Você está na página 1de 4

EIXO II, Item 2 – Práticas clínicas no território

As práticas clínicas, em sua diversidade e especificidades, devem sempre ser pensadas no


contexto de um território, concebido como um espaço político de diferenças, desigualdades,
conflitos e crenças singulares. O território não pode ser reduzido à casa onde se vive ou aos
lugares frequentados pelo cidadão. O território não apenas circunda ou circunscreve o espaço
privado, ele é o espaço vivo e mutante que atravessa, dinamiza e complexifica as relações
existentes entre público e privado. No entanto, muitas vezes, os serviços de atenção psicossocial
estão superlotados, a equipe está cansada e acaba se limitando às práticas regulares dentro do
serviço. Outras vezes, a saída do serviço se dá apenas em casos de forte necessidade, como em
visitas domiciliares e acompanhamento em caso de emergências. Nem sempre há uma relação
orgânica e integrada com a estratégia de saúde da família e demais recursos do território. Como
clinicar tecendo redes que propiciem a busca ativa de novas oportunidades de vida, do convívio
e trocas com a cultura, seus impasses e saída possíveis? Como pensar neste contexto as relações
entre a ciência e a cultura e seus processos de controle social, e suas relações com a política
pública? Como construir estratégias que possibilitem a ampliação do cuidado no território, com
os usuários e familiares? Que espaços temos criado para aumentar nosso conhecimento, práticas
clínicas e sócio-culturais no território de referência? Há estímulo para se conhecer os recursos
sócio-educacionais e a vida comunitária e cultural da população no território, e para a
participação dos usuários e familiares neles? Há incentivo para ações e eventos comuns com as
organizações comunitárias e movimentos sociais da área? As equipes conhecem e valorizam os
recursos voluntários existentes no território ? A equipe realiza alguma forma de
acompanhamento terapêutico ou de suporte na vida diária? Promove grupos de ajuda e suporte
mútuos na comunidade? Existem ações matriciais e/ou integradas com as equipes de saúde da
família?

PRÁTICAS CLÍNICAS NO TERRITÓRIO

Conforme as diretrizes que orientam o sistema único de saúde (SUS) e a política


nacional de saúde mental, a noção de território compreende não apenas uma área
geográfica delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida
comunitária. Território é lugar de vida, de caráter processual, produtor de relações que
podem ser tanto identitárias como de diferença, onde têm lugar o conflito e sua
negociação.

No livro O declínio do homem público, Richard Sennett propõe a seguinte definição de


cidade: “assentamento humano onde está dada a possibilidade de encontro com o
estranho”. Podemos aplicá-la à idéia de território que tem a heterogeneidade como sua
marca: um território vivo é aquele que permite o encontro com o outro, com o que
difere de mim, cumprindo, assim, uma função de alteridade que faz com que eu me
torne diferente do que era.

Com efeito, a subjetividade se faz na relação ao outro, articulando singular e coletivo,


indivíduo e sociedade, dentro e fora. É nesse entremeio que a clínica opera, como
abertura à produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo, implicando
transformações subjetivas.

É próprio à clínica, portanto, que sua prática se dê no território, que ela busque
multiplicar possibilidades de vida, provocando o alargamento dos modos de habitar o
território para que a diferença possa nele ter lugar.

1
Uma tal concepção de clínica – a que se chamou de “clínica ampliada” –, se, por um
lado, pode encontrar sustentação teórica em um autor seminal como Freud, que propõe
o psíquico como esse ponto de articulação entre o singular e o coletivo, por outro é
resultado do processo social e político implicado na consolidação do Sistema Único de
Saúde em nosso país, determinante de transformações no modo de exercício da clínica.
Ana Cristina Figueiredo (2009) aponta-nos três tempos dessa transformação:

- nos anos setenta, a passagem da clínica dos consultórios privados para os ambulatórios
públicos, desprivatizando a clínica;

- nos anos noventa, o deslocamento dos ambulatórios públicos para os centros de


atenção psicossocial (Caps), fazendo da clínica uma prática local, multiprofissional e
interdisciplinar;

- na atualidade, a abertura dos Caps ao trabalho em rede, onde a clínica, ao mesmo


tempo em que se estende ao território, também cede lugar a outras práticas, com as
quais a responsabilidade pelo cuidado do usuário deixa de ser de um serviço, para ser
compartilhada por diferentes atores do território.

A composição dessa rede é móbil, mutante. Ela acompanha os percursos próprios a cada
usuário e as amarras singulares que vão se produzindo entre ele e as pessoas, gestos,
objetos, lugares, serviços, organizações, que compõem o território onde vive. As
práticas clínicas no território adquirem, assim, a característica da itinerância, indo ao
encontro do usuário onde este estiver, acompanhando-o em seus percursos, buscando
formas e espaços de expressão e conexão com o mundo.

Rubem Lemke, em sua dissertação de mestrado, ao abordar o tema da itinerância no


contexto das políticas atuais de Saúde Mental e de Atenção Básica, destaca três
modalidades clínicas de cuidado no SUS que se fazem nas andanças pelo território: a
dos acompanhantes terapêuticos, dos redutores de dano e dos agentes comunitários.
Resumidamente, essas três modalidades podem ser assim descritas: o acompanhamento
terapêutico (AT) propõe uma clínica sem muros, que se faz no espaço aberto da cidade,
acompanhando cotidianos de vida de forma a estabelecer laços entre o sujeito
acompanhado e o território por ele habitado, utilizando o inesperado das ruas como
matéria para as suas intervenções; a redução de danos (RD) promove ações de cuidado
junto às pessoas que usam drogas e que habitualmente têm dificuldade de acesso aos
serviços de saúde, com o objetivo de minimizar as conseqüências adversas do uso ou
abuso de drogas; o agente comunitário (AC) promove a integração entre a equipe de
saúde e a população de uma área definida, mantendo contato estreito com as famílias
dessa área, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária.

Pautados pelos princípios da desinstitucionalização (reforma psiquiátrica) e da


integralidade (reforma sanitária), acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e
agentes comunitários de saúde situam-se, igualmente, como atores de experiências que
arriscam abandonar os ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida
daquelas pessoas a quem se dirigem os seus cuidados, acompanhando essas pessoas em
seus territórios existenciais. Apesar das suas especificidades e dos diferentes saberes
envolvidos em cada uma dessas práticas, acompanhantes terapêuticos, redutores de
danos e agentes comunitários têm a aprender um com o outro, podendo compartilhar
ferramentas conceituais e estratégias clínicas diversas. Mais além disso, as funções

2
encarnadas por cada um desses atores – ATs. RDs, ACS – não são sua prerrogativa
exclusiva. Acompanhamento Terapêutico, Redução de Danos e Atenção Comunitária
expressam, antes que especialismos, cargos ou profissões, um modo do cuidado, modo
de conceber a clínica que atravessa, ou pode atravessar, as práticas de qualquer um dos
trabalhadores envolvidos com o cuidado no território.

Aberta aos acontecimentos que advêm no espaço cotidiano das trocas sociais, a clínica
se apresenta como “senhora da passagem”, como a nomeia Eduardo Passos, clínica no
limiar entre “o público e o privado, entre a interioridade e a exterioridade do setting
terapêutico, entre nós e a cidade, entre a clínica e as redes sociais”. Isso, porém, exige o
diálogo permanente com outros setores, como educação, cultura, habitação... colocando
em causa a política como indissociavelmente ligada à clínica. A clínica feita no
território encontra, assim, na política, a sua zona fronteiriça, implicando a passagem das
práticas clínicas a um exercício inventivo de cidadania.

Porém, se cidadania e singularidade são valores assumidos e veiculados pela reforma


brasileira, não necessariamente estão constituídos como valores em torno dos quais se
ordenam os espaços sociais em que se processa a sua implantação, o que remete menos
a contradições internas à proposta dos serviços de atenção psicossocial do que a tensões
históricas no processo de constituição do tecido social brasileiro, conforme assinala
Carvalho (2001).Assim, as propostas de democratização do espaço de atendimento e de
promoção de sujeitos cidadãos entrelaçam-se a um quadro complexo de configuração de
valores hegemônicos junto à população, relacionados aos processos de modernização
(globalização) do país e às formas contemporâneas de existência (ibidem). As
dificuldades não se restringem ao campo da reforma psiquiátrica; elas incidem no cerne
mesmo da proposta do Sistema Único de Saúde e do ideário das políticas sociais em que
a reforma se enraíza. A defesa da saúde como direito do cidadão e dever do estado,
assegurada pela constituição de 1988, é, desde a origem, continuamente ameaçada pela
idéia de estado mínimo e pela ótica do lucro, que concebe a saúde como mercadoria,
valor de troca. É nesse contexto que se trava a disputa pela manutenção dos leitos em
hospitais psiquiátricos em detrimento da criação de serviços de fato substitutivos. A
precarização do trabalho, por sua vez, agravada pela ausência de mecanismos de
proteção social, conduz às situações de vulnerabilidade, marcadas pelo
empobrecimento, a ruptura dos laços, as atividades ilegais, o individualismo e a
violência − são esses os desafios maiores que se interpõem à prática clínica no território,
envolvendo mediação social para o estabelecimento de laços produtivos entre seus
usuários e as comunidades locais. Em destaque, aqui, a polarização entre uma
perspectiva que concebe a cidade como pólis − poder de produção de relações, conflitos
e negociação − e a perspectiva hoje dominante, que a vê como mercado − onde o espaço
público é privatizado, tornado uniforme, impondo, à diferença, a anulação, o silêncio e a
violência. Nesse sentido, o caminho que a reforma psiquiátrica brasileira vem
percorrendo é, por princípio, um caminho de resistência (Barros, 2003), sendo crucial
que possa nele persistir.

Referências bibliográficas

BARROS, Regina Benevides. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas


em tempos neoliberais. In: CONSELHO Federal de Psicologia (Org.). Loucura, ética e
política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.196-206.

3
CARVALHO, E.N. A reforma, as formas e outras formas: as construções sociais da
pessoa e perturbação em um serviço de saúde mental. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
Disponível em <http://www.ims.uerj.br/psicorio/index.php?pag=101>.

FIGUEIREDO, A.C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no


cotidiano. Palestra proferida na Jornada do Instituto APPOA; Psicanálise e
intervenções sociais. Porto Alegre, 2009.

LEMKE, R.A. A itinerância e suas implicações na construção de um ethos do cuidado.


Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2009.

PASSOS, E. A clínica, o método e as experiências de passagem. Conferência de


abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I Congresso
Brasileiro de AT “Singularidade, Multiplicidades e Ações de Cidadania”. São Paulo, 7,
8 e 9 de setembro de 2006. Não publicado.

SENNETT, R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo:


Companhia das Letras, 1988. Trabalho originalmente publicado em 1978.

Analice de Lima Palombini


Junho 2010

Você também pode gostar