Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Dominicé (2006) La Formación de Adultos Imperativo Biográfico
Dominicé (2006) La Formación de Adultos Imperativo Biográfico
biográfico*
Pierre Dominicé
Université de Genève
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Pierre Dominicé Vida adulta — Biografia educativa — História de vida — Construção
344, route de Lausanne
1293 - Bellevue, GENEVE
biográfica.
e-mail: pierre.dominice@pse.unige.ch
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 345
The education of adults confronted by the
biographical imperative*
Pierre Dominicé
Université de Genève
Abstract
The focus of this text is the issue of adult education in our days. It
aims at offering elements to contribute to form someone, by
considering that every educator needs to know what was formative
in his/her own life history. The text defends the idea that the
biographical construction tends to become the main purpose of the
education of adults, but that we have to seek new horizons of
biographical construction, because the course of life has
experienced, in consequence of the rupture of linearity that has
characterized most professional paths, new tensions, but also
unsuspected possibilities. In this sense, the article considers the
biographical plurality that is a feature of the social contexts of
contemporary life. The ambient instability, the loss of cultural
references, the speed of emergence of new technologies, all force a
kind of readaptation of the educative basis upon which life histories
are founded. The process of formation then becomes a prolonged
search for oneself in a world that demands a strong personal
consistency to face the challenges posed to each person in today’s
society. Such existential experimentation will certainly bring
surprises, particularly in contexts of social conformity. We shall be,
at any rate, before a confrontation of generations which, by virtue
of their biographical divergences, may have difficulty to recognize
each other. The educative biographical report practiced at Geneva’s
higher education offers countless illustrations of the biographical
challenges faced especially by the professionals of education.
Keywords
346 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006
Para novos horizontes de A vida profissional, principalmente, não
construção biográfica leva mais à mesma estruturação da existência.
Assim, o percurso biográfico é perturbado e
A vida adulta, nos dias de hoje, toma projetado, a despeito dela, no futuro. Alheit
formas inéditas, porque a construção biográfi- sublinha esse fato em muitos de seus textos.
ca deve enfrentar novas condições de existên- Para conduzir sua vida, é preciso conformar-se
cia. O conflito entre antigos e modernos não é com aprendizagens difíceis, que servirão de
certamente novo. Cada geração ascendente fundamento para as opções a fazer. Evocando
conquistou seu espaço chocando-se contra as o ‘ambiente sociotécnico’ pelo qual a vida adul-
das tradições dos mais velhos. Os relatos de ta está confrontada, J. P. Boutinet (1998, p. 45)
histórias de vida dos adultos fornecem inúme- estima ser “pertinente recorrer ao paradigma do
ros exemplos a respeito. Fazer sua vida quer caos vocacional”. Essa noção atribuída a Riverin-
dizer, também, desfazer-se dos rigores de sua Simard (1996) lhe permite afirmar que “o caos
educação. Essa oposição construtiva, fonte de na vida adulta deste fim de século XX tende
criatividade e de inovação, tem todavia a ten- freqüentemente a substituir o modelo desenvol-
dência de se atenuar para dar lugar a novas vimentista” (Boutinet, 1998, p. 46).
perspectivas autobiográficas. Hoje, o futuro, Contrariamente a seus antecessores,
com efeito, está obscurecido por uma espécie que precisavam se opor à rigidez das normas
de capa que nos impede de representar a pró- de sua educação e encontravam a duras penas
pria vida em longo prazo. O sociólogo alemão uma autonomia maior, os jovens não têm mais
Peter Alheit (1993, p. 188) afirma claramente: necessidade, verdadeiramente, de contestar as
“[...] o curso da vida parece se tornar uma opções que seus pais projetaram para seu fu-
espécie de ‘laboratório’ que funciona sem pro- turo. Em contrapartida, eles têm a obrigação de
gramação”. A vida toma sua forma em parte no descobrir uma via mais pessoal, de aceitar as
vazio e a biografia se elabora, em conseqüên- rupturas e de aprender a incerteza. Sua forma-
cia, principalmente no incerto. Essa mudança ção não é mais dominada por uma busca pela
que parece pôr em causa, segundo Sennett independência, ela é, sobretudo, mobilizada por
(1999), o próprio sentido de uma história de uma preocupação pela estabilidade. Em vez de
vida, tem conseqüências evidentemente para a rejeitar um futuro que outros quisessem cons-
formação de adultos. É imperativo, portanto, truir por eles, estes têm de encontrar por si
cercar melhor o jogo. mesmos o que lhes corresponde, num mundo
Como Alheit (1993) analisa com ele- cheio de surpresas, sacudido entre o sucesso
gância, os desarranjos que subvertem as etapas dos heróis e a marginalidade dos excluídos.
tradicionais da existência desorganizam a dinâ- A biografia do adulto se constrói, com
mica do curso da vida. Assim, em função do efeito, em um ambiente social no qual o fator
que muitos sociólogos nomeiam como a econômico desempenha, em nossos dias, um
‘desinstitucionalização do curso da vida’, papel preponderante. Não é, pois, surpreendente
confrontamo-nos com novos horizontes bio- que o horizonte biográfico seja incitado a se
gráficos. J. P. Boutinet faz uma constatação modificar. A cronologia de uma vida balizada por
análoga: etapas inscritas na organização social, como
aquela do tempo da formação profissional, do
O adulto parece ter perdido suas marcas, aque- primeiro emprego ou da idade da aposentado-
las que assegurariam sua complexa identidade, ria, dá lugar a uma existência submetida a esco-
familiar, escolar, profissional e ideológica; sem lhas cada vez mais complexas e cujo arranjo se
ideais bem definidos, doravante, ele estará só faz de maneira mais aleatória. Os diplomas não
frente a si próprio. (1995, p. 39) garantem mais o acesso a um posto de trabalho.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 347
O desemprego fragiliza o emprego e o torna civis e de guerras por territórios mobiliza os
cada vez mais inacessível. O fim da vida profis- espíritos e reforça a insegurança sentida no
sional acontece cada vez mais cedo, em um plano econômico. Diante da violência, da mor-
momento em que inúmeros adultos têm dificul- tandade ou da miséria, como ficar insensível?
dade de encontrar alternativas satisfatórias. Que esperança nutrir, a que valores se apegar,
Outras transformações sociais modifi- que forma de solidariedade inventar? Essas
cam o curso da vida. As situações de amálgamas questões estão presentes, ainda que não sejam
interculturais, devido tanto às migrações de po- explicitamente abordadas, e a mídia, que man-
pulações quanto às modificações intervenientes tém a opinião pública em alerta, encarrega-se
na distribuição dos meios sociais, requerem de lembrá-las. De modo geral, a interpretação
exercícios de adaptação. Eles exigem dos casais que os adultos fazem dessa efervescência po-
e especialmente dos pais uma maturidade lítica ressoa sobre o sentido que eles dão à sua
relacional maior. Em razão das origens culturais vida. Ela desloca os pressupostos que caracte-
diferentes, os modelos de referência podem ter rizam sua visão de mundo. Ninguém sabe do
significações divergentes. As normas provenien- que o amanhã será feito. Nas sociedades pre-
tes da educação têm a tendência de perder sua servadas como a de muitos países ocidentais, a
significação pela falta de reforço do círculo primeira reação de muitos cidadãos consiste em
familiar ou social. A aculturação interpõe-se, por tentar salvaguardar o que possuem. A conser-
outro lado, de modo diferenciado segundo os vação das tradições e dos hábitos faz às vezes
homens e as mulheres ou segundo os membros de refúgio, como a manutenção da segurança,
do grupo familiar. Os deslocamentos geográfi- ali onde ela se mostra possível, ainda. Nos
cos, cada vez mais numerosos em nossos dias, contextos menos favorecidos, o horizonte bio-
que ocorrem durante o período compreendido gráfico tende a se tornar mais trágico. Os adul-
pela infância e pela vida adulta, modificam a tos perdem esse recurso e avançam tateando ao
própria socialização. Eles necessitam de fases sabor dos meios disponíveis. Sua história se
de reinserção que desestabilizam muitos adul- torna um percurso de sobrevivência.
tos e os tornam mais estrangeiros em um meio De maneira geral, atualmente, os adul-
que permanece, entretanto, o seu. Como escre- tos assumem como podem as contradições que
veu, em forma poética, um jovem italiano tra- habitam suas vidas. Porém, muitos dentre eles
balhando na Suíça: “Eu sou um estrangeiro da querem tentar se defender para fazer face à
segunda geração, um viajante singular e minha precariedade e à insegurança. Eles serão prin-
morada é uma trajetória, mais do que um lu- cipalmente atraídos e tranqüilizados pela con-
gar”. Sem terra natal significativa ou sem raízes formidade, o que explica o retorno massivo dos
com as quais se identificar, os adultos da jovem fundamentalismos. Suas escolhas de vida serão
geração são compelidos a trabalhar mais inten- igualmente objeto de tensões entre posições
samente os eventos e as fases da história de divergentes como, por exemplo, a manutenção
suas vidas. Sem saber como apreendê-las, eles de um bem-estar material e impulsos de maior
vivem muitas vezes uma profunda confusão e generosidade. Algumas vezes, ocorre que as
sentem-se desarmados diante das situações simpatias mudem de campo, dando lugar à
conflituosas com que se deparam. O temor do indiferença ou até mesmo à intolerância e ao
compromisso do casamento, que significa vín- racismo. Em todo caso, a atitude crescente de
culo de longo prazo, é a sua demonstração. defesa parece corresponder a uma forma de se
A repercussão da instabilidade política simplificar a vida.
mundial sobre a maneira de conceber a vida é Confrontados pela instabilidade geral
igualmente inevitável, ainda que seja difícil que caracteriza o mundo atual, os trajetos bio-
medi-la. A presença ameaçadora de tumultos gráficos dos adultos são, então, mais aleatórios.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 349
toda mudança mobiliza um grande dispêndio de pêutico, para estarem em condições de conseguir
energia e necessita de um trabalho de adapta- ser o que pretendiam. Sua retomada dos estudos
ção em profundidade. Os formadores que pro- pôde contribuir para sua formação, bem como o
põem soluções rápidas de alguns dias de sessões apoio terapêutico facilitou sua autonomia. Em
para, por exemplo, ‘se preparar para a aposen- nome de que imaginar que um refugiado desliga-
tadoria’, fariam bem em não esquecê-lo. do de suas raízes, um acidentado confrontado com
O desafio de toda construção biográfi- uma amputação ou pais sucumbidos pelo luto de
ca não considera atualmente a dificuldade de um filho possam encontrar em si próprios todos os
associar trajetórias pensadas como lineares com recursos necessários para fazer face ao que lhes
as lógicas de ruptura. Tanto mais que a educa- sucedeu? O trabalho biográfico ocasionado por
ção de base, durante toda a infância, continua lógicas de ruptura, ou provocado por eventos que
vinculada a classificações ligadas à idade. En- desestruturam, obriga a relações de ajuda e acom-
quanto a juventude atual tende a produzir e panhamentos que desbloqueiam as aprendizagens
impor suas próprias normas de socialização, ela requeridas. A reconstrução do horizonte biográfi-
está igualmente obrigada a respeitar os limites co necessita de um trabalho de formação, que não
de idade. A formação contínua, que corresponde se reduz a um único registro psicológico de desen-
freqüentemente no adulto a um tempo de aber- volvimento pessoal. Ela aponta para uma
tura biográfica, apóia-se em um currículo de globalidade, feita da aliança de saberes múltiplos
base que permanece determinante. A universida- e de aprendizagens complementares.
de, que se abre à população adulta que está Desistir em caso de dificuldade ou si-
muito ligada aos certificados obtidos no fim da lenciar um conflito para conseguir esquecê-lo
escolaridade, é uma instituição muito represen- constituíram uma filosofia bastante divulgada e
tativa desse incômodo institucional. que ainda marcou a educação das gerações
A formação, porém, não está destinada atualmente no vigor da idade adulta. A recusa
unicamente a prolongar aquisições anteriores. Ela de acompanhamento faz assim eco às resistên-
deve ser pensada considerando as desconti- cias que marcaram, nos últimos decênios, a
nuidades da existência, ainda mais que as trans- emergência da formação contínua. Na Suíça,
formações impostas pela sociedade atual não em particular, em razão do atraso devido à
acontecem sem choque. A formação pode inter- ausência de medidas legislativas sobre a forma-
vir como retomada do curso da vida. Ela necessi- ção de adultos, é ainda muito presente a idéia
ta então de contribuições, de suportes, até mes- de que ser adulto significa ser capaz por si
mo de espécies de ‘próteses’. De resto, não é uma próprio de tomar as rédeas de sua vida. O re-
das tarefas prioritárias da formação oferecida, curso à formação bem como à terapia ainda é
como dizem hoje os documentos oficiais, ‘ao longo freqüentemente considerado como uma confis-
da vida’, a de ajudar os adultos a dar forma à sua são de fraqueza. Somente aqueles que fizeram
vida, quaisquer quer sejam as circunstâncias? experiências de aprendizagem que os conduzi-
Tal concepção de formação não deve ser ram para outras escolhas, ou para outros com-
confundida com um trabalho de assistência. Quan- portamentos, sabem até que ponto esses apoi-
do o adulto se aflige para dominar as exigências os exteriores lhes foram úteis. Eles reconhecem
de um projeto ou em conduzir sua vida, é bom que que sua vida não teria tomado a mesma orien-
ele possa dispor de apoio para realizar o que pre- tação biográfica se estivessem privados de su-
tende ou para se retomar. Nas narrativas biográfi- portes formadores. O testemunho dos relatos
cas, a maioria das estudantes cujos relatos li e biográficos é fundamental nesse caso.
entendi, reconheceram ter tido a necessidade de Sem confundir formação de adultos e aju-
um período de estudos universitários realizados na da terapêutica, convém reconhecer que um aporte
idade adulta, tanto quanto de um processo tera- educativo, que pode, em certos casos, suceder ou
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 351
paisagem biográfica, a narração extraída da bio- o sentido que ele vai dar a esses eventos trá-
grafia educativa dava conta do sentido dado aos gicos que vai designar o desafio biográfico. Sua
processos de formação. Em obra precedente formação se construiu nesse contexto de per-
(Dominicé, 1990), eu havia mostrado como, com da. Ele diz:
a geração de estudantes com a qual trabalhava
naquele momento, o relato colocava em evidên- Apesar de uma certa força de caráter demonstra-
cia um movimento dialético caracterizado por da, minha confusão é profunda, minhas feridas
um desprendimento em relação aos fundamen- abertas, mas minha determinação de viver, de
tos de sua educação e uma vontade de autono- romper o círculo vicioso das angústias individuais
mia ou de intenção forte de afirmação de si. O e familiares que liquidaram em quatro anos mi-
significado do relato se apegava assim à evoca- nha família, é ainda mais presente que antes.
ção do trabalho de emancipação que caracteri-
zava o movimento de formação. A formação era, André chega a dizer, em seu relato, como
com efeito, designada por uma dinâmica de esse passado se inscreve em uma trajetória em
deslocamento, indicando uma rejeição da heran- outros termos e se abre ao futuro vivo que é o seu:
ça educativa para a constituição de novos ter-
ritórios existenciais. Os relatos apresentados Depois de ter vivido muito tempo no passado de
convergiam para uma liberação do projeto bio- medo de vê-lo desaparecer para sempre, eu pos-
gráfico, visando uma ‘autopoiese’1 da existência. so agora me voltar para o futuro sem receio
Esse paradigma está amplamente modificado nem de trair nem de esquecer o que deixei para
pela chegada de novos horizontes biográficos, trás. [...] Foi preciso me tomar pela mão, intro-
tornando-se necessário localizar as novas con- duzir o luto de minha família e do meio estável
figurações que permitam situar a formação. que havia conhecido durante 20 anos e come-
O trajeto biográfico dos adultos mais çar a me projetar no futuro.
jovens tornou-se, portanto, diferente. Importa
não banalizá-lo com a denúncia de que a nar- Assumir o caráter trágico dos eventos
ração carece de envergadura coletiva, até mes- com os quais se confrontou, tal é o sentido des-
mo de militância. Os acontecimentos que de- tacado no relato por André: o formato que ad-
marcam uma existência certamente são mais ou quire a história de sua vida, no momento em que
menos cativantes para os interlocutores presen- ele se exprime e considera o que lhe aconteceu.
tes. O desafio do relato de vida não se atém, Os acontecimentos inscritos na história
entretanto, ao caráter extraordinário dos acon- de vida e mencionados em um relato são fre-
tecimentos referidos nem ao carisma pessoal do qüentemente menos pesados de carregar. Por
narrador, mas sim à maneira pela qual ele dá outro lado, pode-se ter dificuldade em encon-
conta de maneira significativa da forma que a trar a coerência que permite sua co-habitação
história de vida de seu autor adquiriu. Três em uma mesma história. Originária de um país
extratos de relatos permitir-me-ão nomear essa do Terceiro Mundo e vivendo na Suíça, Marie
mudança de horizonte biográfico descoberta escolheu o ‘palimpsesto’ para colocar juntas as
no curso destes últimos anos. diferentes, e algumas vezes contraditórias,
André perdeu seu irmão de overdose, facetas de sua vida, isto é, uma variedade de
sua mãe de um câncer e seu pai, por desespe- lugares, de culturas, de programas de formação,
ro, em reação, efetuou uma tentativa de suicí- de experiências profissionais:
dio entre essas duas mortes. Ele fica quase só,
enquanto ainda é muito jovem, com os lutos
cumulativos que ele deve integrar à sua vida já 1. O termo autopoiese refere-se à abordagem sistêmica para designar a
que fazem parte de sua história para sempre. É capacidade de autocriação.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 353
a necessidade de fazer da vida um laboratório às quais os adultos não tinham acesso, lhes
de experiências, agarrando todas as oportuni- garantir uma mobilidade, até uma promoção
dades que lhe permitam explorar suas próprias profissional. Em contrapartida, ela pode ajudá-
facetas, para melhor saber o que escolher. Cada los a conceber as formas do que sua vida pode
um deles dá conta de elementos que, para além se tornar. A construção biográfica parece assim
da singularidade de um relato tomado isolada- representar bem, em nossos dias, uma das fina-
mente, desvelam novos horizontes biográficos lidades da formação de adultos.
e que correspondem ao sentido atribuído às Um número considerável de adultos
dinâmicas de formação. está em plena confusão, porque eles não sabem
como fazer para vislumbrar seu futuro. Por
Ressaltar o desafio biográfico outro lado, eles têm muitas vezes dificuldade
da formação em renunciar ao que haviam previsto fazer de
sua vida no passado. Toda ruptura exige um
André encontrou as forças necessárias trabalho sobre si e, em época de crise, um tra-
para ser capaz de encarar o futuro. Maria teve balho de reconfiguração biográfica se tornou
que preservar a coerência de suas ‘mestiçagens’ imperativo. A desinstitucionalização das idades
sociais e culturais. Beatriz fez da experiência da vida e os novos horizontes biográficos,
biográfica a condição da formação. Todos os anunciados pelos sociólogos e especialmente
três conseguiram fazer face à complexidade da por Peter Alheit, poderiam constituir, assim, o
história de suas vidas: André dominando a programa de ações educativas a realizar nos
dureza da ruptura devida à morte; Maria assu- próximos decênios. O que já existe em matéria
mindo o rompimento social e afetivo devido ao de acompanhamento de desempregados ou de
distanciamento de suas raízes familiares; e educação de doentes crônicos deveria ser am-
Beatriz aceitando viver segundo vários registros, pliado para a diversidade de problemas que
aprendendo a renunciar para escolher. Não se obstruem o futuro e nos quais os adultos estão
trata mais de se despojar da educação recebi- enredados. É tempo de reconhecer que são
da para se tornar si próprio, mas de aceitar necessárias aprendizagens para fazer face às
viver sabendo que o futuro está carregado de dificuldades que perturbam a vida adulta. A
um passado que não está mais presente. O que formação contínua, monopolizada pelo aperfei-
pensar de todos aqueles que, mesmo em idade çoamento profissional, deve ser oferecida àque-
madura, não chegam a renunciar daquilo de les que precisam de apoios formadores para
que são privados; que têm dificuldade em acei- conduzir sua vida adulta. A resolução dos con-
tar que sua formação se modela nos limites flitos existenciais põe em destaque um conhe-
daquilo que ela deve se restringir? cimento da vida que merece ser reconhecido.
Como explica muito bem Boutinet André, Maria e Beatriz souberam incluir a per-
(1998), se a formação dos adultos pôde, nos da do que não será, ou do que não será mais,
decênios precedentes, contribuir para promover em seu modo de encarar o futuro.
o desabrochar de um adulto em pleno desen- Tornou-se voz corrente, no âmbito do
volvimento, hoje é importante aceitar uma vida mundo do trabalho, insistir nas competências
adulta acrescida pelos problemas postos pelas sociais. Tanto no acesso ao emprego, quanto
novas condições de existência. Esse adulto, na avaliação das tarefas, essa dimensão da
sofrendo por uma vida tornada precária e cuja qualificação pessoal desempenha um papel
complexidade ele não domina mais, justifica preponderante. Não chegou o momento, em
que a formação o ajude a pensar sobre sua função da complexidade existencial devida à
vida tendo em vista encontrar seu caminho. A transformação do horizonte biográfico, de es-
formação não vai, como ontem, abrir as portas tender essa noção de competência social à
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 355
global, incluindo o que Gaston Pineau (1993; presentações caricatas, oriundas das solicitações
1994) nomeia como o ‘saber-poder sobre a midiáticas. Não se trata, entretanto de retornar às
vida’ que destaca opções ‘bioéticas e biopo- assembléias de fiéis ou de salvar os partidos
líticas’, como ele escreveu. políticos. Importa dar os meios para compreen-
Pode-se dizer o mesmo com referência der quais são as apostas sociais, culturais ou
à história, aquela das idéias e das correntes de religiosas que agitam os espíritos e justificam, em
pensamento, que precisa igualmente ser posta às muitas das razões políticas ou econômicas, os
claras, para que possamos nos situar face às confrontos que estão na base da violência, do
grandes reuniões, como a da unidade européia, terrorismo e da guerra.
ou face aos grandes confrontos, como aquele O relato da biografia educativa serviria,
que estoura cada vez mais entre o Islã e a civi- então, igualmente de suporte para clarificar a
lização judaico-cristã. Para além das lembranças posição a sustentar diante dos desafios da vida
apaixonadas e longínquas que aparecem na bio- e da história: saber melhor de onde viemos;
grafia educativa de minha geração, quando quais são essas tradições interiorizadas e com-
meus contemporâneos evocam o tempo dos batidas no curso de nossa vida; em nome de
catecismos, dos movimentos de juventude, das quem, ou do que, nos insurgir contra o racis-
manifestações de rua ou dos engajamentos par- mo, a corrupção ou a hegemonia do naciona-
tidários, os adultos, de modo geral qualquer que lismo. Nós não temos nada além de nossa edu-
seja sua geração de pertencimento, não podem cação para saber melhor ao que nos apegamos
continuar a ignorar as tradições nas quais cres- verdadeiramente. Se há escolhas a fazer, que
ceram. Não será esse esforço de memória que estejam além do que nos é familiar, será con-
poderá nos tornar capazes de dar sentido às veniente habitá-las de tudo o que nos faz vi-
mutações de nosso tempo? Nessa ótica, a aná- brar a fim de que possamos aí permanecer ple-
lise dos recursos culturais marcantes da história namente nós mesmos. A atividade biográfica
de vida deveria ter um lugar destacado. Em consistiu ontem em elucidar como nos torna-
outros termos, a escrita biográfica poderia tor- mos o que somos ou como aprendemos o que
nar-se o lugar de um trabalho reflexivo, centrado sabemos. Importa, sem dúvida, que no futuro
no impacto da história da civilização na qual o trabalho reflexivo sobre a história de nossa
toma forma a história de vida pessoal. Na falta vida se centre, sobretudo, sobre o que nos vai
de referências e de convicções mais explícitas, permitir aprender a crescer, a ganhar em luci-
os mais jovens, e dentre eles os mais frágeis, dez sobre a sorte do mundo e a desenhar o que
tornar-se-ão, se já não o são, a presa de corren- é verdadeiramente, para nossas sociedades,
tes fundamentalistas e sectárias e vítimas de re- questão de vida ou de morte.
Referências bibliográficas
ALHEIT, P. Biographical learning: theoretical outlines, challenges and contradictions of a new approach .In: ALHEIT, P. The
biographical approach in european adult education. Vienna: Verband Wiener Volksbildung. 1995, p. 57-74.
PINEAU, G. Histoires de vie et formation de nouveaux savoirs vitaux. Revue Interna tionale de LL’éduca
Internationale ’éduca tion
tion. Hambourg: Unesco, v. 40,
’éducation
n.3-5, 1994.
Recebido em 10.03.06
Aprovado em 20.05.06
Pierre Dominicé é professor titular da Universidade de Genebra. Foi membro fundador do Comitê d’ESREA (Société
Européenne pour la Recherche en Formation des Adultes) e da ASIHVIF (Association Internationale des Histoires de Vie en
Formation), tendo ocupado sua presidência até 2001. Ministrou cursos como professor visitante na Universidade Livre de
Bruxelas, na Universidade Católica de Louvain-la-Neuve e da Universidade Paris X Nanterre, além de intervenções pontuais
na Universidades de Paris Dauphine, Aix-Marseille, Montpellier, Tours, Columbia, Montreal e Lisboa.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 345-357, maio/ago. 2006 357