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DE Z 2 0 14 VOLUME UM | NÚME R O D OI S
I S SN 2 3 5 8 0 6 6 6
UF F S E RE CHI M
E-MAIL: GAVAGAI@GAVAGAI.COM.BR
ISSN 23580666
Semestral
1 . P e r i ó d i co . 2 . I n t e rd i s c i p l i n a r. 3 . C i ê n c i a s H u m a n a s .
4. Humanidades. I. Universidade Federal da Fronteira Sul.
II. Título.
CDD: 300
EDI TORS
CHAPECÓ (UFFS)
CASSIO BRANCALEONE
ERECHIM (UFFS)
FÁ BI O F R A N C IS CO F E LT RIN D E S O U Z A
ERECHIM (UFFS)
ERECHIM (UFFS)
ERECHIM (UFFS)
R O BE R TO R A FA E L D I A S D A SILVA
ERECHIM (UFFS)
• D E S I G N G R Á F I CO / D I S E Ñ O / G R A P H I C D E S I G N - P E D RO PAU LO V E N ZO N F I L H O •
I M AG E N S / I M ÁG E N E S / I M AG E S - M A R I E H U D E LOT • REVISÃO/ REVISIÓN/
REVISION - ANI CARLA MARCHESAN • RO B E RTO C A R LO S R I B E I RO • CASSIO
B R A N C A L E O N E • R O S Â N G E L A P E D R A L L I • F Á B I O F R A N C I S C O F E LT R I N D E S O U Z A •
JERZY ANDRÉ BRZOZOWSKI
05
C ATÓ L I C A ( P U C - R J ) D A N I E L A M A R Z O L A F I A L H O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E
D O S U L ( U F R G S ) • D É C I O R I G AT T I - U N I V E R S I DA D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E D O S U L ( U F RG S ) /
S A P I E N Z A ( I TÁ L I A ) • FÁ B I O L U I S LO P E S DA S I LVA - U N I V E R S I DA D E F E D E R A L D E S A N TA C ATA R I N A
PA R A N Á ( U T P ) • M A R I A B E R N A D E T E R A M O S F LO R E S - U N I V E R S I DA D E F E D E R A L D E S A N TA C ATA R I N A
D E S A N TA C ATA R I N A ( U F S C ) • R A F A E L J O S É D O S S A N T O S - U N I V E R S I D A D E D E C A X I A S D O S U L
F OU CA ULT E O DI AGNÓS T I CO
HI S TÓRI CO -F I LOS ÓF I CO
DA M ODE RNIDA DE
L U I Z C E L S O P INH O
P R O F E S S O R A D J U N T O I V D O D E PA R TA M E N T O D E F ILO S O F I A D A U NI V E R SID A D E F E D ER A L R U R A L
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019
1 FILOSOFIA E DIAGNÓSTICO registros: seja no âmago das Ciências do Homem, com a irrupção
do conceito de estrutura na psicanálise lacaniana, na etnologia
Em termos programáticos, Friedrich Nietzsche subordina de Lévi-Strauss e na linguística de Saussure; seja na literatura, no
a atividade filosófica a uma dupla exigência. Por um lado, a caso do primado das “palavras” no nouveau roman francês; seja na
desconfiança sistemática em relação a tudo o que até então fora oposição entre Ser da Linguagem e Ser do Homem; seja na Lógica
considerado superior, elevado ou de mais alto valor. Deste modo, Simbólica (de Russel e Wittgenstein), na qual as proposições são
sentido que enfatiza o quanto se faz “necessário [além de aplicar de Foucault nessa coletividade anônima não reside propriamente
a ciência da linguagem aos estudos histórico-morais] […] transformar no conteúdo teórico inovador dela, mas sim na capacidade de
a relação entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente tornar ainda mais difusa a noção de autoria.
tão seca e desconfiada, num intercâmbio dos mais amistosos e
frutíferos”, ao que se deve adicionar também a “clarificação e No entanto, seu intuito não se limita a destacar que a Era do
interpretação” psicológica (NIETZSCHE, 1988 [1887]) . Tal 1
Homem retrata um episódio bem delimitado da história do
projeto “interdisciplinar” leva Nietzsche a reivindicar para si a pensamento ocidental, cujas condições de possibilidade devem
rubrica de “médico da civilização” (NIETZSCHE, 1991 [1872- ser explicitadas sem recorrer a um referencial antropológico, a
1873], # 175, p. 113). uma subjetividade constituinte e, muito menos, a representações
sociais. A postura crítica de Foucault para com a modernidade
Essa última imagem – do filósofo que avalia o estado de saúde passa, obrigatoriamente, pela tarefa de “diagnosticar o presente,
da cultura – seguramente guarda maior proximidade com as dizer o que é o presente, dizer em que é diferente e absolutamente
pesquisas arqueogenealógicas de Michel Foucault. Isso fica diferente de tudo o que não é ele, isto é, nosso passado”
patente nas entrevistas que se sucedem à publicação de As palavras (FOUCAULT, 1994c, p.665). Ressalte-se que tal conjunção
e as coisas (1966), quando Foucault reiteradamente insiste na ideia ocorre exclusivamente em entrevistas ou debates e se estende ao
que Nietzsche “descobriu que a atividade particular da filosofia longo das três principais fases da obra de Foucault: a “arqueologia
A partir de 1980, seus estudos se concentram no período greco- que colocam o homem na base de tudo o que podemos saber, que
romano. Mas não há propriamente um retorno à antiguidade o consideram responsável por sua liberdade, que o tornam senhor
clássica por dois motivos: em primeiro lugar, no Curso do Colégio de sua linguagem, que fazem a história gravitar em torno dele.
de França de 1971 (Lições sobre a vontade de saber) ocorre uma Porém, o martelo destruidor das verdades eternas não é o mesmo
minuciosa leitura das filosofias platônica e aristotélica, além do nos dois filósofos de linhagem diagnosticadora.
manifesto interesse na sabedoria de Édipo (que também ocupará
lugar de destaque nas conferências A verdade e as formas jurídicas); Enquanto Nietzsche, por exemplo, constata que “o sentido de toda
em segundo lugar, Foucault recorre aos antigos, visando superar cultura é amestrar o animal de presa ‘homem’, reduzi-lo a um
a Era Moderna através da constituição de um estilo de existência animal manso e civilizado, doméstico” (NIETZSCHE, 1988 [1887],
que permita a “ruptura com as convenções, os hábitos, os valores, # 11, p.40), tolhendo seu potencial criador e afirmador; para
da sociedade ocidental” (FOUCAULT, 2009, p.170). Esse anseio Foucault, seria mais apropriado falar de tecnologias que têm por
por superação, que o próprio Foucault identifica como expressão meta aumentar a eficiência dos indivíduos, distribuindo-os em
de uma atitude revolucionária, resulta, pois, da necessidade de espaços bem delimitados, cronometrando suas atividades, fazendo-
avaliar criticamente o modo como somos, pensamos e agimos na os evoluir através de exercícios que maximizam suas forças.
atualidade.
Em sua “genealogia da ‘alma’ moderna” (FOUCAULT, 1975,
A proposta de realizar um diagnóstico histórico-filosófico está
p.38), ressalta que o julgamento dos delinquentes se faz a partir do
ancorada, pelo menos no que diz respeito às suas diretrizes
que permanece na “sombra” e não do ato propriamente dito. Com
programáticas, a um triplo preceito: deixar de lado o caráter
isso, “punem-se as agressões, mas, através delas, as agressividades;
fundante do sujeito; conceber os processos históricos a partir de
as violações, mas, ao mesmo tempo, as perversões; os homicídios,
uma dinâmica “bélica”; subordinar a noção de verdade a elementos
que são, também, os impulsos e os desejos” (FOUCAULT, 1975,
políticos e éticos.
p.25), ou seja, o que há de mais profundo na mente humana.
O diagnóstico foucaultiano – inspirado na tese nietzschiana de
que houve uma interiorização dos impulsos espontâneos dos
2 A “INVENÇÃO” DO SUJEITO indivíduos pela ação repressora do Estado e/ou da Religião
– nos mostra que a prisão reforça uma “tecnologia” altamente
O termo invenção designa, numa perspectiva foucaultiana, a
eficaz sobre os corpos, cujos principais efeitos são “uma ‘alma’ a
inexistência de essências; de ideias, noções ou conceitos pré-
conhecer e uma sujeição a manter” (FOUCAULT, 1975, p.345).
existentes; em suma, ausência de um ponto de partida ancorado
em evidências ou certezas. Também remete a uma concepção
Porém, essa dinâmica não fica restrita ao universo do criminoso,
descontinuista dos processos históricos, pois desfaz a ilusão
pois se encontra disseminada por toda a sociedade: da sala de
retrospectiva de que houve um aprimoramento – linear ou
aula aos consultórios, passando pelo ambiente de trabalho e
cumulativo – de saberes. Nesse sentido, tanto não é adequado falar
pelo treinamento militar. Verificamos semelhante mecanismo
em progresso da racionalidade quanto de uma finalidade implícita.
entrar insidiosamente em ação também quando surgem discursos
Mais ainda, o “método” arqueogenealógico rompe com a ilusão
normatizadores, notadamente no campo pedagógico e “psi”,
antropológica (e mesmo metafísica) de resgatar unidades ou
que impelem os indivíduos a assumirem identidades sexuais
totalidades ao promover uma historização radical que fragmenta
— a histérica, o perverso, o masturbador, o casal reprodutor, o
tudo aquilo que se acreditava ser idêntico a si mesmo e envereda
homossexual etc. A fabricação de sujeitos é a forma quase que
pelo campo do múltiplo e da heterogeneidade.
despercebida pela qual o poder se manifesta na modernidade, pois
“à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional,
Aplicando essa perspectiva ao caso do sujeito, nos deparamos com
aqueles sobre os quais ele se exerce tendem a ser mais fortemente
a estratégia metodológica de repensar os processos de subjetivação.
individualizados” (FOUCAULT, 1975, p.226).
Daí Foucault ressaltar a importância de “tentar ver como se dá,
através da história, a constituição de um sujeito que não é dado
definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se
dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior 3 POR UMA COMPREENSÃO GENEALÓGICA DOS
mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado PROCESSOS HISTÓRICOS
na história” (FOUCAULT, 1996 [1974], p.10). Essa perspectiva o
leva a afirmar, em Vigiar e punir, que o sujeito não passa de um No ensaio “Nietzsche, a genealogia, a história” (1971), Foucault
“átomo fictício” (FOUCAULT, 1975, p.227), o que nos remete considera que o discurso histórico deve recusar a pesquisa
diretamente à desconfiança, inaugurada por Nietzsche, em relação metafísica da origem, o que o leva a lhe atribuir as funções de:
aos valores humanistas da Era Moderna, mais exatamente àqueles 1. “inquieta[r] o que se percebia imóvel, fragmenta[r] o que se
pensava unido, mostra[r] a heterogeneidade do que se imaginava desequilibradas, heterogêneas, instáveis e tensas. É nesse sentido
conforme a si mesmo”; 2. explicitar os “diversos sistemas de que a atividade filosófica em Foucault adquire uma função
sujeição”, o “jogo casual de dominações” (FOUCAULT, 1994g, diagnosticadora.
p.142-143). Em A verdade e as formas jurídicas, dois anos depois,
volta a manifestar sua insatisfação para com a tradição Metafísica
ao defender que os processos históricos envolvem rupturas e Em oposição ao projeto humanista de tomar o “sujeito como
origem e fundamento do Saber, da Liberdade, da Linguagem, e
entre Política e Verdade. Isso fica patente no modo como articula •••
o funcionamento de instituições corretivas, militares, médicas,
escolares e industriais, tendo em vista que o ritmo da marcha da No entanto, se se pretende abranger o campo genealógico
percorrido por Foucault em sua máxima extensão, faz-se
tropa e a habilidade no manejo das armas, por exemplo, envolvem
necessário nos situarmos para além do estudo dos mecanismos
não apenas controle e obediência, mas também uma distribuição
normalizadores que perpassam os discursos sobre o indivíduo. É
rigorosa do tempo e do espaço que tem como correlato a eficácia
preciso também levar em conta as análises histórico-filosóficas
produtiva nas fábricas, a complexidade crescente das tarefas nas
a respeito da problematização da conduta individual, ou seja, o
instituições de ensino e o planejamento arquitetônico de hospitais
eixo ético das reflexões foucaultianas no qual temáticas como
e prisões no sentido de tanto limitar a circulação das pessoas
“bom uso da liberdade”, “vida como uma obra de arte”, “estética
quanto favorecer os mecanismos de fiscalização e ordenação das
da existência”, “cuidado de si e dos outros”, “arte de governar”,
massas humanas.
tornam-se a matriz a partir da qual o conceito de verdade adquire
uma imagem renovada, pois deixa de remeter aos parâmetros
A concepção foucaultiana de corpo ilustra bem como se dá a junção
lógico-epistemológicos tradicionais.
dos dispositivos de poder com a produção de conhecimentos:
existe “um saber do corpo que não é exatamente a ciência de seu Ao relacionar o termo grego parresia aos riscos de uma fala
funcionamento, e um domínio de suas forças que é mais do que verdadeira, Foucault pretende investigar “a questão da importância
a capacidade de vencê-las: esse saber e esse domínio constituem de dizer a verdade, de saber quem está habilitado para dizer a
aquilo que poderemos chamar de tecnologia política do corpo” verdade e por que deveríamos dizer a verdade” (FOUCAULT,
(FOUCAULT, 1975, p.31). O que Foucault pretende ressaltar 2001, p.170, [“Notas de conclusão”]). Tem-se aqui o primeiro
é que, do ponto de vista genealógico, seria pobre e insuficiente passo no sentido de “construir uma genealogia da atitude crítica
conceber um “poder que só teria a potência do ‘não’; fora do da filosofia ocidental” (FOUCAULT, 2001, p.170-171), entendida
estado de nada produzir, apto somente a colocar limites, seria como a análise de um tipo de discurso capaz de modificar o
somente antienergia; tal seria o paradoxo de sua eficácia: nada próprio modo de ser do indivíduo e daqueles que com ele
poder, senão fazer com que aquele que ele submete nada possa interagem. Logo no início do curso A coragem da verdade, Foucault
fazer, senão o que ele lhe deixa fazer” (FOUCAULT, 1976, p.112). afirma que pretende “retornar a certo número de problemas
Tal poder opressor certamente existe (Vigiar e punir inclusive o contemporâneos” (FOUCAULT, 2009, p.3). Estabelece, com isso,
associa explicitamente aos regimes monárquicos), só que o poder uma ponte entre a fala atrevida da antiguidade greco-romana e o
estudado por Foucault tem uma positividade, ou seja, uma eficácia que modernamente vivenciamos na militância revolucionária e na
política (minimizar o potencial de revolta), econômica (aumento transgressão artística. Seu interesse reside em conjugar a questão
da força de trabalho) e epistemológica (surgimento das Ciências do diagnóstico da cultura a uma perspectiva emancipatória, tendo
do Homem). em vista que a conduta parresiástica envolve necessariamente
algum tipo de incômodo ou mesmo provocação.
O diagnóstico do presente explica a produção de um saber sobre
o homem em termos de uma “política da verdade”, pois “o
discurso é uma arma de poder, de controle, de assujeitamento,
de qualificação e desqualificação [...]” (FOUCAULT, 1994i, 5 CONCLUSÃO
p.124). Com isso, o conhecimento adquire uma feição mundana,
As análises arqueogenealógicas de Foucault tanto pretendem
isto é, deixa de remeter a um estado ideal de pureza e passa a
determinar como se deu a formação do conceito de homem na
fazer parte de relações de força modificáveis, historicamente
modernidade como também realizam um diagnóstico nietzschiano
datadas e institucionalmente localizáveis. Diagnosticar os efeitos
das Ciências do Homem. Estão ancoradas, pois, em obras como
produtivos do binômio saber-poder permite assinalar até que
O nascimento da tragédia e Assim falou Zaratustra, que despontam,
ponto, por exemplo, educadores, agentes de saúde (mental e
respectivamente, o Nietzsche-médico e o Nietzsche-legislador,
física), trabalhadores sociais, de modo geral, podem se constituir
ou seja, o filósofo que pretende restaurar o estado de saúde da
numa espécie de “funcionários” da ortopedia mental. Esse tipo
civilização através da adoção de uma nova tábua de valores. Nos
de indagação retrata justamente a postura crítica da genealogia
dois casos, a modernidade é diagnosticada como decadente, sendo
foucaultiana em relação à modernidade, ou ainda, àquilo que nos
o humanismo a expressão recente desse movimento cultural.
tornamos a partir do momento em que as relações sociais passam
a ser envolvidas por uma rede de micro-poderes que atuam A dimensão judicativa das pesquisas foucaultianas envolvem
diariamente sobre os corpos e se respaldam no que se pode saber a questionamentos que, em vez de vislumbrarem o espaço idílico
respeito tanto de seu funcionamento quanto de sua capacidade de das essências ou o tempo imóvel das ideias, despertam para a
perpetuar os efeitos da máquina produtiva capitalista. tarefa verdadeiramente crítica do diagnóstico do presente. Assim,
______. Le discours ne doit pas être pris comme... [manuscrito ______. Humano, demasiado humano: um livro para
datilografado]. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, tome III espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de
(1976-1979). Paris: Gallimard, 1994i. p.123-124. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 [Menschliches,
Allzumenschliches; Erster Band: Ein Buch für freie Geister, 1876].
F O U C A ULT ' S
H I S T O R I C A L- P H I L O S O P H I C A L D I A G N O S I S
ABOUT MODERNI T Y