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ARQUIVOS

de artista
pessoais
questões sobre
o processo de criação

JOSÉ CIRILLO

Vitória, ES
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

Reinaldo Centoducatti CONSELHO EDITORIAL


REITOR Breno Segatto (UFES); Brunela Vicenzi (UFES); Flávia
Mayer dos Santos Souza (UFES); Gloria C. Aguilar Barreto
Ethel Leonor Noia Maciel (Universidade Nacional Caaguazú); Gustavo Menendez
VICE-REITORA (Universidad Del Litoral); João Frederico Meyer (UNICAMP);
Mariana Duran Cordeiro (UFES); Maurice Barcelos da Costa
Zenolia Christina Campos Figueiredo (UFES); Pat Moore (Universidad Pablo Olavides - ESP); Pedro
PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO Florêncio da Cunha Fortes (UFES); Regina Lúcia Monteiro
Henriques (UERJ); Ubirajara de Oliveira (UFES); Renato
Neyval Costa Reis Junior Tannure Rotta de Almeida (IFES); Sergio Mascarello Bisch
PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO (UFES); Tânia Mara Zanotti G. Frizzera Delboni (UFES).

Angélica Espinosa Barbosa Miranda PESQUISA E TEXTO


PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO José Cirillo

Teresa Cristina Janes Carneiro APRESENTAÇÃO


PRÓ-REITORA DE ADMINISTRAÇÃO Rosa da Penha Ferreira da Costa
Departamento de Arquivologia UFES
Anilton Salles Garcia
PRÓ-REITORA DE PLANEJAMENTO E PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL Thaís André Imbroisi - BETHA design studio

Cleison Fae EDITORA PROEX/UFES


PRÓ-REITOR DE GESTÃO DE PESSOAIS Av. Fernando Ferrari, n° 514, Goiabeiras CEP 29.075.910
E ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL Vitória-ES
Telefones:
Gelson Junquilho (27) 4009-2961 (27) 4009-2778
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ESTUDANTIS E CIDADANIA

Dados Internacionais de Catalogação-na- publicação (CIP)


(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

C578a Cirillo, José, 1964-


Arquivos de artistas : questões sobre o processo de
criação / José Cirillo. - 1. ed. - Vitória, ES : UFES, Proex, 2019.
100 p. : il. ; 22 cm

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-65276-53-5

1. Criação na arte. 2. Artistas – Arquivos. 3. Arquivos


pessoais. 4. Artes visuais. I. Título.
CDU: 7.021

Elaborado por Perla Rodrigues Lôbo – CRB-6 ES-000527/O

A reprodução de imagens nesta obra tem caráter pedagógico e científico, amparada pelos limites do direito de
autor, de acordo com a lei nº 9.610/1998, art. 46, inciso III.
Aos meus amados Juliano e à Maria Raquel
A Cecília Salles, pela oportunidade de discutir
suas teoricamente o processo de criação.
AGRADECIMENTOS

A Shirley Paes Leme, pelo carinho e atenção,


bem como pela generosidade
de disponibilizar seus arquivos pessoais.

Ao grupo de pesquisadores do Laboratório


de Extensão e Pesquisa em Artes.

A FAPES e ao CNPq pelo fomento.


10 Arquivos de cientistas e de artistas:
um olhar investigativo

22 Por uma taxonomia dos documentos de processo

48 A subjetividade dos diálogos e mediações

74 Geografia Íntima: uma primeira análise geral dos arquivos


pessoais de Shirley Paes Leme

93 Referências
SUMÁRIO
8
APRESENTAÇÃO

Apresentar o livro daquele que é para mim, exemplo de profissional,


grande pesquisador e fonte de ensinamentos constantes, é na verdade
uma grande honra. Significa também, motivo de grande felicidade, uma
vez que o título deste livro: Arquivos de Artistas, arquivos pessoais: questões
sobre o processo de criação, traz duas grandes paixões: as artes plásticas e
a arquivologia, que se entrelaçam quando o autor discorre sobre esses
registros, que são produzidos pelos artistas no percurso de sua obra.
Com o desenvolvimento de novas pesquisas, no século XX, as
fontes documentais, oriundas das investigações realizadas acerca
dos processos usados pelos artistas, no desenvolvimento de sua
obra, trazem a questão dos arquivos pessoais para as artes plásticas,
e apontam um novo panorama no século XXI, no qual esses estudos
são aprofundados, trazendo, dessa forma, importantes questões para
a arquivologia: Como trabalhar esse acervo? De que forma essa pro-
dução documental é gerada e vem sendo tratada, uma vez que ao final
da obra podem ser esquecidas, como afirma o autor, perdendo seu
contexto e, consequentemente, sua organicidade? Como classificar,
avaliar e descrever esses dossiês, permitindo seu acesso e difusão?
Como preservar esses acervos, uma vez a preservação do patrimônio
documental é responsabilidade dos profissionais arquivistas?
O autor faz ver que esses conjuntos documentais possuem forma-
tos, suportes e tipologias diversos, que precisam ser tratados dentro
de suas especificidades, pois, os documentos resultantes do processo
de criação, são registros que trazem, não apenas a forma como a obra
foi produzida, mas o resultado de pesquisas que mostram a evolução
dessa área do conhecimento humano, se tornando fontes de pesqui-
sa para a crítica e a história da arte, assim como para a sociologia
da arte e da ciência, como é relatado ao longo do livro. Portanto,
os arquivistas devem fazer a sua gestão documental, permitindo a
preservação da memória desse campo do saber.
A arquivologia, como as demais áreas do conhecimento, ao longo
dos anos tem passado por vários processos de evolução, avançando em
meio a conflitos, novas reflexões, novas pesquisas, novas descobertas,
que ampliam o olhar sobre o documento, e à medida que evolui como
disciplina, traz em seu bojo novas formas de trabalho, aumentando
a inserção do profissional arquivista no mercado de trabalho.
Estas reflexões sobre documentos de processo de criação, trazidas

pessoais
pelo professor Cirillo, mostram a importância e necessidade daqueles
que são responsáveis pela formação do profissional arquivista alargar
o olhar sobre os arquivos pessoais, uma vez que esse ainda é um tema
arquivos

pouco estudado, e ao mesmo tempo apresenta aos arquivistas um


espaço de trabalho, ainda a ser explorado, onde novas oportunidades
devem ser identificadas, pois, apesar do perfil do arquivista se alterar
de artista

ao longo do tempo, pouca ou nenhuma ênfase é dada aos arquivos


pessoais nos cursos de Arquivologia e poucos são os profissionais
que buscam sua inserção nessa área.
arquivos

ROSA DA PENHA FERREIRA DA COSTA


Profa. do Departamento de Arquivologia
Profa. do Mestrado em Ciência da informação /UFES 9
Arquivos de cientistas e de artistas:
um olhar investigativo
A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.”
(Clarisse Lispector)

Os mistérios da criação sempre motivarão curiosidades, fetichistas


ou investigativas. No campo das artes, crê-se que esse mistério pode
ser parcialmente desvelado pelos estudos dos rastros deixados pelo
artista ao longo da produção de uma obra. Os arquivos e documentos
da criação são fontes para a crítica e a história da arte, assim como
o são os arquivos da literatura para a filologia e crítica literária, ou
ainda das ciências em geral para a história das ciências (SANTOS,

pessoais
2005). Segundo este autor, seguindo interesses da cultura da con-
temporaneidade, a procura das fontes documentais
arquivos

[...] por historiadores da ciência só obteve sucesso, em grande parte, pela


convergência de sua agenda de pesquisas com iniciativas de valorização
dos acervos documentais produzidos por instituições e pessoas com
de artista

trajetórias expressivas no campo da ciência. [...] Na década de 1980 ini-


ciativas inseridas em um movimento mais amplo de resgate da memória
e da conscientização da sociedade sobre a importância dos arquivos
arquivos

tomaram vulto no Brasil e em outros países. (SANTOS, 2005, p. 19)

Os arquivos se beneficiaram dessa “febre” de memória, ganhan-


do cada vez mais abrigo institucional, formando centros de docu-
mentação e outras entidades similares. De fato, essa preocupação 11
12 generalizada com os arquivos acelerou os estudos do processo de
criação na literatura no Brasil, abrindo campo para outras artes,
entre elas, as artes visuais.
José Cirillo

Assim, o estudo da arte contemporânea a partir dos documen-


tos e arquivos dos artistas coloca-se em sintonia com investigações
em diferentes campos do saber, cujos olhares começaram, desde a
década de 1980, a focar não somente o objeto concluído; buscava-se
também o seu processo de fabricação, de elaboração. Passaram a ser
investigadas, as nuances da criação da obra, buscando revelar novas
perspectivas dos fenômenos sensíveis a partir de um compartilha-
mento com a mente do artista no momento da criação, cujas marcas
memoriais encontram-se grafadas nesses arquivos e documentos,
muitas vezes condenados ao esquecimento com a finalização da obra.
São incontáveis aqueles produtores que originam essa “profusão
de documentos” e anotações apontadas por Bellotto. Estudar esses
arquivos é uma contribuição tanto para a crítica e história da arte,
quanto para a teoria da arte e, mesmo, para a sociologia da ciência
e, num campo mais subjetivo, para que os artistas possmam se
compreender como cientistas da imagem e entender um pouco das
artimanhas do seu processo criativo. Para a teoria, crítica e história
da arte, ele abre caminho para um mapeamento e contato com as
decisões e incertezas do artista no seu processo de aproximação do
objeto expressivo desejado, revela a obra a partir de seus procedimen-
tos, diretrizes e encargos que envolveram o projeto em tela; também
nessa mediação sociológica — com encargos que impulsionam a
criação e diretrizes que, segundo BAXANDALL ( 2006), delimita o
contorno dessa criação — começam a estabelecerem-se as contribui-
ções para o entendimento da arte como um fenômeno em interação
com o contexto social e cultural. Assim, para a sociologia da arte e
da ciência, esse estudo dos procedimentos de elaboração e criação
de uma obra, ou de um conjunto delas, revela as interações com o
outro socialmente instituído, com a sociedade em si e com a cultura,
antes mesmo dessa interação se manifestar como obra ou na obra.
Apesar da relevância dos estudos do processo para a arte e para
a ciência, não há, entretanto, uma política documental (mesmo nos
estudos arquivísticos) que trate esses documentos e arquivos pes-
soais para além de uma visão memorialística e historiográfica, ou de
uma relação voyeuriste de acesso à intimidade do artista. Há, ainda
que equivocada, uma outra tendência no trato desses documentos e
arquivos, comum em projetos curatoriais: atribuir-lhes o status de
obra — o que é feito por meio de estratégias de emolduração desses
documentos, as quais os isolam de seu contexto e lhes colocam o
atributo de obra-prima (vários estudos de Rodin são hoje exibidos
como masterpieces do artista que, apesar de sua genialidade, nunca
lhes atribui outro valor que não o de estudo). Mas, como olhá-los de
modo investigativo?
Quando se é posto frente a frente com o conjunto desses registros
residuais do processo de criação de artistas — os documentos e ar-
quivos pessoais desse processo — está-se diante de um emaranhado
de fragmentos, muitas vezes desordenados cronológica, espacial
e mesmo formalmente. Essa tessitura de signos que se apresenta
contém desenhos, escritos, colagens, rasuras, layers e outros arqui-
vos digitais, pedaços de objetos, maquetes e toda sorte de artefatos
pertencentes aos mais diferentes sistemas semióticos que se colocam
agrupados ou avulsos. A percepção da ordem desses documentos
parece-nos, muitas vezes, ser mais complexa que a dos documentos
literários, pois não se tem a sequência um texto verbal em cons-
trução, a qual se evidencia em partes de um modo aparentemente
mais hierárquico. Ou seja, a própria construção do texto verbal exige
uma maior conexão entre as anotações. Nos documentos das artes
visuais, muitas vezes algumas imagens e/ou anotações verbais são
totalmente desconectadas de uma lógica linear ou temporal, embo-

pessoais
ra estejam numa mesma página, ou em uma sequência de páginas
formalmente delimitadas e ordenadas. De modo geral, não há uma
organização aparente; se há, pode-se considerá-la caótica, ou pelo
arquivos

menos em alguma ordem que transcende a hierarquia sequencial


das páginas dessas anotações organizada pelo artista, e nas quais
diferentes sistemas semióticos, como desenhos, escritos, fragmentos
de artista

de revistas ou jornais, se colocam como um universo em desalinho,


um aparente caos. Esses documentos revelam partes e passos do
artista em direção à obra, mas não a são obra — como alguns até lhe
arquivos

atribuem, equivocadamente, tal valor. Podemos exemplificar aqui


esta afirmativa se tomarmos o destino de muitos dos estudos de Ro-
din para mãos, rostos, fragmentos de estudos para suas obras que,
após sua morte foram fundidos em bronze e comercializados como
13
14 obras inéditas daquele artista — fato comum em muitas outras artes,
como rascunhos literários comercializados como obra de escritores.
Mas, se não são obras, o que são então esses documentos e ar-
José Cirillo

quivos do processo de criação nas artes visuais? Como conseguir


um tratamento investigativo de arquivos pessoais de artistas? Como
articular o apoio de outras ciências para uma possível compreensão e
verificação de relações entre esses arquivos e a gênese da obra? Como
se estruturam esses documentos no estudo da arte contemporânea?
Estas são algumas perguntas que a pesquisa que originou esta
reflexão se põe. Não se pretende neste livro responder a todas elas,
mas apresentar algumas reflexões que permitirão entender um
pouco mais das relações entre obra e processo estudados por meio
de documentos e arquivos pessoais da criação de artistas plásticos
contemporâneos, entendidos como correlatos com os documentos
de cientistas.

O que são documentos e arquivos do processo de criação nas artes


visuais?

Bem, entendidos como fenômenos da memória da obra, pode-se


afirmara que eles são registros materiais do gesto criador, marcas da
gênese de um conhecimento a ser compartilhado. São evidências da
temporalidade agostiniana e não-linear da mente criadora em ação, na
qual a ideia de presente (obra exposta), passado (processo de criação)
e futuro (circulação da obra) são apenas modalidades de presente,
pois cada um desses momentos do tempo estão intimamente ligados
e determinando o aqui e agora no ato criador.
Muitas vezes, entretanto, acabada a obra, esses registros materiais
são colocados à margem e, raramente, são resgatados fisicamente
em um novo percurso gerativo — embora a rede simbólica e mental
continue conectando de modo inconsciente todos estes estudos na
mente do artista em ação. Não obstante, o interesse contemporâneo
pelo estudo dos mecanismos e da estrutura do gesto criador devolveu
a essas marcas o frescor que lhes é inerente.
Dessa forma, o pesquisador do processo de criação coloca esses
arquivos novamente em ação, os acompanha de modo crítico-inter-
pretativo, buscando nexo ou leis nessa estrutura, geralmente, caótica,
desses arquivos pessoais de artistas. O crítico de processo os olha no
seu conjunto, na sua materialidade arqueológica como fragmentos
de uma cultura, pedações de um todo quase perdido.
O pesquisador do processo criativo, qual um arqueólogo, busca
nesses vestígios da criação desvelar sua possibilidade interativa, ele
procura compreendê-los, procura evidenciar suas funções no proces-
so de criação, colocando possibilidades gerativas que resultaram na
obra, ou no conjunto delas, expostos ao público. Enfim, o pesquisa-
dor do processo de criação coloca-os no caminho para desvelar suas
funções e seu movimento para além do arquivamento, afastando-os
do obscuro manto do esquecimento e revelando sua potência como
documento. Nessa busca, os documentos do processo — que cumprem
um papel fundamental para o artista no seu processo em busca da
obra — permitem ao crítico genético, um cientista dos arquivos de
artistas, o trabalho investigativo, crítico e interpretativo, evidencian-
do a dinâmica do gesto criador. Vale recordar aqui que definimos
documento de processo como um todo material (físico ou digital)
que resulta como marca, registros do processo de criação em ato.
Para Salles, eles são registros materiais do processo de criação. A
autora aponta as funções do crítico genético e coloca esse trabalho
muito além do mero dar visualidade contemplativa a esses resíduos,
mas os entende dentro de uma rede de relações que ampliam nossa
visão do próprio fazer da arte:

Além disso, o crítico genético vê que o processo criativo não é feito só de

pessoais
insights inapreensíveis e indiscerníveis, como romanticamente alguns
gostam de pensar. Há, sim, esses momentos sensíveis da criação, aos
quais não temos acesso; momentos que são fonte de ideias novas, ou
arquivos

seja, momentos de criação. O crítico genético assiste à continuidade,


no fluxo do processo criativo, desses instantes iluminados. A pesquisa
genética concentra-se na continuidade do pensamento que se vai desen-
de artista

volvendo em direção à concretização desses momentos de descoberta.


(SALLES, 2000, p. 37)
arquivos

Pode-se se afirmar que esses documentos revelam que o artista,


com toda a sua dinâmica criadora em mente, necessita demarcar
alguns instantes, registrar insigths, experimentar ideias antes de
partir para a matéria da obra. Pensados a partir de uma função inicial
(armazenar a ideia no frescor da criação), esses documentos parecem 15
16 evitar que a mente criadora, no turbilhão da própria criação, perca
essas imagens ou desejos. Assim, uma primeira reflexão investigativa
nos leva a pensar esses documentos como uma extensão da capaci-
José Cirillo

dade da memória humana de armazenar memórias e transformá-las


em lembranças. Parece que podemos pensar que esses arquivos são
auxiliares, ou ainda imprescindíveis para a mente criadora desempe-
nhar plenamente sua capacidade de efetivar uma ideia como obra.
Podemos pensar que os documentos de processo são páginas, ou
campos de registros externos ao cérebro, e que como uma espécie
de prótese, um tipo de HD externo, que tem como finalidade ampliar
a memória de artista, garantindo que a ideia não se perca entre os
outros milhares de registros que coabitam a mente criadora.
Assim, independente de sua classificação, os documentos do
processo são auxiliares da mente criadora, e funcionam como uma
espécie de prolongamento, uma extensão não-natural da memória
do artista1:

[...] extensão: instrumentos, mesmo que rudimentares, de origem orgâ-


nica ou não, e substituíveis à medida que se extinguem ou que outros
mais eficientes sejam desenvolvidos. Ou seja, algo que, estando para
além do corpo físico do artista, possa ser produzido permitindo prever
e antecipar ocorrências e, desse modo, garantir certo grau de previsibili-
dade e de alterabilidade no objeto, ou na ação resultante do uso desses
instrumentos. Essas extensões tornam o corpo mais eficiente, permitindo
a observação e a (re) contextualização do observado tanto espacial,
quanto temporalmente, garantindo certa antecipação, ou uma ideia
prévia da existência espaço-temporal do fenômeno em construção (no
caso das artes visuais, a obra apresentada ao público). Diferentemente
dos órgãos biológicos, os documentos do processo como extensões
podem ser adequadas e substituídas em função do seu aprimoramento
e da sua eficiência na execução da tarefa (CIRILLO, 2004, p.67).

Nessas extensões da mente criadora, cadernos de artista, ske-


tch books ou documentos avulsos, evidenciam-se esquemas men-
tais expressos em desenhos e códigos portadores de alto grau de

1  Cirillo, J.; Grando, A. Arqueologias da Criação: estudos sobre o processo de criação.


Belo Horizonte: C/Arte, 2009.
subjetividade, porém, a percepção da interação e da flexibilização
dos sistemas semióticos presentes nessas páginas, permitirá o acesso
a alguns aspectos fundantes do pensamento criador em ato. Somos
conduzidos assim para uma segunda questão:

Como conseguir um tratamento investigativo de arquivos pessoais de


artistas?

Ora, configurados como uma extensão da mente criadora, e


como arquivos pessoais, os documentos do processo exigem do
pesquisador, do teórico, do crítico ou do historiador da arte, estar
atento à singularidade e à generalidade neles contida. A busca está
na compreensão da ordem constitutiva, ou mesmo na percepção de
que esses documentos são uma possibilidade e a obra, deles decor-
rente, é uma escolha entre outras possíveis. A obra apresentada é,
portanto, uma versão dentro de um sem-fim de probabilidades. É o
que Hay (2007) definiu como possível tolerável: obra apresentada é o
resultado de um conjunto de escolhas de um conjunto de processos
evidenciados em arquivos, porém os mesmos arquivos em outros
conjuntos de escolhas poderiam originar obras consideravelmente
diferentes. Podemos pensar, assim, que a obra apresentada ao públi-
co é uma das possibilidades latentes naquele grupo de documentos,
dentro de um projeto poético que demarca o conjunto de obras de
um determinado criador.

pessoais
Essa potencialidade gerativa e interpretativa ilimitada é uma das
maiores dificuldades para se desvelar os procedimentos da mente
criadora, e característica fundamental para entendermos esses do-
arquivos

cumentos como arquivos pessoais passíveis de um estudo no campo


da arquivologia e da arte. Entretanto, diferentemente das ciências
mais duras, o artista não registra fórmulas ou equações que devem
de artista

seguir uma lógica cartesiana, ou uma possibilidade de repetição do


experimento. A mente do artista funciona em rede de significações
e os registros são como nós, pontes de acesso, ao complexo pensa-
arquivos

mento gerativo nas artes.


É fato que ao cientista do processo só estão acessíveis fragmen-
tos do movimento criador (grafados nos documentos do processo)
que cruzam e formam um objeto: a obra. Essa incompletude dos
documentos nos remete às reflexões de Santaella em suas análises 17
18 da semiótica de Pierce, em suas ponderações sobre a representação,
sobre o signo, tão evidente nas anotações dos artistas “[...] aquilo que
está representado no signo não corresponde ao todo do objeto, mas
José Cirillo

apenas a uma parte ou aspecto dele. O signo é sempre incompleto


em relação ao objeto” (SANTAELLA, 2000, p.45). É nesse campo mo-
vediço da incompletude do signo que se localiza a tarefa investigativa
sobre o processo de criação, para tentar compreender melhor, ou
ampliar a compreensão da gênese da obra, assim como da própria
obra. Isto faz do pesquisador desses arquivos pessoais um arqueólogo
da criação (CIRILLO e GRANDO 2009); e como tal, um cartógrafo
na geografia dessas extensões da mente criadora, buscando revelar
e compreender nesses documentos de processo as micro-relações
que vão se estruturando ao longo da genealogia da obra de arte, em
direção ao artista e seu saber-fazer.

DOS DOCUMENTOS AOS LUGARES DE CUSTÓDIA

Para estruturar um estudo desses documentos de artistas como do-


cumentos pessoais de cientistas da imagem, cientistas do sensível,
parte-se da ideia de que é necessária a estruturação de um banco
dados: documentos e arquivos pessoais e institucionais; fontes
documentais sobre o processo de criação nas artes visuais. Neste
sentido, faz-se necessário que se estruturem “lugares de custódia”,
reunindo grupos de pesquisadores que desenvolvam atividades
investigativas na formação de agentes da análise documental de
arquivos do processo de criação nas artes visuais, ou seja, que se
formem arqueólogos do processo.
Esse estudo arqueológico e genealógico deve centrar-se no aspecto
geral de cada arquivo, naquilo que é compartilhado culturalmente,
naquilo que os faz pertencerem às categorias dos vestígios da ação
criadora. Centrar-se na busca de uma Teoria Geral do Processo de
Criação. Ou seja, centrar-se nesses lugares de custódia e na amplia-
ção dos estudos desses arquivos pessoais, caminhando em direção
daquele todo teórico e metodológico que permite sua classificação
e organização para evidenciar recorrências e afinidades. Por meio
dessa classificação e organização, buscado dar visibilidade às fun-
ções e atividades comuns nos diferentes processos investigados.
Ainda para Santos:
Podemos entender que a classificação é antes de tudo lógica: a partir
da análise do produtor (organismo ou pessoa) de documentos de ar-
quivo, são criadas categorias, classes genéricas, que dizem respeito às
funções/ atividades detectadas. A classificação é geralmente traduzida
em esquema no qual a hierarquia entre as classes e subclasses ou gru-
pos e subgrupos aparece representada espacialmente. Este é o Plano
de Classificação (SANTOS, 2005, p. 38).

Essa busca investigativa para analisar os documentos de artista


como documentos pessoais, compatíveis com os documentos de
cientistas, deve, inicialmente, estar centrada na compreensão da
ordem constitutiva interna desses arquivos, buscando estabelecer
esse esquema de classes e subclasses apontados por Santos (2005).
Não obstante, nos centros de custódia (laboratórios e grupos de
pesquisa institucionais), essa busca deve estar focada na percepção
de que esses documentos são uma possibilidade e que a obra deles
decorrente, é uma escolha entre outras possíveis, estando o pes-
quisador frente a frente com objeto investigativo “ilimitado em sua
potencialidade interpretativa” (SALLES, 2000, p.52). Essa potencia-
lidade interpretativa ilimitada é uma das maiores dificuldades para
se desvelar os procedimentos da mente criadora materializados em
signos verbais, visuais, sonoros ou numéricos, e outras múltiplas
possibilidades. O signo é sempre “incompleto em relação ao objeto”

pessoais
(SANTAELLA, 1998, p.45).
É nesse campo movediço da incompletude do signo, bem como
na busca para fugir da poeira do esquecimento nos arquivos, que se
arquivos

localiza a tarefa do pesquisador do processo criativo. Para Grésillon


(2002, p.160), essa tarefa
de artista

[...] consiste, de um lado, em dar a ver, isto é, em tornar disponíveis,


acessíveis e legíveis os documentos autógrafos que antes de tudo não
passam de peças de arquivo, mas que ao mesmo tempo contribuíram
arquivos

para a elaboração de um texto e são testemunhos materiais de uma


dinâmica criadora. Em outros termos, o pesquisador reúne, classifica,
decifra, transcreve e edita dossiês manuscritos que habitualmente são
chamados de ‘prototextos’.
19
20 A elaboração desse chamado prototexto é, pois, o primeiro movi-
mento do arqueólogo do processo criativo em busca de entender a
organização caótica que aparentemente se coloca nos documentos
José Cirillo

do processo de criação que antecedem a obra; eles são momentos do


caminho percorrido, ou melhor, fragmentos grafados nesse devir da
obra. O prototexto se configura como o arquivo inicial do qual serão
extraídas categorias, grupos e esquemas que permitam sua leitura
analítico-crítica. Para que possa ser possível o equacionamento das
operações que rege esse vir-a-ser da obra, registrado nos suportes
móveis ou em cadernos, é preciso a mediação do pesquisador do
processo. O contato inicial com o sem-fim de documentos norteados
pelo gesto criador conduzirá, como aponta Grésillon (1994), à pos-
sibilidade de reunir e classificar: a organização caótica cede lugar
ao corte, ao recorte do objeto de estudo — é o momento em que se
estabelece o ponto de partida e o ponto final (os quais são fictícios
pelo caráter rizomático dos próprios documentos, sua circularidade
e inacabamento). Para Salles (2000), a obra apresentada ao público é
a representação das buscas do artista, apenas a ponta de um iceberg
que é gerado e gera outros processos de construção; esse movimento,
regido pela ideia de causação final (SANTAELLA 2000b), reforça a
ideia de incompletude do processo de criação.
Assim, entende-se, pois, por prototexto a elaboração ou orga-
nização crítica de um dossiê de documentos do processo a serem
analisados. Tomamos aqui as palavras de Cecília Salles para consi-
derar que esse recorte carrega em si um forte caráter subjetivo, dado
pela própria intencionalidade investigativa do pesquisador. Para
Salles, “fica claro, deste modo, que o prototexto não é o conjunto de
documentos, mas um novo texto formado por estes materiais, que
coloca em evidência os sistemas teóricos e lógicos que os organizam”
(SALLES 2000, p.58). Assim, o prototexto é o conjunto de documen-
tos mediados pela mente do pesquisador, o que define um ponto de
vista determinado, uma entre outras possibilidades investigativas. A
própria definição do prototexto já evidencia uma hipótese, mesmo
provisória, que norteará e permitirá a primeira análise. O prototexto
não se põe simplesmente como uma equação a ser resolvida; nele o
pesquisador do processo busca estabelecer relações entre diferentes
sistemas não — lineares que se definem na ação de criação. Como
equação preliminar, o prototexto é o desdobramento dos movimentos
inerentes aos documentos do dossiê investigado e, como tal, vai de-
finir efetivamente os recortes da pesquisa — um constante diálogo
do pesquisador com os documentos, um mecanismo comunicativo
que envolve o pesquisador e o objeto pesquisado. Assim, é no des-
dobramento investigativo, na análise do prototexto, que os estudos
do processo de criação encontram a definição mais precisa de seus
recortes. Desse modo, a equação em busca da compreensão da orga-
nização caótica vai se resolvendo e desvelando alguns dos mistérios
que envolvem tanto a construção de uma obra, quanto o processo de
criação como um todo, pois permite o afloramento de teorias sobre
o ato criador (SALLES, 2000).
É fato que os documentos do processo trazem em si dados sobre
a ação da mente criadora: podem ser encontradas as mais diferen-
tes informações que revelam momentos das reflexões durante o
processo de criação. Dentre elas, toda a gama de experimentações
que antecedem a produção da obra: forma, dimensão, cor, material,
etc. A investigação do prototexto irá permitir que o projeto poético
de uma obra, ou do próprio conjunto de obras de um artista, seja
parcialmente compreendido. A maior ou menor complexidade dessa
compreensão está associada ao conjunto de hipóteses levantadas
pelo crítico genético e sua possível verificação nos documentos do
processo. Entende-se por projeto poético a ação da mente do artista
com intencionalidades e tendências, as quais vão sendo reveladas e
compreendidas pelo próprio artista ao longo do ato de construção da

pessoais
obra. Essa intencionalidade e tendência do projeto do artista podem
ser evidenciadas por meio de estudos analítico-críticos, à medida que
eles revelam as nuances do projeto poético de diferentes artistas.
arquivos

Na busca por desvelar e compreender aspectos do projeto poético


presente nos documentos do processo, objetivando-se descortinar
suas primeiras possibilidades e categorias de equacionamento e pro-
de artista

cura estudar as variáveis do processo de criação. Essas variáveis já se


colocam nos próprios documentos e em suas funções. Instaura-se aí
uma primeira questão: como e quais varáveis das funções dos documentos
arquivos

se apresentam no conjunto em análise, no prototexto? A resposta a esta


pergunta passa, automaticamente, por pensar uma classificação,
mesmo que provisória, dos arquivos pessoais dos artistas.

21
Por uma taxonomia dos documentos de
processo
“O tempo é a extensão da criação e a extensão da mente.”
(Santo Agostinho)

Os arquivos de artista, uma extensão da mente criadora, aqui são com-


preendidos como similares aos arquivos pessoais de cientistas, pois
contem reflexões, processos dúvidas e outros caminhos que levam à
descoberta: a obra. Esses arquivos pessoais de artistas são, como nas
ciências da informação, passíveis de um estudo que lhes evidenciem
suas características fundantes, sua natureza de documento.
Aqui, apresentamos uma investigação que caminha em direção

pessoais
à uma primeira articulação desse plano geral de classificação dos
documentos de processo nas artes visuais: a compreensão e demar-
cação dos tipos e funções dos documentos e arquivos investigados.
arquivos

Essa organização propõe classificações ainda genéricas, baseadas em


critérios tipológicos — que agrupa documentos por espécie/tipo — ; e
funcionais — que agrupa documentos que dizem respeito às funções
de artista

e/ou atividades específica desenvolvidas pelo titular do arquivo.

TIPOLOGIA DOS DOCUMENTOS E ARQUIVOS


arquivos

A análise da complexidade dos documentos do processo evidencia


como o artista armazena e experimenta diferentes níveis ou categorias
da constituição do objeto estético. Essa diversidade de informações,
presente nos registros, anexa-se à própria diversidade dos suportes 23
24 que as contém — o que irá definir que tipo de documento se está
analisando. Segundo Louis Hay (2002, p. 43), o que dá contornos à
nomenclatura dos documentos, ou do seu conjunto, são a articulação
José Cirillo

dos objetos e suas funções.


Assim, a sistematização e análise dos dados levantados, após uma
primeira etapa de identificação, permitiram a observação de algumas
características primordiais quanto à tipologia dos documentos das
artes visuais, levando a uma taxonomia dos documentos do processo
(CIRILLO, 2004). Os tipos mais comuns de documentos do processo
são os cadernos de artista, as agendas e folhas avulsas, que se prestam
a estudos predominantemente bidimensionais. Também podem ser
encontrados arquivos digitais, bem como estudos tridimensionais, ou
ainda maquetes da obra e/ou modelos para fundição em outros mate-
riais. Esses diferentes suportes trazem consigo a interação de vários
sistemas semióticos, dentre os quais estão textos verbais, visuais e
alfa-numéricos, com predominância dos textos visuais.
Tipologicamente, com base nos estudos de Louis Hay para os
arquivos de escritores, de Salles (1998), assim como na observação
e análise daqueles próprios das artes visuais, eles (os documentos)
podem ser classificados em suportes fixos e suportes móveis.
a) Os suportes fixos são aqueles cujas páginas são “solidariamente”
fixas (costura, brochura, grampo, cola, etc.). Podem ser, também como
na literatura, cadernetas, cadernos e diários — sendo as cadernetas
um pequeno caderno que pode acompanhar o corpo do artista nos
mais distintos lugares e presta-se mais comumente a anotações rá-
pidas, breves registros que evitam a fuga. Hay (1999) ainda as divide
em dois tipos: cadernetas de esboço: anotações rápidas o suficiente
para que não escapem à memória; e as cadernetas de pesquisa, desti-
nadas às notações de uma obra em andamento. Ainda para Hay, os
diários marcam o tempo artificial do calendário, organizados pela
ordem das páginas e das anotações — são o lugar do tempo como
o compreendemos, constituem-se pela malha da escrita no tempo
(HAY, 1999, p. 7). Nessa função articulada com o tempo e a dimen-
são da anotação, reside a distinção que o autor faz entre diários e as
cadernetas. Os cadernos se diferenciam por uma questão simples:
seu tamanho físico — daí origina-se diferenças conceituais que se
revelam por serem documentos com maior organização e elabora-
ção das ideias nele trabalhadas, vide os famosos cadernos de artista
que são um fetiche nas artes visuais e nas curadorias de exposições,
deixando inclusive de ser o locus de anotação para se transformar
em uma outra categoria de obra, mesmo em tempos de falência das
categorias hegemônicas nas linguagens artísticas.
Uma subcategoria nova de documentos pode ser incorporada
nessa categoria de suportes fixos, se considerarmos as últimas duas
décadas: os documentos ou arquivos digitais, pois se buscando o
conceito de Hay que os considera fixos por serem “solidariamente
unidos”, pode-se afirmar que a mídia digital (Cd, DVD, pendrive, site
ou mesmo a CPU, ou ainda o conceito de “nuvem”) funciona como
um procedimento solidariamente “agrupado” daquele conjunto de
documentos.
b) Os suportes móveis compreendem fichas, folhas avulsas,
páginas arrancadas, conjuntos que garantem a disponibilidade de
todos os seus elementos permitindo sua visualização simultânea.
Vale a pena salientar aqui que as maquetes e estudos tridimensionais
podem ser vistos em analogia aos suportes avulsos apontados por
Hay, e funcionam como documentos móveis, posta a sua mobilidade
e seu uso como suportes para anotações de ideias, acertos e proje-
tos. Em ambos os casos, grafados em suportes fixos ou móveis esses
documentos e arquivos do processo funcionam como uma extensão
da mente, como uma ampliação artificial, e não menos importante,
da memória do artista.
Quanto à materialidade dos arquivos, podemos afirmar que esta

pessoais
é uma escolha pessoal, a partir das tecnologias que estão disponíveis
e a fisicalidade da notação pretendida e, claro, do projeto poético em
si. Assim, cadernos, cadernetas e folhas avulsas são geralmente em
arquivos

papel branco, do tipo AP e de gramatura variando entre 75g e 90g.


Alguns artistas utilizam, em determinados momentos, folhas de papel
manteiga ou ainda de convocações de reuniões ou mesmo papéis de
de artista

propaganda. Também são verificados estudos em folhas de papel tipo


pardo (tipo Kraft ou cenário). Maquetes são de papelão, argila — em
natura ou pintados — e também se apresentam, de modo cada vez
arquivos

mais presente, em mídias digitais. Há ainda modelos em pequena


escala e desenho sobre fotografia, ou com recorte de revistas, que
aparecem em menor quantidade, mas evidencia a potencialidade
desse material. As mídias contemporâneas ligadas à estética da
virtualidade estão desenvolvendo e aprimorado os suportes digitais, 25
26 que carecem de estudos específicos posteriores que ultrapassam os
limites deste estudo.
José Cirillo

FUNÇÃO DOS DOCUMENTOS E ARQUIVOS


DE ARTISTAS: UMA LEITURA POSSÍVEL

Entendido que esses arquivos de artistas são extensões da mente


criadora e que funcionam como marcas indiciais do processo de
criação, partimos para a compreensão de suas possíveis funções no
ato criativo. De modo geral, a partir da análise dos diferentes tipos de
arquivos de artistas plásticos contemporâneos, brasileiros e interna-
cionais (CIRILLO 2004; SALLES, 1998), pode-se dizer que são funções
dos documentos do processo: armazenamento e experimentação.
O armazenamento é uma função claramente verificada nos di-
ferentes tipos de suportes (digital, cadernos, cadernetas, maquetes,
etc.), assim como os diversos tipos de anotações e registros (grafismos
variados, textos verbais que permitem o desenvolvimento da ideia,
colagens, arquivamentos digitais, e toda a sorte de meios que irão
variar de um artista para outro); tem como objetivo registrar a ideia
no seu frescor e trabalhá-las no sentido de se aproximar da obra a
ser apresentada futuramente. Verifica-se que esses arquivos são re-
servatórios da mente criadora, são experiências sensíveis do sujeito
criador registradas, podendo, ou não, ser [re]operadas em obras.
Desse modo, os cadernos de artista, como lócus de armazenamento de
ideias geradoras, são testemunhos da singularidade do sujeito criador
e dos esquemas mentais que envolvem o seu processo de criação.
A análise dos documentos e arquivos dos artistas permite a verifica-
ção e classificação destes a partir de diferentes tipos de experimentação
presentes nesses arquivos. A análise desses diferentes documentos
permitiu uma primeira classificação e descrição geral de possíveis
experimentações presentes nesses arquivos, e passíveis de uma
taxonomia específica elaborada por Cirillo (2004). Dialogamos aqui
novamente com Santos (2005, p. 44), no que se refere a compreender
que esse instrumento metodológico, para tratar os arquivos pessoais
como documentos no campo das ciências, não deve “perder de vista
as mudanças processadas”, sendo o “mais amplo possível, flexível,
capaz de cobrir todo o ciclo da atividade e garantir o tratamento
adequado dos arquivos”.
É importante salientar que, pela observação, alguns arquivos
desses artistas têm maior predominância de um ou de outro tipo de
experimentação — o que leva a afirmar que a separação aqui apre-
sentada é resultante de uma possibilidade de classificação dessas
predominâncias para fins de uma categorização dos tipos nos docu-
mentos, tentando garantir, ou melhor, permitir uma leitura crítica
desses arquivos a partir de uma combinação de critérios temáticos
na definição das séries taxonômicas. O estudo crítico-reflexivo dos
documentos e arquivos, de artistas capixabas permite falar de cinco
tipos de experimentação, que podem ser utilizados para uma análise
dos dados sobre o processo de criação e sobre a história da arte com
foco nos estudos do processo criativo. São essas as categorias: 1)
eidético ou formal; 2) cromático; 3) matérico; 4) topológico ou espacial;
e 5) conceitual. Vale salientar que, dependendo da particularidade
do projeto poético, algumas dessas experimentações podem não
aparecer, ou estarem menos evidentes. Pretende-se aqui apresen-
tá-las como categorias em formação que, como representação que
se faz de um determinado fenômeno, compartilham do falibilismo
e da incompletude característica dos signos (CIRILLO, 2004, p. 73).

A análise de diferentes documentos em arquivos pessoais de ar-


tistas, de diferentes linguagens, permitiu uma primeira classificação
e descrição geral de possíveis experimentações presentes nesses
documentos e passíveis de uma taxonomia inicial. É importante

pessoais
salientar que alguns documentos têm maior predominância de um
ou de outro tipo de experimentação — a separação aqui é resultante
de uma possibilidade de classificação dessas predominâncias para
arquivos

fins de uma categorização dos tipos nos documentos. Salientamos


ainda que a taxonomia proposta aqui é maleável e não descarta o
caráter híbrido dos diferentes tipos de experimentação presentes nos
de artista

documentos do processo de artistas e criadores nas artes visuais. Vale


salientar que boa parte dos projetos de artistas apresenta os diversos
tipos ao mesmo tempo. Alguns desses documentos são, praticamente,
arquivos

projetos finais (Figira 1) que antecipam os elementos constitutivos


da obra a ser apresentada ao público.

27
28
José Cirillo

Figura 1 Shirley Paes Leme, Projeto para instalação (1989-1990), documento avulso;
técnica mista sobre fotografia. Fonte: anotações da artista (Banco de Dados do LEE-
NA/UFES).

Nesse projeto de Shirley Paes Leme, podem ser observadas experi-


mentações conclusivas sobre cor, forma, textura, material, interação
e disposição espacial da obra a ser apresentada ao público. O uso
da fotografia, nesse caso, como suporte para a anotação, evidencia
a investigação não só da obra, mas também dos modos de registrar
(armazenar) as informações do projeto utilizando-se de outros recur-
sos técnico-construtivos diferentes dos tradicionais suportes comu-
mente utilizados nas artes plásticas. Observando assim os arquivos
de artistas, pode-se perceber que podemos verificar categorias de
experimentação. De modo geral, evidenciamos que são cinco esses
tipos de experimentação verificáveis nos documentos do processo
nas artes visuais: eidético ou formal, cromático, matérico, topológico ou
espacial e conceitual. Vale salientar que, dependendo da particularidade
do projeto poético de cada artista, algumas dessas experimentações
podem não aparecer, ou estarem menos evidentes. Pretende-se aqui
apresentá-las como categorias em formação que, como representa-
ção que se fazem de um determinado fenômeno, compartilham do
falibilismo e da incompletude característica dos signos.
EXPERIMENTAÇÃO EIDÉTICA OU FORMAL


A preocupação com a construção da forma é uma das primeiras


experimentações que o artista faz ao iniciar o processo de uma
determinada obra (tempo da gênese). É quando começa a tomar
existência, mediada pelo desenho, uma forma que até então existia
como possibilidade, como esquema de imagens mentais a serem
trabalhadas. É o momento da tomada de consciência das coisas que
se vê ou se imagina e de sua tradução em configurações que prefi-
guram uma perspectiva de visibilidade. Entra em campo um jogo de
linhas e formas, na maioria das vezes, representações bidimensio-
nais (enquanto na fase de rascunhos gráficos), por meio das quais
o artista testa a forma ou as possibilidades formais do objeto em
construção. Uma multiplicidade de códigos visuais vai interagindo
entre si e com outros códigos semióticos em busca da “forma ideal”;
essa fase marca uma busca pela chave específica que definirá o corpo
do trabalho a ser apresentado: sua constituição eidética geral. Nos
exemplos a seguir, tem-se uma ideia da intersemiose que envolve
esse momento da criação: códigos visuais e/ou verbais dialogam
entre si e com o artista enquanto se busca a forma objeto. São esses
primeiros momentos que, muitas vezes, antecedem a investigação
que ocorrerá nos demais tipos de experimentação. Esse momento se
dá tanto em suportes avulsos (Figura 2a e 2b), quanto em outros
tipos de suportes (Figura 2c) e não somente nos cadernos de artista

pessoais
propriamente ditos — questão que irá variar muito de artista para
artista, dependendo de sua relação com o procedimento escolhido
para anotar a ideia.
arquivos

A Figura 2a é um projeto de tapeçaria desenvolvido em Weimar,


na Alemanha dos anos vinte. A Bauhaus de Weimar criou e manteve
o primeiro atelier de tecelagem moderno, cuja direção, produção e
de artista

pesquisa eram realizadas principalmente por um grupo de mulheres,


dentre elas, Gunta Stölzl e Anni Albers (WELTGE, 1993). Muito embora
esse atelier tenha sido criado originariamente para acomodar o lugar
arquivos

da mulher na proposta revolucionária da Bauhaus, muitas foram as


investidas masculinas nas investigações têxteis do atelier. O projeto
em questão é um estudo para tecelagem do artista Ângelo Testa. É
comum, entre os artistas da fibra, o uso de papéis avulsos para a
elaboração de projetos, devido à necessidade de acompanhamento 29
30 do projeto exigido por essa linguagem visual, quando de sua constru-
ção propriamente dita. Na figura, pode-se observar que esse estudo
expressa uma preocupação com a forma e textura visual da obra a
José Cirillo

ser apresentada.

Figura 2a Bauhaus, estudos preliminares para tapeçaria, 1923 Fonte: WELTGE, Sigrif
W. Bauhaus textiles. London : Thames and Hudson, 1993

Figura 2b Kim Adams, Estudo da instalação Auto Office haus, Canadá, 1996. Fonte:
LANDESMUSEUM. Contemporary Sculpture: projects in Münster, 1997
A Figura 2b, também em papel avulso, é um estudo preliminar do
artista canadense Kim Adams para a instalação Auto Office Haus, rea-
lizada em 1996 em um posto de gasolina no Canadá (MATZNER, 1997).
Kim faz um estudo geral da forma com desenho em caneta de ponta
porosa, esboçando possíveis intervenções no prédio. A observação
da obra, à direita, permite perceber que o esboço se preocupa princi-
palmente com as formas, com a volumetria geral da instalação, não
evidenciando outro detalhe mais expressivo em outras dimensões, ou
no máximo com algumas reflexões visuais do campo topológico da obra.
Outro instrumento ou meio de experimentação formal é a maque-
te — uma espécie de miniatura da obra que permite investigar sua
constituição geral. A Figura 2c mostra um estudo de Duchamp para
a obra Etant Donnés — um conjunto multimídia composto por uma
porta antiga, tijolos, veludo madeira, uma pintura em couro esticado
numa moldura de metal, galhos, alumínio, ferro, vidro, plexiglas,
linóleo, algodão, luz elétrica, etc.; é a última obra realizada por ele
e em total segredo (Fig. 2d). A maquete é um modelo dobrável em
cartão, apresentando-se posteriormente como parte das instruções
do artista para a instalação (MINK, 1994).

pessoais
ARQUIVOS

Figura 2c (esquerda) Marcel Duchamp, Maquete em papelão da obra Ettant Donnés,


de artista

1946-1966 Fonte: MINK, Janis. Marcel Duchamp: a arte como contra-arte. Köln:Taschen, 1994
Figura 2d (direita) Marcel Duchamp, Vista parcial da montagem original de Ettant
Donné, 1946-1966 Fonte: MINK, Janis. Marcel Duchamp: a arte como contra-arte. Köln:-
ARQUIVOS

Taschen, 1994

Tendo trabalhado durante cerca de vinte anos nessa obra, pouco


se tem da versão original realizada pelo artista, mas esses estudos e
fotografias da obra em processo permitem que se tenha uma noção 31
32 dos mecanismos que envolveram a mente do artista nas duas déca-
das que o projeto poético da obra o consumiu. Uma versão atual de
Etant Donnés está em exibição permanente no Philadelphia Museum
José Cirillo

of Art, montada posteriormente à morte de Duchamp, a partir das


informações deixadas por ele em suportes fotográficos, maquetes e
anotações sobre a obra.
Podemos observar aqui nestes documentos pessoais tridimen-
sional, maquete em papel e fotografia da primeira montagem da
obra, que o artista tenta dar forma geral ao que será o obra, embora,
claro, a questão de localização futura de objetos que constituem a
obra aparecem anotados na superfície de cada lâmina de papel.
Parece interessar aqui mais o formato geral que as particularidades
constitutivas da futura obra.
As experimentações do tipo eidético ou formal são, portanto, uma
das possíveis entradas para se compreender os passos da mente
criadora, a qual não opera de modo hierárquico ou cronológico. A
classificação dessa experimentação como passo inicial é mero dida-
tismo, pois a dinâmica da criação pode ser ativada simultaneamente
por diferentes estopins, e mesmo, como vimos, em um mesmo do-
cumento temos a presença de mais de um pensamento construtivo,
mas falamos aqui das predominâncias em cada um deles. De qual-
quer modo, essa análise é um passo em direção a uma cartografia
do projeto poético da obra a ser construída.
É nesse nível que parece se dar a atualização a ideia sob a forma
de um rascunho da obra: os rascunhos presentes nos documentos
garantem o acesso apenas a partes daquilo que foi registrado. O
avanço das investigações formais implica, automaticamente, a bus-
ca da solução de outras questões do objeto, como sua constituição
material, sem a qual a obra não existirá.

EXPERIMENTAÇÃO MATÉRICA OU MATERIAL

Desveladas algumas percepções sobre a forma geral evidente nos


arquivos pessoais dos artistas, podemos dizer que essa forma precisa
existir materialmente. A obra a ser exibida carece de materialidade
para constituir-se como um objeto sinestésico que se colocará ao
percebedor/público. Essa investigação da mente criadora por meio
de suas anotações nos documentos de processo visa a dar corpo à
obra, mesmo que na virtualidade do projeto. O movimento que se
instaura é no sentido de verificar a melhor matéria para a futura
obra. A fisicalidade da obra pode ser dada tanto por meio de matérias
tradicionais (materiais modeláveis ou fundíveis, orgânicos, minerais
ou sintéticos, fotossensíveis, pigmentos e tintas em suportes diver-
sos, matérias perecíveis ou perenes, etc.), como por uma existência
ligada à virtualidade das matérias digitais, ou, ainda, ter sua presença
associada à relação espaço-temporal das artes performáticas. Nos
documentos de processo, essa busca pela materialidade se dá no
campo projetivo, numa hipótese estética. Cada uma dessas hipóteses
materiais apresentam-se como categorias matéricas, cada uma delas
carregada de conteúdo, pois a matéria só é arte quando ela própria
é a expressão de um conteúdo (PAREYSON, 1989). Essas questões da
relação matéria-conteúdo serão mais bem trabalhadas quando da
análise das experimentações conceituais.

pessoais
ARQUIVOS
de artista

Figura 3a T. Kawamato, Estudo para Boat Travelling, 1997. Fonte: LANDESMUSEUM.


Contemporary Sculpture: projects in Münster, 1997. Transcrição: “Roof plan (11 96) Trans-
ARQUIVOS

parent plastic roof cover Easy to open and close by hand roof — all natural light”.

A experimentação matérica vai revelar, assim, partes da relação


do artista com a matéria, ao menos com aquela idealizada para ser
efetivada em obra. Se a ideia da matéria preexiste à obra, muitas 33
34 vezes, porém, se confunde com ela; é o processo de criação que
vai resgatar e esclarecer essa relação, permitindo perceber em que
momento o artista, condicionado pelas exigências da matéria, toma
José Cirillo

para si a identidade da matéria e a transforma em obra.


Na Figura 3a, em um estudo para instalação realizada em Munster,
na Alemanha, em 1997, podem ser observados alguns dos procedi-
mentos da mente criadora na sua reflexão quanto aos materiais e às
características de sua materialidade. A obra Boat Travelling propunha
uma viagem física e simbólica dos “passageiros” por um percurso
entre uma clínica de tratamento de viciados e o centro da cidade. O
debate sobre a ideia de isolamento e a possibilidade de sua quebra
exigiu uma forma: o bote e a ponte; e uma materialidade específica
que reafirmasse isso. Nesse estudo, a forma parece estar definida, o
plano formal geral do objeto, mas é preciso pensar como os elementos
materiais darão força ao conceito proposto no projeto poético em
curso. O uso de madeira na estrutura e as investidas em materiais
transparentes para o teto do boat eram fundamentais para a construção
do efeito de sentido da obra. Pode-se ler, no canto esquerdo superior
da página: roof plan (11.96) [plano para telhado]; transparent plástic
roof cover [cobertura de plástico transparente]; easy to open and close
by hand [fácil de abrir com as mãos]. A facilidade de manuseio, bem
como a possibilidade de integração visual do objeto com o espaço do
entorno são características inerentes a essa matéria: o plástico. Vale
salientar que a transparência do plástico remete à ideia de ar com-
pactado, comprimido numa película capaz de manter o isolamento
entre os dois mundos (o da insanidade e o da cidade).
Compreender essa relação é vital no processo de criação aqui
exposto, pois a matéria é insubstituível e qualquer alteração se cons-
tituirá como uma mudança da própria obra. Por isso, essa relação
artista-matéria é condição fundamental para que a imagem mental,
transformada em imagem geradora nos documentos do processo,
comece a ganhar corporeidade em direção à obra em processo. Os
documentos pessoais trazem vestígios dessas experimentações em
busca da matéria que se tornará obra. E essa busca é feita tanto por
meio de anotações visuais (linhas, cores, setas e planos, quanto ver-
bais (alfanuméricos). É essa relação de inseparabilidade da matéria
com a forma e o conceito da obra que fica evidenciada nas anotações
predominantemente materiais, como no caso das anotações de
Artur Barrio, figura a seguir, em sua reflexão sobre os copos a serem
utilizados em uma de suas instalação. Informações materiais estão
presentes: copos; diversos tipos; 1) pesados; 2) leves; 3) muito leves. O
artista aponta a constituição física do objeto escolhido nessa etapa
do processo (Figura 3b).

Figura 3b Artur Barrio, Página de um dos seus cadernos de anotações. Fonte: MAC-Ni-
terói. Catálogo da exposição Ocupações

Observa-se nesta anotação de Barrio que a transparência vidro

pessoais
e o peso dos copos é fundamental e o mesmo se dá no conjunto de
observações sobre os balões coloridos (azul e vermelhos), ou o plástico
frio, o tecido frio. A correlação entre as diferentes materialidades é
ARQUIVOS

claramente investigada nessa anotação.


Já no projeto do artista alemão Wolf Vostell, a materialidade é
testada não me sua forma verbal, mas na característica de sua trans-
de artista

parência (do vidro) em sua visualidade: a caixa de cristal, indicada


verbalmente na lateral inferior direita (cajá de cristal), é representada
no projeto como massa transparente na qual centenas de pontos
ARQUIVOS

escuros ocupam o lugar dos insetos previstos; as formas orgânicas


em vermelho são identificadas como cupinzeiros (térmitas); o carro,
indicado verbalmente como cadillac, é representado sendo tomado
pelos cupins (termitas). Esse é o projeto de Vostell para a instalação
O Sonho da Razão Produz Monstros, realizada durante a ECCO 92, na 35
36 cidade do Rio de Janeiro. Aqui, novamente é evocada a transparência
inerente à matéria, agora do cristal; em sua materialidade ele fun-
ciona como uma cortina de ar compacto que separa dois mundos:
José Cirillo

o do invasor (monstros gerados pelo sonho) e o do público ( voyeur


que acompanhará a dinâmica existencial da obra a ser realizada).

Figura 3c Wolf Vostell, Estudo para a instalação realizada durante a ECCO 92, Rio de
Janeiro, 1992 Fonte: MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Reperti. Nuremberg: DA-
Varlag das Andere,1992. Transcrição: << el sueño de la razón produce Monstros>> Caja
de cristalç Cadillac; Termitas

É também do resultado da interação forma-matéria-artista que


os procedimentos técnico-construtivos serão definidos. Retomando
Etant Donnéss, Duchamp, antes da definição da obra, testa a pintura
da figura feminina em diversos materiais até decidir-se pelo couro,
que, segundo ele, dava ao voyeur a sensação de realidade esperada
por ser vista através do buraco da porta (MINK, 2000).
Assim, podemos afirmar que a matéria condiciona o artista para
dar corpo à obra, no sentido de “[...] que o artista sofre as exigências
da matéria e está obrigado a sujeitar-se a ela e a servi-la” (PAREYSON,
1989, p.124), mas mais que a servir, serve-se também de seus efeitos
sensíveis e incorpora-los como elementos da obra em processo.
Assim, é importante ressaltar que essa relação é bilateral. Ao ceder
às exigências determinadas pelos materiais em sua materialidade, o
artista se apodera delas como linguagem; não há o predomínio de um
sobre o outro, mas, sobretudo, uma relação dialógica estabelecida no
nível intrapessoal da comunicação expressa no processo de criação.

EXPERIMENTAÇÃO CROMÁTICA

Na continuidade de entender um pouco mais dessas hipóteses visuais


que vão se estruturando como experimentações no processo criati-
vo, evidenciado nos documentos de processo, podemos apontar as
relações efetivas com a cor. Esse é outro aspecto da experimentação
que pode ser observado no processo de criação: a investigação das
relações da forma e matéria com a cor e a luminosidade, caracte-
rísticas da materialidade presencial da obra. Considerando-se que
a cor é resultante, muitas vezes, já de uma característica física dos
materiais, sendo percebida pelo modo como uma determinada ma-
téria absorve ou reflete a luz, conclui-se que toda matéria estabelece
uma relação de luminosidade e, consequentemente, de cor. Assim,
pode-se considerar, nas artes visuais, que, mesmo nos trabalhos
em branco e preto, como é o caso predominante de gravuras, ou em
algumas pinturas e desenhos de Kieffer, está presente a relação de

pessoais
luminosidade e espacialidade entre a cor do suporte e a cor da ma-
téria pictórica impregnada nesse suporte, bem como a capacidade
de esses materiais refletirem a luz ou absorvê-la. No caso de uma
arquivos

gravura, a escolha por um determinado tipo de textura da matriz irá


definir áreas com maior ou menor rugosidade, explorando o “preto”
em suas mais diversas tonalidades, saturações e, consequentemente,
de artista

luminosidade. Desse modo, pode-se supor que a cor é parte integrante


da maioria das obras pictóricas e da grande maioria das produções
tridimensionais e de suas variações espaço-temporais, como as artes
arquivos

performáticas e as instalações.
Assim, a cromaticidade e a luminosidade da matéria construtiva
e da obra são partes integrantes da experimentação cromática. Esse
momento é praticamente simultâneo com as decisões materiais, pois
a escolha de determinadas matérias já define padrões e variações 37
38 cromáticas, já que isso é também uma característica física da maté-
ria escolhida. Não se pode descartar, porém, que muitas vezes essa
experimentação antecede o manuseio do material. As Figuras 4a e
José Cirillo

4b são páginas dos cadernos de Benita Otte, do atelier de tecelagem


da Bauhaus (1925). Nesses estudos, pode-se verificar a investigação
da artista em busca de uma interação do vermelho, azul e o ama-
relo a partir dos círculos e sua possível relação como padronagem
têxtil. Não se está ainda experimentando as relações cromáticas na
matéria em si, mas no campo da própria fisicalidade da cor e em
suas relações, antecedendo, portanto, o estudo dessa manifestação
na matéria têxtil. No caso de Otte, o material (lã) é praticamente
uma invariável no seu processo de criação, entretanto esse material
aceita transformações cromáticas numa gama praticamente infinita,
se considerarmos os corantes químicos inventados ainda no fim do
século XIX. Pode-se afirmar, nesse caso, que o estudo da cor é parte
fundamental na construção da obra, pois ele será um dos principais
diferenciais entre uma e outra obra.

Figura 4a e 4b Benita Otte, Páginas de estudo de cores para tapeçaria, 1924 Fonte:
WELTGE, Sigrif W. Bauhaus textiles. London: Thames and Hudson, 1993

Essa mesma preocupação com a cor pode ser observada nesses


estudos de Gunta Stölzl (Fig 4c), que fazia vários estudos prelimina-
res em aquarela e lápis para estabelecer a relação cromática de suas
tapeçarias, as quais introduziram uma mudança radical na linguagem
têxtil no início do século XX (WELTGE, 1993). Em algumas outras
obras mais contemporâneas, a cor e a matéria confundem-se como
sendo o mesmo elemento, como em objetos de Anish Kapoor, ou ainda
em Móbile Bar (Fig. 4d), o artista alemão Tobias Reuberger propõe
a utilização do pátio de um bar como obra. As cores fosforescentes
escolhidas têm em si características matéricas que permitem o arma-
zenamento de luz, a qual, durante a noite — período de utilização do
bar — emana das cores conferindo-lhes uma mobilidade cromática
que ocupa o espaço. Esse projeto aponta outro aspecto experimental,
evidente nos documentos de processo: a relação topográfica entre
os elementos que comporão a obra, o que permite ainda verificar
como as relações espaciais ou topográficas foram se estabelecendo
durante o processo de criação.

pessoais
ARQUIVOS

Figura 4c Gunta Stölzi, Estudo para tapeçaria, Aquarela sobre papel, 1926 Fonte: WELT-
de artista

GE, Sigrif W. Bauhaus textiles. London: Thames and Hudson; aquarela sobre papel, 1993

Vale salientar aqui que, no caso das instalações, especificamente


ARQUIVOS

no caso de Reuberger, a cor (tinta) não é matéria sozinha nessa obra


proposta: o espaço e sua amplitude, complexidade e funcionalidade,
são tratados também como matéria, porque a obra não existiria sem
ele; o espaço é parte da corporeidade e materialização da obra.
39
40
José Cirillo

Figura 4d Tobias Reuberg, Projeto digital para a instalação Móbile Bar, 1997. Fonte:
LANDESMUSEUM. Contemporary Sculpture: projects in Münster, 1997

EXPERIMENTAÇÃO TOPOLÓGICA OU ESPACIAL

As possibilidades espaciais da obra são testadas desde o início da sua


gênese, especialmente em obras do tipo site especifico. As relações in-
ternas do objeto, bem como sua interação com o espaço circundante
podem se simuladas por meio dos mais diversos recursos: grafismos,
desenhos elaborados, fotomontagens ou maquetes e modelos virtuais,
que se constituem como documentos do processo que revelam alguns
momentos dessas reflexões topológicas da mente criadora em ação.
Tanto nos documentos dos artistas de mídias tradicionais, como nas
contemporâneas e digitais, essas observações podem ser notadas.
Retomando as anotações do artista japonês Tadashi Kawamata
para a instalação realizada em Müster, em 1997, pode-se perceber
que, se, nos registros anteriores, a preocupação era com a forma e os
materiais de cada elemento da obra, agora essa atenção passa para as
relações da obra com o espaço no qual ela se insere e dialoga (Figura
5). Esse é o campo das experimentações topológicas que se fazem
presentes nos documentos do processo de criação dessa obra. Assim
como a materialidade dos documentos varia de artista para artista, o
modo de pensar e organizar e, principalmente, testar espacialmente
os elementos constituintes da obra vai obedecer a padrões específicos
segundo o projeto poético em desenvolvimento: uma instalação, como
no caso de Kawamata, ou um monumento clássico, obedeceram a
padrões diferenciados, pois, conceitualmente, lidam com questões
também diversas no que se refere a sua espacialidade.

pessoais
Figura 5 Tadashi Kawamata. Projeto para a instalação Boat Travelling, 1997. Fonte:
ARQUIVOS

LANDESMUSEUM. Contemporary Sculpture: projects in Münster, 1997.

Em Boat Travelling, uma instalação que busca agenciar a viagem


de artista

hipotética sobre um lago que separa a cidade e o sanatório, pode


ser observada essa relação topológica. O bote flutua, porém, preso
a uma das margens, não possibilitando a efetivação da jornada; a
ARQUIVOS

não ser, virtualmente, por meio do olhar que percorre o interstício


separado pela transparência do plástico. Na realidade, parece que
Boat Travelling cria uma outra cela que detém o público distante das
paredes do sanatório, preso como em um quarto no meio do lago,
em uma viagem imaginária com promessas de realidade. 41
42 Esses documentos são indiciais e permitem visualizar como o artis-
ta construiu a forma, bem como possibilitam ver a relação topológica
entre suas partes ao longo das decisões que foram tomadas para a
José Cirillo

definição do projeto final. Alterações formais são acompanhadas de


mudanças espaciais nos elementos remanescentes.
Considerando esse exemplo, dentre os milhares possíveis, pode-se
dizer que as experimentações espaciais permitem ao artista uma
aproximação com a percepção que o publico terá da obra: ou seja,
com a obra entregue ao público, revelando parte da intencionalidade
presente nesses projetos. Isso se aproxima de uma busca conceitual
que estrutura a tendência do projeto e da obra.

EXPERIMENTAÇÃO CONCEITUAL

Os documentos são um campo profícuo de reflexões em torno da


gênese da obra. É também nesse campo dos documentos de processo,
dos arquivos pessoais de artistas, que se pode ter acesso às ques-
tões estéticas e conceituais que envolvem um determinado projeto
poético: é possível verificar as molas propulsoras que nortearam as
tendências e as intencionalidades naquela obra ou naquele artista.
Junto aos demais tipos de experimentação, a experimentação concei-
tual é responsável pela coerência interna da obra e do seu projeto
existencial. Essa experimentação conceitual pode se dar tanto no
que se refere ao conceito geral do projeto poético do artista para um
conjunto de obras e até mesmo para toda a sua produção (Figura 6a),
quanto no específico de uma obra (Figura 6b), pois estão evidentes
as articulações que o artista faz entre seu projeto, sua obra e toda a
sua constituição buscando a inserção conceitual de suas escolhas.
Nessa imagem, têm-se novamente algumas das anotações da ar-
tista Shiley Paes Leme. Na parte direita superior da página, pode-se
ler: velas em Paris Notre Dame. Essa anotação verbal é acompanhada
do desenho de duas elipses. A maior está com seu interior repleto de
pequenos pontos; uma pequena seta faz a ligação entre os pontos e
o texto verbal: esse é o momento da captura da ideia, do seu registro
na mente. A seguir, inicia-se a reflexão sobre o vivido (presença das
velas na Catedral de Notre Dame de Paris) e o revidido (memória da
lamparina). Nessa analogia realizada pela artista (vela = lamparina),
está a raiz da reflexão conceitual que começa a se estabelecer, não
ainda com relação a uma obra específica, mas a um conceito que
norteará toda a sua produção dos anos de 1990/2000: a chama (ima-
gem-lembrança de sua investigação que será determinante no projeto
poético dessa artista).
Fica evidente nessa página que o que a artista está experimen-
tando aqui não é do campo do objeto e de sua materialização como
forma dotada de corpo, cor e espacialidade: não se fala do campo da
permanência como matéria, mas de uma existência espiritual que
está para além do objeto e, ao mesmo tempo, impregnada na sua
permanência. Paes Leme ainda não configurou esse conceito como
imagem, ela está trabalhando no campo da estruturação conceitual
do seu projeto poético.
Essas questões podem ser verificadas em outro estudo, estruturado
já sob a forma de um memorial descritivo de uma obra em específico.
São reflexões que estabelecem um eixo paradigmático que estrutura
aquela obra em si.

pessoais
ARQUIVOS
de artista
ARQUIVOS

Figura 6a Shirley Paes Leme, Página de anotações em seus cadernos Fonte: anotações
da artista em cadernos (Banco de Dados do LEENA/UFES). Transcrição: Velas em Paris
Notre Dame/ lamparina que vela = alma que sonha /o tempo é lento / tempo se aprofunda
— as imagens e as lembranças se reúnem /fusão da imaginação com a memória / UNIÃO
DO QUE VÊ AO QUE VIU / fantasia. 43
44
José Cirillo

Figura 6b Wikstrõm e Brag. Estudo conceitual para a obra Returnity, 1997. Fonte:
LANDESMUSEUM. Contemporary Sculpture: projects in Münster, 1997. Transcrição:

A imagem anterior é um estudo para a instalação Returnty, apre-


sentada em Münster, na Alemanha, em 1997. A obra consiste em
um “caminhar” pedalando para trás, sendo o ciclista/ percebedor
orientado por um retrovisor e pelo auxílio dos olhos de outra pessoa
sentada na parte traseira da bicicleta, estando, pois, de frente para
o percurso. Pode-se ler nas anotações:

Aprendendo a se mover em uma nova direção, queremos criar um


campo de pensamento e experiências no qual se podem apreender,
de modo diferenciado, as relações entre o movimento do corpo e o da
bicicleta, entre a bicicleta e o entorno, outros ciclistas, direções, etc., e
a complexidade de observar-se isto por meio de um retrovisor. E.W & A.
B. (tradução livre)

O conjunto de textos visuais apresenta a forma do objeto inte-


grante dessa performance: o ciclista, a bicicleta, o possível sentido
do percurso (promenade) indicado pela seta e pelo retrovisor na
bicicleta. No texto verbal imediatamente abaixo das imagens, estão
informações sobre as questões conceituais que envolvem a obra, que
a definem esse andar de bicicleta como um objeto estético. Pode-se
ler na primeira linha: by learning to move in a new direction, we want
to creat... Essa frase indica a intenção dos artistas, seu propósito mo-
tor: a obra propõe um aprendizado, um outro modo de ver o mundo
e se conduzir nele (pedalar para a bicicleta mover-se para trás). As
informações predominantes nesse estudo também não se limitam
às questões da forma ou obra como existente físico, mas sim das ar-
ticulações conceituais que estruturam a razão da obra, evidenciando
a sua lógica existencial: a construção de um campo de pensamentos
para a apreensão diferenciada da realidade.
Essa reflexão conceitual é fundamental, em algumas obras da arte
contemporânea. Está presente nos documentos da gênese dessas
obras, pois são elementos constituintes da obra, a qual não tem uma
existência plena sem as questões levantadas nesse campo cogniti-
vo. Vale salientar que a articulação da experimentação conceitual
pode conduzir à ideia geradora do trabalho, revelando tendência e
intencionalidade do projeto poético do artista (SALLES, 1999). Esse
exame, que estabelece e evidencia os paradigmas da obra é parte
integrante do projeto poético. Parece indicar a existência de uma
investigação da mente criadora que não está relacionada somente
com a fisicalidade da obra. Algo para além disso está sendo buscado,

pessoais
um campo conceitual que se configura de modo mais evidente em
alguns artistas e documentos, e de modo mais velado em outros.
arquivos
de artista

Esses cinco tipos de experimentação, aqui apresentados, não objetivam


encerrar o assunto, mas pôr em debate algumas especificidades da
função de experimentação dos documentos do processo, buscando
arquivos

ampliar a compreensão dessa função e os estudos que se dedicam


a uma teorização de natureza geral sobre o processo de criação que
se coloca como uma linguagem que, e como tal, tende para o outro.
Além da verificação desses tipos de experimentação, os documentos
do processo trazem em si evidências da interação da mente criadora, 45
46 revelando os diálogos possíveis consigo mesma, com a matéria de
sua construção e com o ambiente e o público que a envolvem.
É fato que, quando a obra é colocada ao público, essas informações
José Cirillo

quase nunca estão postas de modo evidente. Muito se perde de tudo


o que envolve o projeto e a elaboração da obra antes de sua apresen-
tação pública. Eis aí uma contribuição dos estudos do processo de
criação para as teorias de recepção da obra de arte. Uma possível luz
sobre os mecanismos que envolveram o movimento de criação do
objeto posto aos sentidos, o que não objetiva substituir a obra, mas
dar outras possibilidades interpretativas a esse signo em movimento.
Torna-se importante, pois, o debate das questões que envolvem
a inserção dos documentos da gênese no campo comunicacional.
Assim, outra porta de análise do prototexto se configura: um acesso
ilimitado aos documentos da gênese e a sua circulação como signo
que se põe aos sentidos: o signo em movimento. Essa semiose que
permite a verificação da tendência para o outro presente no gesto
criador é índice, concretiza o aspecto comunicacional da obra.
arquivos de artista arquivos pessoais

47
A subjetividade dos diálogos e mediações
O processo de criação do artista é uma atividade lúdica e só nela o
homem é verdadeiramente livre, pois ele próprio determina suas regras.
(Friedrich Schiller)

A análise dos documentos pessoas de artista pode evidenciar não


apenas as artimanhas da mente criadora em ação para a produção
da obra em curso. Evidencia também as regras subjetivas da criação,
estabelecidas pelo artista em seu curso poético. São, ainda, uma
ferramenta importante no entendimento de sua interação com o
conceito de linguagem, pois demarca, significa e comunica algo por

pessoais
meio das marcas deixadas pelo artista desde o pensamento gerador
da obra colocada ao público. Cabe estabelecer alguns procedimentos
que podem evidenciar como se dá esse ato de mediação comunicativa
arquivos

e as suas manifestações como esferas interacionais, ou categorias


dialógicas expressas em três níveis: o diálogo intrapessoal, o diálogo
interpessoal e o diálogo cultural, e desvelar a interação dessas catego-
de artista

rias com os estudos que demarcam uma teoria geral do processo de


criação a partir dos documentos pessoais de artistas.
Retoma-se primeiramente, pois, a ideia de que os documentos do
arquivos

processo nas artes visuais são, ainda, predominantemente do tipo


cadernos de artista, que, como as cadernetas e diários dos escritores
(HAY, 1999), são registros memoriais do processo de diálogo íntimo
do artista/autor consigo mesmo e com a matéria que constituirá o
objeto. Constata-se ainda que esses arquivos pessoais permitem tratar 49
50 do processo de criação como um ato comunicativo: uma mistura de
signos intersubjetivos que, no decorrer de suas páginas, dão teste-
munhos das mediações e linguagens que se estabelecem ao longo do
José Cirillo

diálogo da criação, revelando os níveis de interação que envolvem


o processo de criação. Assim, considerados esses pontos, e toman-
do-se emprestadas as categorias comunicacionais da teoria geral
da comunicação (COHN, 1977; DIMBLEY; BURTON, 1990; SALLES,
1998), podem ser evidenciados os níveis de interação comunicativa
nos arquivos pessoais, entendidos como documentos do processo,
os quais revelam diferentes níveis de diálogo do artista.
No diálogo interno do ser-em-si com o ser-para-si, ou do artista
consigo mesmo, durante o processo gerador da obra, define-se a
primeira categoria expressa no Nível I, o da mediação intrapessoal.
O Nível II, o diálogo interpessoal, arquiteta-se na interlocução com
o outro-ser e se dá por meio do compartilhamento e da análise dos
documentos decorrentes desse processo criador, os chamados cader-
nos de artista, com base nas quais se dará o embate do arqueólogo
da criação, o pesquisador, com o artista e seu pensamento gerador.
Como desdobramento desse ato de mediação interpessoal, uma
nova visão da obra do artista poderá ser colocada ao público, acres-
centando um novo prisma de interação deste com a obra de arte.
O Nível III, o diálogo cultural, congrega as estruturas do organismo
social e suas tradições, analisando como esse diálogo com o tempo
e a história social são vitais na constituição da obra de arte, e como
essas questões se apresentam nas páginas que constituem a gênese
da obra. Revela-se, assim, a existência de uma realidade que demarca
a percepção: realidade cultural. Talvez seja exatamente no campo
dessa segunda realidade (cultura) que seja possível estabelecer um
certo conjunto de signos e significações mais generalizadas e que,
por sua vez, promovam uma redução da multiplicidade subjetiva
das significações dos signos visuais. Esses arquivos de artistas tra-
zem impressos em si a marca de seu tempo, dos valores e verdades
de uma época, permitindo, inclusive, compreender o impacto das
transformações sociais no processo criativo pessoal. Aqui afirmamos
que a cultura é um documento de processo.
A MEDIAÇÃO INTRAPESSOAL

Tomando, para iniciar essa reflexão, a
 afirmação de Julia Kristeva de


que só se pode decifrar aquilo que se fala, podemos afirmar que o que
define o emissor de uma determinada mensagem é o seu primeiro
interlocutor. Desse modo, a análise primeira das estruturas comu-
nicativas nos documentos do processo indica uma compreensão dos
mecanismos internos do sujeito criador em diálogo consigo mesmo.
Ou seja, quando o artista fala para si.
A linguagem expressa nos documentos do processo vai se apro-
ximando de um conteúdo repleto de significações específicas e
subjetivas. As imagens grafadas nessas extensões da mente criadora
ganham uma nova dimensão sensorial — não completamente uma
abstração — , mas ganham o caráter de objeto mediado pelo vivi-
do, representação (signo) do fenômeno sensorialmente colocado à
mente, configurando-se como a expressão estendida de uma grafia
da memória do sujeito — marcas da experiência vivida, as quais, ao
serem apropriadas pelo artista, dele se apropriam. Ao objeto captu-
rado do mundo sensível (imagem geradora) vai sendo adicionado um
novo conteúdo: uma função semântica que designa todo um novo
complexo de significações à medida que se tornam instrumentos da
imaginação no processo de criação. Na realidade, é um processo de
nova significação ou uma (re)significação subjetiva pautada nas ima-
gens do vivido que são reconstruídas nos documentos. Nessa ação de

pessoais
(re)significação, e consequente diversificação do conteúdo do objeto
dinâmico — dos objetos que se põem à percepção, é fundamental o
papel dos documentos no processo de criação, pois eles podem po-
arquivos

tencializar, de modo ilimitado, a ação da mente criadora no mundo.


A partir da experiência espontânea, mediada apenas pela função
biológica dos sentidos — comum a todos os seres vivos — a mente
de artista

do artista busca substituir ou ampliar essa ação por uma reflexão


com “propósito”. Essa reflexão caracteriza o aspecto do diálogo da
mente consigo mesma, à medida que se estabelecem as relações e
arquivos

desdobramentos da ação em ato: um ato comunicativo interno que


envolve um emaranhado de outras ações que buscam prever o re-
sultado, adequando o meio à melhor e mais ágil maneira de atingir
o proposto — a obra, ou signo em construção. Os signos desse ato
comunicativo, evidenciados nas páginas de anotações dos cadernos 51
52 de artista, não se constituem como representação pura, transpõem-se
da simples expressão ou imitação, pondo-se como uma linguagem
que é “[...] nem inteiramente o produto da impressão criada pelos
José Cirillo

objetos, nem inteiramente o produto da vontade arbitrária daquele


que fala” (FISCHER, 1987, p.33). São signos em articulações que de-
finem na mente um conceito de espacialidade e de temporalidade
mediados pelo sujeito criador e suas relações no/com o mundo. Uma
linguagem estética gradualmente sendo formada de modo muito
próximo ao caráter mágico com o qual o homem pré-histórico tentava
compreender o mundo que se colocava aos seus sentidos.
Assim, o artista, na medida em que constrói esse mundo imagé-
tico, vai diferenciando o campo impreciso do mundo circundante
e constituindo metáforas, um estágio na formação desse diálogo
íntimo. É essa metáfora que permite uma (pré)visão do resultado por
meio do diálogo intrapessoal que envolve o ato criador, cujas marcas
possíveis de serem acessadas estão registradas nos documentos do
processo, pelo menos parcialmente registradas. Entende-se, pois,
por mediação intrapessoal, ou auto comunicação, a comunicação
consigo mesmo; uma ação reflexiva expressa pelo diálogo íntimo
que revela as estratégias do pensamento em construção.

Gráfico 1 NÍVEL I da comunicação nos documentos do processo: Diálogo Intrapessoal

Essa categoria de mediações do artista, evidenciada em seus arqui-


vos pessoais, se revela tanto na forma de verbalizações para consigo
mesmo, quanto no hábito de registrar anotações verbais e /ou visuais
que grafam a matriz do pensamento em ato, o qual norteia o processo
de criação. Esses registros gráficos constituem-se como estratégias
de extensão da mente e em grafias do pensamento, compartilhando
o espaço e o tempo da ação auto-reflexiva do autor/artista e refletindo
“[...] uma forma de desejo de estar consigo, e como que de ser eu [...]
pensando no que me vem — e não naquilo que é preciso pensar para
os outros” (HAY, 1999, p. 15). Desse modo, constitui-se o primeiro
nível ou categoria do caráter comunicativo expresso no processo
de criação e revelado nas páginas dos documentos do processo: o
diálogo intrapessoal.
Nota-se que entre A, o artista como corpo e mente existente,
e B, o artista como mente criadora em ato — separados aqui por
mero didatismo — estabelece-se um diálogo com o mundo sensível,
mediado pelo vivido (memória) desse corpo/mente e a matéria
bruta do objeto a ser criado. Partes desse pensamento gerador em
curso são registradas nos documentos do processo, extensões da
mente criadora que, por sua vez, alimentam o corpo/mente, trans-
formando-se em um novo vivido em processamento, o qual torna a
alimentar, num contínuo, o movimento criador gerado nessa relação
dialógica do artista consigo mesmo. Nesse momento, o artista é o
poeta e o geômetra, a emoção e a razão coabitantes do mesmo corpo
e mente. Ocorre uma interação para além da relação causa-efeito,
na qual não é possível estabelecer com precisão o que é origem e o
que é desdobramento dessa ação interativa consigo mesmo (AUB).
É, enfim, o retrato da práxis da mente criadora. Assim, esse nível de

pessoais
mediações é biopsicológico e vai se desenvolvendo, enquanto corpo
e mente criam representações dessa interação, as quais vão cons-
truindo modalidades de auto-regulamentação e diferentes modos
arquivos

de orientação (COHN, 1977), criando mensagens cujo significado


é mediado por associações. Essas associações podem ser mais ou
menos evidentes na medida em que esses códigos, estabelecidos
de artista

nessa linguagem íntima, apresentam maior ou menor elaboração


ou restrição, o que lhes permitirá terem um determinado grau de
abstração psicológica. Cohn entende essa restrição ou elaboração
arquivos

a partir do maior ou menor grau de subjetividade dos códigos que


definem a linguagem em curso:

No caso do código elaborado, o orador disporá de uma margem rela-


tivamente ampla de alternativas para selecionar e a probabilidade de 53
54 predizer os elementos organizatórios do discurso fica bastante reduzida.
No caso de um código restrito, o número destas alternativas é, frequen-
temente, muito limitado e a probabilidade de predizer os elementos do
José Cirillo

discurso aumenta bastante (CONH, 1977, p. 92-93).

Vale ainda dizer que não se descarta aqui que essa relação dialógica
do eu consigo-mesmo é possuidora de matrizes semióticas determinadas
e/ou herdadas da relação social, pois isso seria o mesmo que negar
o papel do vivido e da memória, bem como o caráter social inerente
ao homem como espécie, mas esse tema será mais bem trabalhado
na análise dos diálogos culturais. Para o campo dos procedimentos
que envolvem o diálogo no processo de criação, parece interessar,
neste momento, o grau de atividade e liberdade de planejamento
assegurado no uso de um conjunto de códigos elaborados, os quais
dão ao ser biopsicológico (o artista em ato) a possibilidade de lidar
com especificações e generalidades que lhe são bastante particulares.
Isso dificulta, muitas vezes, o seu enquadramento numa sequência
integrada de signos que permitam a construção de uma linguagem
para além do artista com ele mesmo. Desse modo, esse primeiro nível
de mediações, que se estabelece nos estudos do processo de criação,
é predominantemente da ordem biopsicológica: corpo e mente numa
interação sensível do artista consigo mesmo.
Os documentos do processo da artista mineira Shirley Paes Leme
revelam fragmentos dessa relação que a artista estabelece consigo
mesma. À medida que ela constrói seu mundo imagético, vai também
recortando, no campo impreciso de suas memórias, a memória dos
fenômenos sensíveis (demarcados tanto no mundo circundante,
quanto nos seus sonhos) e constituindo metáforas a partir de lem-
branças. Esse é um estágio na formação desse diálogo íntimo que ela
estabelece consigo mesma. É por meio do diálogo intrapessoal que
envolve o ato criador que seu projeto poético se põe em movimento
em busca de uma recompensa material, a obra.
Assim, entendido como uma etapa interna do sujeito criador, esse
diálogo é uma ação auto reflexiva que revela o pensamento criador
em construção, em movimento, revelando, em Paes Leme, elabora-
ções de matrizes da sua obra e norteando o seu processo criador. A
análise dessa interação da mente criadora consigo mesma busca,
pois, evidenciar, por meio de fragmentos, aspectos do modo como
se operam suas dúvidas, angústias, escolhas e decisões, frustrações
e gratificações que envolvem a criação. Na Figura 7a, um estudo pre-
liminar para a instalação Pela Fresta, de 1998, há a predominância de
signos visuais, o que parece dar uma pista de que, no caso de Paes
Leme, o uso de códigos visuais permite uma maior proximidade do
pensamento criador com a relação de imagem mental/objeto. Nesse
sentido, a página parece limitar-se a manter as relações da mente e
sua relação com a imagem. Nela estão presentes três sistemas semió-
ticos: um numérico — que parece indicar um número de telefone; um
verbal — presente tanto no espaço da esquerda superior da página
(junto ao número), quanto no espaço do quadrante direito inferior,
fazendo indicações sobre as formas em estado de gestação; e um
visual que ocupa a maioria da página.

pessoais
ARQUIVOS
de artista

Figura 7a (esquerda) Shirley Paes Leme, Página com estudos para a instalação Pela
Fresta, 1998. Fonte: cadernos da artista (C5:40). Banco de Dados do LEENA/UFES
ARQUIVOS

Os textos alfanuméricos parecem cumprindo duas funções: atuam


como uma espécie de lembrete que indica um possível contato (Cláu-
dia 212-0188); ou restringem a amplitude subjetiva das formas visuais
(cheio, real e vazia). Assim postas, essas “combinatórias” de signos
verbais e numéricos parecem estabelecer restrições que dão maior 55
56 objetividade à amplitude de código visual, colocando uma espécie
de ligeira rigidez na cadeia de significações da imagem grafada na
página. Um olhar para o plano de expressão do documento parece
José Cirillo

confirmar que o sistema de códigos visuais é predominante na página,


na metade esquerda inferior, e em toda a metade direita. A artista
dialoga consigo mesma por um meio predominantemente visual, a
partir da representação do próprio espaço expositivo/projetivo a ser
utilizado e da interação dos seus elementos arquitetônicos com a obra
em gestação. A experimentação evidenciada aqui é um claro exemplo
da experimentação topológica apresentada no primeiro capítulo. O
projeto parte de características fixas do prédio, invariáveis espaciais
a serem incorporadas no trabalho: as colunas de sustentação do teto.
As colunas são fixas, assim a reflexão para a tomada de decisão sobre
a obra vai sendo construída na medida em que ela dialoga consigo
mesma elaborando e estabelecendo o que pode ser móvel e o que
não o é. Paes Leme vai construindo a dinâmica desse espaço; lê-se
nas anotações verbais da direita: “cheia real” (referindo-se à coluna
do prédio) e “vazia” (uma referência à possibilidade de reproduzi-la
na materialidade estética de sua obra).
A hachura no desenho da esquerda estabelece o espaço a ser
trabalhado. É uma planta baixa de galeria. Esse pode ser o espaço
do movimento, o qual a mente criadora deve tomar para si; os cír-
culos brancos são as colunas fixa, cheias, reais. O desenho encontra
um outro projeto relacional no diagrama da direita superior: nesse
esquema projetivo, prima-se pela horizontalidade da instalação.
Nele a ocupação do chão é reiterada e as colunas verticais parecem
que serão apropriadas em seu estado natural. No outro diagrama
da direita, abaixo, está indicado um movimento distinto da mente
em ação: a opção é pela verticalidade. As colunas são os elementos
da intervenção. A decisão da forma final parece ir sendo tomada da
reflexão consigo mesma e com o espaço projetado.
Outro aspecto relevante desse diálogo interno é a interação do
processo gerador com a matéria construtiva da obra. A análise dos
documentos de processo pode evidenciar como a artista se relaciona
com os limites do material. Dir-se-ia que esse diálogo interno é per-
meado de uma interação com o campo matérico da obra. A Figura 7b
é evidência clara de que seu processo de criação está permeado por
essa relação com a materialidade da construção da obra. Decisões
são tomadas a partir da interação artista-matéria. No detalhe do texto
verbal, na direita inferior da Figura 2a, podem ser observadas algumas
das reflexões conceituais e decisões materiais que envolverão a obra.

Figura 7b (direita) Shirley Paes Leme, Estudos preliminares da instalação Inside Out,
1986. Detalhe ampliado na direita, transcrição: “wire — not necessary / stickes do the work
/ process work / let the material dictate the limitation. Fonte: cadernos da artista (C2:93),
Banco de Dados do LEENA/UFES.

No fluxo desse diálogo íntimo, Paes Leme estabelece uma relação


visceral com a matéria de sua obra. Como pode ser visto no texto do

pessoais
detalhe à direita da figura anterior, a junção de grafismos e palavras
parece desvelar o pensamento gerador que irá definir a obra exibi-
da: as expressões “wire is not necessary”, “stickes do the work”, “process
ARQUIVOS

work” e, finalmente, a expressão que parece encerrar esse raciocínio


conceitual-construtivo — “let the material dictate the limitation”.
De fato, na obra Inside Out (1986), exibida ao público, nenhum
de artista

subterfúgio para manter a estrutura foi usado. Segundo depoimento da


artista, bem como anotações em seu caderno, o material estabeleceu
os limites espaciais da forma (the limitation). Isso parece evidenciar o
ARQUIVOS

constante diálogo da artista com a sua matéria de criação. O próprio


material definiu, em conjunto com a artista, por sua capacidade
de auto-sustentação, como seria a estrutura de apresentação física
da forma. Percebe — se que a artista ouviu o material, colocando-o
como parceiro nesse diálogo interno que alimentou o seu movimento 57
58 criador. Em um trecho da entrevista concedida por Paes Leme, em
dezembro de 2002, ela comenta sobre a importância dessas marcas
da presença do tempo no seu material de trabalho, galhos no caso:
José Cirillo

Exato! Para mim é importante porque se eu estou lidando com a memória...


um material tem memória.
As marcas do diálogo que Paes Leme trava consigo mesma, e com
a matéria no seu trabalho, são evidentes ao longo dos seus arquivos
pessoais do processo de criação, o que, de certo modo, é óbvio. Os
documentos do processo analisados resultam exatamente dessa
atitude dialógica da artista consigo mesma durante o processo de
criação. Porém, esse diálogo prescinde de um conjunto mais amplo
de relações. Não se pode esquecer aqui que toda obra de arte é para
o outro, assim a obra em si espera ser fenomenologicamente apreen-
dida por um percebedor, leitor: o grande público, ou estudiosos da
obra como críticos, teóricos e mesmo o pesquisador do processo
de criação, o qual trafega dos documentos do processo para a obra
e vice-versa, atuando como um arquivista que busca entender os
modos gerativos dos documentos. Esse arqueólogo do processo cria-
tivo, ao estudar essas construções de significação com grande carga
de subjetividade, busca encontrar interações com o outro e com a
cultura que envolve tal movimento criador e sua possível interação
com os códigos compartilhados socialmente. Para tal, é necessário
o diálogo entre o artista e seu interlocutor imediato, seja este o cura-
dor, o crítico de arte, o historiador, ou o pesquisador do processo de
criação, o crítico de processo. Começa-se a estabelecer outro nível de
mediações no processo de criação, o da interação entre os pares de
sujeitos imediatamente constituídos: o nível de diálogos interpessoais
que se estabelecem entre o artista e o percebedor imediato.

DIMENSÕES INTERPESSOAIS:
O DIÁLOGO COM O OUTRO

Entende-se, convencionalmente, por diálogo interpessoal: a comu-


nicação entre pessoas frente a frente (DIMBLEY; BURTON, 1990),
considerando toda a gama de signos que permitem a interação entre
um e outro sujeito.. Nos documentos do processo, há evidências de
signos oriundos do diálogo do artista com seus iguais. Essa interação
comunicativa parece estar expressa, por um lado, pelas marcas ou
impressões que esse outro sujeito deixou na memória do artista, ou,
por outro lado, na expectativa de posicionamento desse outro em
relação ao espaço perceptivo da obra. A mente criadora põe-se em
diálogo com o vivido, não com sua existência biopsicológica apenas,
mas na interface com o outro ser.
Agora, o artista é, simultaneamente, um ser em relação e seu diá-
logo é com o outro. A existência desses dois sujeitos (um sujeito criador
e um sujeito interlocutor) em ação dialógica estabelece o segundo nível
comunicacional que se expressa no processo de criação. Cada um
dos sujeitos, a partir de um diálogo íntimo e com sua experiência,
irá estabelecer um certo grau de interlocução com a obra colocada
aos seus sentidos. Nessa interlocução possível entre os sujeitos que
se estabelece uma mediação interpessoal

pessoais
ARQUIVOS

Gráfico 2 NÍVEL II da comunicação nos documentos do processo: Diálogo Interpessoal

Assim, juntos, os sujeitos A (artista) e C (o outro imediato) inte-


de artista

ragem estabelecendo D (experiência sensível), cuja sistematização


para leitura e análise é uma mediação de C, que resulta em um D
mediado. Assim, num contínuo ir e vir, A e C estabelecem uma re-
ARQUIVOS

lação do tipo (AUC) expressando um diálogo que busca a interação


desses dois universos biopsicossociais com vistas à construção de
uma possível intersecção comunicativa. É uma interlocução com
o gesto criador em processo; intersecção esta que se dá a partir da
interação, do diálogo e da possível leitura do fenômeno “obra” ou 59
60 documentos do processo acessíveis aos sentidos do percebedor. Esse
diálogo de A com C, necessariamente, pode se dar mesmo sem um
contato frente a frente entre as partes, pois, a partir da experiência
José Cirillo

sensível D, possibilitada pelo acesso à obra, ou aos documentos ge-


néticos, acessam-se significativas informações sobre as chaves dos
códigos elaborados que envolvem a produção de uma determinada
obra, ou mesmo o conjunto delas. O estudo/contato continuado de
D’, D”... pode ainda assegurar um significativo avançar na leitura do
processo de criação, permitindo mesmo que se visualize o próprio
projeto poético que envolve toda a produção de um determinado
artista. Quiçá seja possível, apesar da particularidade do processo de
criação, buscar as generalizações nos diferentes processos e artistas,
possibilitando mesmo o desenvolvimento de categorias taxonômicas
desse fazer humano, tarefa esta destinada aos críticos do processo de
criação, especialmente a partir dos conceitos de arquivos pessoais
desenvolvidos pela arquivologia.
A imagem percebida é um signo, mas, como signo, contém em
si um alto grau de subjetividade. Ela, a imagem expressa como do-
cumento ou como obra, permite ao artista (um sujeito criador) e ao
pesquisador/público (um possível sujeito interlocutor) uma relação
interacional com o objeto da criação, buscando entender sua produção
de sentido a partir de um conjunto de significações e estímulos que
envolvam a relação vivencial com o mundo sensível.
Será, num certo grau de semelhanças com os signos e os códigos
elaborados e restritos que envolvem essa ação dialógica, que se cons-
tituirá a ação interpessoal. Ou seja, na capacidade ou possibilidade
de tornar semelhante determinados momentos do gesto criador, e
somente por meio disso se estará construindo um conceito, crescente
de abstrações, que permitirá a construção de interlocuções entre os
diálogos estabelecidos pelo artista e a construção de uma voz coletiva
que perceba a dimensão social da produção artística entregue ao pú-
blico. Resulta daqui a reflexão sobre o falibilismo das análises, pois
elas sempre carregarão em si o que constitui o observador, a partir
de suas relações e medições intrapessoais e culturais deste modo,
sujeitos diferentes analisando um mesmo objeto podem chegar a
observações muito distintas, pois sempre partem de locais pessoais e
culturais distintos. Mas, vale lembrar que nem o artista, nem as obras
têm significação, se desconsiderados o contexto sociocultural que
os gera e que é gerado também pela ação deles, pois é esse contexto
que possibilita a interação dos diferentes sujeitos. Ou seja, por mais
que o caráter subjetivo esteja presente, parte de sua constituição está
determinada pelas relações culturais que constituem cada sujeito e
os seus modos de expressão. Assim, refletir sobre a matriz cultural
das mediações entre artista x obra x público é determinante.
Podemos afirmar que o diálogo com o outro é a construção de
interlocutores. A expectativa de recepção inerente à arte faz com que
ela seja produzida tendo sua leitura pelo outro como norte: nenhum
artista produz sem esta angústia, ela é geradora do movimento criador.
Nesse movimento, estão presentes diferentes sujeitos de interlocução
física ou memorial, com os quais o artista interage. Nos documentos
de processo dos artistas, essa interação parece estar expressa, de um
lado, pelas marcas ou impressões que o sujeito deixou na memória
da artista ou, por outro, pela expectativa de posicionamento desse
outro sujeito em relação ao espaço perceptivo da obra.
No caso dos arquivos da criação de Shirley Paes Leme, essas
impressões da memória pela ação ativa ou não de outros sujeitos
podem ser evidenciadas, revelando um diálogo íntimo estabelecido
por meio de marcas memoriais deixadas pelo contato com o outro
imediato. Especificamente no caso de Paes Leme, analisando um
de seus rascunhos, podemos perceber como ela dialoga com a sua
memória do outro, ainda quando criança em uma fazenda no interior
de Goiás, na qual cresceu.

pessoais
Em busca da construção de uma linguagem, durante seu dou-
toramento nos Estados Unidos da América, ela vai dialogar com
lembranças de sua origem. Nesta página, vê-se a mente criadora
arquivos

em diálogo com o seu vivido, não com sua existência biopsicológica


apenas, mas na interface com o outro ser. Paes Leme se revela, neste
e em outros esboços, um ser em relação, mediando a impressão me-
de artista

morial deixada pela existência do outro. A página, dividida em dois


hemisférios, sendo que no superior vê-se um conjunto de grafismos
que se assemelham à planta baixa de alguma construção, suposição
arquivos

esta que é confirmada pelo texto verbal no hemisfério inferior: “the


cowboy’s house. Nô was his name, he had a hat like this”. O texto verbal
aqui é acompanhado da presença de um desenho em forma de seio,
ou uma semiesfera, a qual irá aparecer em vários outros trabalhos da
artista ao longo da segunda metade dos anos de 1980; e ela continua: 61
62 “it was made of plastic”. Vê-se que Paes Leme busca, no estabeleci-
do pela relação com o outro, o elemento constitutivo de seu gesto
criador, uma possível imagem geradora que se materializa, imagem
José Cirillo

grafada em sua memória e registrada e (re)operada nessa página do


caderno da artista.
A análise de outra página (C2: 132) irá revelar ainda o outro sujeito
dessa relação dialógica interacional expressa no processo de criação.
Na imagem a seguir, pode-se perceber que não é mais o outro insta-
lado em sua memória que é sujeito nesse diálogo, mas o outro com
quem ela convive nessa experiência criativa de pensar a obra em
sua apresentação. Na parte inferior da página, se lê: “dar convites p/
vizinhos” — esse é um sujeito plural, é memória e espera ao mesmo
tempo, um grupo social específico no qual Paes Leme está imedia-
tamente inserida, com o qual ela tem uma relação de vizinhança.

Figura 8a (esquerda) Shirley Paes Leme, Anotação referente às imagens da infância no


interior de Goiás. Fonte: cadernos da artista (C1:23), Banco de Dados do LEENA/UFES.
Figura 8b (direita) Shirley Paes Leme, Uma das anotações finais do projeto da instalação
Inside Out, 1986. Fonte: cadernos da artista, Banco de Dados do LEENA/UFES.

Essa segunda categoria de sujeito mediador é resultante da cons-


trução do texto visual no centro e na parte superior da página. O
segundo sujeito é externo às relações imediatas da artista: ao esboçar
a vista externa da instalação Inside Out (1986), Paes Leme posiciona o
receptor de sua obra, estabelece-lhe um ponto de vista para a recepção
primeira do conjunto da obra — esse sujeito é nenhum sujeito e, ao
mesmo tempo, todos os sujeitos. Ele é um sujeito portador de uma
memória existencial que será fundamental no processo de comu-
nicação possível de ser estabelecido entre ele, a obra e a artista. É,
pois, um sujeito genérico fundamental para a percepção e mesmo
a projeção/planejamento da relação do público com a obra. Assim,
a relação artista x obra x público é também definidora da própria
criação da obra, sendo fundamental até mesmo para a definição da
apreensão e sentido do título da instalação. Assim, estão configurados
dois diferentes tipos de sujeito: um sujeito impresso na memória, um
sujeito singular e interno; o segundo sujeito, ou sujeitos, pode ser
definido como externo e imediato, plural, presente em potência, os
grupos de interação da artista. Esse segundo sujeito é existente na
espera, e se põem à relação do artista com o público, fora do corpo
da artista. A ação existencial desse sujeito, ou a expectativa dessa
ação, determina parte das ações do sujeito criador durante o processo
de criação: existe uma expectativa de ação ou aprovação do sujeito/
interlocutor por parte do artista.
Entretanto, o movimento mediador do processo de criação não
se dá apenas nessas mediações internas do sujeito criador consigo
mesmo (sua conversa consigo mesmo), nem mesmo naquelas resul-
tantes de uma possibilidade de interação com um outro imediato

pessoais
(outro memorial, o outro projetivo ou mediadores diretos como
curador, crítico, pesquisador). A amplitude das mediações se revela
por meio de como o artista vai construindo o pertencimento do seu
arquivos

trabalho a um conjunto muito mais amplo de relações: a cultura na


qual está inserido, na qual a obra é possível e sua leitura compreen-
sível pelo público.
de artista

O DIÁLOGO DO POSSÍVEL:
O NÍVEL CULTURAL DA COMUNICAÇÃO
arquivos

Da entrega da obra ao público emergem os elementos mais amplos da


interação subjetiva do artista com o meio. É nesse ponto que o processo
de interlocução do processo e da obra atinge sua plena dimensão.
A obra e os elementos de sua gênese só podem ser apreendidos/ 63
64 percebidos pelos sentidos, porque estão mediados por sistemas de
linguagem verbais e visuais, nas suas especificidades e diversidades,
e por códigos morais, éticos e estéticos, na interlocução de diferen-
José Cirillo

tes sistemas semióticos que, consequentemente, permitem a ideia


de mediação impressa no processo de criação. A própria existência
de duas categorias ontológicas (artista — sujeito produtor; e perce-
bedor — sujeito interlocutor), bem como a leitura dos textos que as
constitui ou delas decorram, é resultante da perpetuação de práticas
sociais institucionalizadas e compartilhadas pelo corpo social que
permite, torna possível, tal existência. Essas práticas socializantes
configuram-se no bojo daquilo que define a sociedade humana como
distinta de outros grupos biológicos zoologicamente evoluídos: a
continuidade de sua existência para além da estrutura biofísica, o que
torna possível, principalmente, a permanência de sua capacidade de
transmissão dos fenômenos constituídos historicamente pelo vivido
no corpo social (memória social) e da sua transformação no desen-
volvimento da sociedade humanamente constituída. Configura-se aí
um diálogo com a tradição e com tudo aquilo que define e identifica
o corpo social como tal: a interlocução cultural.
Assim demarcado, o pensamento que aqui investiga as possibi-
lidades de mediação presentes no processo de criação não poderia
desconsiderar que o artista, ao longo do seu projeto poético, na exe-
cução de uma determinada obra ou de um conjunto de obras, está
em constante interação com a cultura de seu tempo. Não obstante,
vale lembrar que se ele (o artista) é gerador da cultura, sendo, ao
mesmo tempo, produto dela; assim também o é qualquer possível
leitura da sua produção. A leitura ou recepção da obra dependerá
fundamentalmente da interação, do compartilhamento dos códi-
gos sociais constituintes e constituídos naquilo que se define como
cultura. É nessa impossibilidade de existência desconectada das
práticas sociais que se constitui o diálogo cultural expresso no mo-
vimento criador. Esse é um nível de interlocução pertencente mais
ao campo do simbólico, com alto grau de restrições que dão mais
clareza à amplitude das expressões subjetivas. Assim, é na capaci-
dade de estabelecer qualquer tipo de diálogo que se torna evidente
que a junção de diferentes traços e padrões da cultura permitem ao
artista propor fenômenos sinestésicos ao percebedor, o qual se torna
instrumentalizado a capturar em que ponto o fenômeno sensível (a
obra ou seus documentos processuais) intercepta a sua experiência
sensível. Olhar por esse prisma para os arquivos pessoais de artistas
faz-se emergente, pois é uma impossibilidade existencial pensá-los
como fenômenos isolados do contexto cultural, pois estão em cons-
tante diálogo com a cultura.
Esse diálogo cultural é híbrido. É em si intertextual, é sincrético,
é múltiplo, polifônico e orgânico. Opõe-se à lógica cartesiana, pois
seu encarceramento pela razão encontra dificuldades de veracidade.
A cultura, como interlocução na mente criadora, é a mediação de
diferentes linguagens, diversos sistemas semióticos (ideológicos,
econômicos, estéticos, éticos, étnicos, temporais, espaciais — para
citar alguns) manifestos nos documentos do processo de criação
de diferentes modos. Assim, em alguns documentos do processo, o
vivido do artista é reoperado a partir da matriz conceitual impres-
sa na sua memória: o fato, abstraído de sua forma material, deixa
marcas de sua ação as quais se expressam em reflexões conceituais
e/ou formais do artista. Ao que parece, a construção da identidade e
do pertencimento da obra no contexto social (público) parte da sua
potencialidade de se edificar como um projeto poético coletivamente
compartilhado (seja na produção ou na fruição) que encontra na
cultura, em seus traços e padrões, os elementos fomentadores do seu
processo de constituição como tal e, principalmente, de mediação
pelo outro. Retrato da cultura, a obra como a compreendemos é um
produto composto por fragmentos, fragmentos sintonizados e em

pessoais
constante movimento, um mosaico de peças flutuantes interligadas
pela malha da identidade social, com a qual estabelecemos relações
de afetividade e pertencimento. Nesse mosaico cultural, a obra
arquivos

apresentada ao público se configurará como uma tessela, integra os


afetos neste espaço compartilhado da cultura.
Buscando analisar estas questões em documentos de artistas, to-
de artista

mamos aqui um fragmento dos arquivos de uma artista — o memorial


descritivo da obra Ragazzi, da polonesa Magdalena Abakanowicz,
datado de 1992. É um texto verbal que evidencia as impressões do
arquivos

contexto cultural na memória da artista. Pode-se dizer que esse


fragmento é um índice da mediação da artista com o seu tempo
histórico e socialmente constituído, o que se percebe claramente
quando contraposta sua produção, ou suas memórias com a história
cultural que a formou. 65
66
José Cirillo

Figura 9a e 9b M. Abackanowicz, “Ragazzi Folk”, 1992 e fragmento do memorial da


obra. M. Abakanowicz Varsóvia 8./1992. Transcrição: Talvez naqueles Tempos do Paraíso
eles tenham permitido o equilíbrio próprio da natureza ao comer a maçã proibida — tal
como se perde o olfato ou a vista. E talvez no mesmo instante tenham adquirido o instinto
da destruição do mundo à sua volta e deles próprios. Será que houve um erro na lógica
infalível da natureza ou foi um ato deliberado de um poder desconhecido? (Tradução livre
do autor). Fonte: MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Reperti. Nuremberg: DAVarlag
das Andere,1992

É interessante perceber que a artista, no memorial, refere-se à


perda dos sentidos — especificamente do olfato e da visão: sentidos
que conduziram a criança Magdalena pelos horrores da guerra e dos
campos de concentração. Abakanowicz, nascida na Polônia, em 1930,
sofreu na infância as agressões do regime nazista e a perseguição
aos judeus em seu país: famílias foram presas e assassinadas em
campos de concentração. As marcas desse sofrimento estão tanto
nos documentos quanto ao longo de sua na obra. Talvez tudo possa
ter sido um erro na lógica infalível da natureza ou foi um ato deliberado
de um poder desconhecido? Nesse fragmento de Abakanowicz, muito
pode ser percebido do ato comunicativo que se inicia em sua memória
de infância, num diálogo interno com as dores que a constituem, no
dialogo com o outro imediato, mas neste caso, essa dor não resulta
de uma experiência particular de seus sentidos, é uma dor coletiva
com os horrores da II Guerra Mundial, socialmente compartilhada.
A análise dos documentos vai revelando como a artista sai dessa
mediação imediata e vai ao encontro de questões de alto grau de
compartilhamento social. No diálogo consigo mesma (memorial do
trabalho e articulação estética de sua lembrança do vivido), está a
interface inegável com a matriz cultural do ocidente cristão: Tempos
do Paraíso [...] comer a maçã proibida. É exatamente nesse diálogo
com os valores religiosos e éticos impressos na ideologia ocidental
que estão os horrores da perseguição a que ela foi submetida, talvez
ainda um castigo (infringido à humanidade) pela perda do equilíbrio
próprio da natureza.
Assim, no que tange aos aspectos comunicacionais nos documentos
do processo, apesar de uma quase impossibilidade de sistematização
ou de categorização da cultura (dado o seu caráter híbrido), pode-se
supor que algumas recorrências parecem permitir estabelecer possí-
veis categorias de interlocução desses documentos com os aspectos
culturais. Ao se falar em possíveis categorias, parecer ser importante
lembrar que o caráter híbrido da cultura (CANCLINE, 2000; SILVA
2003) já evidencia que essas fronteiras, extremamente frágeis, in-
terpõem-se à medida que a análise das equações sincréticas que as
envolve vai se tornando mais complexa. Assim, essas divisões da
dimensão de interação cultural, evidenciadas nos documentos de pro-
cesso, não são mais que meras possibilidades dentre as diversas outras
resultantes da infinidade de misturas que as matrizes culturais. Vale
destacar aqui que o diálogo com a cultura, expresso nos documentos
do processo, pode se dar tanto a partir dos próprios documentos em
si, como no sujeito do artista, mas já se dá inicialmente pela lingua-
gem, primeira e determinante mediação dos estudos dos arquivos
pessoais do processo criativo; fora do contexto linguístico (visual ou

pessoais
verbal) dominado pelos sujeitos mediadores, não há interlocução.
Assim, considerada a premissa da linguagem, perece ser possível
afirmar que existem outras faces de um diálogo cultural mediado
arquivos

por uma aproximação de contorno: memorial, nacional, intercultural


/transcultural e, ainda, midiático. Vale, entretanto, destacar que a
separação aqui é para melhor entender cada conceito, pois um em
de artista

um mesmo documento de processo podem ser observadas mais de


uma dessas mediações. É preciso recordar que o processo criativo
se dá de modo rizomático e, consequentemente, não hierárquico.
arquivos

Separamos apenas para entender as partes desse todo complexo que


é a criação em ato.

— A mediação memorial do diálogo cultural é constituída pelo


conjunto de traços culturais que definiram o artista como sujeito 67
68 existente como tal. É uma interação do sujeito consigo mesmo por
meio de sua memória e do vivido com grafias memoriais do seu grupo
de ação imediato. É o conjunto de traços culturais imediatamente gra-
José Cirillo

fados na sua memória e que são resgatados, tanto no conceito quanto


na forma que envolveu o fato vivido. A ação desse diálogo está mais
próxima das relações psicofísicas que o fato gravou no sujeito criador.
Esta talvez seja uma dimensão cultural muito próxima da ideia de
cultura pessoal, uma dimensão psicobiológica da cultura, são traços
pessoais vivido no qual estão impressos traços culturais de seu grupo
social determinado. Assim, em alguns documentos do processo, fica
evidente que esse vivido é reoperado a partir da matriz conceitual
impressa na memória do artista, como a tradição rural do interior
do Brasil nas obras de Shirley Paes Leme ao longo das décadas de
1990 e 2000; ou ainda o peso do nazismo na Polônia nas memórias de
Abackanowicz. O fato, abstraído de sua forma material, deixa marcas
de sua ação, as quais se expressam em reflexões do artista. Por meio
de um diálogo íntimo, o artista parece buscar a mediação de padrões
culturalmente estabelecidos que permitem compreender algumas
das questões colocadas para se dar continuidade à sua produção.
Esse diálogo, que revela uma possível identidade cultural do sujeito
pelo viés das marcas memoriais que estão impressas, como traços
da cultura no imaginário psicológico e formal da artista.

— Mediação nacional: outra possibilidade que se instaura na


mediação cultural, evidenciada nos documentos de processo, é a
interação (ou disjunção) do artista com as tradições nacionais, com
os elementos, traços e padrões culturais que definem a sua naciona-
lidade enquanto sujeito criador, do artista e sua identidade social. É
a evidência de que o sujeito criador é socialmente constituído por
hábitos e padrões compartilhados socialmente. Nessa interface com
o corpo social, define-se a mediação nacional. Se tomarmos aqui
algumas reflexões evidenciadas nos cadernos de artista de Shirley
Paes Leme durante sua estadia nos Estados Unidos da América, em
seu doutoramento, fica mais claro esse diálogo com a nacionalidade.
As reflexões da artista sobre a sua brasilidade vão conduzi-la a inves-
tigações estéticas mediadas por fenômenos da cultura nacional. Du-
rante seu doutoramento, ela está imersa na cultura norte-americana;
ainda nos primeiros meses, seus estudos voltam-se para sua origem
sociocultural, e seus projetos ganham um contorno delimitado por
essas experiências coletivamente compartilhadas em sua brasilidade.
Diferentemente de outros momentos de seu processo, Paes Leme
parece buscar na série de estudos desses anos iniciais na América
do Norte, uma matriz mais de seu coletivo nacional, de onde espera
extrair uma outra matriz para o trabalho plástico em curso, ela busca
naquilo que compartilha com seu país as possibilidades de imagens
geradoras de seu processo criativo.

— Mediação intercultural/ transcultural


Outro ponto interessante aparece nessa última imagem: a inter-
mediação das duas línguas (inglês e português) na elaboração dos
esquemas mentais de Paes Leme. Dois sistemas linguísticos verbais,
de culturas diferentes, colocam-se sobrepostos ao texto visual, evi-
denciando que algo acontece na mente criadora em contato com
duas culturas distintas — ela necessita interagir para que sua estada
na América do Norte seja uma experiência significativa para a sua
formação técnico-conceitual. Nesse aspecto, pode-se perceber que
está havendo uma interação dos dois sistemas culturais por parte de
Paes Leme, principalmente no que se refere à construção do texto
verbal, pois o texto visual aparentemente tem uma certa indepen-
dência com relação à língua falada e escrita, compartilhado de modo
mais amplo elementos de caráter mais universal. Pode-se dizer que

pessoais
aqui está a mediação intercultural/transcultural, a qual é evidência de
que o processo de criação da artista necessita, naquele momento,
estabelecer uma interação com os dois diferentes sistemas culturais.
arquivos

Faz-se necessário, no caso de Paes Leme, um diálogo intercultural


e transcultural. Nas imagens a seguir fica bem clara essa mistura de
idiomas no raciocínio criativo da artista: aspectos da cultura brasileira
de artista

estão lá, tanto no que se refere a traços culturais populares (fogueira


de São João), quanto linguísticos (português), mas é evidente que
está havendo uma fusão dos sistemas culturais distintos (make a big
arquivos

amount of gravetos), evidenciando um esforço de pensar no novo


sistema linguístico, mas ainda fortemente impregnada pelo que a
constitui anteriormente.

69
70
José Cirillo

Figura 10a Shirley Paes Leme, Detalhe de anotações da artista, 1983. Transcrição: “Jan
29 / Birth / Media service film for next work / Futebal /carnaval / cadomble / calender GT
Books / our close motern — ARD CRODOVISK where the means come from / Farm”. Fonte:
anotações da artista (C1:11) Banco de Dados do LEENA/UFES.
Figura 10b Shirley Paes Leme, Detalhe de anotações; fogueira de São João. Transcrição:
fogueira de São João / make a big amount of gravetos / and built a fogueira than / burn
them / 1o.) process. Fonte: cadernos da artista (C1:25) Banco de Dados do LEENA/UFES

A mente criadora da artista precisa estabelecer-se nos dois sistemas


para constituir textos estéticos que os transcendam: inicialmente essa
operação é a mistura dos códigos linguísticos. Assim, gradativamente,
verifica-se que ocorre a busca pelo entendimento do sistema cultural
norte-americano em seus diferentes traços e padrões existenciais.
A necessidade da imersão determina um movimento em direção a
essa interculturalidade, condição mínima para o desenvolvimento
do seu processo de criação naquele momento de sua formação. A
cultura material americana começa também a ser tomada como
referência para a construção dos seus trabalhos. Essa apropriação e
interação pode também ser evidenciada no espaço a ser ocupado no
seu imaginário por imagens oriundas de periódicos daquele país, o
que irá possibilitar a percepção de uma outra mediação comunicativa.
— Mediação midiática: é fato que, nessa interação de sistemas
culturais distintos, seja em nível transnacional como Paes Leme se
coloca, ou em sistemas mais locais, como aqueles que estão expostos
os processos criativos nas práticas colaborativas, prescinde-se em
muito da informação veiculada pelos meios de comunicação, ou
as redes de comunicação — para citar alguns dos principais modos
de mediação de culturas diferentes. É deles, dos meios tradicionais
de comunicação, o jornal, que Paes Leme toma algumas imagens,
muitas delas imagens geradoras que serão reoperadas ao longo do
seu projeto poético nesse processo de assimilação da nova cultura.
Seus documentos de processo revelam a intermediação dessas mídias
como registro de experiências nos documentos e arquivos da artista.
Assim, a interação comunicativa cultural, mediada por esses meca-
nismos ou meios de comunicação em massa, constitui o diálogo da
mente criadora com elementos gerados na e pela cultura de massa
— especificamente na mídia impressa, da qual a artista tomará diver-
sas imagens geradoras de obras que passam a existir em potência.

Como pode ser visto na imagem, o esboço de uma futura obra


(grafismo na parte inferior do documento) se dá intencionalmente
a partir da apropriação visual de uma imagem de jornal referente a
um local destruído por um terremoto na cidade de Los Angeles, de
(outro elemento novo na experiência de vida da artista brasileira). Os
arames de aço da construção levam-na aos fios paralelos do projeto.
A mediação não é com outro meio que não aquele disponibilizado
pelo jornal, não especificamente por alguma experiência do corpo.

pessoais
ARQUIVOS
de artista
ARQUIVOS

Figura11 Shirley Paes Leme, Colagem e desenho para instalação. Fonte: anotações da
artista (C3:36). Banco de Dados do LEENA/UFES.
71
72

Considerando que o diálogo cultural, evidenciado em mediações,


José Cirillo

define as nuances da comunicação no processo de criação, vale res-


saltar que é exatamente nesse nível que é possível o estabelecimento,
ou melhor, a percepção de qualquer noção de diálogo. Entretanto,
parece redundante, porém necessário apontar que a obra e o seu pro-
cesso de produção, vistos pelo prisma de sua gênese, são evidências
do diálogo historicamente constituído no artista em sua relação com
o público e o meio. Poder-se-ia concluir, então, que o nível cultural
das mediações do processo de criação é o sítio onde se constitui a
própria possibilidade de interação artista — obra — público. A cultura
é o diálogo do possível. É a possibilidade que permite que o processo
de criação seja entendido como texto em movimento.
arquivos de artista arquivos pessoais

73
Geografia Íntima: uma primeira
análise geral dos arquivos pessoais
de Shirley Paes Leme
Defino a poesia das palavras como criação rítmica da beleza.
(Edgar Allan Poe)

Até o momento, entendemos que os documentos de artista são como


os documentos pessoais dos cientistas e, como tal, guardam o frescor
de descobertas, de erros, de dúvidas e estranhezas. Como extensão
da mente criadora, esses arquivos pessoais são marcas do tempo da
criação. Marcam o ritmo do gesto criador. São evidências, fragmen-
tos de um complexo sistema de relações intra e interpessoais que,
mediadas pelas trocas sociais e culturais, vão esboçando um projeto

pessoais
que se materializa em obra.
Esta parte deste livro tem por objetivo situar, sitiar e apresentar
uma análise geral de documentos do processo a partir dos concei-
arquivos

tos e procedimentos até aqui trabalhados. Partimos dos arquivos


pessoais da artista plástica Shirley Paes Leme, os quais têm sido um
material inestimável para a continuidade de uma ação investigativa
de artista

sobre os documentos de artista, sendo norteadores de nossas buscas.


Busca-se compreender os procedimentos gerais que possibilitam
uma aproximação com o projeto poético dessa artista. Buscamos
arquivos

evidenciar como o estudo do processo de criação pode seguir uma


proposição metodológica, tão cara aos estudos da arquivística, e
fazemos isto a partir do aprofundamento na análise dos arquivos
pessoais de Paes Leme.
75
76 O primeiro passo ao se investigar um dossiê de artista é a sua iden-
tificação, situando e sitiando o artista investigado. Assim, Shirley Paes
Leme nasceu em 1955, em Cachoeira Dourada, GO. Vive e trabalha
José Cirillo

em São Paulo, SP. Em 1978, graduou-se em Belas Artes (Desenho),


pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais
(Belo Horizonte). Em 1983, como bolsista da Comissão Fulbright (USA),
mudou — se para os Estados Unidos, onde iniciou o curso Master of
Fine Arts (MFA) na University of Arizona at Tucson (Tucson), trans-
ferindo-se em seguida para a John F. Kennedy University (Berkeley),
concluindo o Doutorado em Artes em 1986.
Entre 1984 e 1986, freqüentou o San Francisco Art Institute, na
University of California at Los Angeles e na University of California
at Berkeley, onde também trabalhou no University Art Museum. Em
1999, participou do programa de artista residente no Künstlerhaus
Bethanien (Berlim, Alemanha). De 1979 até 2003, a artista lecionou
na Faculdade de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, sendo
titular da cadeira de Mixed Media, desde 1979. Integrou também o
corpo docente da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Hori-
zonte) e da Faculdade Santa Marcelina (São Paulo), como professora
visitante. De 1999 a 2000, foi diretora do Museu Universitário da
Universidade Federal de Uberlândia. Esse resumo biográfico é para
situar a artista e entender um pouco de alguns elementos que irão
incorporar-se como memória do vivido em seu projeto poético.
No início desta tentativa de reconstruir alguns aspectos da mente
criadora do artista e seu processo de criação, a partir dos documentos
da gênese de suas obras, vale relembrar uma advertência de Valéry
(apud SALLES, 1998, p. 101): “É preciso estar consciente de que se
está fabricando uma personagem imaginária”. Reiteramos essa ideia
centrados na afirmativa, ao longo desse livro, de que a abordagem
investigativa sempre estará mediada pelas experiências do pesquisador
e por sua capacidade subjetiva de ler os documentos, de extrair desses
arquivos algo que possa testemunhar um fenômeno, neste caso, a
criação da obra pelo artista. O pesquisador do processo de criação é
uma espécie de arqueólogo que reúne fragmentos e reconstrói uma
possibilidade a partir deles, de certo modo, uma ficção.
CADERNOS E ANOTAÇÕES

A produção de Paes Leme é ininterrupta desde os tempos da Faculdade


de Artes na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Entretanto,
o hábito de anotar ideias e imagens geradoras que poderiam desdo-
brar-se em objetos e obras é posterior à sua ida para os EUA, muito
embora tenha ganhado, ainda na Belo Horizonte do final da década
de 1970, nos tempos da Faculdade de Artes, o seu primeiro caderno de
artista, seu primeiro espaço para registrar ideias. Segundo a artista,
em entrevista, este caderno foi um presente de um professor que
viu em suas linhas (do desenho) um elemento gerador no trabalho
da ainda estudante de arte. Shirley escreveu na capa interna desse
livro: “de Lupi para Shirley, 1980”. Essa data não corresponde ao seu
período como aluna da UFMG. Tudo indica que foi feita posterior-
mente, e que a data é uma lembrança afetiva. Independente dessa
questão de datação do livro, é no início da década de 1980 que Paes
Leme parece iniciar o uso desses suportes fixos para anotação de
informações sobre seus projetos. Esse caderno de Lupi é um entre
os cadernos estudados da artista. Muito embora este caderno de Lupi
não seja o caderno mais utilizado pela artista, nem o que contém in-
formações mais pormenorizadas das obras em estado embrionário,
ele preserva muito do frescor do pensamento criador de Paes Leme
no início de sua carreira.
No seu conjunto, os arquivos pessoais de Paes Leme, que com-

pessoais
põem este estudo, é formado por dez cadernos de formatos (entre
20 x 26cm e 22 x 32cm) e encadernações variadas, alguns com capa
dura e outros com encadernação do tipo brochura comprados prontos
arquivos

ou fabricados por ela mesma. Todos eles funcionam como suportes


para registros de toda a ordem e envolvem o período entre 1980 e
2003. Alguns são datados, porém a ordem e numeração dos cadernos
de artista

seguem uma classificação feita por Paes Leme, a qual foi respeitada
durante o processo da pesquisa. Entretanto, vale destacar que essa
ordenação não corresponde às informações dadas por algumas datas
arquivos

presentes no interior de alguns deles — o que caracteriza a lógica


cronológica não cartesiana que envolve o movimento criador, sendo
um índice, assim, da grande mobilidade do seu uso como suporte
de registros assistemáticos. Além desses cadernos, o dossiê de Paes
Leme sob tutela do LEENA (Laboratório de Extensão e Pesquisa em 77
78 Arte da Universidade Federal do Espírito Santo), pode-se contar com
algumas folhas avulsas, fotografias e arquivos digitais com projetos
e/ou memoriais reflexivos sobre o trabalho da artista, bem como a
José Cirillo

transcrição de entrevistas informais realizadas ao longo do estudo.


Ainda foi disponibilizado um conjunto de textos originais de cura-
dores e críticos de arte que buscaram uma análise de sua produção
no período de vinte anos (1980 a 2002).
Quando uma leitura investigativa percorre os cadernos de Paes
Leme, eles impelem ao leitor dois movimentos: de um lado, uma
apreciação voyeurista da geografia íntima da artista. Esse primeiro
movimento do leitor permite uma viagem silenciosa pelos segredos
da sua memória, levando-o a penetrar territórios que, à sombra do
passado, revelavam ambientes quase sempre ocultos, cujas fronteiras
vão sendo (des)construídas pelo e no processo de criação. De outro
lado, a senhora dos silêncios — para usar uma expressão grafada nesses
cadernos de Paes Leme — , vai avisando que navegar é preciso. Aqui se
põe o leitor ao olhar investigativo e, com uma velocidade lacerante,
as anotações de Paes Leme começam a desvelar uma certa ordenação
caótica que se dispõe à incompletude da elucidação investigativa.
Reunidas a leitura voyeurista e apaixonada, assim como a leitura
crítica e investigativa, se estabelece uma aproximação com esses
cadernos que permite o acesso às marcas do ato criador, as quais,
materializadas nesses arquivos pessoais, preservam um pouco do
frescor da criação. São marcas indiciais, signos cuja incompletude e
vagueza apontam alguns modos de funcionamento da mente criadora,
meandros do processo de criação da artista que, como uma espiral,
se movimenta em contínuo — aliás, a imagem da espiral é comum
nos documentos de Paes Leme.
Como sistema de signos, os cadernos são possuidores de uma
certa ordenação. Porém, essa ordenação é caótica, posta a não-linea-
ridade desse sistema complexo que são os documentos do processo.
Assim, a sua análise envolve, primeiramente, a definição artificial
de um ponto zero de investigação, uma definição do pesquisador,
dentro do recorte realizado para a determinação conjunto de ar-
quivos selecionado para o estudo. Se lembrarmos da consideração
de que os cadernos da artista não seguem uma ordem cronológica,
qualquer demarcação, o recorte, de um ponto inicial da pesquisa é
artificial e subjetivo. É esse recorte que definirá os próximos passos
investigativos que buscam a especificidade de algumas anotações de
Paes Leme desvelando algumas recorrências que se estabelecem no
percurso gerativo da artista.

A NATUREZA DAS ANOTAÇÕES

A natureza das anotações presentes nos documentos da artista (cader-


nos e arquivos pessoais avulsos) varia desde breves notas esquemá-
ticas sobre um determinado fenômeno, algumas contendo imagens
geradoras, até complexos sistemas conceituais e construtivos de uma
obra já em avançado estado de maturação; o que vale salientar, não se
dá em uma sequência nos cadernos. Estados distintos de uma mesma
obra encontram-se em dois ou mais cadernos, o que faz pensar que
seu uso é para além de um diário, cronologicamente constituído dos
procedimentos de uma obra. Retomando as reflexões de Louis Hay,
se os diários são obras do tempo, esse tempo não é o mecânico dos
relógios (LIGHTMAN, 1998), está mais próximo do tempo corporal
expresso nos humores e desejos, nas batidas do coração, na taqui-
cardia ofegante, no sentimento e no calor das decisões tomadas no
corpo enquanto avança pela existência (CIRILLO, 2002). Os cadernos
de artista se apresentam como uma extensão da mente criadora que
grafa a ideia e os seus desdobramentos em algum lugar da memória,
no espaço vivencial da memória, o qual “[...] representa, portanto,
uma ampliação extraordinária, multidirecional do espaço físico

pessoais
natural. Agregando-se áreas psíquicas de reminiscências de inten-
ções, forma-se uma nova geografia ambiental, geografia unicamente
humana” (OSTROWER, 1997, p. 18).
arquivos

Nesse local, poeticamente determinado, é que podem ser lo-


calizadas as imagens geradoras que serão agrupadas pelo artista,
quando isso for necessário, e do modo que o for. Tal procedimento
de artista

parece afastar a possibilidade de uma compreensão linear tanto do


seu processo criador, como do uso dos cadernos.
Assim, vestígios da criação, materializados nos documentos e
arquivos

arquivos pessoais de Shirley Paes Leme, apontam os rumos e proce-


dimentos da mente criadora da artista e suas estratégias estéticas e
éticas para a materialização da obra em busca de uma recompensa
material. Segundo Salles,
79
80 O desejo do artista pede uma recompensa material. Sua necessidade o
impele a agir, gerando um processo complexo de materialização, no qual
todas as questões que envolvem essas tendências, discutidas até aqui,
José Cirillo

interferem continuamente. O propósito é, deste modo, transformado


em ação. A concretização é uma ação poética, ou seja, uma operação
sensível ampla no âmbito do projeto do artista (SALLES, 1998, p. 52).

O que se coloca nos documentos de processo são fragmentos


que, por uma ação de ir e vir constante, são revisados, adaptados,
transformados para estabelecerem uma relação de cumplicidade
dos desejos da artista com as marcas que envolvem o manuseio dos
elementos que buscam uma ação poética de corporificarão da obra
a ser apresentada.

DIFERENTES SISTEMAS SEMIÓTICOS:


VERBAL E VISUAL

Como sítio de armazenamento das informações que se põem no entor-


no sensível, nos documentos de Paes Leme, a presença de palavras e
imagens é uma constante, embora, como é comum nas artes visuais,
haja a predominância de imagens sobre as palavras. Juntas, imagens
e palavras referem-se à captura da impressão deixada pelos fenôme-
nos do mundo em volta da artista, bem como do seu mundo interior
composto de sonhos e devaneios da imaginação; e, não obstante,
informações e discussões sobre projetos — em andamento ou não.

O caráter das palavras


Na leitura desses cadernos, é interessante observar que os textos
verbais se estabelecem em funções diferenciadas. Assim, as palavras
desempenham um papel bem definido (não rígido e nem fixo) no
procedimento da artista e têm um caráter que pode ser: imperativo,
indicativo-descritivo, contrastivo, narrativo e/ou poético — reflexivo. Esses
usos podem ser observados simultaneamente nos vários documentos,
porém é possível estabelecer categorias para cada conjunto de texto
verbal, assim, buscou-se identificar e classificar tais ocorrências.
Aliás, esses desenhos reforçam a tendência para o uso da linha,
característica inerente ao projeto poético da artista que enfatiza sua
interface com esta linguagem das artes visuais. Como pode ser vista
na Figura 11, Paes Leme faz uso do caráter imperativo de palavras
que funcionam como coerções de possíveis ações; em alguns casos,
definindo movimentos e decisões que envolvem a execução de deter-
minada parte da obra: aquilo que observado como é deve permane-
cer como tal. Essa página é detalhe de um estudo para a instalação
Pela Fresta, de 1998. Algumas constatações do espaço específico são
definidas com os verbetes: parede brancas, e são acompanhadas de
uma ordenação: serão brancas, a qual é reforçada numa inflexão im-
perativa: (ficarão). Não há espaço aqui para a dúvida, esse elemento
do trabalho já está definitivamente resolvido.
As palavras aparecem, também, como se pode perceber na Figura
12, com um caráter indicativo-descritivo.

pessoais
Figura 11 Shirley Paes Leme, Detalhe da página dos cadernos da artista. Trnascrição:
Paredes brancas / serão brancas / (ficarão) / tela de galinheiro. Fonte: anotações e cadernos
ARQUIVOS

da artista (C3:35), Banco de Dados do LEENA/UFES.


Figura 12 Shirley Paes Leme, Estudos preliminares da instalação Fogo Fel, 1998. Trans-
crição: 80 / 60 / 60 / 2m / 40 / 60 /cama como / a que eu dormia / com colchão de / capim.
de artista

Fonte: anotações e cadernos da artista (C1:82). Banco de Dados do LEENA/UFES.

Com essa função, eles indicam materiais (mesmo transitórios


ARQUIVOS

em alguns casos), definindo detalhes da forma, ou dimensões: tela


de galinheiro, por exemplo; ou descrevendo alguma característica
imediata do objeto ou da forma: parede brancas — indicando uma
característica do espaço da galeria. Em outras páginas dos cader-
nos de Paes Leme, tem-se mais exemplos desse uso indicativo e 81
82 descritivo: são estudos preliminares para as instalações Fogo Fel e
São — ambas do mesmo período que Pela Fresta, nos quais a artista
desenha tridimensionalmente no espaço da galeria, com galhos de
José Cirillo

eucalipto, formas indiciais das marcas deixadas na sua memória por


objetos de sua infância.
Outra função, ainda verificada, é dada pelo caráter contrastivo
das palavras escolhidas, indicando relações de oposição entre os
elementos de um projeto: cheio/vazio, janela/coluna — oposição. Isso
pode ser visto na Figura 13, que é um estudo das relações de verti-
calidade e horizontalidade do espaço específico da instalação Pela
Fresta (1998). Na tentativa de apreender as relações do espaço com a
obra, característica recorrente em grande maioria da produção dessa
artista, principalmente nas suas obras tridimensionais, Paes Leme
identifica as oposições primeiras presentes no local da instalação.

Figura 13 Shirley Paes Leme, Uso contrastivo do texto verbal. Fonte: anotações da
artista (C3:11). Banco de Dados do LEENA/UFES.

Assim, uma noção de verticalidade e horizontalidade é estabele-


cida por meio de oposições semânticas que são indicias da relação
que a artista estabelece com o espaço (galeria em que a obra será
montada) no projeto em curso: passivo estático, em contraposição com
ativo, dinâmico = chama. Essas relações indiciais da experimentação
conceitual do espaço foram detalhadas neste livro, mas, por ora, li-
mitamos à análise da natureza das palavras que se apresentam nos
documentos analisados.
A observação crítica e processual dos documentos permitiu,
ainda, desvelar os procedimentos da artista para a elaboração de
seus memoriais, e mesmo para a escolha dos títulos. Essas escolhas
parecem decorrer de uma ação de caráter poético-reflexivo. A reflexão
sobre os títulos, escolhidos após uma sucessão de palavras simples
ou compostas, as quais vão sendo pinçadas por meio de uma com-
paração reflexiva, culmina em “combinatórias” para a determinação
do título — aliás, essa é uma prática comum da artista.
A função das palavras com caráter poético-reflexiva é também
observada nas reflexões conceituais sobre o processo ou elaboração
de experimentações conceituais, como the wire means power, bem
como nos poemas-conceito que a artista desenvolve, os quais visam
à materialização do conceito que ela constrói para o trabalho. Neste
último caso, pode-se transcrever o poema O Cubo, reflexão a respeito
dessa forma geométrica que foi utilizada na elaboração de um con-
junto de obras, caixas que contém matéria:

A forma-conteúdo. A caixa. O abrigo


A caixa símbolo do corpo materno — recebe, Transforma, cria algo novo
[...]
o galho é o que preenche o vazio
é conhecimento
é o que muda o mundo.
São parecidos mas não são iguais2

Essa ação poético-reflexiva pode também ser vista nas Figuras 14
e 15. Esse exercício reflexivo sobre as formas e conceitos que envol-

pessoais
vem o trabalho de Paes Leme dá-se tanto de modo mais complexo e
poético, como no caso do Cubo, ou de modo mais simplificado, e não
menos reflexivo como nas imagens a seguir. Na Figura 14, a artista
arquivos

parece tomar para si a fenomenologia do redondo bachelariano.


O redondo é unidade (unity), é o princípio (the origin). Na Figura 15,
essa reflexão sobre a redondez encontra no Sol (chama) sua síntese: a
de artista

transcendência de si mesma. Pode-se perceber que, nessas reflexões,


poéticas ou não, o uso da palavra em Paes Leme tende para um certo
determinismo facilitado pelo caráter aparentemente mais restritivo
arquivos

do signo verbal. O recorte feito por ela parece reduzir a um signo, o


Sol, todo o conteúdo da ideia geradora. A imagem do Sol parece ser
2  Trecho extraído do poema O Cubo, no qual Paes Leme indica para um curador o que
ela pensa sobre o cubo, parte de um trabalho exposto em São Paulo no MAM.
83
84 índice da qualidade daquilo que é redondo: a redondez transcendente
(Bachelard, 2000). O redondo é unidade, é origem, é Sol.
José Cirillo

Figura 14 (esquerda) Shirley Paes Leme, Reflexões conceituais sobre o redondo Fonte:
anotações da artista (C3:09).
Figura 15 (direita) Shirley Paes Leme, Detalhes de reflexões conceituais: a chama e o
fogo Fonte: anotações da artista (C3:10).

Apesar desse aparente determinismo no uso que Paes Leme faz


da informação verbal, é importante ressaltar que esses conceitos são
móveis, visto que, em termos semióticos, a própria vagueza e falibi-
lidade do signo o colocam num estado sempre em movimento. São,
portanto, definições transitórias que, no desenvolvimento do racio-
cínio da mente criadora, vão encontrando outras soluções e relações
que completam essa indeterminação do projeto como signo. Essa
transitoriedade aparente encontra seu estado relativamente estático
na obra terminada — depara-se aí, entretanto, com sua incomple-
tude, pois à mente criadora foge-lhe dar por encerrada a sua ação,
pois o signo carrega consigo o falível e o inacabado. Desse modo, a
obra terminada (um signo) determina, detona uma outra pesquisa
estética em busca incansável por seus desdobramentos possíveis, o
que estabelece outros signos que juntos navegam comandados por
um projeto poético também vago e indeterminado. Essa vagueza
e indeterminação caracterizam o processo de criação como signo
(SANTAELLA, 2000b).
A FUNÇÃO DAS IMAGENS

Quanto às imagens, aos textos visuais, podemos pensar que nos ar-
quivos da criação, estas, como as palavras, estão em estado provisório
na maioria das anotações. Pode-se dizer que são imagens geradoras
que “[...] funcionam, na verdade, como sensações alimentadoras da
trajetória, pois são responsáveis pela manutenção do andamento do
processo e, consequentemente, pelo crescimento da obra” (SALLES,
1998, p.57). São como anotações da sua experiência vivida; imagens
que se constituem como instrumentos de rememoração e/ou (re)
operação do vivido. Essas imagens geradoras nos cadernos de Paes
Leme, em sua maioria, podem ser definidas como imagens-lembrança,
as quais têm por função estabelecerem-se como insights do processo
de criação de Paes Leme.
Nas imagens, em planos mais gerais, pode-se observar que a
espiral é uma forma recorrente nas anotações dessa artista, assim
como nas estruturas formal e espacial de diversos de seus trabalhos.

pessoais
ARQUIVOS
de artista

Figura 16 Shirley Paes Leme, Imagem geradora: espiral. Fonte: anotações da artista
(C6:13). Banco de Dados do LEENA/UFES.
Figura 17 Shirley Paes Leme, Esboço para a instalação: a espiral como imagem geradora
ARQUIVOS

Fonte: anotações da artista (C0:117). Banco de Dados do LEENA /UFES.

Encontram-se também nesses arquivos da artista diversas ima-


gens que funcionam como projetos em estado avançado de reflexão,
apontando uma grande proximidade com a obra em processo de 85
86 materialização. É interessante observar, também, que, à medida
que a leitura dos documentos de Paes Leme conduz às obras mais
recentes, existe o quase total abandono do texto verbal. Quando
José Cirillo

aparecem, são como títulos: breves, sintéticos e solitários; assim,


imagens referentes a esse ciclo de obras têm sua gênese centrada
em anotações visuais, sem indicações verbais sobre os estudos. Uma
ressalva deve ser feita: simultaneamente a essa experimentação ei-
dética, existem documentos de experimentação conceitual de alguns
dos projetos e obras que são exclusivamente de textos verbais, porém
não se encontram atrelados às imagens, nem mesmo participam do
mesmo suporte de registros, pois são predominantemente registros
digitais ou em arquivos avulsos.
A memória como matéria
Saindo do campo imediato das anotações da artista, podemos
avançar em um campo um pouco mais profundo na análise dos dados
presentes nesses arquivos pessoais, os documentos de processo. A
prática projetiva de Paes Leme parece ser permeada por reflexões que
vão estabelecendo os contornos formais e conceituais da presença
de sua memória e da memória das matérias presentes na sua obra.
Assim, nos parece possível dizer que, assim como os materiais físicos
que constituem sua obra, uma outra matéria lhe toma de assalto: o
vivido transformado em memória. Tomamos aqui novamente a ideia
exposta por Fayga Ostrower pois consideramos que nos cadernos de
Paes Leme se estrutura “uma nova geografia ambiental, geografia
unicamente humana uma nova geografia ambiental, geografia uni-
camente humana” (1997, p.18).
É nessa geografia humana que Paes Leme cria a noção do fato atual,
do (por)vir e do vivido, constituindo-se, pois, como determinante da
noção de temporalidade que envolve o seu processo de criação. Os
documentos do processo que envolveram a sua produção no inicio
dos anos de 2000, constituem-se como um lugar particular nessa
geografia: uma extensão de seu limite movente, do corpo da artista
que desliza entre a passado e o futuro (BÉRGSON, 1999). Desse modo,
os cadernos de Paes Leme, como extremidades móveis, põem-se no
centro do seu movimento criador, trazem à luz marcas do processo
de construção de um projeto poético que transforma a imagem da
experiência sensível em lembrança para novamente pô-la em mo-
vimento, como lembrança que se torna imagem. Seus cadernos são
lócus de suas imagens-lembrança, imagens geradoras em seu processo
de criação. São evidências de que o vivido é matéria de sua obra.
A percepção da memória da obra, seu percurso gerativo, grafada
nos documentos do processo, evidenciam que há uma articulação
da artista com a memória da matéria, impressa na sua própria ma-
terialidade, deixando ao longo do seu processo criativo, marcas da
mediação dos fenômenos que envolvem a artista e a matéria em suas
mediações com o mundo. Em Paes Leme, essa mediação é matéria
constituinte do seu projeto poético: a lembrança é o lugar onde Paes
Leme põe o futuro em movimento. Seu projeto poético é claramente
um projeto com tendência para o diálogo contínuo entre sua expe-
riência e a e memória impressa nos materiais com que ela trabalha.
O objeto impresso na sua memória, e registrado nos documentos
do processo como imagens-lembrança, constitui-se como ponto de
partida que aciona o seu processo de criação, no qual ela fala do
futuro (da obra, ainda em seu estado germinal). A artista, nessa sua
geografia íntima, toma do passado o que se colocará presente, uma
memória que construirá um futuro pelo qual se espera — no movi-
mento aparentemente congelado em frente ao olhar.
Memórias particulares e coletivas, em movimento no tempo
contínuo, tocam formas e sentimentos primitivos: arquétipos com-
partilhados. Paes Leme busca em si aquilo que está para além dela
mesma e de sua experiência. Seu trabalho move-se em direção dos
objetos e formas primitivas, primeiras, pertencentes àquela magia

pessoais
ancestral que compartilha o corpo social, na origem da arte e do mito
(FISCHER, 1983). Essa tendência pode ser percebida tanto nas suas
anotações, como em observações de percebedores que interagiram
arquivos

com sua obra: essa mensagem está impressa no trabalho e nas ma-
térias utilizadas.
de artista

No projeto poético de Paes Leme, é evidente a tendência expressa no seu


desejo de trazer o passado para o presente, não especificamente a sua
memória, mas no que a sua memória toca o que é primeiro, o que é arqué-
arquivos

tipo. Seu trabalho focaliza o desejo e a emoção de todos nós.
Os objetos


que ela constrói são híbridos entre formas primitivas e contemporâneas,

87
88 encontrando um sentimento de equilíbrio e harmonia relacionado com
a essência do homem.3
José Cirillo

The space is stimulating. It gives emotions, brings back the past, mumi-
fed bodies
Bones and dry skins: human essence
[...] structures of line,
resembles

Tribal arctecture yet it is contemporary art.4

A artista se aproxima dessa tendência por meio do que Santo


Agostinho chamou de passagem do presente,5 que se difere do presente
pontual por estender — se num certo espaço de tempo que torna
possível a medida e apreensão do movimento, porque este — como
o tempo — se dá em extensão. Nessa passagem pelo presente, ela
encontra o “tempo passado”, reminiscências que revelam parte da
fonte geradora de sua experiência formal e espacial.
Na Figura 18, detalhe da página 42 do terceiro caderno, podem-se
perceber elementos indiciais dessa tendência. Na quinta e sexta linhas,
lê-se: “It express to others my own relationship to these historic primal
forms of sculpture” (Expressa minha relação com estas formas primeiras
de escultura). A artista localiza a sua produção como mediação entre o
arquétipo e sua relação com essas formas primeiras. Também parece
ficar expresso, nessa página, o procedimento construtivo que acom-
panhará Paes Leme por muito tempo após seu retorno dos EUA: “I
use monolithic forms and stacking or layering to denote time past” (Eu uso
formas monolíticas e empilho ou as deito em camadas para evidenciar o
passado). Essa aproximação construtiva com os monumentos pré-his-
tóricos é uma tendência das experimentações topológicas da artista,
em especial nas obras do final dos anos de 1990 e inicio de 2000.

3  J. Duham, crítica de Arte e, então, presidente do Conselho Mundial de Gravura, num


texto sobre a artista durante seus estudos na Califórnia, USA (material pertencente à
artista, recolhido em janeiro de 2000).

4  Space and Memory, texto escrito por Jim Jordan que é crítico de arte na Bay Area na
Califórnia, USA (material recolhido com a artista). “[...] o espaço é estimulante. Provoca
emoções, retoma o passado, corpos mumificados. Ossos e peles secas: essência humana
[...] ainda que arquitetura tribal, é arte contemporânea”.

5  Santo Agostinho, 1992, p. 266-296
1 — Ruins have architectural order, but
2 — the age of the elements desarange
3 — the balance. Living concepts of prehis —
4 — toric monumental stone sites located
5 — in Peru etc... I express to others my
6 — own relationship to these historic primal
7 — forms of sculpture. I use monolithic
8 — orms and stacking or layering to
9 — denote time past

Figura 18 Shirley Paes Leme, Diálogo com o passado do homem: recorte de página.
Fonte: cadernos da artista (C3:42). Banco de Dados do LEENA/UFES.

pessoais
No conjunto dessas anotações, pode-se perceber que se revelam
as interações entre as tendências e a intencionalidade no projeto
poético de Paes Leme. Ela tem consciência das suas tendências e as
ARQUIVOS

potencializa, conduzindo o percebedor ao melhor e mais adequado


modo de se colocar ao objeto. Shirley Paes Leme sintetiza, em um
depoimento de maio de 1999, o ciclo de transformação do seu trabalho:
de artista

o que foi vivido se refará com uma nova germinação, levando a um novo
ciclo da vida.... Assim, descreve o tempo como algo que não pode ser
retido, porém, também como algo impresso no espaço da memória e,
ARQUIVOS

desse modo, contínuo: “Minhas memórias de infância sempre estiveram


presentes em meu trabalho de arte [...]. À essas memórias, ela interpõe
a memória dos materiais com os quais trabalha.

89
90
José Cirillo

10 — I prefer to work with natural


11 — material because of their feeling
12 — of age and prior function, and
13 — the dimension these qualities
14 — ad to the works. I strive to emphasi
15 — ze their strength as they are combined
16 — with each other and in the final
17 — form of the object.

Figura 19 Shirley Paes Leme, Reflexão sobre a escolha e a memória dos materiais. Fonte:
cadernos da artista (C3:42).

Na memória de Paes Leme se encontra a satisfação da mente cria-


dora da artista que dá corpo a um outro corpo: sua obra em processo.
Estabelece-se aí um diálogo com a matéria no processo de criação.
Índices da ação comunicativa intrapessoal expressa no projeto poético
da artista, esse diálogo com a matéria revela que o tempo, “felling of
age” e sua ação na matéria são elementos de ordem constitutiva no
seu trabalho. Em outro recorte desse documento C3:42 (Figura 20),
ela expressa sua preferência pela matéria orgânica, pelos materiais
naturais; revela-se, ainda, outra tendência de seu projeto poético, a
escolha dos materiais. Ela revela a razão dessa preferência na linha
11: “[...] because of their feeling of age and prior function”. Refere-se à
memória desses materiais estabelecida tanto por sua função primeira
(prior function), quanto pela impressão das marcas da ação do tempo
nessas matérias (feeling of age). Essas características são agregadas
ao seu trabalho, acrescentando-lhe um conjunto de qualidades im-
possíveis de serem estabelecidas, senão pela interação da matéria
no projeto poético da obra. Paes Leme sabe disso e toma para si, e
para a obra, “[...] the dimension these qualities ad to the works”. A ação
criadora da artista busca, então, enfatizar a “força” de cada um dos
elementos constituintes da materialização de sua poética; não iso-
ladamente, mas na combinação de cada um deles na definição da
forma final do objeto: “I strive to emphasize their strength as they are
combined with each other and in the final form of the object”.
É da combinação dos materiais, suas características e poten-
cialidades, suas fraquezas e limitações, que ela gera a tensão no
percebedor: a chama, e sua capacidade de incendiar uma floresta,
está em estado de hibernação entre o mar de gravetos (Fig. 6 e Fig.
7). Esse aparente estado de instabilidade gera um interpretante que
promove contemplação e temor ao mesmo tempo.

18 — The intentions and ideas behid my


19 — work are starting points rather than
20 — tracks to follow. The identity of
21 — the work emerges only because of
22 — my past, human being past.

pessoais
Figura 20 Shirley Paes Leme, Anotação sobre os vínculos de sua obra com sua memória.
Fonte: cadernos da artista (C3:42). Banco de Dados do LEENA/UFES.
ARQUIVOS

Essa ênfase na memória dos materiais, bem como na memória


cultural de seu uso, está presente em diferentes momentos dos docu-
mentos do processo de Paes Leme. Essa atitude tende a constituir-se
de artista

na presentificação do passado que está acessível na e pela memória,


registrada como fragmentos da experiência vivida — tanto pela artista
como sujeito e espécie humana, quanto pelos materiais com os quais
ARQUIVOS

ela trabalha. Na sequência da página, desvela-se a intenção. A Figura


5 revela como os conceitos que norteiam sua produção estruturam-se
como pontos de partida (starting points), mais como passos rígidos
a serem seguidos (tracks to fellow). Na conclusão desse documento,
ela demarca a identidade de seu projeto poético. Nas linhas 20 a 22, 91
92 conclui: “[...] the identity of my work emerges only because of my past,
human being past”. Consideradas as tendências inerentes ao seu
projeto, a identidade do processo de criação de Paes Leme, e, con-
José Cirillo

sequentemente, de sua obra é fruto de sua memória, do seu passado


como passado da raça humana.

A ação criadora de Paes Leme, evidenciada em seus arquivos pessoais


é, assim, uma etnografia de percursos, que se estabelece a partir de
uma origem antropológica, cuja recompensa material é a própria con-
tinuidade da mente criadora e sua materialização no projeto poético
da artista. Assim, sua obra e os documentos de sua gênese carregam
em si reminiscências de uma existência aparentemente silenciosa,
mas que gritam na interação com o público, seja pela obra, seja por
meio de estudos do processo de criação. Esses estudos da gênese
da obra poderão, pois, acrescentar competências ao percebedor, de
modo a tornar mais ampla sua percepção da obra, uma vez que fazem
emergir a semiose que envolveu a produção do referido fenômeno
que se coloca à sua percepção. Não que essas informações sejam
mais relevantes que a obra, mas elas revelam outros aspectos do
fenômeno percebido que aqueles imediatamente impressos na sua
superfície, aproximando o percebedor do todo que envolve a obra em
sua vagueza e incompletude. Esse estudo do processo é uma ficção
a mais no encantamento da obra.
A memória de Paes Leme canta em cada parte que a estrutura. Essa
canção é a sinfonia do processo de criação, o qual é acompanhado
pela sinfonia da memória, todos grafados nos arquivos pessoais da
artista. Obra e memória se congregam e se fazem perceber como
tal. Fazem florescer tanto a história da artista, quanto a dos mate-
riais com os quais a artista trabalha. Juntos fazem evidenciar que a
matéria edificante de seu trabalho é a própria memória impressa
nos fenômenos que se põem aos seus sentidos e à interação dessa
memória com a sua obra.
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Nos perderemos entre monstros
da nossa própria criação.

RENATO RUSSO
Minhas criações:
(comece aqui sua própria criação)
Esse livro foi composto com as tipografias Source
Serif e Sans no miolo, sobretudo em corpo 10/12, e
a tipografia Salvatore para títulos e intertítulos.

Impresso na GráficaGSA em 2019. Miolo em papel


Offset 75g e capa em Couché Fosco 300g.

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