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Frangipani
1 – INTRODUÇÃO
A realidade africana foi, por muito tempo, ignorada ou tratada com descaso pelo
mundo ocidental. A história da África diversas vezes foi estudada apenas como um elemento da
história de outros países e sua cultura e crenças, consideradas sob a ótica do Ocidente, eram
esquecidas ou reputadas como fantasias sem valor. Percebe-se uma crítica constante, reveladora
de que a desvalorização da cultura africana diante da europeia, ou mesmo da americana, está
também presente entre os próprios africanos, que, por vários fatores, tem-se esquecido de suas
raízes, assimilando o “modo de vida branco” e tomando-o como superior.
Este artigo, no ensejo de juntar-se à gama de estudos que têm expandido o
conhecimento da cultura africana, volta-se para a literatura moçambicana – através de seu
representante Mia Couto –, para tratar da desvalorização das tradições africanas por parte de seus
nativos e da necessidade de resgate da identidade cultural por parte das etnias que compõem
Moçambique. Por intermédio do livro A varanda do frangipani (1996), o autor faz uso de alguns
elementos simbólicos para conclamar seus conterrâneos ao resgate e à manutenção do patrimônio
cultural de Moçambique, na busca da consolidação de uma identidade nacional em vias de
construção. Alguns destes elementos, assim como seus contextos histórico e cultural, são o objeto
de discussão deste trabalho.
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1
Este artigo é fruto da monografia “A Varanda Do Frangipani: simbologia crítica de Mia Couto sobre a
cultura moçambicana”, defendida em 2008, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa.
Cultura como base comum do ser e estar de uma comunidade e, por isso, o chão
onde vão ancorar todas as criações e projecções humanas – incluindo esta forma
particular que é a literatura. (HONWANA, 2006, p. 18)
De fato,“a empresa colonial levou muita coisa, mas deixou outras. Trata-se pois de
aproveitar a herança, conquistar seu uso.” (CHAVES, 2004. p. 152). A colonização roubou da
população muito de sua cultura, mas disponibilizou a cultura colonial, principalmente sua língua,
para ser utilizada e aproveitada. A língua portuguesa torna-se, pois, instrumento de registro de um
povo tradicionalmente oral – como o africano – e uma porta de acesso ao mundo ocidental, que
agora pode ouvir as vozes antes limitadas e restritas à compreensão local. Nesse contexto, a partir
da possibilidade de domínio da língua portuguesa e seu uso para a manifestação de opiniões
críticas apontadas pelos intelectuais, inicia-se uma busca intensa pela identidade nacional, por um
conjunto de valores e símbolos que expressem a essência do país.
Como sinal de subversão à dominação colonial, passa-se a defender um retorno às
origens, às tradições a que foram levados a renunciar, aos valores e crenças existentes em
Moçambique antes da interferência portuguesa. Dessa forma, apesar de Moçambique já ser um
país independente desde 1975, o movimento de revalorização da tradição moçambicana é uma
tentativa de libertação real do domínio português, retomando as rédeas para a reconstrução de um
Moçambique autêntico e coerente.
3 - A LITERATURA EM MOÇAMBIQUE
A partir dessa literatura nascente, Moçambique passa a ter histórias próprias, contadas
e registradas sob o ponto de vista africano e não mais da Metrópole. Começa a existir uma
possibilidade concreta de expansão da “moçambicanidade” e de espaços para discussões sobre o
presente e o futuro do país: “Instrumento de afirmação da nacionalidade, a literatura será também
um meio de conhecer o país, de mergulhar num mundo de histórias não contadas, ou mal
contadas, inclusive pela literatura colonial.” (CHAVES, 2004, p. 154).
Essa literatura, nascida após a independência, configura uma forma de afirmação
diante do ex-colonizador, já que faz uso do instrumento principal de dominação – a língua – para
desligar-se do domínio colonial e afirmar-se enquanto nação. Institui-se, então, o desafio de
subverter a ordem colonial e criar um espaço para que os moçambicanos se expressem, se
revelem e registrem suas raízes. Diante desse desafio, a língua portuguesa é o meio de acesso da
tradição moçambicana – oral – ao registro escrito.
O desenvolvimento dessa literatura não se dá, todavia, de forma simples. Antes, o
escritor se depara com uma complexa reflexão: suas responsabilidades de escritor e a relação
entre a literatura e essa utopia vibrante e ainda imprecisa que é a nacionalidade. José Luis Cabaço
(2004) defende que, confrontados com esse dilema, os escritores seguem três caminhos: a)
produzir uma literatura colonial, eurocêntrica, alienada e descritiva de uma realidade política e
cultural que não buscou compreender. Tais escritores vão-se junto com a sociedade colonial; b)
basear-se na própria experiência europeizada, buscando referências que consideram universais,
mesmo se circunscritas à cultura ocidental. Não louvam o colonialismo, mas, se não são
aclamados, recordam com nostalgia os tempos em que sua manifestação anticolonialista era parte
de uma sociedade que entendiam; ou c) tentar retratar a terra e os homens de que se descobriram
parte, para com eles interagirem como escritores e como cidadãos socialmente ativos,
reconstituindo a História por meio da escrita.
Tomando como referência o terceiro tipo de escritor pensado por Cabaço (2004),
instala-se na composição literária o retrato de uma cultura diversificada, pluralizada pelas vozes
moçambicanas, que não podem ser resumidas em um estereótipo, como se fez nos tempos de
colonialismo, mas que, em suas diferenças, compõem a unidade do povo de Moçambique.
A literatura(...) é uma arte que, situada fora do universo da sociedade oral, traz
em si elementos que, com maior ou menor intensidade, exprimem superioridade.
O seu encontro com a tradição oral é complexo. A oratura não é só a palavra
falada. O contador de estórias é tão mais artista quanto mais rica forem as
expressões, os gestos, as interjeições, as entoações da voz e os silêncios.
(CABAÇO, 2004, p. 68)
A produção de Mia Couto pode ser observada como uma interação entre prosa e
poesia, o que contribui para se entender a presença de símbolos em sua obra, já que “a poesia só
se realiza pela transitividade simbólica do discurso, ou seja, pela sensibilidade criadora que
apenas se consuma quando atinge a emoção da leitura.” (SECCO, 2006, p. 73)
As personagens criadas por Couto são, geralmente, complexas. Retratam seres
humanos com dualidades e contradições, visto que ele retrata, através de suas personagens, um
país cheio de dualismos e oposições. “Engendram fraquezas e determinações, sensibilidades e
incertezas mediante uma história interrompida. É no recorte do descontínuo e de fugidias
temporalidades que tais forças se espreitam.” (MAQUÊA, 2005, p. 172)
Muitas de suas narrativas são povoadas pelo insólito, advindo das tradições
moçambicanas, como maneira de atingir o real que se impõe como verdade e questionar os ideais
de racionalidade europeia. Assim, pela fantasia, a memória das tradições é ativada, conduzindo o
romance pelas tramas construídas de forma a reavivar o que se perdeu ao longo dos anos.
Em se tratando especificamente do livro A varanda do frangipani, a história se passa
em um Moçambique pós-Guerra Civil, desestruturado econômica e culturalmente, no qual os
valores da modernidade, impostos pelo poder vigente, se chocam com os valores culturais
tradicionais.
Com base no fato de que “o discurso literário de Mia Couto tece uma rede intertextual
e simbólica com os mitos e as crenças dos povos moçambicanos.” (SECCO, 2006, p. 72),
algumas das considerações feitas por Mia Couto sobre a cultura moçambicana através de
elementos simbólicos serão trabalhadas a seguir.
Mia Couto apresenta, em sua obra A varanda do frangipani (1996), dois
protagonistas: Izidine Naíta (inspetor de polícia) e Ermelindo Mucanga (xipoco – fantasma – que
encarna temporariamente no corpo do inspetor). Não há interação direta entre os dois até o último
capítulo, mas percebe-se um contraste de visões, em que o fantasma é um elemento
representativo das crenças africanas e o inspetor é o retrato do africano sem tradições, sem
vínculo com sua origem. Não é, portanto, por acaso o fato de os dois só se encontrarem no último
capítulo. O xipoco encarna no corpo do inspetor, permanece nele, sabe muitas coisas, mas não
influencia nem aconselha seu “hospedeiro”. Izidine Naíta é descrito como “gente sem história,
gente que existe por imitação” (COUTO, 2007, p. 57). O inspetor é uma representação do
esquecimento e empobrecimento cultural em Moçambique e, ao longo do livro, ele é confrontado
diretamente através das histórias e invenções dos velhos do asilo e através das críticas da
enfermeira do local, Marta Gimo.
Acompanhando as duas personagens, Mia Couto povoa o livro de símbolos, que
carregam em si sentidos subjacentes, indispensáveis na construção do conflito que perpassa não
só a história das personagens, mas a de cada moçambicano. É possível identificar alguns
símbolos de grande força na obra, dos quais três foram escolhidos para uma análise mais detida: a
Fortaleza de São Nicolau, onde transcorre a história, e as personagens Nãozinha e Marta Gimo.
É interessante notar que o efeito defendido por Vera Maquêa chega a ser literal na
narrativa, pois a personagem, através da qual os “acontecimentos insólitos” se realizam –
Nãozinha –, todas as noites transforma-se em água. “A matéria se torna fluida, se desmaterializa,
descorporifica” e só se refaz pela manhã. Nãozinha é, então, apresentada como “mulher-água”.
Ela afirma: “Para dizer a verdade, eu só me sinto feliz quando me vou aguando. Nesse estado em
que me durmo estou dispensada de sonhar: a água não tem passado. Para o rio tudo é hoje, onda
de passar sem nunca ter passado.” (COUTO, 2007, p. 81).
Mais uma vez a morte se faz presente, agora de maneira figurada, como símbolo de
renovação e rito de passagem que tornam Nãozinha mais forte e capaz de carregar consigo as
tradições. Por esse entendimento, a feiticeira, a representante mais forte e ardorosa dos
fundamentos religiosos, das crenças moçambicanas que estão se perdendo no tempo, renova-se a
cada noite, por intermédio das águas, fortalecendo-se para o dia seguinte.
Da mesma forma, enquanto o ritual diário da personagem de transformar-se em água
representa uma espécie de morte, o voltar no dia seguinte traz uma significação simbólica da
água que nos faz entendê-la como fonte de vida (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 15).
Como um dos elementos vitais para a sobrevivência humana, a água é essencial e
indispensável à preservação da vida. Analisar a representação simbólica da personagem Nãozinha
como guardiã ou mesmo personificação das tradições moçambicanas é entender a tradição como
essência, fonte em que todos os africanos devem beber se quiserem alimentar e perpetuar sua
identidade. Essa perpetuação é um processo dinâmico, que implica renovação a cada gole. No
entanto, a personagem traz também, mais uma vez, ao livro uma relação das lembranças e do
passado com a morte, mostrando a denúncia do autor do passado esquecido de seu país.
É, também, digno de atenção o fato de que Nãozinha, apesar de personificar a cultura
africana, seus ritos, crenças e religiões, revela, através de alguns gestos e palavras, uma espécie
de ceticismo. Isso pode ser visto em momentos quando: a) diz que não é feiticeira, mas se
aproveita disso para não apanhar; b) afirma que seus poderes nascem da mentira; c) teme por
Salufo Tuco e, por isso, pede ajuda a Ernestina, afirmando não ser feiticeira e não poder protegê-
lo; d) depois de benzer o inspetor, joga a lata fora com um gesto de indiferença.
Em sua confissão, Marta Gimo diz que “Nãozinha se inventou de feiticeira. Tanto que
acabou por duvidar de seus poderes.” (COUTO, 2007, p. 124). No entanto, a negação de seu
status de feiticeira não muda a sua postura de defesa das crenças. Ela busca que os outros
acreditem em seus poderes e os estimula a guardarem e a respeitarem as tradições.
Apesar de reconhecer sua humanidade, Nãozinha constitui-se instrumento de
revelações ao longo de todo o livro, demonstrando mais um aspecto de conexão simbólica com a
água, ao mostrar-se “um símbolo de pureza passiva. Ela é um meio e um lugar de revelação”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 21)
A “falsa” feiticeira, tão frágil e pequena que passeava pelo campo minado e, de tão
leve, não disparava as bombas, reflete na verdade a força e a ligação entre o passado e o presente,
entre um povo e sua identidade. Nãozinha é a representação de uma tradição aparentemente frágil
e desacreditada por si mesma, mas ainda assim importante para os seus, renovada a cada dia para
inspirar e estabelecer a confiança dos que nela se fiam.
4.3 - Marta Gimo: um convite às origens
Marta foi criada como “assimilada”. A ela foi imposta a educação da colônia. Ela
representa alguém nascido distante das tradições – o que se evidencia pela profissão ocidental de
enfermeira e pelo fato de descender de uma família que há muito já perdera seus nomes africanos.
Ela, como outros moçambicanos, era uma estrangeira em sua própria terra, alheia aos seus
costumes e a suas origens. Ao chegar ao asilo, Marta estava ferida pelas experiências vividas num
campo de reeducação, mas encontrou no asilo um refúgio, um lugar em que podia exercer sua
profissão, ajudar os outros, numa tentativa de se recuperar dos próprios sofrimentos. Através da
fala de Marta, Mia Couto traz à luz críticas sobre a guerra, sobre a corrupção e sobre a
necessidade de se retomar antigos valores para a construção do presente. No início de sua
“confissão”, Marta afirma que “os velhos foram expulsos de nós mesmos”. As histórias, os
valores, as crenças passadas de geração em geração estavam sendo negligenciados, esquecidos,
expulsos da vida de cada um.
Marta, então, figura no livro como a voz que traduz a linguagem dos antigos,
confrontando Izidine Naíta que, “mesmo sendo preto, é lá da cidade. Não sabe, nem respeita.”
(COUTO, 2007, p. 77). Ela o acusa de ser estranho às tradições de sua própria terra, dizendo:
“Você tem medo deles (...) esses velhos são o passado que você recalca no fundo da sua cabeça.
Esses velhos lhe fazem lembrar de onde veio” (COUTO, 2007, p. 74). Marta tem autoridade para
cumprir tal papel, por ter passado de estrangeira à participante de sua própria cultura.
Ao criticar o inspetor por não ser capaz de compreender o que dizem os velhos em
suas confissões, Marta propõe que essas vozes, antigas portadoras da superioridade da tradição,
sejam ouvidas em resposta à destruição gerada pela guerra, em resposta às distorções sociais
advindas do processo de colonização, sendo este “um gesto de defesa da identidade possível”
(CHAVES, 2004, p. 150).
Sendo capaz de perceber os males de um país distante de uma identidade própria e a
necessidade de reconstrução do que se havia perdido, surge uma compreensão de que a tradição
deve ser parte da identidade moçambicana, numa relação dinâmica com a modernidade atual.
Diante desse entendimento, Marta recupera os sentimentos mutilados pela guerra,
reconstruindo seus ideais pela união de seus valores modernos no contato com os velhos do asilo,
representantes do “antigamente”. Ela reconhece os danos da guerra que, segundo ela, tiram do
mundo o “ciclo dos tempos” e instauram o “ciclo do sangue”, dividindo o mundo em antes e
depois da guerra. No entanto a personagem encontra no refúgio representado pelo asilo um novo
ciclo: o “ciclo dos sonhos”:
Surgem, portanto, da fraqueza do asilo, os muros de uma nova fortaleza, que protege
a cultura e a essência de uma identidade através da consciência e convivência com as origens
culturais de sua terra.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALBERGARIA, Enilce Rocha; SANTOS, Rejane Granato. As imagens literárias na escrita de
Mia Couto e a pintura expressionista alemã. In: Via Atlântica. n. 9. São Paulo: Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2006. p. 85-98.
CABAÇO, José Luís. A questão da diferença na literatura moçambicana. In: Via Atlântica. n. 7.
São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2004. p. 61-69.
CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: a palavra oral de sabor quotidiano/palavra escrita de saber
literário. In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania (orgs.). Marcas da diferença: as literaturas
africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006. p. 57-73.
CHAVES, Rita. O passado presente na literatura africana. In: Via Atlântica. n. 7. São Paulo:
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2004. p. 147-162.
COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MAQUÊA, Vera. Três romances de Mia Couto: horizontes moçambicanos. In: MARTIN, Vima
Lia (org.). Diálogos críticos: literatura e sociedade nos países de língua portuguesa. São Paulo:
Arte & Ciência, 2005. p. 167-183)
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Mia Couto: o outro lado das palavras e dos sonhos. In:
Via Atlântica. n. 9. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2006. p. 71-
84.