ladrão de pouca monta.
Chegou à tarde do quarto dia. Charlotte estava de pé no salão, pouco depois da uma.
Abriu os biombos que davam ao pequeno jardim traseiro e aspirou um pouco de ar fresco,
por fim cheio de calor e aromas primaveris. De repente Gracie chegou pressurosa,
raspando com seus saltos o tapete recém estreado.
—Senhora Pitt, há uma mensagem para si enviada expressamente por um lacaio
com limusine e tudo, e diz que é muito urgente! Por Deus, senhora, a limusine continua aí
no meio da rua, grande como uma casa, uma maravilha! -Estendeu o envelope à Charlotte.
Bastou uma olhada para dar-se conta de que era a letra de sua mãe. Charlotte o
rasgou e leu.
Querida Charlotte:
Aconteceu o mais horrível que possa imaginar. Mal sei como lhe contar isso É
profundamente trágico.
Como sabe, estando Eloise Lagarde tão aflita pela morte de Mina e pelas
circunstâncias em que ocorreu, Tormod a levou a sua casa de campo para que
descansasse e recuperasse ânimo.
Querida Charlotte, esta manhã retornaram, depois de ter sofrido o acidente mais
atroz de que tive jamais notícia! Ponho-me doente só de pensar nisso. Uma tarde,
enquanto voltavam de carruagem de um picnic com uns amigos, o pobre Tormod, que
levava as rédeas, caiu do assento, justo sob as rodas.
Como se isso não fosse bastante horrível, atrás mesmo vinham seus amigos. Já tinha
anoitecido, de modo que não se deram conta do que acontecia. Pois passaram por cima
dele! Cavalos e carruagem!
Esse pobre jovem, pouco mais velho que você, ficou aleijado por toda vida! Está
estendido em sua cama do Rutland place. Ao que parece continuará aí durante o resto de

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seus dias.
Estou tão afetada que não me ocorre o que fazer ou dizer. Como ajudá-lo?
Como reagir ante uma tragédia tão entristecedora?
Pensei que devia sabê-lo o antes possível; enviei-lhe a carruagem se por acaso
decide vir esta mesma tarde. Agradeceria muito sua companhia, embora só fosse para
compartilhar com alguém a impressão que me causa tão doloroso acontecimento.
Seu pai está ocupado em seus assuntos e não virá para casa a comer. Quanto à avó,
não é um grande consolo.
Escrevi também à Emily, e enviei o recado por mensageiro.
Sua mãe que a quer,
CAROLINE ELLISON

Charlotte leu a missiva duas vezes, não porque não a entendesse mas para dar
tempo a que o significado, com toda sua carga de dor, penetrasse até o mais fundo de sua
consciência.
Tratou de imaginar a noite, a estrada às escuras. Viu o Tormod Lagarde agarrando as
rédeas, tal como o tinha visto pela última vez, com sua longa e pálida fronte e sua onda de
negros cabelos.
Depois, talvez o brusco movimento de um cavalo, ou uma curva repentina; e de
repente aí estava Tormod, atirado no barro junto à carruagem, no meio do ruído e o estalo
continuado, e as rodas esmagando carne e ossos.
Depois, um breve silêncio sob o céu estrelado, e de repente o violento ruído de
cascos da outra carruagem, esmagando com todo seu peso, e a agonia do corpo
destroçado...
Santo céu! Quanto melhor, quão imensamente misericordioso teria sido para ele
morrer na hora, não voltar a sentir nada, não ver mais a luz do dia!
—Senhora? -A voz de Gracie irrompeu, premente-. Se encontra bem, senhora? Está
palidíssima! Venha, sente-se. Trarei os sais e uma boa xícara de chá! - deu- à volta em
seguida, decidida a ficar à altura da situação e fazer algo útil.
—Não! -disse Charlotte finalmente-. Não, Gracie, muito obrigada. Estou bem, não vou
desmaiar. São notícias terríveis, mas se trata de um conhecido, não de um membro da
família nem de um amigo íntimo. Esta tarde irei à casa de minha mãe; é amigo seu.
Não sei quanto tempo estarei fora. Terei que pôr algo mais adequado que este
vestido, é muito alegre. Tenho um negro, muito elegante. Se o senhor chegar antes que

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eu, mostre-lhe esta mensagem. Deixo-a em cima da escrivaninha.


—Está terrivelmente pálida, senhora -disse Gracie com inquietação-. Acredito que lhe
convém uma boa xícara de chá antes de sair para qualquer lugar. Pergunto ao lacaio se
quer uma também?
Charlotte se tinha esquecido do lacaio. Sua mente tinha retrocedido ao passado e
nem sequer recordava que a carruagem não era sua.
—Sim, por favor. Boa idéia. Eu vou lá em cima me trocar; pode subir a xícara de chá.
Diga ao lacaio que não demorarei muito.
—Está bem, senhora.
Charlotte achou a sua mãe em um estado de ânimo lúgubre. Pela primeira vez desde
a morte de Mina se pôs um vestido negro, sem adornos de renda na gola desta vez.
—Obrigado por vir tão logo -disse, assim que a criada fechou a porta-.
O que está acontecendo no Rutland Place? Uma tragédia atrás de outra! –Parecia
incapaz de sentar-se. Com as mãos estreitamente enlaçadas, permanecia de pé no meio
da sala. - Talvez seja uma maldade dizê-lo, mas pressinto que de algum modo isto é pior
que o de Mina! Só tenho informação dos criados; já sei que não deveria escutá-los, mas é
o único modo de inteirar-se de algo.
Segundo Maddock, o pobre Tormod está... -fez uma pausa para tomar ar-
completamente destroçado!
Tem as costas e as pernas fraturadas.
—Não é nenhuma maldade, mamãe. -Charlotte moveu levemente a cabeça,
enquanto estendia o braço para tocar Caroline-. Quando se tem fé, a morte não tem por
que ser tão terrível; só o é, às vezes, o modo como acontece. E se Tormod estiver tão
ferido gravemente como diz, não há dúvida de que teria sido melhor para ele morrer
rapidamente! E se não se recupera? De qualquer modo, eu não confiaria muito em
Maddock.
Tenho certeza de que ouviu isso da cozinheira, quem por sua vez o escutou das
criadas, e estas de um mensageiro, etcétera, etcétera. Pensa lhes oferecer seu apoio?
Caroline levantou a cabeça com vivacidade.
—OH, sim! Acredito que é o menos que posso fazer. Não ficarei muito, naturalmente,
mas se trata de demonstrar que alguém está disponível para qualquer ajuda que
necessitem. Pobre Eloise! Estará destroçada. São tão unidos! Sempre foram inseparáveis.
Charlotte tratou de imaginar como se sentiria se, querendo profundamente a uma
pessoa, tivesse que vê-la dia após dia mutilada além de toda esperança de recuperação, e

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entretanto acordada, em seu são julgamento.


E não poder fazer nada para ajudar! Mas coisas assim estavam mais à frente do
alcance da imaginação.
Naturalmente se lembrava da morte de Sarah, mas isso tinha sido rápido, violento e
horrível, mas graças a Deus não teve de suportar uma longa agonia, os espasmos de dor
dia após dia.
—O que poderíamos fazer? -perguntou com impotência-. Dizer que o sentimos me
parece de uma banalidade tão terrível...
—Não há outra possibilidade - respondeu Caroline com calma-. Não tente solucionar
tudo de repente. Talvez no futuro possamos ajudar em algo; embora só seja lhe fazendo
companhia.
Charlotte não respondeu. O sol, que acariciando o tapete fazia ressaltar as grinaldas
de flores, parecia algo remoto, mais uma lembrança que uma presença viva.
Em cima da mesa, a terrina de tulipas de cor rosa dava uma impressão de rigidez,
como se não fosse mais que um artificioso adorno, hierático e alheio.
A criada abriu a porta.
—Lady Ashworth, senhora. -Esboçou uma reverência, e atrás dela apareceu Emily,
pálida, sem a seriedade e a impecável presença habitual nela.
—Que espantosa desgraça, mamãe! Como pôde acontecer? -Agarrou o braço de
Charlotte.
Como soube? Thomas não está aqui, não é? Quero dizer, não é nada...
—Não, claro que não! -apressou-se a dizer Charlotte-. Mamãe me enviou sua
carruagem.
Caroline meneou a cabeça, aturdida.
—Foi um acidente. Estavam em excursão. Fazia bom dia e voltavam ao anoitecer
depois de um picnic, dando um agradável passeio. É tudo tão absurdo! - Pela primeira vez
sua voz se encheu de ira, dando-se conta das circunstâncias-.
Não tinha por que acontecer! Um cavalo assustadiço, suponho, ou algum animal
selvagem que os sobressaltou atravessando o caminho. Ou talvez um ramo que pendia de
uma árvore.
—Pois para isso tem um guarda-florestal! -disse Emily em um estalo de impaciência-.
Para cuidar de que não pendam ramos sobre os caminhos transitáveis! -A irritação se
esfumou com a mesma rapidez-.
Como poderíamos ajudá-los? Não me ocorre nada, salvo oferecer nosso apoio. E não

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é que isso sirva de muito!


—Em todo caso é melhor que nada. -Caroline se aproximou da porta-. Pelo menos
Eloise não pensará que somos indiferentes. E, se chegar o momento de que necessite
algo, embora seja só um pouco de companhia, saberá que nos tem ao seu dispor.
Emily suspirou.
—Suponho que sim. Mas é como oferecer um balde a quem quer esgotar toda a água
do mar!
—Há vezes em que saber que não se está sozinha já é um consolo – indicou
Charlotte, um pouco para si mesma. Fora, no saguão, esperava Maddock.
—As senhoras estarão de volta para o chá? -perguntou enquanto segurava o casaco
de Caroline.
—OH, sim - assentiu esta, permitindo que lhe colocasse o abrigo sobre os ombros-.
Só vamos ver a senhorita Lagarde. Não acredito que demoremos.
—Entendo - disse Maddock gravemente-. Uma terrível tragédia. Às vezes os jovens
conduzem com muita precipitação. Sempre pensei que fazer corridas é um esporte
perigoso e imprudente. Os veículos não costumam estar preparados para isso.
—Estavam fazendo corridas? -perguntou Charlotte, voltando-se para o mordomo.
Os traços de Maddock continuaram impassíveis. Era um membro da criadagem e
conhecia seu lugar; mas também tinha estado ao serviço dos Ellison desde que Charlotte
era uma menina. Dificilmente podia surpreendê-lo quanto viesse dela.
—Ao menos é o que se diz, senhorita Charlotte - respondeu com a mesma
inexpressiva entonação-. Parece um ato muito imprudente em uma estrada rural; quase é
inevitável que alguém saia maltratado, embora só sejam os cavalos.
Mas não sei lhe dizer se é certo ou só especulações dos criados. Não podemos evitar
que sua imaginação dispare em torno de semelhante desastre. Nenhum castigo os faria
calar.
—Não, claro -disse Caroline-. Eu não perderia o tempo tentando-o, enquanto não
chegue à irresponsabilidade. -Arqueou um pouco as sobrancelhas-.
Além disso, isso não os faz descuidar de suas tarefas!
Maddock pareceu ressentir-se um pouco.
—Eu, naturalmente, nunca permiti tais coisas nesta casa, senhora.
—Não, naturalmente - disse Caroline, desculpando-se em certo modo por ter
ofendido sua integridade sem dar-se conta.
Emily estava junto à porta. O lacaio a abriu. Fora, a carruagem as estava esperando.

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Só algumas centenas de metros as separavam de casa dos Lagarde, mas o dia era
chuvoso, e as calçadas estavam molhadas; além disso, tratava-se de uma visita da mais
alta formalidade.
Charlotte subiu ao veículo e se sentou em silêncio. Que demônios poderia dizer ao
Eloise? Acaso era possível franquear o abismo que se abria entre sua felicidade pessoal e
o sofrimento da jovem?
Ninguém disse uma só palavra até que a carruagem se deteve e o lacaio as ajudou a
descer. Depois ficou de pé junto aos cavalos, esperando em plena rua, como sinal para
outras visitas de que estavam aí.
A copeira, sem sua habitual toca branca, abriu-lhes a porta; com um fio de voz lhes
disse que ia informar se a senhorita Lagarde podia recebê-las. Voltou ao cabo de cinco
minutos para acompanhá-las até a saleta traseira, com vistas ao jardim alagado pela
chuva. Eloise se levantou do sofá para saudá-las.
Era insuportável ter que olhá-la. Sua pele translúcida estava tão branca como um
papel de seda, e igualmente inerte. Seus olhos, imensos e afundados, pareciam formar um
tudo com as olheiras que os rodeavam. Seu cabelo apresentava um aspecto imaculado,
mas isso obviamente era mérito da criada, que também se ocupou de vesti-la.
Eloise trazia um conjunto bonito e delicado, mas parecia artificial, uma mortalha que
envolvesse um corpo que o espírito tinha abandonado. Até parecia mais magra, sua fina
cintura mais quebradiça ainda. Já não se tampava com o xale que Charlotte lhe tinha visto
posto dias antes. Não parecia lhe importar já ter frio ou calor.
—Senhora Ellison... -Sua voz soou completamente neutra-. Que amável visita. -
Falava como se lesse um idioma estrangeiro, sem entender palavra-. Lady Ashworth,
senhora Pitt... Sentem-se, por favor.
As três o fizeram, desconfortáveis. Charlotte tinha as mãos geladas; em troca o rosto
lhe ardia, pelo apuro de ter interrompido uma dor muito íntima para amoldar-se ao
costumeiro ritual do orgulho e das obrigadas reservas. Afligia-a aquela angústia que enchia
a sala.
Aturdida, ficou sem palavras. Inclusive Caroline titubeou, incapaz de articular uma
frase pertinente. Só Emily conseguiu sair do passo graças a sua inquebrável disciplina
social.
—Nada do que possamos dizer estaria à altura da aflição que carrega sobre seus
ombros -disse com calma-. Mas tenha a plena certeza de que compartilhamos de sua dor,
e de que nos agradaria poder ajudá-la de algum modo.

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—Obrigado -respondeu Eloise inexpressivamente-. São muito generosas. -


Mal parecia dar-se conta de sua presença. Só era consciente da obrigação de
responder ou dar algum sinal cada vez que alguém lhe falava. Eram frases de pura
formalidade, palavras preparadas de antemão.
Charlotte espremeu o cérebro em busca de algum comentário que não fosse muito
estúpido.
—Talvez neste momento queira um pouco de companhia - sugeriu-. Ou, se tiver que
ir a alguma parte, preferirá talvez ir com alguém. –Ao dizer aquilo pensava mais no Emily
ou Caroline que nela mesma, pois raras eram suas oportunidades de visitar Rutland Place,
não dispondo de carruagem.
O olhar do Eloise se posou nela por uns momentos; depois deslizou para uma
espécie de vazio absoluto, como se tudo que lhe era familiar se achasse dentro de sua
cabeça.
—Obrigado. Sim, é muito possível. Entretanto, temo que minha companhia não seja
muito agradável.
—Equivoca-se, querida -disse Caroline. Levantou as mãos para tocá-la, mas uma
espécie de barreira isolava Eloise, uma distância quase tangível. Deixou-as cair de novo-.
Sempre achei-a extremamente gentil -acrescentou com impotência.
—Gentil! -repetiu Eloise. Pela primeira vez certa emoção se apoderou de sua voz,
mas com dureza, com uma sombra de ironia-. Seriamente acha?
Caroline não teve mais remédio que assentir.
O silêncio voltou a apoderar-se da reunião, disposto a durar até que se fizesse
insuportável.
Os minutos passaram um a um. Haver-se-ia dito que a sala se fazia larga e enorme
enquanto a chuva ficava à distância, apenas audível.
O pesadelo do galope dos cavalos ressoou em todas as mentes, unido ao ranger das
pesadas rodas.
Finalmente, justo quando Charlotte se dispunha a dizer algo para aliviar a tensão -
sem se importar se o comentário seria ou não absurdo-, a criada reapareceu anunciando
Amaryllis Denbigh.
Apesar do muito que Amaryllis lhe desagradava, Charlotte se sentiu cheia de
gratidão por ela por lhe tirar aquele peso de cima.
Amaryllis seguia de perto à criada. De pé no marco da porta, ficou olhando com
expressão de espanto, embora dificilmente podia lhe haver passado por cima a carruagem

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que esperava fora.


Seu olhar se cravou em Charlotte acusadoramente. Estava lívida; seu cabelo,
habitualmente lustroso, estava mal penteado, e o carmim de seus lábios um pouco
deslocado.
—Senhora Pitt, não esperava encontrá-la aqui.
Não havia forma de responder cortesmente. Atribuindo a pergunta a uma natural
angústia, Charlotte preferiu ignorá-la.
—Sem dúvida vem oferecer seu apoio, igual a nós – disse impassível. Esperou
alguns segundos para que Eloise dissesse algo.
Como não o fez, acrescentou-: Sente-se, por favor. Este sofá é muito cômodo.
—Como pode falar de comodidade em um momento como este? –perguntou
Amaryllis em um repentino acesso de ira-. Tormod se recuperará, não há dúvida! Mas
agora está prostrado pela dor. -Fechou os olhos; ardentes lágrimas escorregavam por suas
faces-. Uma terrível dor! E você aqui sentada, como se estivesse em uma reunião social, e
falando de comodidade!
Charlotte sentiu brotar uma onda de raiva e angústia. Amaryllis dava rédea solta a
seus próprios sentimentos, sem pensar na dor que podia causar ao Eloise.
—Continue de pé então, se o prefere -disse com aspereza-. Se acredita que isso
pode ser de alguma ajuda, tenho certeza de que ninguém se oporá.
Amaryllis pegou uma cadeira e se sentou, com sua saia de seda pendendo
amplamente.
—Se for certo que vai se recuperar, isso ao menos é uma esperança –disse Emily
para suavizar a tensão.
Amaryllis abriu a boca e voltou a fechá-la.
Eloise continuava imóvel, enfraquecida, com o semblante pálido e as mãos inertes
posadas no regaço.
—Não se recuperará - disse sem o menor matiz de expressão, como se tivesse visto
a morte frente a frente e, acostumada a ela, aceitasse-a já sem esperanças-.
Jamais voltará a levantar-se.
—Não é certo! -respondeu Amaryllis, quase gritando-. Como se atreve a dizer algo
tão horrível? É mentira! Mentira! Levantar-se-á e com o tempo voltará a andar. Fá-lo-á!
Tenho certeza. -ficou em pé, foi para o Eloise e se deteve diante dela, tremendo de
emoção.
Mas Eloise não levantou a cabeça, nem se alterou.

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—Está sonhando -disse com uma calma absoluta-. Um dia se dará conta da verdade.
Por muito que tarde, a verdade sempre está aí, e acabará por alcançá-la.
—Equivoca-se! Equivoca-se! -O sangue afluiu ao rosto do Amaryllis-. Não entendo
por que diz essas coisas. Terá você suas razões... Sabe Deus quais! - Eram palavras
acusadoras, pronunciadas com um tom desagradável e gritante, e também assustado-.
ficará bem. Não me renderei! Nego-me a me render!
Eloise ficou olhando como se fosse transparente, ou um obstáculo insignificante, algo
irreal, inconsciente como uma projeção de lanterna mágica.
—Se prefere acreditar assim - disse sem alterar-se-, faça-o. A ninguém importará. Só
lhe peço que não vá por aí repetindo-o, sobretudo se chegar o dia em que Tormod se
encontre em condições de recebê-la.
Amaryllis ficou rígida, com o peito erguido e os braços rígidos como se fossem de
madeira.
—Quer-lhe sempre aí estendido! -exclamou atropeladamente-. É uma malvada! Quer
tê-lo prisioneiro! Só ele e você para toda a vida! Está louca! Nunca o deixará mover-se
daí... não...
De repente Charlotte, sacudindo-se de sua inércia, levantou-se com presteza e deu
um bofetão em Amaryllis.
—Deixe de comportar-se como uma idiota! -disse com fúria-. Que incrível egoísmo!
Pensa que ajuda em algo ficar a gritar como uma criada histérica? Por todos os Santos,
acalme-se! Recorde que é Eloise quem tem que suportar o pior, não você!
É ela quem se ocupou dele toda a vida! Acredita que o pobre senhor Lagarde se
alegraria de ver sua irmã insultada, para cúmulo de tudo? Só o médico pode dizer se se
recuperará.
As falsas esperanças são mais dolorosas que o ir aprendendo com paciência a
aceitar a verdade, seja qual for, e esperar que o tempo diga a última palavra.
Amaryllis ficou olhando. Provavelmente era a primeira vez que alguém a esbofeteava,
mas estava muito consternada para reagir. E a acusação de que se comportava como uma
criada era um insulto mortal!
Emily se levantou por sua vez, puxando o braço de Charlotte; depois acompanhou
Amaryllis de volta a seu assento. Eloise tinha ficado quieta enquanto acontecia tudo, como
se absorta em seus pensamentos não tivesse visto nem ouvido nada. Por sua reação, o
mesmo poderia ter sido tênues sombras.
—É natural que esteja impressionada -disse Emily ao Amaryllis, em um esforço

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supremo por manter a calma-. Mas estas coisas afetam às pessoas de forma variável.
Deve ter em conta, além disso, que Eloise viu ao médico, e fala com conhecimento de
causa.
O melhor será que esperemos seu veredicto. O senhor Lagarde necessita da maior
tranqüilidade possível. -voltou-se para Eloise-. Não é assim?
Eloise continuava contemplando o chão.
—Sim. -Arqueou um pouco as sobrancelhas, quase surpreendida-. Sim, não devemos
perturbá-lo com nossas emoções.
Repouso absoluto, isso prescreveu o doutor Mulgrew. O tempo o dirá.
—Disse se voltaria logo? -inquiriu Caroline-. Quer que alguém a acompanhe quando
vier o doutor, querida?
Pela primeira vez Eloise sorriu, como se finalmente tivesse ouvido palavras
inteligíveis.
—É muito amável. Não será um aborrecimento? Espero-o de um momento a outro.
—Claro que não é aborrecimento. Alegramo-nos de poder ficar -assegurou Caroline
com entusiasmo, ao fim contente de poder ajudar em algo.
Amaryllis vacilou, enquanto todos os olhares posavam nela. Finalmente mudou de
idéia.
—Acredito que a cortesia nos obriga a fazer outras visitas pela zona – disse Emily-.
Charlotte pode ficar aqui. Talvez a senhora Denbigh queira me acompanhar. -Falava com
deliciosa desenvoltura-. Eu adorarei desfrutar de sua companhia.
Amaryllis abriu desmesuradamente os olhos. Não tinha previsto uma situação como
aquela, e estava a ponto de protestar quando Caroline pegou no ar a ocasião.
—Excelente idéia. -ficou em pé, alisando o vestido-. Charlotte estará encantada de
ficar aqui. Eu irei com vocês para continuar as visitas. Sem dúvida Ambrosine se alegrará
de nos ver. Fá-lo-á com gosto, não é verdade, querida? -Olhou nervosamente ao Charlotte.
—É claro -assentiu Charlotte. Por uma vez o mistério da morte de Mina não ocupava
seus pensamentos, concentrados em Eloise-. Penso que é a melhor solução.
Além disso, estou a quatro passos de casa. Quando for hora de voltar irei
caminhando.
Amaryllis ficou uns momentos mais, tratando ainda de achar alguma desculpa
aceitável para continuar ali. Mas não lhe ocorreu nada, e teve que seguir Emily até o
saguão quando Caroline lhe ofereceu seu braço. A criada fechou a porta atrás delas.
—Não se desgoste por sua culpa - disse Charlotte ao Eloise, passados uns instantes.

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Não seria tão néscia de sugerir que não pensava o que havia dito. Saltava à vista que suas
palavras tinham sido de todo intencionais-. Eu diria que a impressão lhe afetou o
julgamento.
Pelo rosto de Eloise passou uma sombra de humor amargo.
—Possivelmente sim -respondeu-, mas só na medida em que antes teria pensado o
mesmo, e só por educação não se atreveu a dizê-lo.
Charlotte se reclinou em seu assento. O doutor Mulgrew ainda podia demorar um
bom tempo.
—Não é uma pessoa precisamente agradável - comentou.
Eloise a olhou. Pela primeira vez parecia vê-la realmente, e não alguma cena
desenvolvida em sua mente.
—Não lhe tem você simpatia. -Era uma afirmação.
—Não muita -admitiu Charlotte-. Possivelmente se a conhecesse melhor... -Deixou a
sugestão no ar, como uma fórmula de pura cortesia.
Ficando em pé, Eloise caminhou lentamente até os biombos para contemplar a
chuva.
—Parece-me que grande parte do que apreciamos nas pessoas consiste em coisas
que não vimos, mas que supomos que estão aí. Desse modo podemos imaginar que o que
não conhecemos corresponde a nossos desejos.
—Seriamente podemos fazer isso? -Charlotte deu uma olhada às costas da jovem,
grácil, de ombros marcados-. Provavelmente seja impossível acreditar no que não é certo,
a menos que, deixando de lado a realidade, alguém se abandone à loucura.
—É possível. -de repente Eloise perdeu todo interesse. Cansativamente,
acrescentou-: Mas pouco importa.
Charlotte sentiu o impulso de discorrer, por puro princípio, mas a profunda dor que
reinava na sala a afligia. Estava procurando ainda algum comentário oportuno quando
voltou a entrar a criada, anunciando a chegada do doutor Mulgrew.
Pouco depois, quando já o doutor estava em cima junto ao Tormod e sua irmã
esperava no patamar, a criada perguntou ao Charlotte se desejava receber a monsieur
Alaric até que Eloise voltasse.
—OH! -Lhe cortou a respiração. Naturalmente, era impossível negar-se.
Sim, por favor... Faça-o entrar. Tenho certeza de que isso é o que quereria a
senhorita Lagarde.
—Sim, senhora. -A moça se retirou. Passados uns instantes fez sua entrada Paul

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Alaric, sobriamente vestido, com expressão grave.


—Boa tarde, senhora Pitt. -Não houve demonstração de surpresa. Sem dúvida o
tinham informado de sua presença-. Como está?
—Bastante bem, monsieur, obrigada. A senhorita Lagarde está acima, com o médico;
mas suponho que já sabe.
—Com efeito. Como a achou?
—Terrivelmente afetada -respondeu Charlotte-. Não acredito ter visto nunca ninguém
tão angustiado. Tomara pudéssemos dizer ou fazer algo para consolá-la...-Teve medo de
que Alaric fizesse algum comentário trilhado; mas não foi assim.
—Sim, sei. -Alaric falava com grande calma, enquanto sua mente se esforçava por
compreender a dor-.
Confesso que não me sinto capaz de ajudar em nada, mas não vir me teria parecido
uma imperdoável amostra de indiferença.
—É muito amigo do Tormod Lagarde? -inquiriu Charlotte. Não lhe tinha ocorrido que
na vida do Alaric houvesse lugar para uma amizade com alguém como Tormod Lagarde,
mais jovem e frívolo. - Sente-se, por favor - ofereceu com toda a compostura de que foi
capaz-. Eu diria que ainda demora.
—Obrigado - disse ele, afastando as abas da jaqueta para não sentar-se em cima-.
Não, não pode dizer-se que tivéssemos muito em comum. Não obstante, tragédias como
esta se sobrepõem a todas as diferenças superficiais, não é?
Charlotte levantou o olhar, topando com os olhos do Alaric que a observavam com
curiosidade. Não havia neles nada daquela impessoal frieza que Charlotte lhe conhecia
das reuniões sociais. Sorriu-lhe levemente, para mostrar que estava serena e guardava a
compostura. Depois sentiu o impulso de sorrir outra vez.
—A você, por exemplo, vejo que não a retiveram -continuou Alaric-. Teria sido muito
compreensível de sua parte alegar outras obrigações, esquivando-se de um dever
indevidamente doloroso. Pelo que sei, não conhece muito aos Lagarde. Mesmo assim,
sentiu o impulso de vir.
—Uma visita bem pouco útil, receio -disse Charlotte com súbita tristeza-. Salvo que
mamãe e Emily conseguiram afastar à senhora Denbigh.
Alaric sorriu. Toda sua ironia apareceu em seu olhar.
—Ah, Amaryllis! Sim, suponho que isso foi efetivamente uma gentileza.
Não sei por que, mas não parece existir um grande afeto entre ela e Eloise. Se
tivesse acabado por ser cunhadas, não teriam faltado problemas na casa.

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—Diz que não sabe por quê? -Charlotte se surpreendeu. Não podia ser tão cego.
Amaryllis era fortemente possessiva; seus sentimentos para o Tormod eram de uma
devoradora intensidade. A idéia de ter que viver na mesma casa com o Eloise lhe teria sido
insuportável. Quando duas mulheres compartilhavam uma casa, uma delas sempre
tomava o mando; que o fizesse Eloise era pouco provável, e para o Amaryllis intolerável.
Mas, no caso de Eloise ser relegada, até de modo sutil, a uma posição secundária,
Tormod acabaria por sentir-se em dívida com ela, compadecer-se-ia dela, e isso não faria
mais que piorar as coisas.
Decididamente, se Paul Alaric não fosse capaz de entender os sentimentos de
Amaryllis, era sinal de que possuía uma imaginação decepcionantemente limitada.
Mas, ao lhe olhar no rosto, deu-se conta de que não lhe tinha ocorrido que Eloise
ficasse a viver com eles. Mas Tormod não podia deixá-la sozinha. Eloise era jovem e
vulnerável. Não, teria sido impossível, até no caso de que fosse algo socialmente aceitável,
o que por outro lado não era certo.
—Desde o começo tive a sensação de que a senhora Denbigh sente grande apreço
pelo senhor Lagarde -disse Charlotte. Que ridiculamente mornas eram suas palavras frente
à violenta paixão que tinha visto em Amaryllis, o anseio espiritual e corporal que bulia a tão
pouca distância da superfície!
Alaric esboçou lentamente um esvaído sorriso.
—Também ele se deu conta.
—Talvez seja por falta de perspicácia, mas não me parece que ter esposa e irmã
sejam coisas incompatíveis.
—Francamente, monsieur... -de repente aquele homem a impacientava-. Imagine
você loucamente apaixonado, se é que tal coisa está ao alcance de sua imaginação. -A
raiva que sentia pelo comportamento do Caroline envenenava suas palavras-. Gostaria de
viver dia a dia junto a alguém que conhecesse a pessoa amada imensamente melhor que
você? Que compartilhasse com ela as lembranças de toda uma vida, as risadas, os
segredos, os amigos, as reminiscências da infância...?
—Está bem, Charlotte, entendi-o. -De repente Alaric tinha voltado para os tempos de
sua fugaz amizade com Charlotte, quando viveram juntos os terríveis dias do Paragon
Walk; Também aí uma trama de invejas e ódios tinha levado a assassinato-. Falei como
um estúpido insensível. Dou-me conta de que para alguém como Amaryllis isso seria
insuportável.
De todo modo, se Tormod estiver tão ferido gravemente como dizem, não se falará já

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de matrimônio.
Não fazia mais que verbalizar uma verdade óbvia a essas alturas; Entretanto, suas
palavras caíram como blocos de gelo na sala. Guardaram silêncio, pensando cada qual a
seu modo na atroz revelação, até que Eloise retornou.
Olhou ao Alaric sem interesse, como se não visse nele mais que um objeto, um
conjunto de traços que lhe exigia dar demonstração de reconhecimento.
—Boa tarde, monsieur Alaric. foi muito amável ao vir.
O aspecto do Eloise, com a rigidez de seu rosto e os olhos fundos de espanto,
impressionou ao Alaric além de quanto lhe dissera Charlotte. Esqueceu suas maneiras,
todas as frases corteses que lhe tinham inculcado durante anos, e lhe embargou uma
emoção espontânea e incontrolável.
Estendeu sua mão para pegar a de Eloise; com a outra lhe acariciou o braço
suavemente, como se sua pele corresse perigo de irritar-se.
—Eloise, sinto-o tanto... Querida, não abandone as esperanças. Ninguém sabe o que
pode chegar a acontecer com o tempo.
Eloise permaneceu em seu lugar sem retroceder um passo, embora não estivesse
muito claro se a proximidade do Alaric a reconfortava ou, simplesmente, não a percebia.
—Não sei o que devo esperar -se limitou a dizer-. É mau que me sinta assim?
—Não, não é nada mau -disse Charlotte rapidamente-. Para saber o que é melhor,
terei que ser onisciente. Não deve culpar-se. Não pense sequer nisso, por favor.
Eloise fechou os olhos e se virou, obrigando ao Alaric a soltar seu braço.
Ele ficou confuso, sabendo que aquele tremendo sofrimento que via era impossível
de alcançar ou compartilhar.
Charlotte teve piedade dele, mas acima de tudo devia pensar em Eloise.
Levantou-se e foi a seu lado, rodeando-a fortemente com o braço. O corpo de Eloise
estava inerte, sem vida; mesmo assim, Charlotte seguiu estreitando-o. Pela extremidade
do olho via o Alaric, tenso e compassivo. Viu como se voltava e partia em silêncio,
fechando a porta atrás dele. Com um "clique" quase inaudível, o fechamento da porta
voltou para seu lugar.
Eloise não se moveu nem se pôs a chorar.
Charlotte se sentia como se estivesse abraçando a uma sonâmbula, prisioneira de
um pesadelo que lhe raptava a mente e o espírito.
Entretanto, pensou que sua presença, o quente contato de seu corpo, não careciam
de valor.

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Passaram os minutos. Ouviram-se passos na escada de trás. Uma rajada de chuva


açoitou as janelas. Entretanto, continuaram sem pronunciar palavra.
Finalmente se abriu a porta e entrou a criada. Ruborizada, disse:
—O senhor Inácio Charrington, senhora. Digo-lhe que não está em casa?
—Diga-lhe que a senhorita Lagarde não se encontra bem - disse Charlotte-. Faça-o
entrar na saleta. Não demorarei para ir junto a ele.
—Sim, senhora. -A garota se retirou agradecida, sem esperar que Eloise confirmasse
a ordem.
Charlotte ficou ainda uns instantes. Depois levou Eloise ao sofá e a fez sentar-se,
ajoelhando-se a seu lado.
—Não acha que seria melhor que se deitasse um pouco? -sugeriu-. Quer uma taça
de chá, ou uma infusão a base de ervas?
—Como quiser. -Eloise assentiu por pura apatia.
Charlotte vacilou, perguntando-se se podia ajudar em algo mais. Finalmente se
convenceu de que era inútil, e foi para a porta.
—Charlotte...
Virou-se e pela primeira vez viu vida no rosto de Eloise, e inclusive em seu olhar.
—Obrigada. Foi muito atenciosa. Talvez lhe pareça que não a valorizo, mas não é
assim. Tem razão, talvez deva tomar algo e dormir um pouco. Estou muito cansada.
Charlotte sentiu alívio, como se em seu interior se desfizesse um forte nó.
—Darei instruções à criada de que ninguém mais seja recebido por hoje.
—Obrigada.
Uma vez dadas às ordens à criada e ao lacaio, Charlotte entrou na sala onde
esperava Inácio Charrington. O jovem estava de pé junto à lareira, com o anseio gravado
no rosto. Levava ainda seu casaco pendurado no braço, como se ainda duvidasse em ficar
ou não.
—Eloise se encontra bem? -disse, saltando-as fórmulas de rigor.
—Não -respondeu Charlotte-. Não, não está bem, mas duvido que possamos ajudá-la
muito.
—Você não deveria ficar com ela? -Inácio fez expressão de preocupação-. A última
coisa que quero é piorar as coisas com minha visita.
—Enviei à criada para fazer uma infusão. Depois me parece que descansará um
pouco.
Não é que dormir mude as coisas; quando despertar continuará tendo que enfrentar

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os fatos.
Mas possivelmente aumente suas forças.
—Maldição! -disse Inácio com repentina impotência. Primeiro a pobre Mina, e agora
isto!
Charlotte se ouviu dizer a si mesma, consternada:
—E sua própria irmã...
—Como? -O impreciso rosto de Inácio ficou branco, quase comicamente
inexpressivo.
A vergonha impediu ao Charlotte dizer algo mais.
—OH. -Finalmente o jovem compreendeu-. OH, sim. Refere-se à Ottilie.
Charlotte queria pedir desculpas, pôr remédio a sua indiscrição, mas sabia quão
relacionado podia estar aquilo com a morte de Mina, com o assassinato. Sua experiência
lhe tinha ensinado dolorosamente como um assassinato podia levar ao seguinte, e este a
outro. Mina não era necessariamente a última vítima.
—Soube que sua morte foi muito repentina... Inesperada, quero dizer.
Deve ter lhes causado uma impressão devastadora. -propôs-se ser sutil, e acabou
sendo tosca.
—Inesperada? -repetiu Inácio. - Claro, que idiota fui. Você é a esposa do inspetor Pitt!
Mas por que tanto interesse no Ottilie? Era uma garota excêntrica, mas lhe asseguro que
nunca fez mal a ninguém, e menos a Mina!
—É a terceira vez que me descrevem ela como excêntrica - disse Charlotte
pensativa-. Seriamente saía tanto do corrente?
—OH, sim! -Inácio sorriu ao recordar-. Fazia algumas coisas tremendas. Em uma
ocasião subiu à mesa durante o almoço e cantou uma canção de taverna.
Achei que papai morreria de desgosto. Felizmente só estava a família e um par de
meus amigos! -A lembrança fez que seus olhos brilhassem com vivacidade, risonhos e
cheios de ternura.
—Um pouco violento, com efeito, se fosse repetido. -Charlotte estava desorientada;
sem dúvida era impossível fingir com tal perfeição o carinho-. Mais vale não fazer coisas
assim se a gente pretende continuar nesses círculos.
A expressão do Inácio era zombadora, mas sem má intenção. Parecia considerar-se
ele mesmo como parte da brincadeira.
—Sabe, senhora Pitt, tenho a clara sensação de que, apesar de suas maneiras
afetadas, é muito mais esposa de seu marido que filha de sua mãe! Acredita que nos

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desfizemos de Ottilie silenciosamente, não é? Ou que a encerramos em nossa casa de


campo, em uma ala desabitada, com um velho criado para custodiá-la.
Charlotte sentiu como o sangue afluía a seu rosto. Estava agindo mal e, entretanto,
devia continuar. Era sua única oportunidade.
—É certo, pensei que vocês a tinham assassinado - disse secamente, furiosa consigo
mesma por sua estupidez-. E talvez Mina se inteirara. Já sabe, era uma olheira. E talvez
uma ladra, também!
Inácio abriu desmesuradamente os olhos.
—Uma olheira sim, mas... uma ladra? O que a faz pensar assim?
—Ultimamente desapareceu certo número de objetos no Rutland Place.-Charlotte
continuava ruborizada-. Nenhum de grande valor, mas um deles pelo menos contém um
segredo que poderia ser muito prejudicial se viesse à luz. Possivelmente os tinha roubado
Mina, e a mataram para recuperar algo.
—Não - disse Inácio com convicção-. Seja qual for o motivo de seu assassinato, não
tem nada que ver com os roubos. De qualquer modo, quase tudo foi devolvido. Como
sempre.
Charlotte o olhou fixamente.
—Devolvidos? Como sabe?
Inácio respirou fundo, levando tempo.
—Sei. Aceite-o tal qual. Vi-os. Pergunte a seus proprietários, eles o dirão.
—Minha mãe perdeu algo, e não me disse que o devolveram.
—Trata-se presumivelmente do objeto que tem o grave segredo que acaba de
mencionar, pois está ao corrente. Talvez ela tenha medo de que pense que o conseguiu
pela força. Suspeita de tudo, senhora Pitt!
—Dificilmente poderia chegar a pensar que minha mãe... -interrompeu-se.
—Matasse a Mina? - Inácio acabou em seu lugar -.Possivelmente não, mas seria a
polícia igualmente indulgente?
—Onde morreu Ottilie? Não foi em sua casa de campo, como disseram vocês.
—OH... -Inácio emudeceu, apoiado em um só pé, enquanto Charlotte esperava-.
Sabe o que vamos fazer? -disse finalmente-. Me acompanhe, mostrar-lhe-ei algo!
Charlotte deu rédea solta a sua frustração.
—Não diga tolices! Se é tão secreto...
—Pegue sua própria carruagem - interrompeu-a Inácio - e seu próprio lacaio, se
quiser.

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—Os policiais não têm carruagem própria! -replicou Charlotte-. Nem lacaios!
—Não, suponho que não. Me perdoe. Pegue o de sua mãe. Demonstrar-lhe-ei que
não matamos Ottilie.
Charlotte procurou febrilmente uma desculpa que lhe permitisse aceitar sem ser
alocadamente imprudente. Se Inácio, ou sua família, tinham assassinado primeiro ao Ottilie
e logo a Mina, não teriam reparos em matá-la com a mesma facilidade. Entretanto, talvez
lhe estivessem oferecendo a solução numa bandeja.
Se efetivamente os objetos roubados tinham sido devolvidos, como sabia Inácio
Charrington?
Que motivos podia ter o ladrão para roubá-los e depois devolvê-los? Era absurdo... A
menos que tivesse relação com o crime! Se Mina era a ladra, talvez seu assassino tivesse
restituído todo o roubado a fim de afastar a atenção do único objeto que podia condená-lo.
De repente lhe ocorreu a solução. Emily não teria permitido que lhes escapasse
aquela oportunidade. Ela podia proporcionar ao Charlotte os meios para aceitar a proposta.
—Tomarei a carruagem de minha irmã - disse com uma convicção que esperou poder
justificar-. E, naturalmente, comunicarei a ela com que intenção o faço, e quem vai
acompanhar-me.
—Estupendo! Pensou alguma vez entrar no corpo de polícia?
—Deixe de rabugices! -replicou Charlotte, embora em seu foro interno tremia de
emoção.
Inácio sorriu.
—Penso que o passaria muito bem. E eu também, de fato. Virei procurá-la as seis em
ponto. Não é preciso que troque de roupa, desde que se tire isso que leva no pescoço.
—Às seis? -disse Charlotte com assombro-. Por que não agora mesmo?
—Porque apenas são três e meia. É muito cedo.
Charlotte não entendia nada, mas o trato lhe convinha. Ao menos assim teria tempo
de arrumar as coisas com o Emily, de modo de tomar emprestado a carruagem e ao
mesmo tempo assegurar-se de que Inácio Charrington não tivesse oportunidade de tentar
algo contra ela impunemente.
Quando, na chegada à casa de sua mãe, Charlotte explicou tudo à Emily - nas costas
de Caroline, naturalmente-, sua irmã ficou de pedra. Sua primeira reação foi acreditar que
indubitavelmente Inácio tinha matado a sua própria irmã, e agora se propunha fazer o
mesmo com Charlotte.

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—Não é possível que seja tão idiota - respondeu esta, tratando de pôr convicção em
suas palavras-. No fim de contas, se algo me acontecesse em sua companhia, sabendo-o
você, seria sua condenação.
Estou convencida de que pensa me explicar como morreu Ottilie, e me mostrar
alguma prova. Não esperará que acredite nele sem provas!
—Nesse caso vou com você -disse Emily.
Custou trabalho à Charlotte persuadir a de que sua presença podia estragar tudo.
Se as circunstâncias da morte do Ottilie tivessem permitido a sua família fazê-las
públicas, então Pitt teria descoberto elas já a essas alturas. Não lhe ocorria nenhuma
razão satisfatória para que Inácio se decidisse a revelar-lhe a menos que fosse por medo
de que recaísse sobre eles uma suspeita de assassinato, o que a fim de contas era pior.
Em todo caso, se o segredo consistia em algo inauditamente vergonhoso, ou
inclusive humilhante, quanto menos gente soubesse menor seria o dano para a família. Por
outro lado, como Charlotte não pertencia a mesmo círculo, não ia prejudicá-los tanto se
conhecesse a verdade.
Emily aceitou o raciocínio a contra gosto, obrigada a reconhecer que era plausível.
Aceitou sem reservas a prestar sua carruagem e lacaio; quanto a ela, voltaria para casa
com o de sua mãe.
Inácio chegou justo as seis em ponto, vestido com uma formosa jaqueta verde escura
e elegante cartola.
Charlotte sentiu a urgência de lhe perguntar onde diabos iriam, mas, recordando a
sacrossanta discrição, mordeu a língua. Caroline já se espraiara bastante sobre o
comportamento de sua filha, e se absteve de mais comentários diante do Inácio.
Este, uma vez dentro da carruagem e depois de comprovar que Charlotte estava
confortável, ficou calado com um sorriso nos lábios, sem fazer nenhum comentário.
Percorreram ruas iluminadas com luzes de gás, quase desconhecidas para Charlotte
e que aparentemente estavam próximas ao coração da cidade.
A viagem esfumou nela a noção do tempo. As intermináveis voltas a fizeram perder
todo sentido da orientação, que por outro lado não era seu forte. Quando finalmente a
carruagem se deteve, Charlotte não tinha o menor indício de onde estavam.
Inácio saiu para ajudá-la a descer. As luzes brilhavam com força; algumas, em frente
de um grande edifício, eram de distintas cores.
—São elétricas -disse Inácio afavelmente-. Já começa a haver muitas.
Charlotte olhou ao redor. Ouvia-se música em alguma parte. Na calçada se

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amontoava uma dúzia de pessoas ou mais, homens sobre tudo, alguns vestidos de gala.
—Onde estamos? -perguntou com perplexidade-. O que é isto?
—Um teatro de variedades, querida - disse Inácio com uma repentina e explêndido
sorriso-. Um dos melhores. Esta noite atua Ada Church. Vai encher absolutamente!
—Um teatro de variedades? -Charlotte estava atônita. Esperava um cemitério, uma
clínica, um manicômio inclusive... mas, um teatro de variedades! Era absurdo, uma espécie
de piada macabra.
—Venha. -Inácio a puxou pelo braço, empurrando-a para a porta.
Charlotte sentiu o impulso de resistir; estava ao mesmo tempo assustada e cheia de
curiosidade.
Tinha ouvido falar da Ada Church. dizia-se que era muito formosa, e que seu número
musical era um dos melhores. Até o Pitt tinha comentado em uma ocasião como eram
bonitas suas pernas. Havia-o dito sorrindo, e Charlotte, dando- se conta de que procurava
provocá-la, tinha contido o impulso de lhe perguntar como sabia.
—Boa tarde, senhor Charrington. -O porteiro levantou a mão em sinal de saudação,
embora seu olhar traduzia a surpresa de ver Charlotte-. É um prazer vê-lo de novo, senhor.
—Esteve antes aqui -disse Charlotte acusadoramente-. E freqüentemente!
—OH, certamente!
Charlotte se deteve, puxando o braço de seu acompanhante.
—E tem a desfaçatez de me trazer para este lugar? Já sei que estou casada com um
policial, mas não estou acostumada a freqüentar lugares deste tipo.
Recordo-lhe que há muitas coisas que fazem os homens, mas não as mulheres! Bem,
já fez sua brincadeira de mau gosto. Admito que foi grosseiro e cruel de minha parte lhe
perguntar sobre sua irmã. Já se vingou, já tem minhas desculpas. Agora me leve a casa,
por favor.
Inácio continuou segurando-a pelo braço com força, impedindo que partisse.
—Não seja tão orgulhosa - disse com calma-, não lhe sai nada bem.
—Queria você saber o que aconteceu com Ottilie. Pois o vou mostrar.
Assim, deixe de armar um escândalo e entre comigo. Provavelmente até o passe
bem, se se relaxar um pouco. Em todo caso, se não desejar ser vista aqui, será melhor
que se afaste da entrada, onde todos a estão vendo dar o espetáculo.
Sua lógica era irrefutável. Erguendo a cabeça com arrogância, Charlotte avançou
pelo braço de Inácio sem olhar aos lados, e deixou que a instalasse frente a uma das
numerosas mesas no centro da sala. Percebeu de modo empanado fileiras de camarotes e

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galerias, igual a um teatro normal.


Havia também um cenário de matizadas cores, brilhantemente iluminado. Vestidos de
babados muito decotados e elegantes trajes em branco e negro se mesclavam com os
tons marrons das pessoas menos enriquecidas, e inclusive com as jaquetas a quadros dos
homens que chegavam das ruas adjacentes.
Os garçons abriam caminho entre a multidão. As taças cintilavam ao ser elevadas
em brinde, entre o contínuo murmúrio de vozes e cadências da música.
Inácio não disse nada, mas Charlotte percebeu seu brilhante olhar fixo nela, com mal
contida curiosidade e uma expressão divertida.
Quando chegou o garçom, Inácio pediu champanha, idéia que aparentemente lhe era
engraçada. Depois serviu duas taças, levantou a sua e propôs um brinde.
—Pelos detetives! -disse com olhos faiscantes-. Tomara Deus tivesse disposto que
todos os mistérios fossem assim simples.
—Começo a pensar que os que são um pouco simples são os detetives! - respondeu
Charlotte com mordacidade. Não obstante, aceitou o champanha e o bebeu.
Era agradavelmente seco, nem ácido nem doce, e ao bebê-lo diminuiu sua irritação.
Não pôs objeções a que Inácio servisse outra taça.
Nesse momento saiu à cena um malabarista. Charlotte o olhou sem grande interesse;
o que fazia era certamente difícil, mas não lhe pareceu que valesse o esforço.
Seguiu-lhe um cômico que contou várias piadas bastante estranhas, embora a
audiência parecia achá-las hilariantes. Charlotte temeu que lhe escapava a graça.
O garçom trouxe mais champanha. Charlotte se deu conta de que cada vez se
divertia mais naquele ambiente colorido e com aquela música.
Um grupo de coristas cantou uma canção que lhe era familiar. Depois saltou a cena
um homenzinho que começou a retorcer-se nas mais inverossímeis contorções.
Finalmente se fez o silêncio e um rufo de tambor precedeu ao mestre de cerimônias.
—Damas e cavalheiros! -disse levantando as mãos-. Exclusivamente para vocês, o
ponto culminante da noite, a quinta essência da formosura, da ousadia, da mais pura e
faiscante diversão... a encantadora senhorita Ada Church!
Depois de uma salva de aplausos, gritos e assobios, ergueu-se o pano de fundo.
Sobre o cenário não havia mais que uma esbelta mulher, de estreita cintura e pernas
longas, muito longas, vestidas em calças negras. Trazia um fraque e uma camisa branca
que não dissimulavam sua silhueta. Uma cartola, inclinada com desenvoltura, rematava
seus chamejantes cabelos avermelhados.

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De seu sorriso parecia desprender-se suficiente alegria para encher toda a sala.
—Bravo, Ada! -exclamou alguém. Seguiu um novo turno de aplausos. A orquestra
começou a tocar, e a profunda e matizada voz da cantor atacou uma pegajosa e alegre
canção subindo de tom. Apesar de sua vulgaridade, havia nela um toque de sensualidade
cheio de sugestões.
O público emitiu um rugido de aprovação e acompanhou a Ada no estribilho. À altura
da terceira canção, Charlotte se deu conta, horrorizada, de que também ela estava
cantando, e que a música lhe provocava um agradável e jovial formigamento.
Rutland Place parecia estar a quilômetros de distância; nada gostava mais do que
esquecer seu mistério e suas desgraças. Não havia nada melhor que aquelas luzes e
aquele calor, enquanto cantavam todos com a Ada Church e uma efervescente vitalidade
se apoderava do público.
Caroline se teria escandalizado se tivesse visto Charlotte entoar em voz alta o
simpático estribilho: "Champagne Charlie, esse sou eu!"
Finalmente, quando depois do último número caiu o pano de fundo e acabaram os
aplausos, Charlotte se voltou para Inácio, que a estava olhando. Deveria haver-se sentido
irritada; entretanto, estava eufórica.
Inácio levantou a última garrafa de champanha. Estava vazia. Fez gestos ao garçom
para que trouxesse outra. Acabava apenas de abri-la quando Charlotte viu que Ada Church
em pessoa se aproximava de sua mesa, saudando o público com um gesto da mão, mas
evitando com garbo as mãos que se estendiam para tocá-la.
Deteve-se ante eles. Inácio ficou em pé para lhe oferecer assento.
Ada o beijou na face, enquanto Inácio lhe passava o braço pela cintura.
—Olá, querido - disse, e em seguida deslumbrou Charlotte com um sorriso.
Inácio fez uma reverência quase imperceptível.
—Senhora Pitt, permita que a apresente a minha irmã Ottilie. Tillie, esta é Charlotte
Pitt, a filha de minha vizinha. Traiu a sua família casando-se com um policial.
Imaginou que nos tínhamos desfeito de você, e por isso a trouxe aqui, para que
comprove quão boa é sua saúde.
Charlotte ficou absolutamente muda de assombro.
—Desfazerem-se de mim? -disse Ottilie com incredulidade-. Incrível!
Estupendo! Sabe, acredito que a papai ocorreu à idéia. Só lhe faltou ter mais
coragem! -Pôs-se a rir com ressonantes gargalhadas-.

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Soberbo! -pegou o braço de Inácio. - Quer dizer que a polícia está interrogando papai
para saber o que fez comigo? Suspeitam que é um assassino? Eu adoraria ver sua
expressão enquanto tenta sair da situação! Quase preferiria morrer antes que revelar a
alguém no que me converti.
Inácio continuou rodeando sua cintura, mas de repente o humor se desvaneceu de
seu rosto.
—Não é só isso, Tillie. Houve um assassinato, um de verdade. Mina Spencer-Brown
foi envenenada. Era uma olheira obsessiva, e aparentemente se inteirou de um segredo
capaz de justificar um crime. Ocorreu a policia, não sem certa lógica, que seu
desaparecimento podia ser esse segredo.
A risada de Ottilie se truncou na hora. Segurou mais fortemente a manga de seu
irmão com mãos longas e esbeltas.
—Meu deus! Não acreditará que...
—Não -se adiantou Inácio - não é isso. Papai não tem nem idéia, e a mamãe duvido
que se importe. De fato, pela cara que faz quando estamos sentados à mesa, cheguei a
pensar que uma parte dela preferiria que todos soubessem, em particular papai.
—Mas os devolveu! -disse Ottilie com obrigação-. Me prometeu que...
—Claro que o fiz, assim que averigüei de onde vinham. Ninguém mais sabe. -dirigiu-
se à Charlotte-. Receio que nossa mãe tem o lamentável costume de apoderar-se de
pequenos objetos que não lhe pertencem. Eu faço o possível por devolvê-los a seu lugar
assim que posso.
Também receio ter demorado mais do que o habitual com o medalhão de sua mãe;
como não mencionou havê-lo perdido, não pude saber a quem pertencia. Suponho que
não é preciso que explique as razões...
—Não - disse Charlotte-, melhor que não. -Estava desconcertada. Simpatizava com
Ambrosine Charrington . - Por que diabos se dedica a esses pequenos roubos?
Inácio aproximou outra cadeira, e Ottilie e ele se sentaram. Ao vê-los juntos Charlotte
comprovou que a semelhança era considerável. Não podia duvidar-se da identidade da
Ada Church.
—Uma via de escapamento - disse simplesmente Ottilie, olhando ao Charlotte. -
Talvez não seja capaz de entendê-lo, mas se tivesse vivido trinta anos com papai seria.
Às vezes alguém se sente tão aprisionado pelas idéias, costumes e expectativas de
outras pessoas que uma parte de nosso ser chega a odiá-los. Dá vontade de romper seus
ideais, de esmagá-los, de mostrar de repente a essas pessoas quem somos seriamente.

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Obrigá-los a atravessar o cristal e, por uma vez, nos tocar de verdade em carne e
osso.
—De acordo. -Charlotte meneou a cabeça-. Não tem que me explicar nada mais. Eu
mesma quis em mais de uma ocasião saltar em cima da mesa para dizer gritando o que
penso. Talvez depois de trinta anos o teria feito. Encontra-se você bem aqui? -Jogou uma
olhada às mesas repletas.
Ottilie sorriu com simplicidade.
—Sim. Eu adoro. Tive dias de chorar até me cansar, e longos dias de solidão... e
também noites. Mais de uma vez cheguei à conclusão de que sou uma estúpida, ou algo
pior. Mas assim que ouço a música, assim que vejo às pessoas cantar comigo e ouço os
aplausos... Eu gosto, sim.
Provavelmente dentro de dez ou quinze anos já só ficarão a vaidade e as
lembranças.
Talvez desejarei ter ficado em casa e me casar com o homem adequado... Mas não,
não acredito.
Charlotte se surpreendeu sorrindo também. O champanha seguia lhe alegrando o
ânimo.
—De qualquer modo, ainda pode obter um bom matrimônio - disse, mas de repente
lhe travou a língua e a seguinte frase não saiu como se propusera: - A gente da farândula
às vezes o faz, há quem diz...
Ottilie olhou a seu irmão.
—Encheu-a de champanha -acusou-o.
—Naturalmente. Isso lhe dará uma desculpa para amanhã pela manhã. E ajudará a
que não se lembre muito bem de como desfrutou alternando com a chusma! -levantou -.
Tome uma taça, Tillie. Devo levar Charlotte a casa antes de que seu marido envie em sua
busca meio corpo de polícia!
Charlotte não ouviu suas palavras. Sentia-se enjoada e a música ressoava de novo
em sua cabeça. Alegrou-se de que Inácio a levasse até a porta, recolhesse a capa e
fizesse trazer a carruagem. Fora fazia frio. O ar fresco a limpou um pouco.
Depois de ajudá-la a subir, Inácio fechou a porta. Os cavalos trotaram suavemente,
percorrendo ruas silenciosas.
Charlotte ficou a cantar para si mesma; entoava pela sétima vez o estribilho quando
Inácio a ajudou a descer em frente mesmo de sua casa.
—Champagne Charlie, esse sou eu! -cantarolou alegremente, em voz bastante alta-

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Beber champanha é minha diversão! Que vivam as borbulhas! Me dêem uma taça e até o
fundo bebo isso! Das garçonetes... -titubeou, mas acabou por recordar- sou o preferido!
Charlie é meu nome e Champagne meu sobrenome!
A porta se abriu de repente. Olhou para ela, e se encontrou com o olhar furioso do
Pitt; estava pálido, e o lampião de gás do corredor punha uma auréola em torno de sua
cabeça.
—Não lhe acontece nada -disse Inácio sobriamente-. Levei-a para conhecer minha
irmã.
A propósito, acredito que estão vocês investigando seu paradeiro!
—Eu... -Charlotte soltou um hipido e se desabou.
—Sinto muito - disse Inácio com um leve sorriso-. Boa noite!
Charlotte nem sequer se deu conta de que Pitt se agachava para agarrá-la.
Depois levou a sua mulher dentro de casa, entre pragas que a teriam escandalizado
se tivesse ouvido.

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Capítulo 9

Charlotte despertou com a mais espantosa dor de cabeça de que tinha memória.
No outro extremo da sala, Pitt estava abrindo as cortinas. Charlotte nem sequer foi
capaz de discernir as flores vermelhas do estampado. A luz lhe doía nos olhos; fechou-os
e em seguida se virou, tampando o rosto com a almofada. Foi um engano.
De repente sentiu um martelar na cabeça, golpes que lhe retumbavam na fronte,
como se o próprio crânio estivesse a ponto de explodir.
Não havia sentido nada parecido quando estava grávida da Jemima! Recordava
algumas náuseas matutinas, sim, mas... aquela terrível sensação de estar a ponto de
explodir o cérebro!
—Bom dia. -A voz do Pitt rasgou o espesso silêncio, uma voz fria e decididamente
pouco amigável.
—Sinto-me mal - balbuciou Charlotte.
—Não o duvido.
Charlotte se sentou lentamente, com a cabeça entre as mãos.
—Acho que vou ficar doente.
—Não estranharia nada. -Evidentemente não o tinha comovido.
—Thomas! -Charlotte desceu a rastros da cama, com vontade de chorar ao sentir-se
tão abatida e inexplicavelmente rejeitada. De repente recordou tudo: o teatro de
variedades, Ottilie, Inácio Charrington, o champanha, e aquela estúpida canção.
—OH, Meu Deus! -Lhe dobraram as pernas, e ficou sentada incomodamente na beira
da cama. Estava ainda em roupa interior. Sentia desagradáveis espetadas na cabeça,
provocadas pelas forquilhas que levava no cabelo-. OH, Thomas! Sinto muito!
—Vai vomitar? -perguntou Pitt com leve interesse.
—Acredito que sim.
Pitt se aproximou da cama, tirou de baixo o urinol e o colocou no regaço de Charlotte,
lhe afastando o cabelo.
—Suponho que se dará conta do risco que correu! -disse, passando do desapego à
ira-. Se Inácio Charrington, ou seu pai, tivessem assassinado Ottilie, teria sido uma
brincadeira de meninos matá-la também!
Tiveram que passar vários minutos antes que Charlotte estivesse em condições de
defender-se e explicar suas precauções.

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—Tomei emprestados a carruagem e o lacaio de Emily! -disse finalmente, respirando


com esforço-. Não sou imbecil de tudo!
Pitt afastou o urinol e lhe ofereceu um copo de água, junto a uma toalha.
—Eu se fosse você deixaria essa discussão para mais tarde –disse com azedume. -
Encontra-se melhor?
—Sim, obrigada. -Charlotte teria querido adotar uma atitude digna, distante inclusive,
mas as circunstâncias tornavam isso impossível. - Todo mundo sabia que estava com ele!
Não poderia ter feito nada impunemente. Além disso, assegurei-me de que se desse
perfeita conta disso.
—Todo mundo? -disse Pitt arqueando as sobrancelhas e com um tom perigoso.
Charlotte se deu conta do mal-entendido antes que seu marido lhe perguntasse a
respeito.
—Quero dizer mamãe e Emily -precisou. Pensou em lhe dizer que tinha enviado ao
lacaio com uma mensagem para ele; entretanto, nunca lhe se dado bem em mentir ante o
Pitt, e estava muito espessa para manter a coerência, virtude essencial de toda boa
mentira-. Não lhe disse isso porque pensei estar de volta em casa antes de você. -Seu tom
começou a encrespar-se-.
Não tinha idéia de que ia a um teatro de variedades! Só disse que me ia mostrar o
que tinha acontecido à Ottilie, como prova de que não lhe tinham feito mal!
—Um teatro de variedades? -Por um momento Pitt esqueceu mostrar-se zangado.
Charlotte se endireitou na beira da cama. Finalmente as náuseas tinham cedido,
facilitando a tarefa de adotar uma postura digna.
—É, pois? Onde achava que tinha ido? Não estive em uma taverna, se é isso o que
está pensando!
—E que necessidade tinha que procurar o Ottilie Charrington em um teatro de
variedades? -grunhiu Pitt.
—Porque aí é onde estava -respondeu Charlotte com certa satisfação-. Escapou de
casa para trabalhar no teatro! Ela é Ada Church. -Uma lembrança a assaltou
repentinamente-. Já sabe, a das pernas bonitas! -acrescentou com ironia.
Pitt teve a gentileza de ruborizar-se.
—Vi-a em horas de serviço - disse com aspereza.
—Seu serviço, ou o dela? -inquiriu Charlotte.
—Pelo menos cheguei sóbrio a casa! -Pitt ergueu a voz com a indignação do justo
que foi ofendido.

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A cabeça de Charlotte estava a ponto de partir-se e não tinha vontade de continuar


discutindo.
—Sinto muito, Thomas. Sinto seriamente. Não me dei conta de que ia me afetar até
este ponto. Simplesmente estava delicioso, cheio de borbulhas. Fui lá para achar ao Ottilie
Charrington. -recolheu-se o cabelo para trás e começou a retirar a forquilha que mais
machucava. - Afinal de contas, alguém matou a Mina! Se não foram os Charrington, talvez
Theodora Von Schenck...
Pitt se sentou no extremo da cama, com as abas da camisa pendendo e a gravata
desfeita.
—De verdade que Ada Church é Ottilie Charrington? -perguntou-. Está totalmente
certa, Charlotte? Não seria alguma brincadeira estranha?
—Não. Tenho certeza pela simples razão de que se parece com Inácio. Adivinha-se
que são parentes. Ah, e outra coisa que esqueci! Ambrosine é a ladra!
Ao que parece esteve fazendo isso faz tempo. Inácio costuma devolver as coisas
quando sabe a quem pertencem. Suponho que desta vez ninguém admitiu tê-los perdido
por medo de que suspeitasse deles como assassinos de Mina.
—Ambrosine Charrington? -Pitt a olhou fixamente, confuso e desconfiado-. Mas por
quê? Que motivo teria para dedicar-se a roubar, justamente ela?
Charlotte respirou fundo.
—Importa-se se voltar a me deitar? Gracie se ocupará da Jemima; eu não me vejo
capaz. Se me levantar a cabeça explodirá.
—Que motivos teria Ambrosine Charrington para roubar? -repetiu Pitt.
Charlotte tentou recordar as palavras do Ottilie. Parecia-lhe que no momento de ouvi-
las tinha entendido perfeitamente.
—Por causa do Lovell. -esforçou-se por achar uma maneira de explicá-lo-. Está
paralisada! - estendeu-se com supremo cuidado, mas parte da dor subsistiu.
—Que está o que?
—Paralisada- repetiu Charlotte. Gostava da palavra. - Feito um osso. Não escuta nem
olha. Penso que uma parte sua odeia. A fim de contas sua filha se escapou, e têm que
fingir que está morta...
—Santo céu, Charlotte, a gente desta classe não tem a suas filhas trabalhando em
teatros de variedades! Para ele seria impensável!
—Já sei! -Charlotte se cobriu com as mantas até o queixo. De repente sentia frio-.
Mas isso não faria que Ambrosine deixasse de querer ao Ottilie.

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Conheci-a, e é muito simpática, o tipo de pessoa que convida a sorrir. Faz que tudo
pareça um pouco melhor do que é.
Possivelmente não teria acabado no teatro se Lovell não fosse tão enrijecido.
Possivelmente se teria contentado fazendo-se de rebelde em casa de vez em
quando.
Pitt guardou silêncio por uns instantes.
—Pobre Ambrosine -disse ao cabo.
Ocorreu uma idéia espantosa à Charlotte. Levantou-se de um salto, arrastando com
ela todos os lençóis.
—Não pensará prendê-la?
Pitt reagiu com consternação.
—Não, claro que não! Embora quisesse não poderia. Não há provas. E sem dúvida
Inácio negaria tudo. Não é que lhe vá perguntar... -Fez uma careta-. Mas isso acaba com a
hipótese de que os roubos fossem o motivo da morte de Mina; embora suponha que
continua sendo possível que os Charrington a matassem.
—Por que? Ottilie está viva!
Pitt fez cara de absoluto desprezo.
—Como acha que tomaria Lovell se todo mundo em seu círculo soubesse que Ada
Church, rainha do musical, é sua filha? Provavelmente preferisse que o acusassem de tê-
la assassinado! Pelo menos não seria tão condenadamente risível!
O rosto de Charlotte se retorceu dolorosamente, debatendo-se entre a ironia e a
irritação. Sentia vontade de rir, mas a idéia lhe parecia intolerável.
—O que vai fazer? -perguntou.
—Escrever ao doutor Mulgrew.
Charlotte não entendeu. Era uma resposta absurda.
—Ao doutor Mulgrew? por quê?
Pitt acabou por sorrir.
—Porque está apaixonado por Ottilie. Sem dúvida gostará de saber que continua
viva. Duvido que lhe importe muito saber que ganha à vida cantando nos cabarés. Seja
como for, deve dar-se o a ocasião de comprová-lo por si mesmo.
Charlotte se deitou de novo na cama com um longo suspiro de satisfação.
—Está se intrometendo - disse com alegria. Gostava da idéia de que Ottilie tivesse
quem a amasse.
Pitt grunhiu, enquanto se metia a camisa na calça com estupidez.

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—Sei.

Justo antes das onze, Charlotte, ainda adormecida, ouviu fracamente que alguém
batia na porta. Pouco depois viu que Emily estava a seu lado.
—O que tem? -perguntou-. Gracie não queria me deixar entrar! Está doente?
Charlotte abriu os olhos.
—Não se pode dizer que a garota tenha sido muito eficaz! -Lançou um olhar de
soslaio ao Emily, sem mover-se-. Tenho uma terrível enxaqueca.
—Nada mais? Não se preocupe. -Emily se sentou na cama-. O que ocorreu?
O que tem sobre Ottilie Charrington? Como morreu? Fez isso sua família? Se não me
disser isso em seguida sacudi-la-ei até que adoeça de verdade!
—Não me toque! Já estou doente! Não morreu. Está vivinha e abanando o rabo, e
canta nos teatros de variedades.
—Não diga tolices! -Emily fez uma careta de incredulidade-. Quem te soltou esse
conto?
—Ninguém. Eu mesma fui a um desses teatros, e a vi com meus próprios olhos.
Por isso me sinto tão mal.
—Que fez o que? -Emily não dava crédito a seus ouvidos-. Foi a um teatro de
variedades? E como demônios o tomou Thomas? Diga a verdade!
—Pois sim, fiz isso, e Thomas não se alegrou muito. -Então ficou a recordar, com um
sorriso nos lábios-. Fui, com efeito. Com Inácio Charrington, e bebi champanha.
De fato, assim que me acostumei passei muito bem.
Uma cômica mescla de expressões cruzou o rosto do Emily: surpresa, risada e
inclusive inveja.
—Merece estar doente -disse, não sem certa satisfação-. Tomara tivesse
acompanhado você! Como é ela?
—Maravilhosa. Canta realmente bem, de um modo que a obriga a cantar com ela.
Está tão... tão cheia de vida!
Emily se sentou em uma postura mais cômoda.
—Assim, ninguém a assassinou. E, portanto, não pode ser o motivo da morte de
Mina.
—Sim que poderia sê-lo. -Charlotte se lembrou do argumento do Pitt-. Poderiam
querer mantê-lo em segredo. Afinal de conta ela é Ada Church!
—E então? Quem é Ada Church? -Emily estava perplexa.

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—Ottilie! Não seja estúpida!


—O que se supõe que significa isso? -Emily sentia muita curiosidade para mostrar-se
ofendida.
—Ada Church é uma das mais famosas cantoras de variedades.
—Seriamente? Eu não sigo tanto como você o programa dos teatros de variedades -
respondeu com acidez-. Mas, com efeito, seria um bom motivo para guardar o segredo. E
sempre fica por investigar o patrimônio da Theodora.
Suponho que Thomas se encarregará disso. Mas continuamos tendo que fazer algo
com respeito à mamãe e monsieur Alaric!
—OH, sim, tinha-me esquecido do medalhão. Já o devolveram.
—Não me disseram! -Emily se sentiu ofendida por semelhante amostra de
insensibilidade.
Charlotte se endireitou lentamente, surpreendendo-se da considerável melhoria de
sua cabeça.
—Tampouco a mim. Inácio Charrington me disse isso. Tinha-o pego sua mãe, e ele o
devolveu a seu lugar.
—Ambrosine Charrington o pegou? Para que? Charlotte, não se embebedou, não é
verdade?
—Sim, acredito que sim, com champanha. Mas Inácio me disse isso quando ainda
estava lúcida. -Explicou em detalhe tudo o que foi capaz de recordar-. Não obstante, isso
não significa que mamãe vá interromper sua relação com monsieur Alaric.
—Não, claro -disse Emily-. Será melhor que façamos algo e, se pode ser, antes que
as coisas piorem. Estive pensando muito nisso ultimamente, e cheguei a uma conclusão.
Devemos convencer a papai que lhe preste mais atenção, que a cuide mais e passe
mais tempo com ela. Assim não necessitará de monsieur Alaric.
Olhou ao Charlotte, desafiando-a. O tema do Ambrosine Charrington e a champanha
do Charlotte podiam esperar.
Esta refletiu por uns instantes. Persuadir ao Edward de que aquilo era importante, de
que tinha que aceitar todas as mudanças que suporia em seu comportamento, não ia ser
fácil; sobre tudo tendo em conta que não podiam informá-lo dos motivos que as levavam a
preocupar-se tanto, nem tampouco mencionar o perigo de que o vínculo entre o Caroline e
Paul Alaric se transformasse em algo sério, algo que, além da paixão contida, pudesse
acabar no quarto.
Respirou fundo, franzindo o sobrecenho.

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—Não, você não! -disse Emily-. De você não necessito mais que apoio moral, e que
me dê seu consentimento. Mas não diga nada, se não quiser que tudo acabe em um
completo desastre.
Não era a ocasião de discussões. Chegariam momentos mais apropriados para
defender-se.
—Quando pensa ir? -perguntou Charlotte.
—Assim que se tenha vestido. Ah, e aconselho-a que lave a rosto com água fria e
belisque um pouco as faces. Está muito pálida.
Charlotte a olhou com cara de poucos amigos.
—E ponha cores brilhantes - continuou Emily-. Tem algum vestido vermelho?
—Naturalmente que não! -Charlotte saiu a rastros da cama-. Onde quer que use um
vestido vermelho? Tenho uma saia e um casaco granadas.
—Bom, pois ponha isso e tome uma xícara de chá. Depois iremos ver papai. Já
arrumei isso. Sei que hoje está em casa, e mamãe citou que ia almoçar com uma amiga
minha.
—Também se ocupou disso?
—Claro que sim! -Emily falava com afetada paciência, como se tivesse diante um
menino curto de entendimento. - Não podemos nos expor que nos interrompa! Agora se
apresse, arrume-se já!
Edward se sentiu encantado de ter a suas duas filhas em casa. Com um sorriso
radiante ocupou seu assento na cabeceira da mesa da sala de jantar.
—Considero-me afortunado de vê-la, querida! -disse à Charlotte-. Me alegro de que
Emily a encontrasse em casa, e de que tenha podido acompanhá-la. Parece que tenha
passado uma eternidade desde a última vez.
—Ultimamente nunca estava em casa quando vinha. -Charlotte introduziu o assunto
sem esperar a que Emily desse o sinal.
—Não, suponho que não -disse Edward sem lhe dar importância.
—Viemos muito freqüentemente -atravessou Emily enquanto trespassava com o garfo
uma parte de frango-, e acompanhamos a mamãe em suas visitas. É uma maneira
agradável de passar o tempo, sempre que não se cometerem excessos.
Pode chegar a ser muito aborrecido. Sempre as mesmas conversas...
—Pensava que o passavam bem. -Edward pareceu um pouco surpreso. Não tinha
refletido muito sobre o assunto; simplesmente o tinha dado como certo.
—Sim, sim nós gostamos! -Emily comeu a parte de frango e depois olhou seu pai

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com serenidade-. Mas os estímulos da companhia feminina são bastante limitados, sabe?
Tenho certeza de que, se George não me gratificasse com sua presença toda tarde, nem
me levasse a comer fora de vez em quando, acabaria por desejar a companhia de algum
outro cavalheiro.
Uma mulher não dá tudo o que pode de si até que não tenha como público um
homem que mereça sua admiração.
Edward sorriu com indulgência. Sempre tinha pensado que, de suas filhas, Emily era
a mais fácil de tratar, sem dar-se conta de que boa parte do mérito se devia a sua peculiar
habilidade para perceber as mudanças de humor de seu pai e amoldar-se a eles.
À Sarah tinha faltado paciência e, sendo a mais velha e a mais bonita, tinha um
pouco de egoísmo. Quanto ao Charlotte, tinha a língua muito solta e costumava falar de
assuntos inconvenientes que o punham em apuros.
—George é um homem afortunado, querida - disse enquanto se servia de mais
verdura-. Espero que saiba apreciá-lo.
—Eu também espero. -de repente Emily adotou uma expressão severa. - Papai, uma
das coisas mais tristes que podem acontecer a uma mulher é que seu marido perca
interesse nela, que deixe de procurar sua companhia e de ocupar-se de seu bem-estar.
Não imagina quantas mulheres conheci que, dando-se conta de que seus maridos as
ignoravam, acabaram procurando a atenção perdida em outra parte.
—Em outra parte? -repetiu Edward com certa perplexidade-. Francamente, Emily,
espero que não queira dizer o que acreditei entender. Eu não gosto da idéia de que se
relacione com mulheres desse tipo. Outros poderiam pensar o mesmo de você!
—Isso me causaria fundo pesar. -Emily falava com absoluta gravidade-.
Nunca dei ao George o menor motivo de queixa, particularmente nesses assuntos. -
Abriu muito seus olhos azuis-.
Entretanto, com o coração na mão, não me atreveria a ser severa com uma mulher
que, tendo um marido que a trata com crescente indiferença, conhecesse outro homem de
boas maneiras e caráter agradável que a achasse atraente e o dissesse; se essa mulher,
digo, em sua vazia solidão, sentisse-se igualmente atraída por ele...
—Emily! -Edward se sentiu escandalizado-. Não estará justificando o adultério!
Infelizmente, isso é o que se deduz de suas palavras.
—OH, não, não! -disse Emily-. O adultério é sempre imperdoável. Mas existem
situações ante as quais é difícil não mostrar-se compreensiva.- Sorriu a seu pai-. Tomemos
como exemplo esse francês, monsieur Alaric.

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Um homem francamente bonito, de deliciosas maneiras, com um ar de grande


distinção. Não está de acordo, Charlotte? Cheguei-me a perguntar se a pobre Mina não
estaria apaixonada por ele, e não do Tormod Lagarde. Monsieur Alaric é
incomparavelmente mais maduro, não é?Até goza de uma aura de mistério que é muito
interessante.
Mais de uma vez me perguntei se será realmente francês, como demos por sentado.
—Bom, pois imaginemos que Alston Spencer-Brown se dedicou exageradamente a
seus negócios, e que a sua esposa apenas dedicava algum elogio, mas nenhum pequeno
gesto romântico como dar de presente flores, ou levá-la ao teatro. –Fez uma pausa para
tomar ar-.
Nesse caso, a monsieur Alaric teria bastado umas adulações e alguma ou outra
amostra de admiração para que Mina caísse rendida a seus encantos.
Aí estaria por fim o remédio a sua tristeza, o modo de acabar com essa sensação de
já não servir para nada...
—Isso não é desculpa... -replicou Edward; entretanto, estava pálido e esqueceu do
frango-. E não deveria especular sobre as pessoas de forma tão vergonhosa, Emily! A
pobre mulher está morta, e não pode defender-se!
Emily não se alterou.
—Não digo que seja uma desculpa, papai. Não é preciso desculpa, só raciocínio. -
Depois de acabar com o que ficava no prato, posou o garfo e a faca-.
Agora que a pobre Mina morreu, observei que monsieur Alaric mostra grande
simpatia por mamãe, e busca freqüentemente sua companhia para dar um passeio ou
conversar um pouco. -Sorriu com vivacidade-. O que demonstra que seus gostos vão
melhorando! De fato, Charlotte comentou comigo que parece muito bem disposto.
Parece-me que também Charlotte se sentiu bastante atraída por ele.
Charlotte dirigiu a sua irmã um olhar assassino. Tinha percebido no tom de Emily um
matiz malicioso.
—Um homem encantador - concordou, evitando olhar a seu pai-. Mas suponho que
mamãe não se achará na desgraçada situação da senhora Spencer-Brown.
Edward olhou a suas filhas alternativamente. Duas vezes abriu a boca para exigir que
se explicassem com mais clareza, e outras tantas decidiu que não lhe interessava saber
mais.
A criada entrou para recolher a mesa e depois serviu a sobremesa.
—Já passou muito tempo desde que fomos ao teatro por última vez - comentou

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Edward finalmente, como se não tivesse nada que ver com o anterior-.
Devem ter estreado algo novo do Gilbert e Sullivan. Possivelmente deveríamos ir.
—Excelente idéia - disse Emily com o mesmo tom despreocupado-. Posso lhe
recomendar um bom joalheiro, se tiver vontades de dar a mamãe algum presentinho.
É um homem que dá a tudo o que faz um toque romântico, e não é excessivamente
caro. Tem alguns medalhões muito bonitos, que sempre são um presente muito pessoal.
—Não me organize a vida, Emily!
—Sinto muito, papai. -Emily lhe dedicou um encantador sorriso-. Só era uma
sugestão. Não duvido de que saberá fazê-lo muito melhor.
—Obrigado. -Edward a olhou com expressão mordaz, mas seguia amassando o
guardanapo, e sua postura era tensa.
Emily se serviu de outra porção de sobremesa.
—Está deliciosa, papai -disse docemente-. Foi muito amável ao nos convidar.
Edward se absteve de comentar que era Emily quem se convidara a si mesma.

À uma e meia Edward voltou para seus negócios.


—O que vai fazer com respeito à Mina? -perguntou Emily assim que ficou a sós com
Charlotte-. Continuamos sem saber quem a matou nem por que.
—Bom, a razão mais óbvia é que bisbilhotou muito -respondeu Charlotte.
—De acordo -admitiu Emily com tom cáustico-. Mas bisbilhotar onde, espiar a quem?
—Talvez aos Charrington; se não pelo Ottilie, possivelmente pelos roubos de
Ambrosine -refletiu Charlotte em voz alta-. Pessoalmente me inclino pela Theodora Von
Schenck. Lembro os comentários de Mina sobre a fortuna da Theodora e sua procedência.
Penso que sabia algo, e que se divertia excitando nossa perspicácia. Possivelmente
com algo mais de tempo nos teria contado.
Seu rosto se escureceu ante a desagradável hipótese que se abria-. Patético, não é
verdade? Tentar causar impressão sobre outros divulgando falatórios, dar a entender que
se está a par de terríveis segredos só para fazer-se interessante.
—Terrivelmente perigoso! -Emily apertou a boca em uma severa careta de
reprovação-. Pensa no dano que podia ter causado a outras pessoas, além do que
aconteceu a ela mesma. Imagino que mesmo assim não merecia a morte, mas de qualquer
modo agiu com perversidade.
—E também de forma patética - insistiu Charlotte-. Se precisava farejar em tudo o
que a rodeava e investigar as vidas de seus vizinhos, significa que tinha um grande vazio

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interior.
—Não acredito assim - replicou Emily-. Todo mundo se sente infeliz em algum
momento, mas nem por isso nos dedicamos a nos entremeter e fofocar!
Charlotte não fez conta.
—Pior que isso - disse-. Mina inventava histórias, semeava suspeitas, combinando
todos os vícios imagináveis.
Suponho que a imaginação humana tem sempre um lado perverso. -de repente
mudou de registro e disse: - esteve estupenda com papai, mas ainda nos falta dissuadir
um pouco a monsieur Alaric.
Soube que conhece bastante bem a Theodora. Esta mesma tarde lhe farei uma visita
para averiguar se souber de onde procede o dinheiro.
Emily arqueou as sobrancelhas.
—Sério? E que desculpa se propõe dar para justificar sua visita, para não falar de lhe
surrupiar a informação?
—Submeter-me-ei totalmente a sua mercê - disse Charlotte, tomando uma rápida
decisão.
—Fará o que?
Com respeito à mamãe, tola! -replicou Charlotte-. Imaginarei algo para dar a
entender a ela, sutilmente, que papai está à corrente da...amizade, e que não o vê com
bons olhos.
—Nunca deu a entender nada sutilmente!
—Bom, talvez não sutilmente! Depois lhe falarei de Mina, do quão preocupados que
estamos todos. O que pensa fazer você?
—Pois eu visitarei a Theodora, sem dar a monsieur Alaric a oportunidade de
acautelá-la, se se desse o caso de que fossem cúmplices. Se é que há algo no que ser
cúmplices! Será um pouco difícil, porque não a conheço.
Mas se você pode ir a um teatro de variedades com Inácio Charrington, como não
vou atrever-me a visitar sem prévio aviso à madame Von Schenck!
—Não tinha por que trazer à tona outra vez o assunto do teatro! -disse Charlotte com
amargura.
—Não se preocupe, não direi ao Thomas que foi ver a sós o monsieur Alaric.
De fato, acredito que seria prudente não lhe dar nenhum sinal de que continua
interessada no assunto.
—Se acredita que imaginará que o esqueci, é que não conhece o Thomas. - Charlotte

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franziu o sobrecenho-. Nem lhe ocorreria!


—Nesse caso, tenha um pouco de sensatez e se assegure de permanecer sóbria -
respondeu Emily-. Pode usar minha carruagem para ir à casa de monsieur Alaric; eu irei
andando. Desse modo parecerá ligeiramente mais respeitável, dentro do que cabe.
—Obrigada!
As dúvidas assaltaram ao Charlotte assim que a carruagem saiu do Rutland Place.
Se não fosse pelo temor ao ridículo, teria dito ao cocheiro que desse meia volta.
Mas já se comprometera. ia cometer um ato bastante ousado, e talvez Alaric
interpretasse mal seus motivos.
Ruborizou-se só de pensar nisso. Sua mãe não era a única mulher que se vira
cativada por ele até o ponto de perder todo sentido das proporções!
Quando a carruagem se deteve no Paragon Walk e o lacaio a ajudou a descer,
Charlotte rogou que Paul Alaric não estivesse em casa. Isso lhe economizaria o
compromisso, e poderia voltar para casa com a cabeça bem alta.
Mas os fados não lhe foram propícios: não só estava em casa, mas também recebeu
sua visita com agrado.
—Quanto me alegro de sua visita, Charlotte. -Permaneceu a certa distância dela,
sorrindo. Se estava surpreso, dissimulava-o muito bem. Mas era natural. Não fazê-lo teria
sido uma descortesia.
—É você muito amável, monsieur Alaric - respondeu Charlotte, e em seguida se
sentiu desconfortável. Mal tinha atravessado a soleira, e já a conversa tomava roteiros que
não eram os esperados. Possivelmente na França, ou lá de onde viesse -pois ninguém lhe
tinha ouvido dizer que era francês, embora todos o dessem é claro-, o uso do nome de
batismo não implicava tanta confiança.
Alaric continuava sorrindo. Charlotte fez um esforço por pôr seus pensamentos em
ordem.
—Rogo-lhe que me perdoe por visitá-lo de forma inoportuna, nem deixar previamente
meu cartão de visita. -Soava ridículo, e ela sabia, mas ao menos era uma maneira de
começar.
—Tenho certeza de que as circunstâncias saem do comum-disse amavelmente
Alaric-. Quer uma xícara de chá?
Era uma boa desculpa para manter as mãos ocupadas, além de uma garantia de que
a visita ia durar no mínimo meia hora.
—Obrigada - disse Charlotte-, Agradeço. -sentou-se na poltrona de aspecto mais

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confortável.
Depois de fazer soar a campainha e dar instruções à criada, Alaric se sentou em um
simples sofá de veludo escuro frente a ela.
A sala era austera em adornos de forma não usual. Havia uma estante de mogno,
cheia de volumes encadernados em couro e letras douradas. Sobre o suporte da lareira
pendia uma marinha de suaves tons cinza. No chão, um tapete turco.
Era uma decoração estranha e formosa.
Alaric estava comodamente sentado com as pernas cruzadas, sorrindo ainda, mas
com olhar sério. Sabendo que Charlotte não tinha ido por motivos corriqueiros nem de puro
compromisso, esperava uma explicação.
Charlotte notou ressecados os lábios. Foi impossível entreter-se em formalismos.
—Emily e eu almoçamos com papai -disse.
Alaric continuou olhando-a, sem interrompê-la.
Charlotte respirou fundo e foi direta ao assunto.
—Vimo-nos obrigados a tratar de um tema espinhoso, além da morte de Mina e o
acidente do pobre Tormod.
Uma sombra de preocupação cruzou o rosto do Alaric.
—Sinto muito.
Charlotte não tinha indícios de até que ponto aquela relação descansava só em
Caroline. Devia ser prudente, pois até o momento não tinha visto no Alaric outra coisa que
demonstrações de extrema cortesia.
Ou era mais discreto que Charlotte, ou -e isso era o mais provável- desconhecia a
intensidade dos sentimentos de Caroline. Afinal, não a conhecia tão bem como sua filha.
Charlotte pigarreou. Chegado o momento de decidir entre comprometer-se ou deixar
o assunto de lado e falar de outra coisa, topava com dificuldades inesperadas.
Era muito consciente da presença do Alaric diante dela, a muito pouca distância.
Em uma ocasião o tinha tomado pelo chefe de uma seita dedicada à magia negra.
Agora isso era absurdo.
Mas, possivelmente tinha dele a imagem de um homem menos vaidoso e mais
compassivo do que em realidade era. Não era desatinado supor que Alaric desfrutava
daquela fascinação que, sem aparente esforço, provocava nas mulheres.
Charlotte engoliu em seco e voltou a começar, com um tom muito mais pomposo do
que se propunha.
—Ultimamente papai esteve muito ocupado em seus negócios, e descuidou a vida de

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família. Acredito que a pobre mamãe se sentiu um pouco abandonada.


Não se queixou disso, naturalmente. Seria absurdo que alguém pedisse a seu marido
mais demonstrações de afeto. Até no caso de que ele o fizesse, esses detalhes deixariam
de ter valor desde que foi ela mesma quem os exigiu.
—Assim, você e sua irmã decidiram convencê-lo... -disse Alaric, dando demonstração
de começar a entender.
—Com efeito - assentiu Charlotte-. Entristeceria-nos muito ver nossa família afetada
por um mal-entendido. De fato, não pensamos permitir que aconteça. Essas coisas saem
de seu leito muito facilmente. Criam-se novos afetos, outras pessoas entram em jogo, e
antes que possa evitar-se...
Alaric a olhava fixamente. Charlotte não pôde continuar. A essas alturas era evidente
do que falava.
—Uma tragédia doméstica - concluiu Alaric em seu lugar.
Charlotte se deu conta de que estava ligeiramente ruborizado, como se de repente se
desse conta da desagradável verdade. Sentiu uma repentina simpatia por ele, dando-se
conta de que aquele homem não era consciente de seu poder, e de que até aquele
momento tinha subestimado o alcance de seus próprios encantos.
Ou em tempos passados não tinha sabido entender as reações das mulheres, ou as
tinha atribuído à própria natureza feminina, reservando-se a si mesmo o papel de mero e
desafortunado catalisador.
—Sim, a palavra "tragédia" me parece a mais adequada - disse Charlotte-. Talvez
devêssemos prestar mais atenção ao que podem provocar as paixões.
Tomemos, por exemplo, à senhora Denbigh. Viu-a você? Está tão desesperada pelo
acidente do senhor Lagarde que dificilmente poderíamos descrever seus sentimentos com
uma palavra tão morna como "tristeza", não acha?
Alaric guardou silêncio. Charlotte começou a sentir-se desconfortável, consciente de
que ele a estava olhando. Incomodava-a estar a sós com ele naquela sala.
Tinha sido uma idéia ridícula visitá-lo em sua própria casa. Deveria ter insistido em
que Emily a acompanhasse. Sem dúvida alguém a tinha visto; sempre havia algum criado
à espreita. Ia dar motivo a falatórios! Pessoalmente, Charlotte não tinha nenhuma
reputação que cuidar, pois Paragon Walk não se interessava por ela absolutamente.
Mas e sua irmã? Alguém podia reconhecer em Charlotte à pessoa que acompanhava
ao Emily durante a época dos assassinatos do Paragon Walk.
E o que dizer do próprio Paul Alaric?

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Charlotte se ruborizou, pensando em seu irrefletido comportamento. E pensar que se


negara que Emily a acompanhasse!
Ergueu o olhar lentamente e se achou com o do Alaric. Assombrou-se ao ver em
seus olhos tanta acuidade, além de uma espécie de intimidade, como se acabassem de
tocar-se, como se sua pele houvesse sentido um repentino comichão.
Devia partir. Já havia dito o que tinha que dizer. A carruagem do Emily a esperava,
preparada para levá-la de retorno ao Rutland Place. Tinha tempo ainda de reunir-se com a
Emily em casa da Theodora Von Schenck.
Pensar na Theodora lhe fez recordar o outro propósito de sua visita. Era necessário
perguntar ao Alaric agora mesmo.
A criada serviu o chá e se retirou. Charlotte bebeu alguns goles com gratidão. Tinha a
boca seca e a garganta em tensão.
—Emily foi ver madame Von Schenck - comentou com toda a espontaneidade de que
foi capaz-. Soube que você a conhece bastante bem.
Alaric, surpreso, abriu seus olhos negros.
—Moderadamente. Nossa relação tem que ver com negócios embora de todo modo a
acho muito agradável.
Agora era Charlotte a surpreendida. Não esperava tanta franqueza.
—Negócios? A que tipo de negócios se refere? -Em seguida reparou na brusquidão
de sua pergunta-.
Não sabia que madame Von Schenck se ocupasse de negócios. Ou talvez conhecia
você a seu marido? Quero dizer...
—Não. -Alaric sorriu ligeiramente-. Não o conhecia, embora acredite que era um
homem encantador. Até o ponto de que sua esposa não quis voltar a casar-se.
Charlotte fingiu que lhe custava entendê-lo, apesar da idéia de voltar a casar-se, em
caso de acontecer algo ao Pitt, ser-lhe impensável.
—Nem sequer pela segurança que proporciona um marido? -Tratou de parecer
sincera-. No fim de contas, tem dois filhos que manter.
—E uma cabeça muito bem organizada para os negócios. -Alaric se mostrou
divertido-. Não é algo que se valore muito por aqui, e suponho que por isso o leva com
tanta discrição.
Sobretudo quando seus interesses se concentram no setor do mobiliário para o
banho. -Seu sorriso se alargou-. O desenho das banheiras e outros artefatos semelhantes
não é exatamente o ideal das damas do Rutland Place.

Anne Perry – Thomas Pitt 05 – Os Roubos de Rutland Place


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Além disso, suas táticas de venda são muito imaginativas, e leva as finanças com
toda precisão. Eu diria que está começando a obter benefícios consideráveis.
Charlotte se deu conta de que estava sorrindo de forma um pouco idiota. Era tudo tão
ridiculamente inofensivo, cômico inclusive, que sentia vontade de pôr-se a rir.
Entretanto, manteve a compostura e se dispôs a levantar-se, mas, antes que
pudesse pronunciar as palavras de despedida apareceu à criada com uma bandeja de
bolachas.
Atrás dela vinha Caroline.
Charlotte ficou gelada, posta de pé pela metade, com um sorriso rígido em seus
lábios.
A princípio sua mãe não a viu. Olhava ao Alaric, cheia de entusiasmo e satisfação.
De repente percebeu a presença de sua filha e empalideceu. Ficou olhando como se
fosse uma criatura surgida das profundidades do inferno.
Um silêncio absoluto se apropriou da sala. A criada estava muito assustada para
deixar a bandeja.
Com esforço, Caroline respirou fundo várias vezes.

—Peço-lhe perdão, monsieur Alaric - disse com voz trêmula-. Ao que parece
interrompi-o. Desculpe-me. -Passou junto à criada e saiu da sala.
Charlotte olhou ao Paul Alaric. Estava tão pálido e horrorizado como ela mesma, e
afligido pelo mesmo sentimento de culpa. Sem perder mais tempo, Charlotte se levantou,
atravessou pressurosa o salão e abriu a porta com brusquidão.
—Mamãe!
Caroline se achava no saguão, e não podia ter deixado de ouvi-la. Entretanto, não se
voltou.
—Mamãe!
O lacaio abriu a porta principal, e Caroline saiu à luz do dia. Charlotte a seguiu.
Agarrando no ar sua capa de mãos do lacaio, desceu a escadaria como uma ventania
e se plantou na rua.
Alcançou a sua mãe e a pegou pelo braço. Caroline sacudiu sua mão com força.
Manteve seu rosto afastado.
—Como pôde? -disse com solenidade-. Minha própria filha! Tão grande é seu orgulho
que não tem reparos em me fazer isto?
Charlotte voltou a agarrá-la pelo braço.

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—Não me fale. -Caroline escapou bruscamente-. Não me fale, por favor. Nunca mais.
Não a conheço.
—Está se comportando como uma estúpida! -disse Charlotte com toda a virulência
que lhe permitiu o estar em meio da rua, ao alcance do ouvido de todos-. Vim para
comprovar se Alaric sabia de onde obtém o dinheiro Theodora Von Schenck.
—Não minta, Charlotte. Posso ver por mim mesma o que está acontecendo.
—Ah sim? -respondeu Charlotte. Estava furiosa com sua mãe, não porque a julgasse
mau, mas sim por ser tão vulnerável, por deixar-se arrastar por sonhos e não querer que
chegasse o momento de despertar-. Seriamente, mamãe? Parece-me que, se pudesse se
dar conta de algo veria tão claramente como eu que ele não a ama absolutamente.
Viu seus olhos inundados em lágrimas, mas tinha que continuar-. Não tem nada que
ver comigo nem com nenhuma outra mulher! Esse homem simplesmente não percebe que
seus sentimentos por ele são algo mais que pura simpatia, ou um modo de matar o
aborrecimento.
Construiu em torno dele uma fantasia romântica que não tem relação com o tipo de
pessoa que ele é em realidade. Nem sequer o conhece! Só vê o que quer ver!
Segurou o braço de Caroline com força.
—Sei exatamente como se sente-continuou-. Passou-me o mesmo com o Dominic.
Adornei-o com todos meus românticos ideais, até ocultar toda semelhança com a
realidade.
—Não é justo! Não temos direito a imputar a uma pessoa nossos sonhos e esperar
que atue em conseqüência! Isso não é amor! É um capricho, um capricho infantil... e
perigoso! Acaso você gostaria de viver com uma pessoa que nem a olhasse nem a
escutasse, que só a quisesse como cabide para sua fantasia? Ser protagonista de seus
sonhos e que a fizesse responsável por seus sentimentos? Não tem direito a fazer isso a
ninguém.
Caroline se deteve e olhou fixamente a sua filha. As lágrimas escorregavam por suas
faces.
—Suas palavras são terríveis, Charlotte - sussurrou roucamente-. Verdadeiramente
terríveis.
—Não, não o são. -Caroline sacudiu a cabeça-. É a verdade, a pura e dura verdade.
Quando refletir nisso acabará se alegrando de que seja assim! –Tomara Deus permitisse
que fosse assim!
—Me alegrar? Diz-me que estive fazendo o ridículo com um homem a quem não

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importo um nada, e que inclusive meus sentimentos não eram mais que uma ilusão, uma
ilusão egoísta sem nada que ver com o amor. E agora tenho que me alegrar!
Charlotte a rodeou com os braços para consolá-la.
Além disso, olhar para seu rosto justo naquele momento teria sido uma imperdoável
intromissão em sua intimidade.
—Talvez "alegrar-se" tenha sido um modo estúpido de dizer. Mas quando se der
conta de que é certo quererá esquecê-lo quanto antes.
Acredite-me, toda pessoa capaz de sentir paixão passou por isso cedo ou tarde.
Todos nos apaixonamos alguma vez de uma miragem. A questão é saber despertar e
seguir amando.
Durante longos instantes ambas guardaram silêncio. Permaneceram na calçada,
abraçadas. Depois, lentamente, Caroline se foi relaxando, e toda sua dor e contrariedade
se diluíram simplesmente em pranto.
—Sinto-me tão envergonhada! -disse com um fio de voz-. Tão terrivelmente
envergonhada!
Charlotte a estreitou com mais força. Não havia mais que dizer. O tempo conseguiria
o que as palavras não podiam conseguir.
Na distância se ouviu um som de cascos. Outra visita cedo.

Caroline se endireitou e aspirou com força. Por uns momentos sua mão continuou
agarrando a do Charlotte. Finalmente a retirou e extraiu um lenço de sua bolsa.
—Acredito que não vou fazer mais visita por hoje - disse-. Quererá vir para casa para
tomar o chá?
—Obrigada - respondeu Charlotte, e puseram-se a andar lentamente-. Sabe, Mina se
equivocava de cabo a rabo com respeito à Theodora. Sua fortuna não procede de nenhum
bordel nem da chantagem. Tem um negócio de venda de mobiliário de banho!
Caroline ficou assombrada. Suas sobrancelhas se arquearam.
—Quer dizer...
—Sim, de privadas!
—OH, Charlotte!

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Capítulo 10

Dois dias mais tarde, Pitt continuava sabendo tão pouco como antes sobre o
assassino de Mina Spencer-Brown. Os dados eram abundantes, mas faltava uma
conclusão que pudesse sustentar-se com provas; pior ainda, faltava uma conclusão que a
seus olhos resultasse verossímil.
Achava-se de pé, imóvel, na ensolarada calçada do Rutland Place. Fazia calor,
graças aos altos edifícios que o resguardavam do vento do este. Aquela pausa lhe servia
para pôr ordem em suas idéias, antes de submeter ao Alston a um novo interrogatório.
Tinha falado com o Ambrosine Charrington, mas ao sair da entrevista tinha mais
duvida que antes.
Mantinha-se em pé a possibilidade de que Mina tivesse surpreendido Ambrosine em
um de seus roubos, em uma atitude que fizesse impossível negá-lo.
Nesse caso, Mina podia tê-la ameaçado divulgar o segredo. Mas acaso teria
importado à Ambrosine? A julgar pelo que Charlotte lhe tinha contado, não, nem muito
menos.
Talvez, inclusive se deleitara perversamente em sua desgraça. Segundo Ottilie, o
motivo daqueles roubos era o desejo do Ambrosine de escandalizar e angustiar a seu
marido, escapando do molde que este lhe tinha imposto.
Não havia necessidade de que fosse consciente disso, naturalmente; ao menos não
de todo.
Mas para Pitt era impossível acreditar que Ambrosine tivesse chegado ao
assassinato para proteger um segredo que quase desejava fazer público.
Chegava seu ódio contra Lovell até o extremo de permitir que Mina lhe
chantageasse? Em teoria era possível. Havia um toque de ironia nisso, Ambrosine podia
achar isso atraente.
Mas então Pitt teria notado algo ao falar com o Lovell, algum indício de tensão e
raiva, um matiz de amarga satisfação em sua esposa. Não tinha sido assim.
Ambrosine se tinha mostrado tão prisioneira de suas maneiras como sempre, e Lovell
encastelado em sua imperturbável e inexpugnável segurança. Ao mencionar Ottilie, a
compostura do Lovell tinha fraquejado visivelmente. Pálido e suarento esforçou-se em
ocultar o assunto.
Em troca, diante do Ambrosine, Pitt se havia sentido totalmente a gosto.

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Possivelmente o culpado, no fim de contas, fora Alston Spencer-Brown. A duradoura


relação de Mina com o Tormod Lagarde tinha acabado por exasperá-lo.
Ao saber que sua esposa continuava apaixonada, conseguiu beladona de algum
médico da cidade e, depois de vertê-la no cordial, tinha deixado que fizesse seu efeito.
As indagações do Pitt o tinham levado a conclusão de que a teimosia de Mina pelo
Tormod tinha sido discreta, mas muito real.
Mais de um marido tinha matado a sua esposa por menos que isso. A anódina
fachada do Alston podia ocultar um temperamento violentamente possessivo, um sentido
da dignidade que lhe fizesse entender o assassinato como um ato de justiça.
Os dados objetivos devolveram ao Pitt à realidade. O cordial tinha sido preparado em
casa, com uma mescla de groselhas e bagos de saúco. Os habitantes do Rutland Place
não preparavam eles mesmos seus licores.
Naturalmente, era impossível saber quem o tinha encarregado; além disso, se tinha
servido para dissimular o veneno, era improvável que continuasse em mãos da pessoa em
questão.
Qualquer um podia ter destilado a essência de beladona, ou inclusive tê-la tirado da
planta mesma, muito menos comum que a dulcamara -planta aparentada de vivas cores-
mas imensamente mais letal.
Não era preciso nem sequer o fruto, que amadurecia no outono; bastava as folhas.
Podia achar-se entre as sebes e bosques de qualquer zona silvestre do sudeste.
Certamente, ainda era cedo para uma planta bianual, mas possivelmente em algum lugar
resguardado... Inclusive podia ter sido cultivada em jardim ou estufa. Os primeiros brotos
teriam sido suficientes.
Os dados não levavam a nenhuma parte. Qualquer pessoa podia lhe ter dado a
garrafa, e em qualquer momento. Os criados de Mina não tinham visto essa garrafa, nem
nenhuma que lhe parecesse; mas as garrafas de cordial nem sempre se deixam à vista
dos criados. Não é bebida de sobremesa. Qualquer um podia ter pegado a planta para
espremer as folhas. Não requeria especial habilidade nem conhecimentos.
Era sabedoria popular que aquela erva matava; qualquer menino recebia a
advertência. Até seu nome o deixava bem claro1.
1 - Em inglês, o nome da planta (deadly nightshade) tem incorporada a palavra
deadly, quer dizer "mortal". (N. do T.)

Concentrou-se de novo nos motivos, embora não pudesse condenar-se a um

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suspeito só porque os tivesse. Uma pessoa matará por quatro pennies, ou porque se
sentiu insultada, mas outra sacrificará reputação, fortuna e amor antes de chegar ao
assassinato.
Continuava de pé sob o sol quando de repente uma carruagem de cavalos dobrou a
esquina e avançou pela praça, freando ante a casa dos Lagarde.
Pitt viu o doutor Mulgrew sair bruscamente com sua maleta, e logo subir pela
escadaria. A porta se abriu antes que chegasse a ela, e Mulgrew entrou na casa.
Pitt vacilou. Seu instinto natural lhe pedia para ficar ali, à espera de novos
acontecimentos. Entretanto, dado que naquela casa se achava um homem gravemente
ferido, uma visita urgente do médico era normal.
Que relação podia ter com a morte de Mina? Para ser honesto consigo mesmo, Pitt
teria tido que admitir que utilizava a chegada do doutor como desculpa para adiar a
seguinte ronda de perguntas.
Quando chegou a casa dos Spencer-Brown soube que Alston estava fora.
De certo modo era um alívio, embora no fundo não passasse de uma simples trégua
antes do inevitável. Contentou-se seguindo interrogando aos criados: uma interminável
enxurrada de lembranças, impressões e opiniões.
Continuava ainda na cozinha, e acabava de aceitar o convite feito pela cozinheira de
almoçar com a criadagem, quando a porta se abriu de repente e entrou correndo uma
criada. O aroma do guisado e o pudding foram dissipados por uma rajada de vento
carregada de aroma de verduras.
—Por Deus, Elsie, fecha essa porta! -replicou-lhe a cozinheira-. Não lhe ensinaram
nada, moça?
Elsie fechou a porta de um chute, obedecendo por puro costume.
—O senhor Lagarde morreu, senhora Abbotts! -disse, arregalando os olhos. Esta
mesma manhã! Isso me disse Mai, a criada de frente.
Viu ao médico chegar e partir. Sorte para ele, digo eu! Pobre cavalheiro, tão bonito
que era.
Como se estivesse destinado a morrer. Algumas pessoas o estão. Fecho as
persianas?
—Não, não o faça! -respondeu a cozinheira com aspereza-. Não morreu nesta casa.
O falecimento do senhor Lagarde não é nosso assunto. Já temos bastante com nossas
próprias penas. Continue com seu trabalho. Se chegar tarde ao almoço passará fome,
menina!

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Elsie saiu correndo e a cozinheira se deixou cair em seu assento.


—Morto... -Olhou ao Pitt de esguelha. - Suponho que não são coisas que devam
dizer-se, mas possivelmente tenha sido o melhor, pobrezinho. Perdoar-me-á, senhor Pitt,
mas foi à misericórdia divina, se realmente estava tão mal como diziam. -enxugou a testa
com o avental.
Pitt a olhou. Era uma mulher roliça, com uma cabeleira cinzenta e rosto simpático,
imersa no alívio e nos remorsos.
—Mesmo assim é uma surpresa desagradável - disse Pitt com calma-. Com todo o
ocorrido ultimamente... É normal que se desgoste. Tem mau aspecto.
Quer um cálice de brandy? Tem alguma garrafa na cozinha?
A cozinheira lhe olhou entrecerrando os olhos, com suspicácia.
—Eu estou acostumado a estas coisas - disse Pitt, lhe lendo os pensamentos-, mas
você não. Deixe que lhe sirva uma taça.
A mulher se encrespou um pouco, como uma galinha cavando as penas.
—Bom... Se acredita que... Nessa estante daí de cima, atrás das ervilhas secas.
Não se arrisque que o veja o senhor Jenkins, ou colocará a garrafa na dispensa
antes que tenha podido pigarrear.
Dissimulando um sorriso, Pitt se levantou, serviu uma ração generosa em um copo e
o estendeu.
—E você?
—Não, obrigado, estou de serviço - disse Pitt, devolvendo a garrafa a seu lugar e
colocando depois as ervilhas-. Isso lhe acalmará a impressão. Em meu ofício, infelizmente,
deve se estar preparado para enfrentar a morte em mais de uma ocasião.
A cozinheira acabou o brandy de um só gole. Pitt pegou o copo e o limpou na pia.
—É muito amável, senhor Pitt -disse a senhora Abbotts-. Pena que não possamos
ajudá-lo; mas assim é, não há volta de folha. É a primeira vez que vemos uma garrafa de
cordial como essa. E tampouco sabemos de ninguém que tivesse motivos para matar a
senhora. Continuo pensando que foi algum louco!
Pitt vacilava entre o dever de seguir com as perguntas -que até agora não tinham
trazido nada de positivo- e uma intensa vontade de esquecer o assunto e abandonar-se
aos prazeres do almoço da senhora Abbotts. Decidiu-se pelo almoço.
Depois de comer, pensou em continuar o interrogatório, mas a impressão causada
pela morte do Tormod tomou conta de tudo. Muitas casas tinham as persianas fechadas, e
o espesso silêncio fazia parecer indecente até as mais habituais fórmulas de cortesia.

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Passadas as duas, Pitt renunciou e voltou para a delegacia de polícia.


Tirou dois informes com todas as provas reunidas até a data e ficou a relê-los desde
o começo, com a vaga esperança de que aparecessem novas perspectivas, algum modo
de relacionar os fatos que lhe tivesse escapado anteriormente.
Às cinco menos quarto continuava sem descobrir nada de novo.
Nesse momento Harris anunciou a chegada de Amaryllis Denbigh.
Pitt deu um pulo de assombro. Conhecendo, pela boca de Charlotte, a angustiada
reação de Amaryllis depois do acidente, tinha previsto que a morte do Tormod a prostraria
no mais negro desespero, até o ponto de necessitar assistência médica.
Tinha plena confiança nos julgamentos de Charlotte, apesar de nem sempre aprovar
seu comportamento. Embora para falar a verdade, agora que o via com perspectiva, o
incidente do teatro de variedades indignava-o menos do que tinha dado a entender.
Mas que demônios tinham levado ao Amaryllis à delegacia de polícia?
—Faço-a entrar, senhor? -perguntou Harris com cenho-. Parece bastante mal. Será
melhor que a trate com cuidado.
—Sim, faça-a entrar. E fique por aqui, se por acaso desmaie ou fique histérica -disse
Pitt. A idéia lhe era muito desagradável, mas não impossível.
Talvez sua presença fosse o catalisador tão esperado, talvez lhe proporcionasse a
prova que tão desesperadamente necessitava.
—Sim, senhor. -Harris se retirou com formalidade, dando a entender que não
aprovava sua decisão. Pouco depois fez entrar Amaryllis.
Estava pálida, com olhos brilhantes. Suas mãos remexiam nervosamente nas dobras
do vestido. No momento de entrar levava um véu negro sobre o rosto, mas o descobriu.
—Inspetor Pitt! -Tremia-lhe todo o corpo.
—Sim, senhora Denbigh? -Pitt não lhe tinha simpatia, mas não pôde evitar
compadecer-se dela. - Sente-se, rogo. Quer beber alguma coisa, uma xícara de chá?
—Não, obrigada. -Amaryllis se sentou dando as costas ao Harris-. Desejaria falar com
você em privado. O que tenho que lhe dizer é muito doloroso.
Pitt vacilou. Não queria ficar a sós com aquela mulher. Evidentemente estava à beira
da histeria, e Pitt assustava-se em ter que enfrentar uma corrente de lágrimas sem parar.
Pensou em chamar o médico de guarda e seu olhar se desviou para o Harris.
—Por favor! -chiou Amaryllis com crescente desespero-. É meu dever, inspetor.
Trata-se do assassinato da senhora Spencer-Brown. E preferiria que não me
mortificasse ainda mais me obrigando a falar diante de um sargento.

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—Naturalmente -se apressou a dizer Pitt. Já não podia retroceder-. O sargento Harris
esperará lá fora.
Harris se levantou com cara de poucos amigos, lançando em Pitt um olhar
carrancudo; saiu, fechando a porta atrás de si.
—E então, senhora Denbigh? -perguntou Pitt. Era um momento estranho. Sabia tudo
sobre aquela gente, tinha-os investigado até o ponto de sonhar com eles, e, entretanto era
ela quem espontaneamente ia a ele com a intenção possivelmente de lhe dar a chave para
resolver o caso.
Amaryllis falou com voz crispada, quase inaudível, como se as palavras lhe fizessem
mal.
—Sei quem matou a senhora Spencer-Brown, senhor Pitt. Não disse antes para não
trair a um amigo. Estava morta e já não podíamos fazer nada por ela. Agora é diferente.
Também Tormod morreu.
—Seu rosto, pálido e inexpressivo, parecia o de uma boneca sem pintar-. Não há
motivo para continuar mentindo. Tormod era muito nobre, protegeu-a durante toda sua
vida. Mas eu não o farei! Ainda pode fazer-se justiça.
—Será melhor que se explique, senhora Denbigh. -Pitt tentava lhe dar ânimo, mas
algo indescritível flutuava na sala; sentia-o com tanta certeza como se sente a umidade no
ar-. Quais são essas mentiras? A quem protegia o senhor Lagarde?
Os olhos de Amaryllis cintilaram, abrindo-se ainda mais.
—A sua irmã, claro está! -Tremeu- a voz-. À Eloise.
Pitt ficou atônito, mas fez uma pausa antes de falar, dissimulando sua surpresa e
olhando para Amaryllis com tranqüilidade.
—Eloise matou a senhora Spencer-Brown?
—Sim.
-Como sabe, senhora Denbigh?
Amaryllis respirava com inquietação e Pitt via como se erguia e descia seu busto.
—Suspeitei-o desde o começo, porque sabia como se sentia. Adorava a seu irmão,
queria ser sua proprietária absoluta; construiu toda sua vida ao redor dele.
Seus pais morreram quando ambos eram muito jovens e Tormod sempre se ocupou
dela.
A princípio tudo foi muito natural, claro. Mas com o passar do tempo, e enquanto se
foram fazendo maiores, ela não renunciou à dependência infantil.
Continuou aferrando-se a ele, acompanhando-o a todas as partes, lhe exigindo toda

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sua atenção. E, quando Tormod se interessava por outras coisas ela ficava ciumenta,
fingia estar doente... Algo, para fazê-lo voltar junto a seu lado.
Amaryllis aspirou profundamente. Tinha o olhar fixo no Pitt.
—Quando Tormod mostrava interesse por alguma mulher, Eloise saía do sério-
continuou-. Não descansava até ter afastado a essa mulher, mediante artimanhas, ou
simulando estar doente, ou inclusive acossando ao Tormod até que o pobre cedia.
Mas era tão bondoso que continuava protegendo-a, a pesar do preço que tinha que
pagar.
—"Sem dúvida todos lhe terão dito que Mina sentia uma intensa atração por Tormod.
De fato estava apaixonada por ele. Seria estúpido continuar disfarçando-o com
eufemismos. Já não podemos feri-la.
—"Como era de esperar, Eloise enlouqueceu de ciúmes. A idéia de que Tormod
pudesse dedicar suas atenções a Mina era mais do que podia suportar. E decidiu jogar
veneno no cordial que você esteve procurando.
Ofereceram-me isso em sua casa. Trazem-no do campo quando voltam de suas
estadias no Hertfordshire. Em mais de uma ocasião tomei um cálice.
Amaryllis estava rigidamente sentada na cadeira, com o olhar ainda cravado em Pitt.
—Como sabe, Mina visitou Eloise naquele mesmo dia. Esta lhe deu o cordial como
presente ao partir. Assim que chegou a casa Mina o bebeu... e morreu. Tal como tinha
planejado Eloise.
—"Tormod, naturalmente, protegeu-a. Tinha cuidado dela desde menina. Eu diria que
se sentia responsável, sabe Deus por que. Com o tempo se teria visto obrigado a interná-la
em um sanatório ou em algum lugar similar. Penso que no fundo era consciente disso, mas
incapaz de aceitá-lo.
—"Pergunte a qualquer um que os tenha conhecido. Dir-lhe-ão que Eloise me
odiava...
Porque Tormod se interessava por mim.
Pitt permaneceu imóvel. Tudo encaixava. Recordou o rosto de Eloise, seus olhos
negros cheios de estranhas visões, absortos em sua dor. Era o tipo de mulher que pede a
gritos para ser protegida.
Ela mesma parecia frágil como um sonho, como se fosse desvanecer-se ao menor
grito ou movimento brusco. Pitt resistia a pensar que se afundara na loucura e chegara ao
assassinato.
Entretanto, não lhe ocorriam argumentos contra, nenhum ponto fraco no relato de

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Amaryllis.
—Obrigado, senhora Denbigh -disse friamente-. Hoje é tarde, mas amanhã mesmo
irei ao Rutland Place e investigarei a fundo o que me disse. -Não pôde conter-se e
acrescentou-: Pena que não fora tão sincera antes.
Amaryllis se ruborizou levemente.
—Não podia. E tampouco teria servido de algo. Tormod teria negado tudo.
Sentia-se responsável por ela. Com os anos, sua irmã o tinha levado a esse extremo.
Eloise é uma parasita! Propôs-se não deixar que seu irmão levasse uma vida
independente, e o conseguiu!
Dedicou-se durante toda sua vida, dia a dia, hora após hora, a assegurar-se de que
Tormod se sentisse culpado cada vez que fazia algo sem ela, ou ia só a algum lugar... Até
de rir de uma brincadeira que não lhe fazia graça! -De novo sua voz se tornava nervosa e
estridente-. Está louca! Não imagina você tudo o que lhe fez. Destruiu-o! Merece que a
encerrem... para toda a vida!
—Senhora Denbigh. -Pitt desejou fazê-la calar e não ver aquele rosto suarento de
traços infantis, que lançava faíscas de ódio por seus olhos vazios-. Senhora Denbigh, não
volte a alterar-se, por favor! Amanhã falarei com a senhorita Lagarde.
Levarei o sargento Harris, e procuraremos essas provas que segundo você se
encontram lá. Se acharmos algo, agiremos em conseqüência. Agora o sargento a
acompanhará a sua carruagem.
Sugiro-lhe que tome algum sedativo, e que se deite cedo.
Foi um dia terrível para você. Deve estar exausta.
Amaryllis ficou olhando-o, como se avaliasse as possibilidades de que o inspetor
cumprisse o que tinha prometido.
—Irei amanhã mesmo -repetiu Pitt.
Amaryllis se virou sem responder, e saiu fechando a porta atrás de si.
Pitt ficou a sós, incompreensivelmente abatido.

Não houve maneira de evitar aquele dever tão penoso.


De todo modo, lá onde se produzia um assassinato, era inevitável a tragédia.
Mas antes enviou ao Harris para que inspecionasse a casa a fundo, concentrando-se
nos dormitórios e quartos de vestir em busca de algum cordial semelhante ao que Mina
tinha tomado, ou alguma garrafa vazia igual à encontrada em sua sala.
Tomou a precaução de mostrar antes ao Harris um desenho da planta de beladona,

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para que pudesse procurá-la no jardim de inverno e nas edificações anexas.


Nem sua presença nem sua ausência provariam grande coisa, salvo pelo fato de que
se tratava de uma planta silvestre, pouco habitual no coração de Londres.
Os Lagarde, entretanto, tinham uma casa de campo; talvez no Hertfordshire a
beladona se encontrasse em todas as sebes e bosques.
Eloise o recebeu totalmente de negro. As persianas estavam fechadas pela metade,
segundo as normas do luto. Os criados perambulavam pálidos e sombrios.
Eloise descansava em um divã junto à lareira, mas não parecia que pudesse voltar a
sentir calor em sua vida.
—Sinto muito - disse Pitt, desculpando-se não só por sua intromissão, mas também
por todo o resto: a solidão, a morte, sua incapacidade de fazer outra coisa que aumentar a
dor da jovem.
Eloise não respondeu. Pouco lhe importava o que pudesse fazer Pitt, e
provavelmente tampouco o resto das pessoas. Sua desolação a situava em um lugar
inacessível, para bem ou para mal.
Pitt tomou assento. De pé se sentia ridículo, como se suas mãos ou seus pés fossem
atirar algo ao chão.
Não tinha sentido tentar explicar o assunto pouco a pouco, com tato.
Isso não faria mais que piorar as coisas. Seria um gesto obsceno, como negar-se a
reconhecer a presença da morte.
—A senhora Spencer-Brown veio vê-la no dia em que morreu. -Era uma afirmação.
Ninguém até então o tinha negado.
—Sim. - Eloise não mostrou nenhum interesse.
—Deu-lhe você uma garrafa de cordial?
Eloise contemplava as chamas.
—Cordial? Não, acredito que não. Não o tinha perguntado já antes?
—Sim.
—É importante?
—Com efeito, o é, senhorita Lagarde. O veneno estava misturado no cordial.
Um sorriso cruzou fugazmente o rosto da jovem, tão leve como uma onda de água
provocada pelo vento.
—E acredita que fui eu quem o mesclou? Não, não o fiz.
—Mas lhe deu o cordial?
—Não me lembro. É possível. Pode ser que estivesse pálida, que dissesse que

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estava cansada ou algo assim. Estamos acostumados a ter cordial, com efeito. Dá-nos
isso um vizinho do Hertfordshire.
—Conserva ainda algo?
—É de supor. Eu não gosto, mas Tormod o bebia. Guardamo-lo na dispensa, bem
guardado. É uma bebida forte.
—Senhorita Lagarde... -Eloise não parecia dar-se conta do alcance do assunto.
Falava disso com desapego, como se se tratasse de uma história alheia-. Senhorita
Lagarde, trata-se de algo muito sério.
Finalmente Pitt conseguiu que lhe olhasse, mas sofreu uma comoção ao ver o
sofrimento e o horror que traduziam os olhos de Eloise. Não por causa de suas palavras,
mas sim de algo diferente que só ela via. Aquele rosto não expressava nem raiva nem
ódio; só horror, um horror infinito, incomensurável.
Acaso era um sinal de loucura? Ou possivelmente a percepção da loucura por parte
de alguém ainda o suficientemente cordato para dar-se conta do que se avizinhava, a
inexorável queda aos negros abismos da demência?
Com razão Tormod tinha tratado de protegê-la! Pitt mesmo sentia desejos de fazê-lo,
de evitar que caísse e fazê-la voltar para o mundo. Não lhe ocorria nada que dizer.
Qualquer frase ficaria pequena ante a enormidade do que tinha vislumbrado.
Não pôde suportar e ficou em pé. Não era necessário continuar remexendo na ferida.
O que importava eram as provas. Sem elas nada podiam fazer, por muito que Pitt
acreditasse saber... Ou intuir.
—Sinto havê-la incomodado -disse torpemente-. Irei ajudar ao sargento Harris. Se me
ocorre algo mais, perguntarei aos criados. Tentarei não importuná-la outra vez.
—Obrigada.
Eloise continuou imóvel no divã. Nem sequer olhou ao Pitt quando este se
encaminhou para a porta e a abriu. Não olhava a lareira nem as flores brancas da mesa,
mas algo que ninguém salvo ela podia ver.
Não demoraram para achar pelo menos uma resposta. O sargento Harris tinha levado
a garrafa achada no dormitório de Mina, para mostrá-la aos criados. O mordomo a
reconheceu.
—Deu você uma destas garrafas à senhorita Lagarde antes da visita da senhora
Spencer-Brown o dia de sua morte? -perguntou Pitt.
O mordomo não era tolo e se deu conta do alcance da pergunta. Empalideceu e um
pequeno músculo palpitou em sua mandíbula.

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—Não, senhor. À senhorita Eloise nunca gostou.


—Senhor Bevan... -começou Pitt.
—Não, senhor. Compreendo o que está dizendo. Cada vez que voltamos do campo
trazemos meia dúzia de garrafas, mas a senhorita Eloise jamais o prova.
Desagrada-lhe. Tampouco tem as chaves da copa. Há dois jogos; um conservo eu, e
o senhor Tormod tinha o outro, mas o deixou no Abbotts Langley o ano passado, pelo
Natal, e continuam ali.
Pitt respirou fundo. De nada serviria gritar com aquele homem.
—Senhor Bevan... -disse de novo, pacientemente.
—Sei o que vai dizer, senhor - interrompeu-o Bevan. – Costumava dar as garrafas
uma a uma ao senhor Tormod, quando me pedia isso. Entreguei- lhe uma a noite antes da
visita da senhora Spencer-Brown.
Costumava tomar um cálice de vez em quando, e eu não vi nada estranho.
Pitt não podia culpá-lo de nada. Quando ele e Harris tinham revistado a casa
anteriormente tinham feito isso com discrição, mas, temendo que um criado -sentindo- se
culpado ou protetor- se desfizesse da garrafa, não a haviam descrito nem haviam trazido a
que havia em casa de Mina.
—O que aconteceu a garrafa? Sabe? -perguntou-. Posso falar com a criada?
—Não será necessário, senhor. Fiz isso assim que chegou o sargento Harris. Não
sabe, senhor. Não tornou a vê-la.
—Então poderia ser a que deram à senhora Spencer-Brown ?
—Sim, senhor. Suponho que é assim.
—Não falta nenhuma garrafa mais?
—Não, senhor. É uma bebida forte, assim a controlo.
—Por que não o mencionaram quando o perguntamos a outra vez, senhor Bevan?
—Não é um vinho de mesa, senhor; não acredito que os criados o vissem.
São coisas que costumam guardar-se no estojo de primeiro socorros, ou na mesinha
de noite.
Como era a última garrafa, não teriam podido achar outra por muito que revistassem
a casa.
Ao Pitt irritava ter que escutar de boca do mordomo uma explicação tão meticulosa
de seu trabalho. Ou possivelmente pensasse ainda no Eloise, sozinha, inacessível.
Aquele homem não tinha nenhuma culpa. Não podia conhecer a composição do licor
com que tinha sido envenenada Mina.

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—Assim, o senhor Tormod tinha a última garrafa?


—Sim, senhor.
—Em seu dormitório?
—Sim, senhor. -O rosto do mordomo expressava solenidade.
—Queixou-se de que tivesse desaparecido?
—Não, senhor. Teria chegado a meus ouvidos se o tivesse feito. Somos muito
restritos com os licores fortes.
—Então, quando tinha podido Eloise jogar o veneno e dá-lo a Mina?
Bevan oscilou sobre seus pés.
—Se me permitir, senhor, o que o faz pensar que a senhorita Eloise tivesse o cordial
ou o desse à senhora Spencer-Brown?
—Informações-disse Pitt secamente.
—Não de alguém da casa, senhor.
—Da senhora Denbigh. -De nada servia mostrar-se evasivo.
O rosto do Bevan mudou.
—A senhora Denbigh... Uma mulher muito rica, senhor, e perdão por fazer um
comentário deslocado. Realmente rica, e de grande beleza também. Apreciava muitíssimo
ao senhor Tormod, e até acredito que poderiam ter chegado a casar-se.
Desde que o senhor Tormod não tivesse outros compromissos, naturalmente.
Pitt entendeu a insinuação.
—Senhor Bevan, está sugerindo que foi o senhor Tormod, e não a senhorita Eloise,
quem assassinou a senhora Spencer-Brown?
Bevan sustentou seu olhar sem fraquejar.
—Isso parece, senhor. Por que ia matá-la a senhorita Eloise?
—Por ciúmes, por medo a perder o afeto de seu irmão -respondeu Pitt.
—A relação do senhor Tormod com a senhora Spencer-Brown tinha acabado fazia
tempo, senhor.
Se tivesse decidido casar-se, em nenhum caso teria sido com a senhora Spencer-
Brown; sim, em troca, com a senhora Denbigh, uma mulher rica e bela, viúva e, com
perdão, mais que disposta.
Entretanto, a senhora Denbigh está viva e goza de perfeita saúde.
Pitt se dirigiu ao Harris.
—Revistou o jardim de inverno, Harris?
—Sim, senhor. Nem rastro de beladona. Mas isso não significa que nunca a tenha

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havido. Não posso imaginar a um assassino tão idiota para não desfazer da arma do delito.
—Ah. -Pitt apertou a mandíbula-. Provavelmente tem razão.
—Posso lhe servir em algo mais, senhor? -perguntou Bevan.
—Não, obrigado. De momento não. -Pitt era resistente a dizê-lo, mas aquele homem
o merecia-: Obrigado por sua ajuda.
Bevan fez uma ligeira reverência.
—Não há de que, senhor.
—Maldição! -exclamou Pitt assim que julgou que o mordomo não podia ouvi-lo-. Por
todos os diabos, maldição!
—Apostaria que o tipo tem razão -disse Harris-. Parece verossímil.
Uma viúva rica e formosa, como diz ele. A velha amante se mete no meio e ameaça
arejar tudo. Muito grave. O único obstáculo no caminho para conseguir uma boa soma de
dinheiro.
Não seria a primeira vez. Quem o ia provar?
—Sei! -disse Pitt, furioso-. Maldição já sei!
Cruzaram o saguão e se acharam com o doutor Mulgrew, que descia pelas escadas.
Tinha os olhos empanados e o cabelo encrespado no cocuruto. Sem dúvida se tinha
ocupado de Eloise.
—Bom dia -disse Pitt laconicamente.
—Grande dia -respondeu Mulgrew-. perdemos ao Tormod. As seqüelas do acidente
acabaram com ele; finalmente o coração lhe falhou. -Sorriu, entristecido-.
Necessito de uma taça. Estou em dívida com você, Pitt. É um bom homem.
Acompanha-me a tomar uma taça? Chamemos o Bevan. Necessito algo que me tire
de cima à dor de cabeça. Na minha idade não deveria tomar champanha e depois me
levantar cedo.
—Champanha? -Pitt ficou olhando ao médico.
—Sim, já sabe, isso com borbulhas! "Que vivam as borbulhas!" – cantarolou
suavemente, com uma interessante voz de barítono-. "Dêem-Me uma taça e até o fundo
bebo isso!"
Pitt não pôde evitar sorrir amargamente.
—Obrigado -disse Mulgrew, agarrando Pitt pelo braço-. É um homem generoso.

Quando Pitt chegou em casa à tarde, sua mulher o estava esperando.


Assim que transpassou a soleira, Charlotte leu em seu rosto que algo tinha

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acontecido, algo que o entristecia e enchia de confusão.


Tinha sido um dia quente, e o salão estava orientado para o sul. Charlotte tinha
aberto as janelas que davam ao jardim, enchendo o ambiente de aroma a erva fresca.
Uns poucos narcisos brancos, dispostos em um esbelto vaso, gotejavam uma
fragrância fresca e limpa como a chuva da primavera.
—O que acontece? -Em outro momento possivelmente Charlotte teria esperado um
pouco antes de perguntar, mas aquela tarde não-. O que aconteceu, Thomas?
—Tormod morreu. -tirou o casaco e o deixou cair sobre o sofá-. Esta manhã.
Charlotte não se preocupou de pô-lo em seu lugar.
—OH. -Olhou-lhe o rosto, compreendendo o abatimento de seu marido. Intuiu que
havia algo mais-. E que mais?
Pitt sorriu com repentina doçura. Estendeu a mão para agarrar a do Charlotte.
Ela a estreitou com força.
—E que mais? -repetiu.
—Amaryllis Denbigh foi à delegacia de polícia. Disse-me que Eloise matou a Mina.
Diz que o suspeitava fazia tempo, mas que não o disse para proteger ao Tormod.
Agora que morreu já não lhe importa.
—Você acredita nela? -perguntou Charlotte. Ela mesma sentia impulsos de rechaçar
a idéia, mas o assassinato nem sempre tinha uma explicação fácil nem agradável. Às
vezes a escuridão se esconde sob a mais luminosa aparência.
—Fui dar uma olhada. -Pitt tomou assento e suspirou, e forçou ao Charlotte a sentar-
se a seu lado-. Encontrei provas. Não sei se bastarão para um julgamento.
Mas não importa, porque o único que sei com certeza é que foi alguém da casa; o
mordomo assegura que foi Tormod, e o manterá, mas ignoro se diz a verdade ou só é um
modo de proteger ao Eloise. Provavelmente nunca saberei.
—Por que ia Eloise matar a Mina?
—Por ciúmes. Sentia um carinho possessivo por Tormod.
—Então teria matado ao Amaryllis. Ela é a mulher com quem se teria casado Tormod
-alegou Charlotte-. Não com Mina, ela não representava nenhum perigo. Nunca teria
passado de sua amante, e até duvido que chegasse a tanto!
—Isso disse Bevan.
—O mordomo?
—Sim.
—A única possessiva é Amaryllis. -Charlotte refletiu um momento-. Odeia Eloise o

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bastante para lhe contar uma mentira semelhante. Inclusive depois da morte do Tormod
continua odiando-a.
—Bom, não se preocupe. Não penso prender Eloise. -Estreitou-a com força. - Não
tenho provas.
Charlotte se afastou, olhando-o fixamente.
—O que acha que aconteceu?
Pitt meditou sem afastar o olhar do Charlotte, como se tentasse lhe ler os
pensamentos.
—Penso que foi Tormod -respondeu finalmente-. Acredito que Mina lhe estava
causando problemas, importunando-o.
Ele queria casar-se com Amaryllis, entre outras coisas pelo dinheiro. Portanto, matou
a Mina para que não falasse.
Possivelmente estava recebendo ameaças dela.
Charlotte se reclinou no sofá, refletindo. A pobre Amaryllis se obcecou tanto com o
Tormod que seu caráter tinha perdido toda doçura e capacidade de simpatia.
Já não cabia nela nenhum outro amor, nem sequer um pouco de consideração.
Agora, Eloise e ela já não podiam consolar-se mutuamente.
—É estranho até onde pode levar uma obsessão - disse Charlotte-. Dá medo pensar
nisso. É como se devorasse qualquer outro sentimento. A escala de valores se desmorona.
-Pensou no Caroline e Paul Alaric, embora se abstivesse de mencionar isso.
Convinha esquecer-se disso, inclusive Pitt, agora que Edward dava sinais de querer
emendar-se. Na noite anterior tinha acompanhado ao Caroline ao teatro Savoy; tinham
visto o Mikado, e Edward lhe tinha dado um broche de granadas.
Tinha chegado Paul Alaric a compreender, ou ao menos vislumbrar, a atração que
exercia sobre as mulheres? Tinha um desses rostos que sugeriam grandes paixões
contidas; uma aparência a que se aferravam com facilidade certo tipo de mulheres
românticas que, com o estímulo do mistério, tratavam de escapar do domínio de seus
maridos, a quem consideravam simples e aborrecidos.
Era impossível para o Charlotte saber se Alaric tinha experimentado efetivamente
paixões de tal intensidade.
Entretanto, no momento em que ela e Caroline o tinham deixado a sós, impotente,
seu rosto tinha expresso autêntica comoção. Isso bastava ao Charlotte para conservar
uma boa opinião dele.
Tormod tinha despertado em Amaryllis sentimentos ainda mais poderosos. Algo teve

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que ver nele, uma qualidade em seu espírito ou seu corpo que a tinha cativado até o ponto
de ser incapaz de pensar em nada e ninguém mais.
Sem dúvida havia possuído um carisma atraente, um magnetismo que se impunha a
todo o resto.
E, naturalmente, Eloise o tinha querido, depois de passar suas vidas um junto ao
outro. Com razão sentia ciúmes Amaryllis, sentindo-se excluída de todo esse passado...
De repente uma idéia atroz cruzou sua mente, uma idéia inominável e que lhe dava
calafrios.
—O que ocorre? -perguntou Pitt-. Está tremendo!
Aquela idéia tinha sido tão horrível que Charlotte não estava preparada para traduzi-
la em palavras, nem sequer a seu marido. Agora que lhe tinha ocorrido, devia falar com o
Eloise para comprovar se era certa. Mas não em seguida. E possivelmente não o dissesse
ao Pitt.
—Nada, o alívio de que tudo tenha acabado - respondeu, aninhando-se mais em
seus braços. Voltou a lhe agarrar a mão. Não lhe importava mentir. Era só uma idéia.

Pela manhã, Charlotte colocou seu vestido mais escuro e pegou o ônibus.
Desceu na parada mais próxima ao Rutland Place, e caminhou o lance que lhe
faltava.
Não passou por casa de sua mãe; de fato não tinha intenção de visitá-la, a menos
que a vissem.
O lacaio atendeu a sua chamada.
—Bom dia, senhora Pitt - disse em um sussurro, afastando-se para lhe deixar
passagem.
—Bom dia - respondeu ela gravemente-. Devo dar os pêsames. Está à senhorita
Lagarde em condições de me receber?
—Vou informar-me, senhora. Por favor, entre... O senhor Tormod está na saleta, mas
faz muito frio ali.
Por uns instantes ficou perplexa ao ouvi falar do Tormod como se estivesse vivo, mas
na hora compreendeu que se referia ao cadáver, exposto para as pessoas que queriam
render uma última homenagem dando uma olhada ao morto.
Esperavam possivelmente que ela fizesse o mesmo?
—Obrigada. -depois de certa vacilação, decidiu ir ver o falecido.
A sala estava em penumbra, tão fria como havia dito o lacaio, com aquele frio

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peculiar da morte. As paredes e os pés da mesa estavam festoneadas de braçadeira de


luto, e o aparador tinha sido coberto com um tecido negro.
Tormod jazia em um ataúde negro e brilhante, no centro da sala. Os lampiões de gás
estavam apagados. Os raios do sol, filtrados pelas persianas, esfumavam uma luz
bastante intensa. Charlotte se sentiu impulsionada a aproximar-se do cadáver e olhá-lo.
Tinham-lhe fechado os olhos, e, entretanto, a expressão parecia muito pouco natural.
Não havia paz naquele rosto.
A morte se levou todo resto de espírito, mas os traços indicavam inequivocamente
que a última emoção do Tormod tinha sido o ódio, um ódio impotente e corrosivo.
Charlotte afastou o olhar, cheia de espanto. Sentia-se embargada por algo frio e
penetrante que crescia em sua mente, lançando raízes cada vez mais grosas.
A porta se abriu silenciosamente. Eloise se deteve um momento antes de entrar.
Agora estavam frente a frente, uma a cada lado do cadáver, e para Charlotte era
mais difícil do que esperava.
—Sinto muito - disse torpemente-. Sinto muitíssimo, Eloise.
Eloise não respondeu, mas seu olhar se cravou nela quase com curiosidade.
—Odiava-o também? -As palavras saíram da boca do Charlotte com mais facilidade
do previsto. A compaixão foi mais forte que a vergonha ou o medo.
Desejava tocar ao Eloise, abraçá-la, transmitir calor e um pouco de vitalidade àquele
corpo gelado.
Eloise emitiu um pequeno suspiro.
—Como conseguiu saber isso-?
Charlotte não soube responder. Tinha-o adivinhado por uma série de impressões
diversas, um olhar, uma palavra... Coisas que voltam para a mente por escuros caminhos,
inacessíveis à razão porque pertencem ao proibido, ao que se rechaça por inominável.
—Esse era o segredo que Mina conhecia, não é verdade? -perguntou Charlotte-,
Esse foi o motivo pelo qual ele a matasse. Não tinha que ver com suas velhas relações,
nem se casando com o Amaryllis.
—Teria se casado com o Amaryllis -disse Eloise suavemente-. Não me teria
importado, nem sequer pelo fato de que... tivesse deixado de me amar.
—Mas ela não teria aceitado casar-se - replicou Charlotte-. Não se Mina tivesse
contado a todo mundo que você e Tormod eram amantes, ao mesmo tempo que irmãos. -
Uma vez as palavras pronunciadas já não eram tão terríveis.
Era possível dizê-las, era possível confrontar a verdade.

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—Talvez não. -Eloise contemplava o rosto do morto. Não parecia lhe importar.
Charlotte se deu conta de que ainda não tinha chegado à medula do assunto.
Ficavam ainda outras revelações, ainda piores.
O ódio de Eloise por si mesma, seu desespero, devia-se a algo mais que a
consciência do incesto e posterior rechaço.
Era mais profundo que tudo isso.
—Que idade tinha você quando começou tudo? -perguntou Charlotte.
—Treze anos.
Charlotte sentiu as lágrimas brotar de seu interior, junto com um ódio tão intenso por
Tormod que pôde olhar o cadáver sem sentir compaixão alguma.
—Você não matou a Mina, não é verdade?
Eloise negou com a cabeça.
—Não, mas não me importa se a polícia acredita, porque de qualquer forma sou
culpada.
Charlotte abriu a boca, mas voltou a fechá-la.
—Deixei que Tormod matasse meu filho -sussurrou Eloise-. Estava grávida, de uns
quatro meses. Demorei muito em compreendê-lo; era muito ignorante.
Depois, assim que percebi isso, disse-o ao Tormod. Foi quando conheci você.
Não fomos ao campo pela morte de Mina. Levou-me para que me praticassem um
aborto.
Não soube até o momento de chegar. Tormod me disse que devia fazê-lo porque não
era casada, e que o que fazíamos era algo mau.
Disse que a criatura ainda não estava formada, que não seria mais que... mais que
um pouco de sangue.
Eloise estava tão lívida que Charlotte temeu que fosse desmaiar; mesmo assim não
se atrevia a fazer nada. Aquelas palavras surgiam de um desespero tão grande que devia
deixar que explodisse.
—Mentiu-me. Era meu filho!
Charlotte sentiu como as lágrimas afloravam a seus olhos. Inconscientemente levou
as mãos ao regaço, ao lugar onde pulsava o coração de seu próprio filho.
—Era meu filho -disse Eloise-. Não me deixaram tocá-lo. Simplesmente se
desfizeram dele!
O silêncio se apoderou da sala. Mas nada podia conter tanto sofrimento.
—Por isso o matei -admitiu Eloise finalmente-. Assim que me senti um pouco

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recuperada, levou-me a dar um passeio em carruagem. Empurrei-o do assento, e a


carruagem que nos seguia o enrolou. Mas não morreu. Ficou destroçado, mas não morreu.
Trouxemo-lo de volta aqui, para que ficasse nessa cama de cima, atormentado pela
dor, consciente de que não voltaria a caminhar.
Estava paralisado, sabia você? Não podia mover-se, nem sequer falar. Só me olhava,
com um ódio tão grande que parecia consumi-lo. Meu próprio irmão, a quem tinha querido
toda minha vida.
Eu ficava junto ao leito, sustentando seu olhar.
Não estava arrependida. Odiava a mim mesma, e odiava a ele. Cheguei a pensar em
suicidar-me. Não sei por que não o fiz.
Mas não sentia piedade por ele, era incapaz de me compadecer dele.
—"Ainda sonho com meu filho. O doutor há dito que não poderei voltar a ter crianças.
Fizeram alguma coisa má.
Finalmente Charlotte foi capaz de mover-se. Rodeou o ataúde e desceu a tampa.
Depois, com suavidade, tomou a mão de Eloise entre as suas.
—Pensa dizer à polícia? -perguntou Eloise.
—Não, não o farei - Charlotte a rodeou com seus braços e a estreitou com força, com
um nó na garganta e lágrimas aparecendo em seus olhos. Devia controlar-se. Respirou
com força-. Assassinou a Mina.
Teriam o pendurado por isso de qualquer modo. Matá-lo não esteve bem, mas já
aconteceu. Nunca voltarei a falar disso.
Pouco a pouco Eloise se relaxou, descansando a cabeça sobre o ombro de Charlotte.
Finalmente, e pela primeira vez desde que tinha visto o diminuto corpinho inerte de seu
filho, pôs-se a chorar.
Durante longos, incontáveis minutos permaneceram abraçadas junto ao ataúde
fechado, deixando que fluíssem as lágrimas, compartilhando a dor.
De repente Inácio Charrington apareceu na porta, com um olhar de simpatia e afeto.
E foi então, só então, que Charlotte se afastou de Eloise.

Fim

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