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A nossa classificação
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questão crucial colocada por Lumet (vide o capítulo 1): Qual é a “inten-
ção” do filme? Com que disposição você deseja que as pessoas saiam do
cinema?
Mas, como na vida, as combinações são possíveis.
Seguindo uma sugestão de Northrop Frye29, dividiremos nossas con-
siderações sobre os gêneros em dois sentidos: um atento à estrutura do
enredo; outro, às variações de tom. São, de fato, dois modos diferentes de
usar palavras como “trágico” ou “cômico”. É nas estruturas de enredo, no
desenho mais geral da narrativa, que está baseada nossa classificação das
histórias (nossos “reinos”) em melodramáticas, farsescas, trágicas ou cô-
micas, abaixo comentada em detalhes. Por vezes falaremos desse tipo ge-
ral que define a estrutura básica de um enredo de “tom geral” da história:
uma história que apresenta um conflito sem possibilidades de solução
tem um tom geral trágico, por exemplo.
Mas, ao mesmo tempo, durante uma narrativa com um enredo de
determinado tipo, podem (e devem) ser feitas muitas variações pontuais
de tom (analisaremos recursos de variação tonal no capítulo 6 – aqui se
trata de esboçar as linhas gerais da questão). Num enredo de estrutura
cômica – que permite a solução dos conflitos – pode haver, por exem-
plo, um momento no qual tudo parece perdido, sem solução. Ou seja,
um momento de tom trágico.
a) Melodrama
Comecemos pela fórmula básica: o personagem é isolado do congra-
çamento social, e nós, espectadores, compartilhamos o seu ponto de vista,
o seu sofrimento. Esse isolamento é simbólico, pode ocorrer de inúmeras
formas (não se trata de o cara ser exilado na Patagônia). O fundamental é
criar uma situação através da qual o espectador possa compartilhar a sen-
sação de solidão e desamparo do protagonista. O “mundo” se contrapõe
ao “herói” do melodrama como um bloco opaco, incompreensível e cruel
que se abate sobre ele com a força cega e total de uma tempestade. Sendo
um vale de lágrimas, o melodrama não se importa muito com a unidade
dramática. Os acontecimentos “se abatem” sobre o sofredor, que se debate
numa conspiração universal e sem fim contra ele. Dito de outro modo, a
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b) Farsa
Segundo Lumet, “a farsa é o equivalente cômico do melodrama”30. Faz
sentido, se focarmos nossa atenção na situação dramática e no seu desen-
volvimento. A farsa, tal qual o melodrama, não se interessa pela unidade
dramática. O desenvolvimento de uma farsa não é um contínuo desdo-
bramento de um mesmo sistema de forças, mas uma sempre surpreenden-
te sucessão de situações novas e arranjos. A farsa é episódica. Não se leva a
sério o suficiente para manter um arco dramático suspenso. Ou melhor,
não leva o mundo suficientemente a sério para acreditar que existam de-
senvolvimentos unitários, movimentos com sentido na ação humana. O
grupo Monty Python, que faz uma hilariante farsa, na tradição inglesa do
nonsense, lançou uma fita de vídeo com esquetes cômicos reunidos sob o
título “E, agora, algo completamente diferente”31. Esse é um princípio da
farsa: a surpresa nos desconcerta e faz rir.
Tomemos uma forma específica da farsa como exemplo de semelhan-
ça com o melodrama: o qüiproquó, que no seu sentido original quer di-
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zer “um no lugar do outro”. Uma troca de identidades causa uma série de
confusões. A troca de identidades é também comum no melodrama.
A forma de tratamento da troca de identidades é reveladora das seme-
lhanças e diferenças entre os dois gêneros. Em ambos os casos, trata-se daque-
le tipo de “complicação” que não advém dos movimentos de uma situação
dramática em desenvolvimento, mas são acontecimentos casuais, na conta
do caos do mundo.
Mas no melodrama esse caos provoca um sofrimento que se prolon-
gará até que a “voz do coração” – o olhar superior da emoção, que vê
além das aparências – revele as verdadeiras identidades dos envolvidos.
Na farsa, se houver “revelação”, ela será apenas mais um número,
mais uma “jogada” com as aparências. Como diria o Agente 86, o esperto
Maxwell Smart, “o velho truque de revelar qual é o truque”. Para a farsa,
as aparências são tudo. O que não quer dizer que os personagens não so-
fram: quem dança com o cinismo é a própria farsa, o modo farsesco de
narrar, não seus personagens (pelo menos não necessariamente). Mas um
personagem de farsa pode comer o pão que o diabo amassou, que nós só
riremos dele. Esse é o objetivo da farsa, praticamente o inverso do melo-
drama: nos afastar de tal forma dos personagens que toda dor que lhes
seja infligida nos faça rir. O protótipo da farsa é o mais que clássico escor-
regão na casca de banana.
O efeito geral é o esvaziamento emocional do mundo. O riso franco
abole o “coração”. “Sem dó nem piedade” é a cruel e farsesca divisa dos
membros d’O Incrível Exército de Brancaleone (L’armata Brancaleone,
Mario Monicelli, 1966) – que são sempre inferiores a nós, como já dizia
Aristóteles.
O dramaturgo e roteirista Luis Alberto de Abreu põe as seguintes pala-
vras na boca do professor de sua peça Masteclé – Tratado geral da comédia:
“Como regra geral rimos do que consideramos defeito, do que consi-
deramos menor que nós. Às vezes, rimos de nós mesmos porque percebe-
mos que somos menores do que imaginávamos. É como se o ser humano
devesse ter um padrão: jovem, forte, bonito, inteligente, potente. Tudo o
que estiver abaixo desse padrão, fora dessa proporção, é objeto do riso
humano: a impotência, a burrice, a feiúra, a fraqueza ou covardia, a me-
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c) Tragédia
A tragédia é composta pelo desenrolar implacável de uma situação
dramática que não permite solução. Tal como no melodrama, um ho-
mem se verá sozinho, isolado do congraçamento social. Mas, diferente-
mente de lá, o universo não será uma conspiração perversa que o vitima-
rá, e nós não estaremos identificados, e enclausurados, na perspectiva da
vítima. Tanto personagem como público compreenderão o que está em
jogo. E será a partir de uma decisão, de uma ação dramática do persona-
gem, que o destino se abaterá sobre ele. Na tragédia, o personagem não
sofre as ações do mundo, ele age sobre o mundo. Passamos da voz passiva
à voz ativa.
É preciso que façamos, seguindo os passos do imprescindível Tragé-
dia Moderna38, considerações sobre a configuração contemporânea da
tragédia.
Tornou-se comum afirmar a impossibilidade da tragédia hoje (veja-se
A Morte da Tragédia, de George Steiner) devida, basicamente, à inexis-
tência de uma ordem cósmica transcendente contra a qual atuaria a ação
desmedida do herói trágico. Paralelo a essa impossibilidade, o uso corri-
queiro do qualificativo “trágico” para “acidentes” comuns (como os de
trânsito, por exemplo) seria mais uma manifestação dessa perda da dimen-
são cósmica da vida, o que levaria a essa espécie de “inflação vocabular”.
Williams não só investe contra essas idéias, mas o faz de um modo que
esclarece muito sobre a tarefa contemporânea de escrever ficção. Em pri-
meiro lugar, ele diz que a argumentação acima referida é um acade-
micismo, já que se baseia numa pretensa “ordem” que haveria na Grécia e
que hoje já não há. Segundo Williams, essa “ordem” é uma abstração dos
scholars contemporâneos, construída, justamente, a partir da leitura de tra-
gédias clássicas. Quer dizer, cada autor trágico clássico, no próprio ato da
escrita, punha em foco, de modo dramático, algum aspecto da ordenação
da vida grega (perceba-se a semelhança dessa idéia com o que dizíamos no
capítulo 1, sobre “escrever para tornar visível o que se anteviu”).
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A nossa época, como todas as outras, tem suas próprias regras, variadas e
espalhadas pelas muitas dimensões da vida. Dizer que “não há uma ordem”
é tomar como medida o tipo de ordenação de outra sociedade. Pelo mesmo
motivo, nega-se a percepção popular do caráter “trágico” dos “acidentes”,
que só são “acidentes” por falta de mediação, de visão capaz de conectar es-
ses acontecimentos às ações que os provocam. A coexistência de automó-
veis (e mortes no trânsito) e civilização contemporânea não é coincidência.
Tradicionalmente, diz-se que para termos uma tragédia é preciso um
herói capaz de uma ação irreparável, que desafia, de modo frontal e irre-
conciliável, a ordem do universo, acarretando a destruição do desafiante.
Mesmo essas características, sempre segundo Williams, devem ser vistas
em perspectiva histórica. Sobre a ordem, já vimos que ela é particular a
cada sociedade e deve ser descoberta (ou posta em foco problemático) atra-
vés da própria escrita. A “ação irreparável” – aquela ação “desmedida” que
impossibilita a reconciliação do herói com o mundo e o conduz à morte –
também não pode ser vista como algo universal, já que mesmo a morte
tem um sentido variável, de acordo com a sociedade e o momento históri-
co. Apenas para sublinhar a pertinência dessa questão, lembremos o mo-
mento crucial de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), em que Sara per-
gunta a Paulo Martins: “O que prova a sua morte, Paulo?”. Ou seja, é
posto em questão o sentido dessa morte trágica. Por fim, a “destruição do
herói” também precisa ser recolocada numa perspectiva histórica, já que
sua tradicional consideração como característica essencial se deve a uma
leitura individualista, centrada apenas no personagem. Tematizando ques-
tões cruciais ainda em aberto, dilemas não encerrados da sociedade, a tra-
gédia promove a destruição do herói, sim, mas dentro do movimento de
forças desencadeado por ele, o que é mais importante e, inclusive, costuma
ser objeto de representação e balanço depois da morte do protagonista.
Ou seja (e resumindo), a tragédia é uma dramatização de alguma con-
tradição social, representada numa situação dramática insolúvel, que pro-
vocará a destruição dos personagens e, no mesmo movimento, revelará
quais forças são essas que causaram sua destruição. Escrever tragédias é bus-
car essas situações insolúveis e explorar-lhes as conseqüências sem remissão
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d) Comédia
Tal como a entendemos aqui, a comédia é o desenvolvimento de uma
situação dramática, com unidade, que chega a um reequilíbrio conciliado
(um final feliz, uma festa de reconciliação). Mas mesmo separando, para
fins analíticos, a comédia do riso (o desenvolvimento e a “festa” final po-
dem provocar apenas sorrisos de participação), isso não quer dizer que
toda história com final feliz seja uma comédia. Se não houver uma situa-
ção dramática e progressão unitária, teremos ou um melodrama ou uma
farsa (estruturas de enredo mais episódico). Neste nível estrutural (sem
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Exercício
Variações tonais
Crie três pequenos argumentos (cinco linhas cada um) a partir de no-
tícias de jornal, dando a cada um tratamentos diversos, como tragédia,
comédia, melodrama e farsa.
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