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E PRECISO FAZER NIETZSCHE RANGER

Luiz Celso Pinho∗

RESUMO
Como o próprio Foucault reiteradamente indicou, a leitura de Nietzsche
serviu de inspiração constante para seu trabalho. No entanto, são poucas
as passagens nas quais os critérios que o nortearam são apresentados de
forma precisa. Partiremos, assim, da hipótese de que essa filiação teórica
envolve, pelo menos, três modalidades de diálogo. Durante os anos 60, a
“arqueologia do saber” utiliza as temáticas nietzschianas do trágico e do
“super-homem” no intuito de diagnosticar o estado atual dos saberes
sobre o homem. A partir da década de 70, Nietzsche se torna um filósofo
do poder através da instrumentalização dos conceitos de genealogia e
vontade de verdade. Por fim, entre 1980 e 1984, temos a inacabada
“genealogia da ética”, que, apesar da herança terminológica, difere da
problematização da moral encontrada nos escritos nietzschianos. Além
disso, esse antagonismo praticamente não é explicitado por Foucault.
Palavras-chave: Michel Foucault– Friedrich Nietzsche– arqueologia do
saber– genealogia do poder– genealogia da ética


Doutor em Filosofia pela UFRJ (2003), Professor Adjunto IV do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Pesquisador do CNPq. E-mail: luiz.celso@pq.cnpq.br
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UMA DIFICULDADE INTERPRETATIVA


Vários autores têm realçado a importância de Nietzsche para os escritos de Foucault.
Gilles Deleuze descreve o papel do “super-homem” na formação de uma nova episteme na
história arqueológica de Foucault1; Peter Dews traça um paralelo entre História da loucura
e O nascimento da tragédia2; Jürgen Habermas subordina o nascimento das ciências do
homem à crítica nietzschiana da racionalidade3; Roberto Machado ressalta que a
arqueologia tem como fonte de inspiração a análise do niilismo4; Michel Mahon aborda as
bases genealógicas das análises de Foucault sobre o trinômio saber-poder-ética5; John
Rajchman subordina a tarefa de repensar o sujeito e a escrita da história a um referencial
nietzschiano6; Charles Scott estabelece afinidades e dissonâncias entre as problematizações
éticas de ambos7.
As abordagens a que nos referimos acima se caracterizam por mostrar o quanto os
projetos filosóficos de Foucault e de Nietzsche estão solidamente articulados,
independentemente das particularidades de cada um, pois, como o próprio Foucault
defende, “a única marca de reconhecimento que se pode testemunhar a um pensamento
como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar”8. Ou seja,
dentro de uma perspectiva foucaultiana, “a interpretação não esclarece uma matéria a ser
interpretada, que se ofereceria passivamente; ela somente se apodera, e violentamente, de
uma interpretação que já estava ali, à qual ela deve inverter, repetir, despedaçar a
marteladas”9.
Não pretendemos nos deter, contudo, numa discussão sobre o que vem a ser o ato de
interpretar. Certamente, ele está intimamente ligado à concepção foucaultiana de filosofia.
Nosso objetivo consiste em acompanhar como alguns elementos-chave atribuídos a
Nietzsche são reaproveitados. Deste modo, para que se possa determinar laços efetivos de
afinidade entre os dois autores, é preciso distinguir algumas operações sutis que retratam
com nitidez o modus operandi de Foucault. Como alerta Mahon, no caso do emprego do

1
Cf. DELEUZE, G., “Sur la mort de l’homme et le surhomme”, en Foucault, Paris, Minuit, 1986.
2
Cf. DEWS, P., Logics of disintegration: post-structuralist thought and the claims of critical theory,
London/New York, Verso, 1987.
3
Cf. HABERMAS, J., “Les sciences humaines démasquées par la critique de la raison: Foucault”, en Le
discours philosophique de la modernité, Paris, Gallimard, 1988.
4
Cf. MACHADO, R., Foucault, a filosofia, a literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
5
Cf. MAHON, M. Foucault’s nietzschean genealogy: truth, power, and the subject, Albany, State University
of New York Press, 1992.
6
Cf. RAJCHMAN, J., Michel Foucault: The Freedom of Philosophy, Nova York, Columbia University Press,
1985.
7
Cf. SCOTT, Ch., The question of ethics: Nietzsche, Foucault, Heidegger, Bloomington, Indiana University
Press, 1990.
8
FOUCAULT, M., “Entretien sur la prison: le livre et sa méthode” (a J.-J. Brochier), en Dits et écrits, II,
Paris, Gallimard, 1994, p. 753.
9
FOUCAULT, M., “Nietzsche, Freud, Marx” (ensaio), en Dits et écrits, I, Paris, Gallimard, 1994, p. 571.

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conceito de genealogia, “embora a abordagem de Foucault seja nietzschiana, ela não é nem
idêntica nem redutível aos seus elementos nietzschianos”10.
Um exame atento das análises histórico-filosóficas de Foucault –rubrica que abriga
seus textos mais importantes– revela que as menções a Nietzsche adquirem maior
relevância a partir do trágico e da moral em História da loucura, do “super-homem” e da
linguagem em As palavras e as coisas, da genealogia em Vigiar e punir e da vontade de
verdade em A vontade de saber. Esses temas e conceitos, é preciso que se enfatize, não são
incorporados da mesma forma. Daí podermos falar de operações de deslocamento, de
mudança de tônica, de integração progressiva, de descaracterização, de filtragem etc.
Desconhecer essas sutilezas envolve o risco de simplificar ou generalizar em que bases
teóricas se dá o encontro de ambos.
Apesar da abundância das referências de Foucault a Nietzsche –notadamente em
entrevistas– a presença deste no opus foucaultiano não é explicitada de forma pontual.
Poucos registros fornecem pistas significativas. Inicialmente, do ponto de vista
cronológico, chama a atenção a conferência realizada, no ano de 1964, “Nietzsche, Freud e
Marx”, por ocasião do célebre Colóquio de Royaumont. Porém, essa fala diz respeito
basicamente a uma breve História da Interpretação (que será retomada em As palavras e as
coisas), onde os autores ali abordados retratam uma inflexão do pensamento moderno em
relação à hermenêutica tradicional, tendo em vista que, a partir deles, interpretar passa a
remeter a uma tarefa interminável, onde se dissolve a materialidade tanto de quem
interpreta quanto daquilo que é interpretado.
A incidência de elementos nietzschianos nas análises histórico-filosóficas de Foucault
pode ser explicitada mais apropriadamente em textos como “A vontade de saber” (1971),
resumo do primeiro curso no Colégio de França; na primeira conferência de A verdade e as
formas jurídicas e, notadamente, no ensaio “Nietzsche, a genealogia, a história”. No
primeiro caso, é exposto, de modo conciso, porém, extremamente didático e revelador, a
incompatibilidade entre duas concepções de conhecimento: a aristotélica e a nietzschiana.11
Em seguida, Foucault utiliza Nietzsche para fundamentar sua crítica ao primado do sujeito
na Filosofia e nas Ciências Humanas, o que, como veremos, não se trata de uma novidade,
pois tal vínculo já havia sido estabelecido no período arqueológico. Por fim, no terceiro
registro –que talvez retrate com maior precisão a importância do pensador alemão nas
investigações foucaultianas– nos deparamos também com as bases de uma concepção
genealógica dos processos históricos e das relações de poder.
A esse material elaborado de forma esparsa e descontínua podemos ainda acrescentar
empréstimos terminológicos, breves citações, analogias genéricas e mesmo parentescos

10
MAHON, M., Foucault’s nietzschean genealogy: truth, power, and the subject, Albany, Op.cit., p. 155.
11
A importância dessa oposição para a elaboração de uma análise genealógica dos processos de produção de
conhecimento fica nítida em FOUCAULT, Michel. Leçons sur la volonté de savoir (Cours au Collège de
France: 1970-1971). Edição organizada por Daniel Defert. Paris: Gallimard-Seuil, 2011.

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superficiais. Mas nada seria mais equivocado que atribuir a tal amálgama de temas, ideias e
conceitos alguma incoerência, até porque, como veremos, estamos lidando com o preceito
“interpretativo” de fazer ranger. Além disso, a dificuldade de definir o alcance teórico-
metodológico do legado nietzschiano na estrutura argumentativa do pensamento
foucaultiano não nos impede de estabelecer algumas estratégias interpretativas.
Primeiramente, circunscrevendo dois grandes conjuntos de referências –um composto
pelas análises histórico-filosóficas de Foucault e outro que corresponde ao que foi afirmado
em entrevistas (que, invariavelmente, abrigam um universo rico e desconcertante de
revelações no que diz respeito a Nietzsche). Consequentemente, nos deteremos nos
trabalhos que abordam a questão da loucura, da medicina, das ciências do homem, da
prisão e da sexualidade. Nesses textos, que constituem o veio principal dos escritos de
Foucault, o pensamento nietzschiano aparece sob as mais diversas formas: consciência
trágica (História da loucura na época clássica); enigmática oposição entre linguagem e
conhecimento no processo de produção de uma “ciência do indivíduo” (prefácio de O
nascimento da clínica); trilogia morte de Deus, morte do homem, “super-homem” (As
palavras e as coisas); história genealógica (Vigiar e punir) e relação entre discurso e
vontade de verdade (A vontade de saber).

INVESTIGAÇÕES ARQUEOLÓGICAS
Em sua Tese de Doutorado – Loucura e desrazão12 –, a fonte de inspiração de
Foucault pode ser pressentida logo no prefácio (que será excluído a partir da segunda
edição) quando lemos que se trata de um empreendimento realizado “sob o sol da grande
pesquisa nietzschiana”, cuja meta consiste, numa alusão a O nascimento da tragédia, em
“confrontar as dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”.13 Mais ainda:
Foucault anuncia que irá realizar uma “arqueologia do silêncio”, pois partirá da constatação
de que a “linguagem da psiquiatria [...] é um monólogo da razão sobre a loucura”.14 A
argumentação que se segue estabelece três períodos distintos da cultura ocidental –o
Renascimento, a Época Clássica e a Modernidade– para ressaltar como o homem racional
interage com o homem louco, tendo por hipótese que “sob a consciência crítica da loucura,
e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica
não cessou de permanecer em vigília”15.
Não há como não nos remetermos a O nascimento da tragédia, pois nele Nietzsche
saúda justamente o retorno de uma “sabedoria dionisíaca” que, para além da “mentira da

12
Publicada em maio de 1961 como um dos requisitos necessários para a conclusão do doutorado na
Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Paris (Sorbonne), e que será reeditado onze anos depois com o
antigo subtítulo: História da loucura na época clássica.
13
FOUCAULT, M., “Préface” (a Loucura e desrazão), en Dits et écrits, I, Op.cit, p. 162.
14
Ibid., p. 160.
15
FOUCAULT, M., Histoire de la folie, Paris, Gallimard, 1972, p. 40.

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civilização”, guarda em segredo a “autêntica verdade da natureza”:


“sob esta inquieta vida e espasmos culturais a moverem-se convulsivamente para
cima e para baixo, jaz uma força antiquíssima, magnífica, interiormente sadia, a
qual, sem dúvida, só em momentos excepcionais se agita alguma vez com
violência, e depois volta a entregar-se ao sonho, à espera de um futuro
despertar”16.

A argumentação de História da loucura constitui um extenso estudo sobre o silêncio


imposto ao louco a partir da segregação institucional, da invalidação discursiva e do
enquadramento moral ao qual ele vem sendo submetido desde o século XVII. Foucault não
apenas subordina a história do pensamento psiquiátrico-psicológico ao constante embate
que Nietzsche postula entre o apolíneo e o dionisíaco como também incorpora a ideia de
que a experiência trágica tem um estatuto ontológico.
Daí compartilhar da trilogia nascimento-morte-renascimento concebida por
Nietzsche, que parte do tipo de conflito que deu origem à tragédia para mostrar que ela veio
a sucumbir de modo prematuro e como, gradualmente, voltou a despertar17. Além disso,
Foucault opera alguns deslocamentos em cada uma dessas três etapas: da música para a
psiquiatria; da Grécia Antiga para o Renascimento; de Sócrates para Descartes; de Wagner,
Kant e Schopenhauer para o próprio Nietzsche (ao lado de Van Gogh, Artaud, Goya, Sade,
Hölderlin, Nerval).
Ainda nesse momento inicial, temos outro ponto de encontro quando,
surpreendentemente, Foucault se detém num texto de Kant –Antropologia de um ponto de
vista pragmático [Anthropologie in pragmatischer Hinsicht]– no intuito de redigir os dois
volumes de sua tese complementar. Um deles corresponde à tradução para o francês do
referido texto (editado três anos depois), o outro contém um longo comentário, publicado
em 2008, com o título Introdução à Antropologia de Kant, cujo teor é de particular
interesse para nós, tendo em vista que se encerra contrapondo o “super-homem”
nietzschiano à antropologia18. Contraposição essa que antecipa, sem muito alarde, a crítica
do humanismo que se consolidará na década de 1960.
A segunda presença significativa de Nietzsche na arqueologia ocorre, em 1966, com
As palavras e as coisas. Ela está diretamente associada à célebre frase de que “o homem é
uma invenção [...] recente”19. Não estamos, contudo, diante de algo inédito, tendo em vista
16
NIETZSCHE, F., O nascimento da tragédia, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1992, § 23, p. 136.
17
Cf. DEWS, P., “Foucault and Nietzsche”, en Logics of disintegration, Op.cit., pp. 180-181.
18
“A trajetória da questão: Was ist der Mensch? [O que é o homem?] no campo da filosofia se encerra na
resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch [o super-homem] (FOUCAULT, M. Introduction à
l’Anthropologie de Kant, en KANT, E., Anthropologie du point de vue pragmatique, Paris, Vrin, 2008, p. 79).
Esse ensaio teria sido batizado inicialmente de Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, numa alusão à
obra que Hyppolite dedica à elucidação da Fenomenologia do espírito de Hegel (cf. Defert, D.,
“Chronologie”, en Dits et écrits, I, Op.cit., p. 23).
19
FOUCAULT, M., Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 398.

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que, como acabamos de ressaltar, no ensaio introdutório de sua tese complementar Foucault
já manifestava um descontentamento para com o insidioso paradigma antropológico da
modernidade. Consagrado pelas páginas de Assim falou Zaratustra, essa promessa-ameaça
envolve uma interpretação desconcertante do evolucionismo darwinista por defender que “o
homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem”20. Com isso, em vez de
atribuir ao ser humano a possibilidade de uma realização no futuro, Nietzsche taxativa e
reiteradamente afirma que “o homem é algo que deve ser superado”21.
Essa concepção reforça a tese arqueológica de que “o homem está em vias de
desaparecer”, “como na beira do mar um rosto de areia”22. Ao comentar retrospectivamente
seus pressupostos teóricos da década de 60, Foucault declara que encontrou uma alternativa
ao “modelo [hegeliano] de inteligibilidade contínua da história” e ao “primado
[fenomenológico e existencialista] do sujeito e seu valor fundamental” no “tema
nietzschiano da descontinuidade, de um super-homem que seria totalmente diferente em
relação ao homem” e na obra de Bataille –“na qual o sujeito sai de si mesmo, se decompõe
como sujeito, no limite de sua própria impossibilidade”23.
Apesar de Nietzsche contribuir para envolver o humanismo numa atmosfera
irrespirável, sua filosofia estava comprometida, acima de tudo, com a denúncia do estado
de decadência da modernidade. A arqueologia, por sua vez, tem como prioridade
desantropologizar as ciências do homem e a reflexão filosófica, seja pelo advento da noção
de estrutura e de uma modalidade de literatura (o nouveau roman francês), seja por
invalidar qualquer primado epistemológico do sujeito.
Não acreditamos, contudo, que o alcance nietzschiano da arqueologia se encerre
nesses casos paradigmáticos. Há toda uma cumplicidade entre as pesquisas histórico-
filosóficas de Foucault e o modo como Nietzsche avalia nossa cultura. Um exemplo
pontual, porém instigante, pode ser verificado no prefácio de O nascimento da clínica
(1966) quando Foucault dá a entender, de forma enigmática, sem dúvida, que há uma
oposição entre conhecimento crítico e crítica do conhecimento, entre “linguagem” e
“razão”, entre Discurso e Ciência, em suma, entre Kant e Nietzsche:
“para Kant, a possibilidade e a necessidade de uma crítica estavam ligadas,
através de certos conteúdos científicos, ao fato de que há conhecimento. Elas
estão relacionadas em nossos dias –e Nietzsche, o filólogo é testemunha– ao fato
de que há linguagem e que, nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens –
sejam elas racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas– um sentido que
se eleva acima de nós tomou corpo, conduz nossa cegueira, mas espera na

20
NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, “Prólogo”, § 4.
21
Ibíd., “Prólogo”, § 3, p. 29. A mesma exortação reaparece na primeira (“Das alegrias e das paixões”, p. 54;
“Da guerra e dos guerreiros”, p. 64; “Do amigo”, p. 74), na terceira (“De velhas e de novas tábuas”, § 3, p.
204) e na quarta parte (“O mais feio dos homens”, p. 269) do livro. Nietzsche chega mesmo a considerar o ser
humano como uma doença de pele da terra (cf. “De grandes acontecimentos”).
22
FOUCAULT, M., Les mots et les choses, Op.cit., pp. 397-398.
23
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (a D. Trombadori), en Dits et écrits, IV, Op.cit., p. 49.

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obscuridade nossa tomada de consciência para mostrar-se e pôr-se a falar”.24

Além disso, no final da década de 60, Nietzsche ainda será saudado por “libertar a
história do pensamento de sua sujeição transcendental”25. Esse tipo de consideração
permitirá repensar os processos históricos a partir da noção de genealogia nos trabalhos
vindouros sobre os dispositivos de controle social e político.

INVESTIGAÇÕES GENEALÓGICAS
A partir de 1969, Foucault começa a dar indícios de que sua leitura de Nietzsche
passa por um processo de reformulação. Gradualmente, os temas que serviram de apoio
para a argumentação de História da loucura, O nascimento da clínica e As palavras e as
coisas são deixados para trás, minimizados ou vão adquirindo outra roupagem – se bem que
o interesse pela irrupção de uma ciência do indivíduo tenha se mantido como meta
prioritária de suas pesquisas. Um sinal prematuro do desprendimento foucaultiano em
relação ao que outrora lhe pareceu imprescindível diz respeito à experiência trágica. Após
ocupar um lugar de destaque na Tese de Doutorado, sua importância só poderá ser
pressentida em duas ocorrências isoladas: uma em 1963, ao retratar a capacidade de a
literatura transgredir e contestar; e outra, no ano seguinte, ao servir de referência para a
ideia de que a interpretação constitui uma tarefa inesgotável, sem fim, inacabada.26 Para A
arqueologia do saber, obra que se debruça sobre cada etapa das análises histórico-
filosóficas dos anos 60, constatamos o desinteresse em “reconstituir o que poderia ser a
própria loucura, tal como ocorreria, inicialmente, em alguma experiência primitiva,
fundamental, surda, muito pouco articulada, e tal como teria sido organizada em seguida
(traduzida, deformada, deturpada, reprimida talvez) pelos discursos e pelo jogo oblíquo,
frequentemente retorcido, de suas operações”. Sendo que Foucault complementa em nota:
“isto é escrito contra um tema explícito em História da loucura, o qual é nele retomado
várias vezes e de modo singular no Prefácio”27. Em suma, a pesquisa arqueológica do
trágico se torna obsoleta e até mesmo inconveniente.
O combate ao humanismo, por sua vez, símbolo do período arqueológico, não
desaparece, mas perde qualquer laço de parentesco com o tema do “super-homem”. Um
livro como Assim falou Zaratustra deixa de servir de inspiração, a ponto de, ao ser
indagado, em 1972, sobre “qual” Nietzsche o agradava, Foucault responde taxativamente:
“não é, evidentemente, o de Zaratustra, mas o de O nascimento da tragédia e o de

24
FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris: PUF, 1972, p. XII, os grifos são meus.
25
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 264.
26
Cf. FOUCAULT, M., “Débat sur la poésie”, en Dits et écrits, I, Op.cit., pp. 398-399; e “Nietzsche, Freud,
Marx”, en Dits et écrits, I, Op.cit., pp. 570-571.
27
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Op.cit., p. 64-5. Foucault adota uma postura nominalista e nega
a existência do objeto “loucura” (ibíd., pp. 45-46).

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Genealogia da moral”.28 Paradoxalmente, uma das consequências filosoficamente mais


instigantes que acompanha a tese do “super-homem” –a crítica da racionalidade– ocupa
lugar de destaque na primeira conferência de A verdade e as formas jurídicas (1974). De
modo geral, a polêmica suscitada pelo tema da “morte do homem” adquire um tom ameno,
chegando a se tornar um pouco menos intolerável para os defensores do humanismo,
conforme podemos notar, numa palestra do final da década de 60, “O que é um autor?”,
onde Foucault admite que pretendia “ver de que maneira, segundo quais regras se formou e
funcionou o conceito de homem”.29 Aliás, tal posicionamento já havia sido timidamente
exposto na quinta e última parte de A arqueologia do saber, através da seguinte declaração:
“não quis excluir o problema do sujeito”, mais sim “definir as posições e as funções que o
sujeito podia ocupar na diversidade dos discursos”.30 Ocorre, deste modo, no curto espaço
de três anos, o deslocamento de um projeto “negativo”, ou seja, das condições de
possibilidade da morte do sujeito, para a análise, de cunho “positivo”, dos diversos “lugares
ocupados” pelo autor no mundo dos discursos.
Não se pretende, com isso, sugerir que Foucault tenha se afastado da proposta inicial
de denunciar a proliferação insidiosa de noções antropológicas. Porém, a redução do caráter
polêmico de antigas hipóteses de trabalho nos leva a concluir que o rumo de suas pesquisas
está sendo reavaliado. Também chama a atenção o abandono de qualquer menção à
literatura e, consequentemente, à apologia da linguagem. Por fim, na digressão introdutória
de A arqueologia do saber, Nietzsche aparece como um dos expoentes do rompimento da
soberania do sujeito, tendo em vista que seu método genealógico se mostra incompatível
com a “pesquisa de um fundamento originário que faça da racionalidade o telos da
humanidade”.31 No entanto, o descentramento nietzschiano em relação à razão, ao
progresso e à totalização se aplica igualmente a Marx e ao Estruturalismo (notadamente, o
de Louis Althusser).
Apesar dessas mudanças de ênfase, consideramos que a afinidade com Nietzsche
ainda se mantem nos anos 70, mas sob novas diretrizes metodológicas e conceituais. A
permanência do vínculo pode ser retratada através do emprego do termo genealogia nas
páginas de Vigiar e punir, na homenagem estampada no título A vontade de saber ou na
tese de que ele é o “melhor, mais eficaz e atual” modelo para a análise das relações de
poder no mundo ocidental32. Porém, um exame minucioso revela que o modo como
Foucault incorpora o referencial nietzschiano às suas pesquisas histórico-filosóficas sofre
uma sutil, porém reveladora, modificação. Há mudanças de nítida visibilidade, como a do
papel atribuído à Genealogia da moral: se, nos anos 60, esse livro esteve em maior ou

28
FOUCAULT, M., “Les problèmes de la culture. Un débat Foucault-Preti” (entrevista), en Dits et écrits, II,
Op.cit., p. 372.
29
FOUCAULT, M., “Qu’est-ce qu’un auteur?” (conferência), en Dits et écrits, I, Op.cit., p. 817.
30
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Op.cit., p. 261.
31
Ibíd., p. 22.
32
FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau, 1996, Primeira Conferência, p. 9.

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menor escala associado à elucidação das bases morais do conhecimento psiquiátrico, ao


surgimento de uma região onde reina a linguagem e ao fim do primado antropológico, sua
inserção nos anos 70 tanto permite conceber um novo modelo de escrita da história quanto
está em consonância com a tese foucaultiana de que houve um processo de interiorização
da subjetividade.
É nesse sentido que Foucault pretende “dar conta da constituição do sujeito na trama
histórica”33. E, em vez de ressaltar que o homem desaparecerá do horizonte epistemológico
da modernidade (tese basilar da arqueologia), as pesquisas doravante empreendidas
almejam explicar como foi possível seu surgimento. Trata-se de realizar uma “genealogia
da ‘alma’ moderna”34, na qual tanto o olhar vigilante, a normalização e o exame, em Vigiar
e punir, quanto a confissão, em A vontade de saber, desempenham uma função positiva, já
que um
“poder que só teria a potência do ‘não’, fora do estado de nada produzir, apto
somente a colocar limites, seria somente antienergia; tal seria o paradoxo de sua
eficácia: nada poder, senão fazer com que aquele que ele submete nada possa
fazer, senão o que ele lhe deixa fazer”35.

Contudo, é preciso salientar que a genealogia nietzschiana atribui ora à “autoridade”


estatal, ora à “autoridade” sacerdotal a capacidade de, respectivamente, conter e
redirecionar o livre transbordar da vontade de potência, de modo que “todo o mundo
interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se
estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi
inibido em sua descarga para fora”36. De acordo com Nietzsche, a “alma” do homem
ocidental se forma a partir do momento em que os “instintos reguladores e
inconscientemente certeiros” mudam de direção e “voltam-se para dentro”37.
A história foucaultiana da prisão apresenta uma notável sintonia com as análises
genealógicas de Nietzsche sobre o abrandamento da punição na sociedade moderna, tendo
em vista que tais análises tanto detectam uma “crescente espiritualização e ‘divinização’ da
crueldade” quanto defendem que “quase tudo a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado
na espiritualização e no aprofundamento da crueldade”38. No entanto, estabelecer uma
equivalência entre o conceito de genealogia de ambos implica deixar de lado as
metamorfoses às quais Foucault submeteu o pensamento de Nietzsche.

33
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (a A. Fontana e P. Pasquino), en Dits et écrits, III,
Op.cit., p. 147.
34
FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, p. 38.
35
FOUCAULT, M., La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p. 112.
36
NIETZSCHE, F., Genealogia da moral, Rio de Janeiro, Brasiliense, 1988, II, § 16, p. 90.
37
Ibíd., II, § 16, p. 89-90.
38
Ibíd., II § 6, p. e 68 NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, §
229, p. 135.

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Os discursos de Zaratustra inauguram a problemática da Vontade de Verdade. Nesse


momento, ela designa uma ampla denúncia do antropomorfismo: seja através do desejo de
“que tudo se transforme no que pode ser humanamente pensado, humanamente visto,
humanamente sentido”39, seja pela crença de que “todo o existente possa ser pensado”.40 Na
quinta parte de A gaia ciência, redigida um ano após o término de Assim falou Zaratustra, a
Vontade de Verdade aparece definida como “a convicção de que ‘nada é mais necessário
do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário’”41. Em função
disso, Além do bem e do mal propõe uma inversão dos valores: “Nós questionamos o valor
dessa vontade. Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade?
Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência?”42. Já em Genealogia da moral Nietzsche critica a
“fé em um valor metafísico, um valor em si da verdade”43. O aspecto moral dessa Vontade
é sintetizado em um dos seus últimos trabalhos –Ecce homo: “[...] a noção de ‘além’, de
‘mundo verdadeiro’, inventada unicamente a fim de depreciar o único mundo que existe”.44
Foucault, efetivamente, não explicita qual concepção nietzschiana de Vontade de
Verdade adota. Numa entrevista nos anos 80, declara que seu interesse em Nietzsche se dá
a partir dos “seus textos do período de 1880, onde a questão da verdade e da história da
verdade e da vontade da verdade eram, para ele, centrais”45. As únicas passagens em que
trabalha efetivamente essa questão encontram-se em A ordem do discurso, no resumo de
curso no Colégio de França, “A vontade de saber”, ambos de 1971, e no livro homônimo
que corresponde ao primeiro volume de sua História da sexualidade, publicado em 1975,
sendo que nos dois últimos ela é invocada com outro nome, como atestam os títulos dos
trabalhos mencionados.
Por Vontade de Saber, Foucault denomina um mecanismo político-epistemológico
com quatro características: é anônimo, pois não envolve a ação de uma subjetividade
individual ou coletiva (hipótese da “invenção”), resulta de um jogo de forças em
determinado momento histórico (hipótese do “pacto frágil”), modifica-se constantemente
(hipótese da “falsificação primeira”) e depende de fatores sociais, econômicos e políticos
(hipótese do “conhecimento interessado”). Essas quatro hipóteses lhe permitem pensar o
ato de conhecer sem recorrer a qualquer postulado metafísico. Foucault e Nietzsche adotam
uma perspectiva extraepistemológica para definir o estatuto da “verdade”. A diferença
básica é que enquanto este aborda sua faceta moral, aquele envereda por seu aspecto
mundano, ou seja, político, dos discursos. Daí afirmar: “a verdade é deste mundo; é

39
Nietzsche, F., Assim falou Zaratustra, tradução de Mário da Silva, Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, “Nas
ilhas bem aventuradas”, p. 100.
40
Ibíd., “Da superação de si”, p. 126.
41
NIETZSCHE, F., A gaia ciência, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2001, V, § 344.
42
NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, “Dos preconceitos dos filósofos”, Op. cit.,§ 1, p. 9.
43
NIETZSCHE, F., Genealogia da moral, Op.cit., III, § 24, p. 174.
44
NIETZSCHE, F., Ecce Homo, São Paulo, Max Limonad, 1986, “Porque sou um destino”, § 8, p. 158.
45
FOUCAULT, M., “Structuralisme et poststructuralisme” (entrevista a G. Raulet), en Dits et écrits, IV,
Op.cit., p. 444.

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produzida nele graças a múltiplas coerções e exerce nele efeitos de poder capazes de
regulá-lo”46.
Consideramos que os conceitos nietzschianos de vontade e genealogia passaram por
uma lenta gestação. São abordados inicialmente em A ordem do discurso. Mas logo
adquirem novas feições no resumo do primeiro curso do Colégio de França, “A vontade de
saber”, e no ensaio “Nietzsche, a genealogia, a história”. Inicialmente, ambos aparecem
atrelados a problemáticas inerentes ao período arqueológico, como no caso da
desqualificação da linguagem do louco e da formação de saberes sobre o homem. Com o
passar do tempo, contudo, a vontade de verdade se presta a um estudo comparativo das
teorias do conhecimento inventadas pelos filósofos e a genealogia, por sua vez, suscita uma
reformulação dos pressupostos metodológicos que norteiam a escrita da história.
Temos, a partir dessa dupla metamorfose, um conjunto de pesquisas de inspiração
nietzschiana que passam a compor uma “genealogia do poder” (ou “microfísica do poder”,
como aparece em Vigiar e punir, ou “analítica do poder”, após a publicação de A vontade
de saber). A dificuldade em acompanhar como se dá a lenta assimilação de conceitos
nietzschianos reside no fato de Foucault praticamente não ter comentado nada sobre as
etapas desse processo. Além do mais, a renovação da nomenclatura nietzschiana não
decorre de alguma modalidade de empréstimo terminológico, mas sim da necessidade de
elaborar um instrumental teórico que não seja de base metafísica ou antropológica.

PARA ALÉM DA GENEALOGIA


A primeira parte da história foucaultiana da sexualidade recorre à genealogia
nietzschiana no intuito de transformá-la numa ferramenta capaz de dar conta da matriz
política das Ciências do Homem. Seu desdobramento, contudo, nosso objeto de análise
agora, abandona o projeto inicial de investigar a formação do sujeito a partir de práticas
confessionais para abordar como “os indivíduos foram levados a exercer sobre eles
mesmos, e sobre os outros, uma hermenêutica do desejo”47. Além disso, apenas no texto
introdutório de O uso dos prazeres, que também estabelece as diretrizes teóricas dos
volumes seguintes, encontramos tênues indícios que nos permitem inferir certa afinidade
entre os dois, como no caso da passagem em que Foucault ressalta a necessidade de
implementar, “a propósito do desejo e do sujeito desejante, um trabalho histórico e crítico”,
ou seja, uma “genealogia”48.
Mas é preciso ressaltar que essa indicação se mostra vaga. Inicialmente, a introdução
não nos fornece elementos suficientes para delinearmos o que vem a ser história

46
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (com A. Fontana e P. Pasquino), en Dits et écrits, III,
Op.cit., p. 158.
47
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, p. 12.
48
Ibíd., p. 12.

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genealógica no caso da problematização ética do homem do desejo. Ficamos, na verdade,


sem saber se há de fato total ruptura ou não com os anos 70. Se bem que Foucault dá a
entender que a “genealogia da ética” tem raízes bem extensas, pois “encontra-se no ponto
de cruzamento de uma arqueologia das problematizações e de uma genealogia das práticas
de si”49. Além de afirmar que considera indispensável realizar um deslocamento teórico
“para analisar o que é designado como ‘o sujeito’”50. Ou seja, o genealogista aborda os
processos de formação da subjetividade, sem considerá-la uma instância originária, o que se
mostra claramente uma invariante no pensamento foucaultiano. Por fim, enquanto a questão
dos dispositivos disciplinares conjugava a genealogia com o elemento poder, na questão
das técnicas de si, surge o elemento verdade, o que aponta para uma direção não apenas
inédita como também portadora de resultados ainda imprevisíveis.
No que diz respeito às entrevistas, ocorre uma situação diametralmente oposta;
porém, ainda mais complexa. Através delas, podemos circunscrever um conjunto
significativo de pistas, só que elas ora se mostram bastante genéricas, ora estabelecem
filiações que não são efetivamente corroboradas pelas análises histórico-filosóficas de O
uso dos prazeres e O cuidado de si (ambos de 1984). É o que percebemos quando nos
detemos especificamente na questão da conduta individual.
Nietzsche avalia a cultura ocidental como um todo e saúda o período pré-socrático e a
cultura renascentista por terem atingido um esplendor existencial. No mesmo sentido,
Foucault investiga a problematização ética entre gregos, romanos e cristãos, chegando a
esboçar seus desdobramentos no mundo moderno e contemporâneo. Apesar dessa nítida
afinidade programática, quando nos detemos nas hipóteses históricas e teóricas de cada um,
verificamos um nítido descompasso. Enquanto o primeiro toma como referência imutável a
relação entre cultura judaico-cristã e desvalorização da vida, a genealogia foucaultiana
revela sucessivas problematizações éticas através das quais ocorre um variado intercâmbio
de temas. Deste modo, a chave única de que Nietzsche se utiliza para avaliar a moral
ocidental –o niilismo– não se revela válida para Foucault. É curioso que este último tenha
se mantido extremamente econômico nos comentários sobre suas teses antinietzschianas,
como se quisesse passar a impressão de que continuava atrelado, de alguma forma, ao
legado do filósofo alemão. Não nos cabe especular o que ele tinha em mente ou mesmo
justificar o que deixou de ser dito, mas também não podemos deixar passar despercebido
sua intenção de atenuar as divergências com Nietzsche, como se nenhuma modificação
significativa tivesse se produzido com relação a ele.
Apesar de a ética nietzschiana se apresentar de forma sistemática em Genealogia da
moral através da oposição entre dois modelos de conduta perante a vida –o dos “senhores”
e o dos “escravos”–, seus principais aspectos encontram-se disseminados por várias obras:
a dissecação psicológica da moralidade (Humano, demasiado humano); a fidelidade ao que

49
Ibíd., p. 21.
50
Ibíd., p. 13.

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cada um tem de singular (A gaia ciência); a afirmação do eterno retorno (Assim falou
Zaratustra), a autossuperação trágica (Ecce homo). Há ainda toda uma discussão de cunho
ético-existencial que atravessa sua obra de uma ponta a outra, como no caso das passagens
relativas à força criadora, à grande saúde, ao vínculo entre vida e arte, à recusa do livre-
arbítrio, etc.
No que diz respeito à genealogia foucaultiana, ela se caracteriza por analisar a
problematização ética no mundo greco-romano e esboçar seus desdobramentos na era
cristã. E isso sempre norteado pelo interesse de demonstrar o quanto foi possível se afastar
ou comungar dos princípios de uma “estética da existência”. É nesse sentido que detecta “a
evolução que [se] produzirá, aliás com bastante lentidão, entre paganismo e cristianismo”51.
Ora, para Foucault, a rigor, não existe, como Nietzsche defende, um abismo entre
antiguidade clássica e os cristãos. O que o primeiro detecta são deslocamentos de ênfase,
reestruturações e mesmo manutenção de determinados temores ou preocupações nas
relações consigo.
Nossa comparação entre a ética nietzschiana e a ética foucaultiana revela desde
idiossincrasias até antagonismos. No entanto, Foucault nos despista da distância que ele
toma em relação a Nietzsche. Nas diversas entrevistas em que o nome dele é evocado,
sempre de forma breve, ora é considerado sua principal influência, sendo homenageado
com elogios desconcertantes (do tipo: “sou simplesmente nietzschiano”)52 ora é integrado à
totalidade de sua obra de modo retrospectivo, chegando mesmo a ser tido como condição
de possibilidade da “genealogia da ética”.

CONCLUSÃO
A partir das pesquisas histórico-filosóficas de Foucault, fica patente que não houve a
rigor um diálogo ininterrupto com Nietzsche. Estamos diante de um percurso sinuoso e
intrincado, cujas peças de que dispomos fazem parte de um quebra-cabeça repleto de
lacunas. Isso não significa que tenha faltado coerência interna ao que foi dito e escrito por
Foucault.
Neste ensaio, assinalamos os deslocamentos detectados na obra de Foucault ao longo
de quase trinta anos. Nossas análises buscaram mostrar o quanto e como cada etapa dos
escritos foucaultianos está articulada ao nome de Nietzsche. No entanto, após a retumbante
homenagem feita e ele nas páginas de História da loucura e As palavras e as coisas,
Foucault vai lhe reservando um cada vez maior silêncio. Não se pode falar propriamente de
um afastamento progressivo, já que tanto na “arqueologia do saber” quanto na “genealogia
do poder” sua presença remete à obtenção de inestimáveis subsídios teóricos. Mesmo com

51
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Op.cit.,p. 85.
52
FOUCAULT, M., “Le retour de la morale” (entrevista a G. Barbedette e A. Scala), en Dits et écrits, IV,
Op.cit., p. 704.

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as divergências verificadas na “genealogia da ética”, ainda assim podemos assinalar alguns


aspectos –de caráter acima de tudo programático– que nos proporcionam um déjà-vu
nietzschiano, como no caso da concepção artística da existência.
Para que se possa avaliar como Foucault faz Nietzsche ranger em suas análises
histórico-filosóficas, é preciso levar em conta a especificidade de cada etapa de seus
escritos.
Na “arqueologia do saber” Foucault se remete diretamente às noções nietzschianas de
tragédia e “super-homem” no intuito de julgar como se deu a formação de um saber sobre o
indivíduo na modernidade. No tribunal arqueológico, e essa imagem é importante, pois a
arqueologia não se confunde com uma pesquisa meramente descritiva, a referência a
Nietzsche se dá no sentido de adotar um parâmetro que permita avaliar as Ciências do
Homem numa perspectiva não-antropológica.
A incorporação dos conceitos de genealogia e vontade, por sua vez, a partir do início
da década de 70, nos dá a impressão de que Nietzsche passa a ocupar uma posição
secundária, tendo em vista a forma original como Foucault descreve os mecanismos que
envolvem formas de saber e relações de poder. Mas se é pertinente afirmar que a filosofia
nietzschiana só se refere ao humanismo para diagnosticar um estado de decadência da
cultura ocidental, pouco se importando com a dinâmica interna dos discursos produzidos
por ela, também não se pode dissociar a análise foucaultiana das origens
extraepistemológicos, ou seja, políticas, de um saber sobre o homem daquilo que Nietzsche
formulou insistentemente a respeito do que vem a ser a História, a Verdade e o Sujeito –os
três alicerces que dão sustentação à pesquisa genealógica de Foucault sobre o Poder
Disciplinar e os Dispositivos de Controle e Confissão.
Por fim, ao realizar uma “genealogia da ética” que tem por objetivo reconstituir
conceitualmente como se deu a problematização sexual na antiguidade greco-romana,
detectamos uma terceira forma de Foucault lidar com o legado nietzschiano. Se por um
lado, se coloca programaticamente em consonância com ele ao mostrar que o homem não é
um elemento invariante na história do conhecimento, daí sua própria sexualidade ser uma
invenção recente, fruto da combinação de temores e preocupações ancestrais que culminam
na exigência de os indivíduos decifrarem meticulosamente o conteúdo sexual de cada ato,
contato ou pensamento, voluntário ou não; por outro lado, essa abordagem que se apresenta
como crítica, no sentido de desmantelar evidências e promover um descentramento
antropológico, vai de encontro a um dos postulados mais fundamentais de Nietzsche:
oposição entre o “criador de valores” e o niilista, entre senhores e escravos.
Ora, para o Foucault da Estética da Existência, a dicotomia entre moral dos senhores
e moral dos escravos não passa de uma suposição que não pode ser constatada. Destacamos
três momentos onde essa ideia aparece de forma nítida. Primeiro, num ensaio de 1982, ao
concluir a análise de um texto sobre as tecnologias de si desenvolvidas na vida monástica,

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Foucault defende que “não faz sentido falar de uma ‘moral cristã da sexualidade’, ainda
menos de uma ‘moral judaico-cristã’”53. Um ano depois, numa entrevista, afirma que
Nietzsche “atribuiu um crédito errôneo ao Cristianismo tendo em vista o que sabemos sobre
a evolução da ética pagã do século IV a.C. para o século IV d.C.”54. Finalmente, em O uso
dos prazeres, seguindo a mesma linha de raciocínio, se refere a “essa ficção que se chama
moral judaico-cristã”55. Eis porque o fazer ranger foucaultiano ultrapassa as fronteiras do
esforço interpretativo.

***

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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53
FOUCAULT, M., “Le combat de la chasteté” (ensaio), en Dits et écrits, IV, Op.cit., p. 308.
54
FOUCAULT, M., “On the genealogy of ethics: an overview of work in progress”, en Dreyfus, H.;
Rabinow, P. Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics, Op.cit., p. 248.
55
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Op.cit, p. 323.

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