Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Como o próprio Foucault reiteradamente indicou, a leitura de Nietzsche
serviu de inspiração constante para seu trabalho. No entanto, são poucas
as passagens nas quais os critérios que o nortearam são apresentados de
forma precisa. Partiremos, assim, da hipótese de que essa filiação teórica
envolve, pelo menos, três modalidades de diálogo. Durante os anos 60, a
“arqueologia do saber” utiliza as temáticas nietzschianas do trágico e do
“super-homem” no intuito de diagnosticar o estado atual dos saberes
sobre o homem. A partir da década de 70, Nietzsche se torna um filósofo
do poder através da instrumentalização dos conceitos de genealogia e
vontade de verdade. Por fim, entre 1980 e 1984, temos a inacabada
“genealogia da ética”, que, apesar da herança terminológica, difere da
problematização da moral encontrada nos escritos nietzschianos. Além
disso, esse antagonismo praticamente não é explicitado por Foucault.
Palavras-chave: Michel Foucault– Friedrich Nietzsche– arqueologia do
saber– genealogia do poder– genealogia da ética
∗
Doutor em Filosofia pela UFRJ (2003), Professor Adjunto IV do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Pesquisador do CNPq. E-mail: luiz.celso@pq.cnpq.br
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
1
Cf. DELEUZE, G., “Sur la mort de l’homme et le surhomme”, en Foucault, Paris, Minuit, 1986.
2
Cf. DEWS, P., Logics of disintegration: post-structuralist thought and the claims of critical theory,
London/New York, Verso, 1987.
3
Cf. HABERMAS, J., “Les sciences humaines démasquées par la critique de la raison: Foucault”, en Le
discours philosophique de la modernité, Paris, Gallimard, 1988.
4
Cf. MACHADO, R., Foucault, a filosofia, a literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
5
Cf. MAHON, M. Foucault’s nietzschean genealogy: truth, power, and the subject, Albany, State University
of New York Press, 1992.
6
Cf. RAJCHMAN, J., Michel Foucault: The Freedom of Philosophy, Nova York, Columbia University Press,
1985.
7
Cf. SCOTT, Ch., The question of ethics: Nietzsche, Foucault, Heidegger, Bloomington, Indiana University
Press, 1990.
8
FOUCAULT, M., “Entretien sur la prison: le livre et sa méthode” (a J.-J. Brochier), en Dits et écrits, II,
Paris, Gallimard, 1994, p. 753.
9
FOUCAULT, M., “Nietzsche, Freud, Marx” (ensaio), en Dits et écrits, I, Paris, Gallimard, 1994, p. 571.
41
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
conceito de genealogia, “embora a abordagem de Foucault seja nietzschiana, ela não é nem
idêntica nem redutível aos seus elementos nietzschianos”10.
Um exame atento das análises histórico-filosóficas de Foucault –rubrica que abriga
seus textos mais importantes– revela que as menções a Nietzsche adquirem maior
relevância a partir do trágico e da moral em História da loucura, do “super-homem” e da
linguagem em As palavras e as coisas, da genealogia em Vigiar e punir e da vontade de
verdade em A vontade de saber. Esses temas e conceitos, é preciso que se enfatize, não são
incorporados da mesma forma. Daí podermos falar de operações de deslocamento, de
mudança de tônica, de integração progressiva, de descaracterização, de filtragem etc.
Desconhecer essas sutilezas envolve o risco de simplificar ou generalizar em que bases
teóricas se dá o encontro de ambos.
Apesar da abundância das referências de Foucault a Nietzsche –notadamente em
entrevistas– a presença deste no opus foucaultiano não é explicitada de forma pontual.
Poucos registros fornecem pistas significativas. Inicialmente, do ponto de vista
cronológico, chama a atenção a conferência realizada, no ano de 1964, “Nietzsche, Freud e
Marx”, por ocasião do célebre Colóquio de Royaumont. Porém, essa fala diz respeito
basicamente a uma breve História da Interpretação (que será retomada em As palavras e as
coisas), onde os autores ali abordados retratam uma inflexão do pensamento moderno em
relação à hermenêutica tradicional, tendo em vista que, a partir deles, interpretar passa a
remeter a uma tarefa interminável, onde se dissolve a materialidade tanto de quem
interpreta quanto daquilo que é interpretado.
A incidência de elementos nietzschianos nas análises histórico-filosóficas de Foucault
pode ser explicitada mais apropriadamente em textos como “A vontade de saber” (1971),
resumo do primeiro curso no Colégio de França; na primeira conferência de A verdade e as
formas jurídicas e, notadamente, no ensaio “Nietzsche, a genealogia, a história”. No
primeiro caso, é exposto, de modo conciso, porém, extremamente didático e revelador, a
incompatibilidade entre duas concepções de conhecimento: a aristotélica e a nietzschiana.11
Em seguida, Foucault utiliza Nietzsche para fundamentar sua crítica ao primado do sujeito
na Filosofia e nas Ciências Humanas, o que, como veremos, não se trata de uma novidade,
pois tal vínculo já havia sido estabelecido no período arqueológico. Por fim, no terceiro
registro –que talvez retrate com maior precisão a importância do pensador alemão nas
investigações foucaultianas– nos deparamos também com as bases de uma concepção
genealógica dos processos históricos e das relações de poder.
A esse material elaborado de forma esparsa e descontínua podemos ainda acrescentar
empréstimos terminológicos, breves citações, analogias genéricas e mesmo parentescos
10
MAHON, M., Foucault’s nietzschean genealogy: truth, power, and the subject, Albany, Op.cit., p. 155.
11
A importância dessa oposição para a elaboração de uma análise genealógica dos processos de produção de
conhecimento fica nítida em FOUCAULT, Michel. Leçons sur la volonté de savoir (Cours au Collège de
France: 1970-1971). Edição organizada por Daniel Defert. Paris: Gallimard-Seuil, 2011.
42
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
superficiais. Mas nada seria mais equivocado que atribuir a tal amálgama de temas, ideias e
conceitos alguma incoerência, até porque, como veremos, estamos lidando com o preceito
“interpretativo” de fazer ranger. Além disso, a dificuldade de definir o alcance teórico-
metodológico do legado nietzschiano na estrutura argumentativa do pensamento
foucaultiano não nos impede de estabelecer algumas estratégias interpretativas.
Primeiramente, circunscrevendo dois grandes conjuntos de referências –um composto
pelas análises histórico-filosóficas de Foucault e outro que corresponde ao que foi afirmado
em entrevistas (que, invariavelmente, abrigam um universo rico e desconcertante de
revelações no que diz respeito a Nietzsche). Consequentemente, nos deteremos nos
trabalhos que abordam a questão da loucura, da medicina, das ciências do homem, da
prisão e da sexualidade. Nesses textos, que constituem o veio principal dos escritos de
Foucault, o pensamento nietzschiano aparece sob as mais diversas formas: consciência
trágica (História da loucura na época clássica); enigmática oposição entre linguagem e
conhecimento no processo de produção de uma “ciência do indivíduo” (prefácio de O
nascimento da clínica); trilogia morte de Deus, morte do homem, “super-homem” (As
palavras e as coisas); história genealógica (Vigiar e punir) e relação entre discurso e
vontade de verdade (A vontade de saber).
INVESTIGAÇÕES ARQUEOLÓGICAS
Em sua Tese de Doutorado – Loucura e desrazão12 –, a fonte de inspiração de
Foucault pode ser pressentida logo no prefácio (que será excluído a partir da segunda
edição) quando lemos que se trata de um empreendimento realizado “sob o sol da grande
pesquisa nietzschiana”, cuja meta consiste, numa alusão a O nascimento da tragédia, em
“confrontar as dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”.13 Mais ainda:
Foucault anuncia que irá realizar uma “arqueologia do silêncio”, pois partirá da constatação
de que a “linguagem da psiquiatria [...] é um monólogo da razão sobre a loucura”.14 A
argumentação que se segue estabelece três períodos distintos da cultura ocidental –o
Renascimento, a Época Clássica e a Modernidade– para ressaltar como o homem racional
interage com o homem louco, tendo por hipótese que “sob a consciência crítica da loucura,
e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica
não cessou de permanecer em vigília”15.
Não há como não nos remetermos a O nascimento da tragédia, pois nele Nietzsche
saúda justamente o retorno de uma “sabedoria dionisíaca” que, para além da “mentira da
12
Publicada em maio de 1961 como um dos requisitos necessários para a conclusão do doutorado na
Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Paris (Sorbonne), e que será reeditado onze anos depois com o
antigo subtítulo: História da loucura na época clássica.
13
FOUCAULT, M., “Préface” (a Loucura e desrazão), en Dits et écrits, I, Op.cit, p. 162.
14
Ibid., p. 160.
15
FOUCAULT, M., Histoire de la folie, Paris, Gallimard, 1972, p. 40.
43
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
44
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
que, como acabamos de ressaltar, no ensaio introdutório de sua tese complementar Foucault
já manifestava um descontentamento para com o insidioso paradigma antropológico da
modernidade. Consagrado pelas páginas de Assim falou Zaratustra, essa promessa-ameaça
envolve uma interpretação desconcertante do evolucionismo darwinista por defender que “o
homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem”20. Com isso, em vez de
atribuir ao ser humano a possibilidade de uma realização no futuro, Nietzsche taxativa e
reiteradamente afirma que “o homem é algo que deve ser superado”21.
Essa concepção reforça a tese arqueológica de que “o homem está em vias de
desaparecer”, “como na beira do mar um rosto de areia”22. Ao comentar retrospectivamente
seus pressupostos teóricos da década de 60, Foucault declara que encontrou uma alternativa
ao “modelo [hegeliano] de inteligibilidade contínua da história” e ao “primado
[fenomenológico e existencialista] do sujeito e seu valor fundamental” no “tema
nietzschiano da descontinuidade, de um super-homem que seria totalmente diferente em
relação ao homem” e na obra de Bataille –“na qual o sujeito sai de si mesmo, se decompõe
como sujeito, no limite de sua própria impossibilidade”23.
Apesar de Nietzsche contribuir para envolver o humanismo numa atmosfera
irrespirável, sua filosofia estava comprometida, acima de tudo, com a denúncia do estado
de decadência da modernidade. A arqueologia, por sua vez, tem como prioridade
desantropologizar as ciências do homem e a reflexão filosófica, seja pelo advento da noção
de estrutura e de uma modalidade de literatura (o nouveau roman francês), seja por
invalidar qualquer primado epistemológico do sujeito.
Não acreditamos, contudo, que o alcance nietzschiano da arqueologia se encerre
nesses casos paradigmáticos. Há toda uma cumplicidade entre as pesquisas histórico-
filosóficas de Foucault e o modo como Nietzsche avalia nossa cultura. Um exemplo
pontual, porém instigante, pode ser verificado no prefácio de O nascimento da clínica
(1966) quando Foucault dá a entender, de forma enigmática, sem dúvida, que há uma
oposição entre conhecimento crítico e crítica do conhecimento, entre “linguagem” e
“razão”, entre Discurso e Ciência, em suma, entre Kant e Nietzsche:
“para Kant, a possibilidade e a necessidade de uma crítica estavam ligadas,
através de certos conteúdos científicos, ao fato de que há conhecimento. Elas
estão relacionadas em nossos dias –e Nietzsche, o filólogo é testemunha– ao fato
de que há linguagem e que, nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens –
sejam elas racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas– um sentido que
se eleva acima de nós tomou corpo, conduz nossa cegueira, mas espera na
20
NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, “Prólogo”, § 4.
21
Ibíd., “Prólogo”, § 3, p. 29. A mesma exortação reaparece na primeira (“Das alegrias e das paixões”, p. 54;
“Da guerra e dos guerreiros”, p. 64; “Do amigo”, p. 74), na terceira (“De velhas e de novas tábuas”, § 3, p.
204) e na quarta parte (“O mais feio dos homens”, p. 269) do livro. Nietzsche chega mesmo a considerar o ser
humano como uma doença de pele da terra (cf. “De grandes acontecimentos”).
22
FOUCAULT, M., Les mots et les choses, Op.cit., pp. 397-398.
23
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (a D. Trombadori), en Dits et écrits, IV, Op.cit., p. 49.
45
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
Além disso, no final da década de 60, Nietzsche ainda será saudado por “libertar a
história do pensamento de sua sujeição transcendental”25. Esse tipo de consideração
permitirá repensar os processos históricos a partir da noção de genealogia nos trabalhos
vindouros sobre os dispositivos de controle social e político.
INVESTIGAÇÕES GENEALÓGICAS
A partir de 1969, Foucault começa a dar indícios de que sua leitura de Nietzsche
passa por um processo de reformulação. Gradualmente, os temas que serviram de apoio
para a argumentação de História da loucura, O nascimento da clínica e As palavras e as
coisas são deixados para trás, minimizados ou vão adquirindo outra roupagem – se bem que
o interesse pela irrupção de uma ciência do indivíduo tenha se mantido como meta
prioritária de suas pesquisas. Um sinal prematuro do desprendimento foucaultiano em
relação ao que outrora lhe pareceu imprescindível diz respeito à experiência trágica. Após
ocupar um lugar de destaque na Tese de Doutorado, sua importância só poderá ser
pressentida em duas ocorrências isoladas: uma em 1963, ao retratar a capacidade de a
literatura transgredir e contestar; e outra, no ano seguinte, ao servir de referência para a
ideia de que a interpretação constitui uma tarefa inesgotável, sem fim, inacabada.26 Para A
arqueologia do saber, obra que se debruça sobre cada etapa das análises histórico-
filosóficas dos anos 60, constatamos o desinteresse em “reconstituir o que poderia ser a
própria loucura, tal como ocorreria, inicialmente, em alguma experiência primitiva,
fundamental, surda, muito pouco articulada, e tal como teria sido organizada em seguida
(traduzida, deformada, deturpada, reprimida talvez) pelos discursos e pelo jogo oblíquo,
frequentemente retorcido, de suas operações”. Sendo que Foucault complementa em nota:
“isto é escrito contra um tema explícito em História da loucura, o qual é nele retomado
várias vezes e de modo singular no Prefácio”27. Em suma, a pesquisa arqueológica do
trágico se torna obsoleta e até mesmo inconveniente.
O combate ao humanismo, por sua vez, símbolo do período arqueológico, não
desaparece, mas perde qualquer laço de parentesco com o tema do “super-homem”. Um
livro como Assim falou Zaratustra deixa de servir de inspiração, a ponto de, ao ser
indagado, em 1972, sobre “qual” Nietzsche o agradava, Foucault responde taxativamente:
“não é, evidentemente, o de Zaratustra, mas o de O nascimento da tragédia e o de
24
FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris: PUF, 1972, p. XII, os grifos são meus.
25
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 264.
26
Cf. FOUCAULT, M., “Débat sur la poésie”, en Dits et écrits, I, Op.cit., pp. 398-399; e “Nietzsche, Freud,
Marx”, en Dits et écrits, I, Op.cit., pp. 570-571.
27
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Op.cit., p. 64-5. Foucault adota uma postura nominalista e nega
a existência do objeto “loucura” (ibíd., pp. 45-46).
46
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
28
FOUCAULT, M., “Les problèmes de la culture. Un débat Foucault-Preti” (entrevista), en Dits et écrits, II,
Op.cit., p. 372.
29
FOUCAULT, M., “Qu’est-ce qu’un auteur?” (conferência), en Dits et écrits, I, Op.cit., p. 817.
30
FOUCAULT, M., L’archéologie du savoir, Op.cit., p. 261.
31
Ibíd., p. 22.
32
FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau, 1996, Primeira Conferência, p. 9.
47
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
33
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (a A. Fontana e P. Pasquino), en Dits et écrits, III,
Op.cit., p. 147.
34
FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, p. 38.
35
FOUCAULT, M., La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p. 112.
36
NIETZSCHE, F., Genealogia da moral, Rio de Janeiro, Brasiliense, 1988, II, § 16, p. 90.
37
Ibíd., II, § 16, p. 89-90.
38
Ibíd., II § 6, p. e 68 NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, §
229, p. 135.
48
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
39
Nietzsche, F., Assim falou Zaratustra, tradução de Mário da Silva, Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, “Nas
ilhas bem aventuradas”, p. 100.
40
Ibíd., “Da superação de si”, p. 126.
41
NIETZSCHE, F., A gaia ciência, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2001, V, § 344.
42
NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, “Dos preconceitos dos filósofos”, Op. cit.,§ 1, p. 9.
43
NIETZSCHE, F., Genealogia da moral, Op.cit., III, § 24, p. 174.
44
NIETZSCHE, F., Ecce Homo, São Paulo, Max Limonad, 1986, “Porque sou um destino”, § 8, p. 158.
45
FOUCAULT, M., “Structuralisme et poststructuralisme” (entrevista a G. Raulet), en Dits et écrits, IV,
Op.cit., p. 444.
49
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
produzida nele graças a múltiplas coerções e exerce nele efeitos de poder capazes de
regulá-lo”46.
Consideramos que os conceitos nietzschianos de vontade e genealogia passaram por
uma lenta gestação. São abordados inicialmente em A ordem do discurso. Mas logo
adquirem novas feições no resumo do primeiro curso do Colégio de França, “A vontade de
saber”, e no ensaio “Nietzsche, a genealogia, a história”. Inicialmente, ambos aparecem
atrelados a problemáticas inerentes ao período arqueológico, como no caso da
desqualificação da linguagem do louco e da formação de saberes sobre o homem. Com o
passar do tempo, contudo, a vontade de verdade se presta a um estudo comparativo das
teorias do conhecimento inventadas pelos filósofos e a genealogia, por sua vez, suscita uma
reformulação dos pressupostos metodológicos que norteiam a escrita da história.
Temos, a partir dessa dupla metamorfose, um conjunto de pesquisas de inspiração
nietzschiana que passam a compor uma “genealogia do poder” (ou “microfísica do poder”,
como aparece em Vigiar e punir, ou “analítica do poder”, após a publicação de A vontade
de saber). A dificuldade em acompanhar como se dá a lenta assimilação de conceitos
nietzschianos reside no fato de Foucault praticamente não ter comentado nada sobre as
etapas desse processo. Além do mais, a renovação da nomenclatura nietzschiana não
decorre de alguma modalidade de empréstimo terminológico, mas sim da necessidade de
elaborar um instrumental teórico que não seja de base metafísica ou antropológica.
46
FOUCAULT, M., “Entretien avec Michel Foucault” (com A. Fontana e P. Pasquino), en Dits et écrits, III,
Op.cit., p. 158.
47
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, p. 12.
48
Ibíd., p. 12.
50
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
49
Ibíd., p. 21.
50
Ibíd., p. 13.
51
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
cada um tem de singular (A gaia ciência); a afirmação do eterno retorno (Assim falou
Zaratustra), a autossuperação trágica (Ecce homo). Há ainda toda uma discussão de cunho
ético-existencial que atravessa sua obra de uma ponta a outra, como no caso das passagens
relativas à força criadora, à grande saúde, ao vínculo entre vida e arte, à recusa do livre-
arbítrio, etc.
No que diz respeito à genealogia foucaultiana, ela se caracteriza por analisar a
problematização ética no mundo greco-romano e esboçar seus desdobramentos na era
cristã. E isso sempre norteado pelo interesse de demonstrar o quanto foi possível se afastar
ou comungar dos princípios de uma “estética da existência”. É nesse sentido que detecta “a
evolução que [se] produzirá, aliás com bastante lentidão, entre paganismo e cristianismo”51.
Ora, para Foucault, a rigor, não existe, como Nietzsche defende, um abismo entre
antiguidade clássica e os cristãos. O que o primeiro detecta são deslocamentos de ênfase,
reestruturações e mesmo manutenção de determinados temores ou preocupações nas
relações consigo.
Nossa comparação entre a ética nietzschiana e a ética foucaultiana revela desde
idiossincrasias até antagonismos. No entanto, Foucault nos despista da distância que ele
toma em relação a Nietzsche. Nas diversas entrevistas em que o nome dele é evocado,
sempre de forma breve, ora é considerado sua principal influência, sendo homenageado
com elogios desconcertantes (do tipo: “sou simplesmente nietzschiano”)52 ora é integrado à
totalidade de sua obra de modo retrospectivo, chegando mesmo a ser tido como condição
de possibilidade da “genealogia da ética”.
CONCLUSÃO
A partir das pesquisas histórico-filosóficas de Foucault, fica patente que não houve a
rigor um diálogo ininterrupto com Nietzsche. Estamos diante de um percurso sinuoso e
intrincado, cujas peças de que dispomos fazem parte de um quebra-cabeça repleto de
lacunas. Isso não significa que tenha faltado coerência interna ao que foi dito e escrito por
Foucault.
Neste ensaio, assinalamos os deslocamentos detectados na obra de Foucault ao longo
de quase trinta anos. Nossas análises buscaram mostrar o quanto e como cada etapa dos
escritos foucaultianos está articulada ao nome de Nietzsche. No entanto, após a retumbante
homenagem feita e ele nas páginas de História da loucura e As palavras e as coisas,
Foucault vai lhe reservando um cada vez maior silêncio. Não se pode falar propriamente de
um afastamento progressivo, já que tanto na “arqueologia do saber” quanto na “genealogia
do poder” sua presença remete à obtenção de inestimáveis subsídios teóricos. Mesmo com
51
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Op.cit.,p. 85.
52
FOUCAULT, M., “Le retour de la morale” (entrevista a G. Barbedette e A. Scala), en Dits et écrits, IV,
Op.cit., p. 704.
52
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
53
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
Foucault defende que “não faz sentido falar de uma ‘moral cristã da sexualidade’, ainda
menos de uma ‘moral judaico-cristã’”53. Um ano depois, numa entrevista, afirma que
Nietzsche “atribuiu um crédito errôneo ao Cristianismo tendo em vista o que sabemos sobre
a evolução da ética pagã do século IV a.C. para o século IV d.C.”54. Finalmente, em O uso
dos prazeres, seguindo a mesma linha de raciocínio, se refere a “essa ficção que se chama
moral judaico-cristã”55. Eis porque o fazer ranger foucaultiano ultrapassa as fronteiras do
esforço interpretativo.
***
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
53
FOUCAULT, M., “Le combat de la chasteté” (ensaio), en Dits et écrits, IV, Op.cit., p. 308.
54
FOUCAULT, M., “On the genealogy of ethics: an overview of work in progress”, en Dreyfus, H.;
Rabinow, P. Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics, Op.cit., p. 248.
55
FOUCAULT, M., L’usage des plaisirs, Op.cit, p. 323.
54
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
55
REVISTA PARALAJE N°11 /DOSSIER Luiz Celso Pinho
_________________________________________________________________________
---
56