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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo

(orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da


Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto:
EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

UM PANORAMA SOBRE A TRADIÇÃO MANUSCRITA DO CORPUS


AURELIANUM E AS TRANSFORMAÇÕES NO TEXTO DAS HISTORIAE
ABBREUIATAE DE AURÉLIO VÍTOR.
Moisés Antiqueira

O Corpus Aurelianum se refere a uma compilação de três obras históricas distintas, a


saber, a Origo gentis Romanae, o De uiris illustribus (urbis Romae) e as Historiae
abbreuiatae, todas elaboradas no século quarto da era cristã. O seu nome deriva da errônea
atribuição de sua autoria a Aurélio Vítor, historiador que efetivamente compôs apenas o
terceiro texto que integra o referido corpus. A obra por ele escrita, comumente denominada
por De Caesaribus (“Sobre os Césares”)1, abarcava de modo sucinto a história do Império
romano, entre a Batalha de Ácio e o vigésimo terceiro ano do reinado de Constâncio II, isto é,
o período que se estendia entre setembro de 359 e o mesmo mês do ano seguinte. Pouco
tempo depois, Aurélio Vítor finalizou a redação de sua narrativa.
Quanto aos demais textos, porém, desconhecem-se os seus autores. A Origo gentis
Romanae, ou “As origens do povo romano”, relatava os míticos inícios da história de Roma,
desde a chegada de Saturno na península Itálica até o surgimento de Rômulo e Remo. Por seu
turno, o De uiris illustribus (urbis Romae), “Sobre os homens ilustres (da cidade de Roma)”2,
apresenta uma sequência de curtas biografias que englobam desde o primeiro rei romano,
Rômulo, até Otaviano Augusto e outras personalidades históricas relacionadas ao Triunvirado
e às guerras civis dos últimos anos do período republicano da história de Roma. Em verdade,
como demonstra Momigliano (1958: 63) o título OGR se aplicava ao corpus tripartite como
um todo e não somente ao primeiro opúsculo que o integrava, o qual não apresentava
denominação alguma. Entretanto, por conveniência, designar-se-á a primeira parte do corpus
pelo nome tradicional de OGR – tal como o próprio Momigliano o fizera.


Doutorando em História Social (FFLCH/USP), sob orientação da Profa. Dra. Maria Luiza Corassin.
1
Franz Pichlmayr, por ocasião da primeira edição teubneriana dedicada ao Corpus Aurelianum (impressa em
1892), acrescida também do Epitome de Caesaribus, cunhou o título De Caesaribus a fim de designar a obra
efetivamente escrita por Aurélio Vítor, quer dizer, a terceira e última parte da compilação que se iniciava com a
Origo gentis Romanae e o De uiris illustribus. Pichlmayr assim procedeu a fim de enfatizar um paralelo entre a
obra de Aurélio Vítor e o texto que a antecedia de imediato no interior do corpus, isto é, o De uiris illustribus, de
modo que, ao relato acerca da vida das mais notáveis figuras da era republicana, seguir-se-ia uma narrativa
dedicada a Augusto e os seus sucessores (ANDO, 1995). Não obstante, Pichlmayr ignorou a expressão que
intitula o livro de Aurélio Vítor nos manuscritos que o contém – Historiae abbreuiatae – e salientou em demasia
a estrutura biográfica da obra, em detrimento dos elementos propriamente historiográficos.
2
Doravante, nos referiremos às três obras da seguinte maneira: Origo gentis Romanae = OGR; De uiris
illustribus = DVI; e as Historiae abbreuiatae como Hist. abbreu.
1
Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo
(orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da
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Pois bem, o Corpus Aurelianum nos foi legado por intermédio de dois manuscritos,
ambos datados do século quinze e possivelmente derivados de um mesmo arquétipo. O
primeiro deles concerne ao Oxoniensis (O), assim chamado em razão de ter sido redescoberto
em Oxford, ao final dos Oitocentos, por Hirsch Hildesheimer, um estudioso austríaco que se
notabilizou em meio ao ativismo sionista teutônico na virada do século dezenove para o vinte.
O citado manuscrito se encontrava junto a outros códices que haviam sido anteriormente
recolhidos na cidade de Veneza, por parte de eruditos ligados à Companhia de Jesus.
Compunha o acervo da Bodleian Library e se divide em duas partes, das quais a primeira
contém uma tradução latina dos Memoráveis de Xenofonte, enquanto que a segunda traz o
Corpus Aurelianum.
O códice O, porém, remontava ao ano de 1453 e era proveniente da biblioteca do
grande humanista e cardeal Basílio (Giovanni) Bessarione, então legado papal em Bolonha. Já
o outro manuscrito remete ao Norte da Europa e é identificado como Bruxellensis ou
Pulmannianus (P). Fora encontrado na capital belga em 1850, pelo laureado Theodor
Mommsen. A datação do mesmo, porém, se circunscreve provavelmente ao último quarto do
século XV. No século seguinte, sabe-se que ficou em posse de Jean de Loemel, capelão da
igreja de Saint-Denis de Liège, sendo posteriormente adquirido por Theodor Poelman. Este
último presenteou o jesuíta Andreas Schott com o códice P, o que explica o motivo pelo qual
a editio princeps do corpus tripartite, organizada pelo citado Schott e publicada na Antuérpia
em 1579, ter se fundamentado sobremaneira em P e negligenciado o outro códice, o
Oxoniensis (D’ELIA, 1965: 75).
Não obstante, Schott indicava no proêmio de sua edição a existência de um terceiro e
atualmente ignoto manuscrito, que teria pertencido ao jurista Jean Matal, do que resulta sua
denominação de códice Metelli ou M. Schott se referia a tal manuscrito como “antiquíssimo”
e julgava que o mesmo teria sido confeccionado oitocentos anos antes, ainda no século oitavo
(MOMIGLIANO, 1984: 178). Em uma nova edição do corpus tripartite publicada em 1609,
Schott inseriu na íntegra uma epístola não datada que Matal, habitante da cidade de Colônia,
havia endereçado ao filólogo Stephanus Pighi, na qual se teciam longas referências ao hoje
perdido códice M e, ao mesmo tempo, atestava a eventual antiguidade daquele.
Resta saber, portanto, se M corresponderia ao arquétipo do qual tanto O quanto P
dependiam. Não há dúvidas de que O não derivou de P, e vice-versa, pelo fato de que as
lacunas nos textos que podem ser observadas em P não são compartilhadas por O, do mesmo
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modo que não se encontram em P as omissões e supressões existentes em O. Desta feita,


Corbett (1949: 254) e D’Elia (1965: 58) concluíram que os códices Oxoniensis e
Pulmannianus não poderiam senão resultar de uma mesma família. O códice Metelli, dada a
antiguidade que Matal julgava possuir, emergiria como o exemplar em que os outros dois
manuscritos teriam se baseado.
Todavia, faz-se escusado destacarmos um ponto importante. A tradição manuscrita
direta, tangente às narrativas da OGR e das Hist. abbreu., se encerra nos códices O e P que
reproduzem o corpus tripartite. O texto do DVI, no entanto, foi transmitido e preservado por
meio de uma segunda tradição, completamente autônoma em relação aos manuscritos O e P, e
que consiste em mais de setenta códices, o que atesta a popularidade do DVI para muito além
dos limites do próprio Corpus Aurelianum (SAGE, 1978: 217-218).3
Ora, a existência de uma tradição manuscrita independente, no tocante ao DVI,
propiciou a oportunidade de se confrontar o texto do DVI contido em O e P – isto é, o corpus
tripartite – com os demais códices. Constatou-se, como informa Momigliano (1984: 179), que
a narrativa do DVI exposta por O e P apresenta interpolações inexistentes no outro ramo da
tradição manuscrita que envolve a obra em questão. As passagens interpoladas foram,
sobretudo, extraídas do Breviário de Flávio Eutrópio (ca. 369-370), da História Universal de
Paulo Orósio (ca. 410-420) e da História Romana elaborada por Landolfo Sagaz por volta do
ano de 1023. Por conseguinte, se deduz que o arquétipo de O e P foi escrito, provavelmente,
em data posterior à década de 1020. Isso não significa que o “antiquíssimo” códice M deva ser
categoricamente rejeitado como a raiz dos códices O e P, porém as parcas informações acerca
de M tornariam difícil reconhecê-lo enquanto tal (MOMIGLIANO, 1984: 183).
D’Elia (1965: 73), por sua vez, ao analisar o teor da carta que Matal enviara a Pighi,
assevera que o códice M se enquadrava na mesma família a qual pertenciam O e P. Tal
argumentação se pauta na constatação de que M partilharia certos elementos estruturais com
O e P, caso do acréscimo dos nove últimos capítulos ao texto do DVI e da “divisão” do
corpus em duas partes, na medida em que os textos relativos à OGR e ao DVI conformariam
uma narrativa integrada, sem solução de continuidade, que se somava às Hist. abbreu. de
3
Há algumas diferenças entre as duas tradições manuscritas do DVI. No interior do corpus tripartite, quase a
totalidade do primeiro capítulo foi suprimida, pois o compilador do corpus pretendia eliminar a repetição de
material já exposto anteriormente na OGR, referente a Rômulo. Para além, o capítulo 16, concernente ao
episódio da Batalha do Lago Régilo no início do século V a.C., também foi removido. Por outro lado, somente o
texto que integra o corpus apresenta nove capítulos adicionais a encerrar a narrativa. Não obstante, tanto o
corpus quanto os manuscritos para além dele descenderiam de um mesmo arquétipo (SAGE, 1978: 218).
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Aurélio Vítor. Ademais, análises paleográficas efetuadas sobre os códices O e P fazem pensar
em um arquétipo que remontaria ao período compreendido entre os séculos onze e quatorze.
Sabe-se que os manuscritos denotam sinais de interpolação que remontariam à obra escrita
por Landolfo Sagaz. O livro deste conheceu substancial fortuna durante o século treze, em
especial nos arredores do vale do Reno, algo que sustenta a hipótese de que o arquétipo a
partir do qual O e P foram modelados adviria do Norte da Europa – talvez mesmo da região
renana –, tendo sido redigido nos Trezentos (D’ELIA, 1965: 113).
Vale lembrar que Matal escrevia ao seu destinatário, acerca do códice que possuía,
exatamente a partir da cidade de Colônia. Assim, D’Elia (1965: 114) advoga que,
diferentemente do que Schott em sua primeira edição do corpus e Matal em sua carta faziam
crer, o códice M não seria “antiqüíssimo”, mas apenas “antigo”, isto é, anterior ao
Humanismo e, portanto, predecessor de O e P. Nestes termos, seria “l’unica tesi possibile”
considerar que M seria o arquétipo perdido dos manuscritos O e P, conclusão esta que
encontra amparo também em Schmidt (1995: 1602).
Feito isso, partamos para o segundo aspecto a ser discutido no presente trabalho.
Salientemos que em parte alguma do Corpus Aurelianum se observa o emprego da expressão
ou do título De Caesaribus em referência à narrativa composta por Aurélio Vítor. Antes,
verifica-se como entrada à obra a seguinte passagem: “Histórias abreviadas de Aurélio Vítor
(Aurelii Victoris Historiae abbreviatae), desde Otaviano Augusto, isto é, a partir do final de
Tito Lívio, até o décimo consulado de Constâncio Augusto e o terceiro de Juliano César”.4
Portanto, eis que nos deparamos com a locução Historiae abbreuiatae, e não De
Caesaribus. A diferença entre ambos os títulos é, em si, significativa, e deve ser investigada.
Em primeiro lugar, a natureza da tradição manuscrita direta relativa à obra de Aurélio Vítor
impõe um série de obstáculos. Como vimos, o texto foi legado aos pósteros como a última
parte de um corpus que incluía outros dois opúsculos, cuja estrutura narrativa e objetivos
distinguiam-se dos de Aurélio Vítor. Momigliano (1958: 58) defende que o responsável pela
compilação do corpus tripartite não se confunde com os autores de cada um dos textos que o
integram. No prólogo delineado pelo ignoto compilador, em que se enumeram os analistas e
historiadores romanos pretensamente consultados para a elaboração de todo os textos que

4
Na carta de Matal a Pighi, o título do livro de Aurélio Vítor é praticamente idêntico ao indicado acima. Notar-
se-ia, contudo, duas diferenças: Matal referia-se às Hist. abbreu. como obra de Victoris Aurelii, ao passo que
suprimiu a menção feita ao César Juliano (D’ELIA, 1965: 61). No mais, o título apresentado por Matal equivale
literalmente ao exposto em O e P.
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integravam o Corpus Aurelianum, se emprega o vocábulo neoterici em relação a Tito Lívio e


Aurélio Vítor. A palavra neotericus teria sido comumente empregada entre os séculos quarto
e sexto e, ao referir-se desta forma aos supracitados historiadores, o compilador desejava
indicar escritores da época de Augusto em diante.
Sendo assim, o anônimo compilador teria efetuado sua tarefa pouco depois do
aparecimento da obra de Aurélio Vítor, cujo relato finda no ano de 360, uma vez que
resultaria difícil compreender por qual razão uma peça literária tão ousada – que se quer
passar como uma história total de Roma, iniciando-se com as origens da cidade – não avançou
além de 360, momento este que nem ao menos expressava o ponto final de um reinado, por
exemplo, e sim apenas a baliza cronológica que encerra a narrativa das Hist. abbreu.
compostas por Aurélio Vítor (MOMIGLIANO, 1958: 59)5. De maneira semelhante,
Siniscalco (2003: 34) reitera a proposta de que o agrupamento dos textos que dariam forma ao
Corpus Aurelianum deu-se ainda na segunda metade do século quarto, pois que a compilação
apresentaria pontos de contato com o renascimento de motivos “clássicos”, e mais
especificamente augustanos, que teriam perpassado as décadas finais daquela centúria,
traduzindo-se pela nostálgica remissão ao mos maiorum e à figura de Augusto.
Já Puccioni (1958 apud D’ELIA, 1965: 21) aventa que a junção da OGR, do DVI e das
Hist. abbreu. em um único corpus pudesse ser creditada a Cassiodoro ou a alguma
personagem ligada ao seu “círculo”, o qual fomentou um notável “renascimento literário e
cultural” na Itália junto a corte de Teodorico (493-526), promovendo a correção de textos
antigos, a tradução de autores gregos e, é claro, a composição de obras originais. Contudo,
não há passagem alguma nos textos de Cassiodoro que confirme a hipótese aventada por
Puccioni, que não ultrapassa o plano da mera, ainda que engenhosa, especulação.
D’Elia, por sua vez, propõe uma datação posterior para o surgimento da compilação
envolvendo as três obras. Argumenta que João Lido, cujo De magistratibus foi escrito em
Constantinopla por volta de 559, denota o conhecimento dos textos de Aurélio Vítor, mas
parece ignorar a OGR e o DVI. Por outro lado, a Chronica maiora, composta por Isidoro de
Sevilha após o ano de 615, apresenta ecos do último capítulo presente no texto do DVI que
integrava o corpus tripartite, porém não demonstra influência alguma das Hist. abbreu. Logo,

5
Não obstante, soa intrigante pensarmos, seguindo essa linha argumentativa de Momigliano, que poucos meses
depois de concluído, o livro de Aurélio Vítor passasse a circular como parte integrante de uma obra ainda maior,
cujo relato começava com os míticos tempos da fundação de Roma. Neste ensejo, aventamos que o texto de
Aurélio Vítor serviria a outros propósitos e, logo, assumiria outras feições aos olhos do público leitor.
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conclui D’Elia (1965: 27) que “sembra si possa almeno legittimamente sospetare che fino a
questo periodo le tre opere non erano state raccolte in un solo corpus”, na medida em que, na
Constantinopla da época justiniana, circulariam ainda exemplares “independentes” relativos à
narrativa de Aurélio Vítor,6 enquanto que, no Mediterrâneo Ocidental, Isidoro de Sevilha
comprovaria a existência, no primeiro quartel do século sétimo, de uma edição “não
modificada” do DVI – quer dizer, que não teria sofrido ainda alterações visando que se
conectasse adequadamente ao conteúdo do livro que se seguiria no corpus, qual seja, as Hist.
abbreu. de Aurélio Vítor.
A constituição do corpus tripartite, nestes termos, resultaria do labor de algum
grammaticus posterior à época de Justiniano, uma vez que, entre o momento da composição
da obra de João Lido até o surgimento do arquétipo dos códices O e P (provavelmente no
século treze, como esboçado acima), não se verificariam quaisquer vestígios do emprego da
OGR e das Hist. abbreu. em meio às fontes literárias conhecidas (D’ELIA, 1965: 113). Por
outro lado, a inserção, nos textos que compunham o Corpus Aurelianum, de passagens
extraídas das obras escritas por Flávio Eutrópio, Paulo Orósio e Landolfo Sagaz somente
poderia ter sido efetuada séculos depois da era justiniana, como fruto do trabalho de algum
literato desconhecido. Em outras palavras, a interpolação ocorreu em um momento em que o
corpus já havia sido confeccionado e, logo, o compilador do corpus não poderia se confundir
com o responsável pelas interpolações que se notam no interior do mesmo7.
As Hist. abbreu., em suma, foram transmitidas ao longo dos séculos por meio de um
corpus em que figurava como a terça e última parte de uma compilação que almejava oferecer
um relato totalizante acerca da história romana. Tal condicionante acabou por acentuar,
inadvertidamente, os elementos biográficos que caracterizam a única obra que, de fato,
Aurélio Vítor havia composto. Esta se inicia a partir da Batalha de Ácio, momento em que,
como escreve Aurélio Vítor, o mundo romano passa a ser controlado por apenas um homem
(Hist. abbreu. 1.1). Neste sentido, o historiador buscava estabelecer um claro recorte temporal

6
Sage (1978: 218) julga como frágil o argumento elaborado por D’Elia, em função do fato de coisa alguma se
conhecer acerca da transmissão de porções do corpus no Império bizantino, para além das referências isoladas
que podem ser apontadas no interior da obra de João Lido.
7
Momigliano (1958: 60) esclarece que as interpolações presentes no interior do corpus, tal como contidas no
arquétipo de O e P, não teriam sido efetuados pelo compilador do próprio corpus, posto que o interpolador –
necessariamente um indivíduo do século onze ou mesmo depois – dificilmente saberia determinar, por exemplo,
quais eram as origens de Aurélio Vítor, como apontado no prefácio ao texto do corpus. Deste modo, o
compilador não se confunde com o interpolador. Permanece, pois, as incertezas e controvérsias quanto à data em
que esse astuto compilador teria se dedicado à empreitada de organizar tão intrigante coletânea.
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a fim de esclarecer aos leitores qual o objeto contemplado por sua obra. Ou melhor, Aurélio
Vítor expunha, de modo inequívoco, que sua narrativa se limitaria apenas à história imperial.
Por conseguinte, o passado republicano de Roma não seria contemplado em seu trabalho,
incluindo-se o Triunvirado ou tudo o mais que dissesse respeito a Otaviano Augusto antes do
ano 722 ab urbe condita.
Entretanto, como apontado anteriormente, o texto do DVI que se encontra presente no
Corpus Aurelianum se encerra com nove uitae (De uir. ill. 78-86) que cobrem as principais
personalidades envolvidas nas guerras civis das décadas de 40 e 30 a.C., exceção feita a
Pompeu Magno, abordado em capítulo anterior (cf. De uir. ill. 77). Dentre essas nove curtas
biografias, nos importa especificamente às referências feitas a Otaviano (De uir. ill. 79; 85-
86). Visto que as Hist. abbreu. não trazem informação alguma acerca da vida de Augusto, no
que respeita ao período anterior à Batalha de Ácio, o compilador e/ou o interpolador do
corpus tripartite se viu diante da tarefa de adicionar ao texto do DVI seções que se
conectassem ao ponto inicial da narrativa de Aurélio Vítor. Eis que a narrativa do DVI,
antecedendo às Hist. abbreu. no interior do corpus, se finaliza com um relato pertinente a
Otaviano e seus inimigos, caso de Marco Antônio e Cleópatra (De uir. ill. 85-86).
Desta feita, as nove biografias que fecham o DVI funcionam como uma ponte a
interligar duas obras distintas editadas no interior do corpus, isto é, o próprio DVI e as Hist.
abbreu., como se, à listagem de biografias das célebres personagens da era republicana
contempladas pelo DVI sucedessem as uitae dos imperadores elaboradas por Aurélio Vítor.
Portanto, a inclusão das Hist. abbreu. como a parte final do corpus tripartite fomentou a
apreciação da mesma como uma biografia dos Césares em sentido estrito, e não como uma
história do Império romano que apresenta, porém, uma clara estrutura e tendência
biografizante8. Essa observação nos conduz, de novo, à questão concernente ao emprego do
moderno nome de De Caesaribus em detrimento do título preconizado nos manuscritos O e P,
isto é, Historiae abbreuiatae, no que tange ao texto redigido por Aurélio Vítor.

8
Bird (1994: xxi) observa que Aurélio Vítor “was intent upon writing history rather than biography”.
Entretanto, há de salientarmos que a linha divisória entre ambos os gêneros se mostra tênue no interior das Hist.
abbreu. Sendo assim, deveríamos antes enfatizar o caráter híbrido dessa narrativa composta por Aurélio Vítor.
Ando (1995) destaca que os leitores tardoantigos tendiam a conceber toda e qualquer história imperial como
biografia dos imperadores. No mesmo sentido, Syme (1971 apud CORASSIN, 1997: 104) nota que, no mundo
romano, “the words historia and historicus can cover almost anything. Conversely, history might include much
biographical material”.
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As edições da obra de Aurélio Vítor apresentam uma divisão em 42 capítulos e seus


respectivos versículos, em que cada um dos capítulos se devota, aproximadamente, a um
imperador singular. Esse arranjo, todavia, foi elaborado somente em 1579, quando Schott
organizou a primeira edição do Corpus Aurelianum. No entanto, os manuscritos O e P contém
o livro de Aurélio Vítor sob uma disposição diversa, ainda que igualmente artificial, variando
entre 23 e 26 capítulos e outros tantos versículos (ANDO, 1997: 296). De todo modo, o
secionamento estabelecido por Schott no último quartel do século dezesseis alicerçava-se na
perspectiva de que Aurélio Vítor teria concebido a história imperial, strictu sensu, como uma
sequência de vitae. Com efeito, a própria divisão em si finda por reforçar tal ideia. Diante
disso, quando Pichlmayr organizou, na década final dos Oitocentos, a pioneira edição da
Teubner dedicada ao Corpus Aurelianum, não hesitou em ratificar a perspectiva veiculada por
Schott, e assim cunhou o título usualmente empregado em relação ao livro de Aurélio Vítor.
As Historiae abbreuiatae se transformavam, pois, no De Caesaribus.
Preconizamos que os cortes definidos por Schott e a utilização da expressão formatada
por Pichlmayr findam por redimensionar o escopo narrativo e mesmo dificultam a
compreensão dos (possíveis) objetivos que Aurélio Vítor ansiava por atingir ao empreender a
tarefa de escrever a obra. Assim, encerremos o presente trabalho com uma análise acerca de
um exemplo retirado da própria narrativa. Nos interstícios desta, percebe-se a intenção de
traçar a era dos Flávios como se constituísse um período delimitado, específico, da história do
Império, uma vez que tal época é precedida na narrativa por uma reflexão acerca da cultura
literária que caracterizaria os soberanos anteriores, de Augusto a Vitélio (cf. Hist. abbreu. 8.7-
8) e finalizada com uma digressão por meio da qual se introduz a dinastia dos Antoninos,
marcada pela ascensão ao trono de varões de origem não itálica (cf. Hist. abbreu. 11.12-13).
Desta feita, um dos pontos que curiosamente despertam a atenção, no que tange ao
capítulo que se supõe abarcar a “vida” de Vespasiano, concerne à ausência de menções ao
falecimento e a duração do governo do citado imperador. Tais informações surgem apenas em
Hist. abbreu. 10.5, isto é, ao final do capítulo que teria sido “dedicado” a Tito, filho e
sucessor de Vespasiano. Na passagem em questão, Aurélio Vítor reporta que Tito governou o
mundo romano durante pouco menos de dois anos e nove meses, ao passo que seu pai, morto
aos setenta anos de idade, reinara ao longo dos últimos dez anos de sua existência.
Ora, os retratos de Vespasiano e Tito nas Historiae abbreviatae não apresentam
grandes diferenças em relação à imagem canônica que se estabeleceu a respeito de ambos no
8
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interior da historiografia romana. Do primeiro diz-se ter sido clemente com os antigos
apoiadores de Vitélio (Hist. abbreu. 9.2), e prudente (Hist. abbreu. 9.9), de tal forma que “[...]
aboliu a maior parte dos vícios com o exemplo de [sua] vida (uitae specie)” (Hist. abbreu.
9.5). Tito, por sua vez, se destacava por sua cultura, clemência e generosidade (Hist. abbreu.
10.1), a ponto de todas as províncias do Império terem lamentado a sua morte (Hist. abbreu.
10.5). Similarmente, o outro filho de Vespasiano, que sucederia a Tito, emerge na narrativa
em conformidade ao discurso taciteano e suetoniano: Domiciano seria soberbo e dissimulado
(Hist. abbreu. 11.3), um cruel tirano que oprime os romanos e, em particular, a ordem
senatorial (Hist. abbreu. 11.2; 11.7).
No interior do relato que Aurélio Vítor teceu acerca dos Flávios, Vespasiano e Tito
figuram como governantes que partilham da mesma essência, enquanto que Domiciano,
moldado de acordo com as convenções retóricas e historiográficas do “mau imperador”,
contrapõe-se a seu pai e a seu irmão. Neste sentido, Domiciano representava um exemplo
concreto de um axioma moral exposto na narrativa, mediante o qual se preconizava que

como se estivesse de acordo com uma lei da natureza (naturae lege), a qual
frequentemente, por assim dizer, engendra [homens] maus a partir de bons, incultos a
partir dos mais doutos e assim por diante ou gerados de modo inverso (Hist. abbreu.
3.5).

Aplicava-se, pois, a célebre “lei dos contrários”, preconizada inicialmente pelos


gregos. Entretanto, Dufraigne (1975: 72) afirma que no texto de Aurélio Vítor essa fórmula
não disporia de “signification philosophique véritable”, resultando apenas “comme un simple
procédé de rhétorique”. Malgrado isto, a noção se encaixa perfeitamente à imagem
manipulada por Aurélio Vítor no que tangia a alguns imperadores – como Calígula, Cômodo
e, salientemos, Domiciano – os quais comprovariam que o ingenium (o “caráter”) não seria
necessariamente transmitido de um genitor para sua prole ou configuraria um elemento
comum a uma mesma familia ou gens.
O caso da dinastia Flávia, portanto, seria exemplar nesse sentido, no entender do
historiador. Considerando-se a unicidade que Aurélio Vítor procura imprimir à narrativa
referente aos Flávios, denota-se uma diferenciação entre os reinados de Vespasiano/Tito e o
de Domiciano, em que os primeiros se caracterizariam por uma série de uirtutes e o segundo,
por sua vez, se definiria por seus uitia. A fim de enfatizar esse jogo de oposições, no seio da
familia imperial, Aurélio Vítor buscou informar aos leitores o falecimento de Vespasiano e
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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo
(orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da
Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto:
EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

Tito em uma única passagem (a qual, por seu turno, finaliza a inserção de ambos na narrativa)
e, deste modo, deixar latente a ruptura que se seguiria na história romana, em razão da
ascensão de Domiciano. Porém, a repartição efetuada por Schott obscurece tal análise, pois
fraciona em duas partes um relato contínuo que engloba deliberadamente Vespasiano e Tito –
sem mencionar o fato de que, se cada capítulo corresponderia em linhas gerais, como queriam
Schott e Pichlmayr, à vida de um imperador, soa estranho constatar que a morte de
Vespasiano fosse reportada apenas no capítulo seguinte, relativo à “vida” de Tito. Estamos
diante, pois, de um exemplo da maneira como, em épocas históricas distintas, se empreendeu
uma leitura peculiar a respeito dos textos herdados da Antiguidade e do modo pelo qual os
mesmos poderiam ser transmitidos à posteridade.

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