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TEMA III: O DESENVOLVIMENTO DE UMA ANTROPOLOGIA LOCAL COM

INFLUÊNCIAS METROPOLITANAS NO PERÍODO ENTRE A IMPLANTAÇÃO


DO ESTADO NOVO ATÉ A PROCLAMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA EM
MOÇAMBIQUE

OBJECTIVOS:

 Compreender a especificidade da produção antropológica oficial em


Moçambique neste período;
 Identificar as influências metropolitanas na produção antropológica em
Moçambique;
 Proceder ao levantamento das principais missões antropológicas em
Moçambique;
 Conhecer as contribuições feitas por pesquisadores independentes
(portugueses, estrangeiros e missionários) para a antropologia em
Moçambique; e
 Compreender as temáticas e as metodologias utilizadas nessa produção
antropológica.

ÍNDICE:

1. Introdução

2. Estudos Antropológicos Oficiais em Moçambique

2.1. Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956): primeiro


momento de estudos antropológicos oficiais feitos por investigadores
da Metrópole Portuguesa

2.2. Missão das Minorias Étnicas do Ultramar (1956-1974): segundo


momento de estudos antropológicos oficiais feitos por investigadores
da Metrópole Portuguesa

2.3. Estudos antropológicos oficiais feitos por funcionários da


Administração colonial residentes em Moçambique

 A Missão Etognósica da Colónia de Moçambique e o levantamento


etnológico para a Administração Colonial do território
 A produção de Relatórios e Monografias por Administradores
Coloniais

3. A Produção Antropológica Independente em Moçambique

3.1. A produção antropológica de portugueses residentes em


Moçambique

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
 Manuel Simões Alberto
 Luís Polanah
 António Rita-Ferreira

3.2. A produção antropológica de estrangeiros que pesquisaram em


Moçambique

 Marvin Harris e o estudo sobre as relações raciais em


Moçambique
 Martha Butler Binford e a pesquisa sobre a dinâmica
cultural entre os Rongas
 David Joseph Webster e o estudo da sociedade chope
 Gerhard Liesegang e a etno-história dos Changanes

4. Produção antropológica dos Missionários Católicos no contexto do


cristianismo moderno

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
1. INTRODUÇÃO

No período compreendido entre o Estado Novo (anos 30) até a proclamação da


Independência (1974-75), a produção antropológica em Moçambique vai se
caracterizar pela coexistência de:

a) Estudos antropológicos oficiais, que é o conjunto da produção


antropológica colonial que era do interesse das autoridades coloniais
portuguesas e gozava do seu patrocínio e encomenda. Era a produção que
derivava de orientações administrativas emanadas neste sentido, uma
preocupação que já ganhava corpo desde a segunda metade do Séc. XIX
com a crescente preocupação pela codificação dos usos e costumes dos
africanos por parte das autoridades portuguesas. Desde então, o número de
estudos etnográficos oficiais em Moçambique foi crescendo, de tal modo que
durante este período (anos 30 a 1974-75) encontramos:
 Estudos oficiais feitos por investigadores provenientes da Metrópole
portuguesa através de missões antropológicas; e
 Estudos oficiais feitos por investigadores ou funcionários administrativos
residentes em Moçambique.

b) Estudos antropológicos independentes. Neste grupo encontramos


trabalhos antropológicos produzidos por iniciativa e vontade própria dos
autores, mas que de certa forma as autoridades coloniais portuguesas
acabam tirando proveito das suas contribuições, quer aceitando os
resultados ou rejeitando-os. Assim, deparamo-nos com:
 Estudos independentes feitos por cidadãos portugueses residentes em
Moçambique, mas cuja principal actividade não era a pesquisa
antropológica;
 Pesquisas feitas por cidadãos estrangeiros que trabalharam e escreveram
sobre Moçambique; e
 Estudos antropológicos feitos por missionários, quer católicos como
protestantes.

É nesse sentido que o período em estudo é considerado como sendo


caracterizado pelo desenvolvimento de uma antropologia local em Moçambique
com fortes influências metropolitanas (Liesegang 2008: 314-315).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
2. ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS OFICIAIS EM MOÇAMBIQUE

Desde a segunda metade do Séc. XIX, com a crescente preocupação de


conhecer os africanos para melhor dominar, os estudos antropológicos oficiais
foram crescendo em número. No conjunto dos estudos oficiais realizados em
Moçambique por investigadores provenientes da Metrópole portuguesa,
encontramos dois momentos: o primeiro é o conjunto de pesquisas efectuado
pela Missão Antropológica de Moçambique, dirigida por Joaquim Rodrigues
Santos Júnior (da Universidade do Porto), entre 1936 a 1956. O segundo
momento, foi a Missão das Minorias Étnicas do Ultramar que esteve sob
direcção de António Jorge Dias (do Centro de Estudos Políticos e Sociais), entre
1956 a 1974. Entre esses dois momentos e em paralelo, foi instituída ao nível
local em 1941, de forma oficial pelo Governo Geral de Moçambique, a Missão
Etognósica de Moçambique.

2.1. MISSÃO ANTROPOLÓGICA DE MOÇAMBIQUE (1936-1956):


PRIMEIRO MOMENTO DE ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS OFICIAIS
FEITOS POR INVESTIGADORES DA METRÓPOLE PORTUGUESA

A Missão Antropológica de Moçambique representa o primeiro momento, no


intervalo entre anos 30 e 1974-75, em que a Metrópole portuguesa envia
pesquisadores de forma oficial para Moçambique a fim de realizar pesquisa
antropológica. A sua institucionalização resulta da materialização das
recomendações do I Congresso Nacional de Antropologia Colonial realizado na
cidade do Porto em 1934. As actividades da Missão cobriram o período que foi
de 1936 a 1956, num total de 5 campanhas realizadas em Moçambique.

2.1.1. O 1º CONGRESSO NACIONAL DE ANTROPOLOGIA COLONIAL E A


INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MISSÃO ANTROPOLÓGICA DE
MOÇAMBIQUE EM 1934

Em 1934 teve lugar o I Congresso Colonial de Antropologia na Cidade de Porto,


por ocasião da I Exposição Colonial Portuguesa. A realização do I Congresso
revestia-se também de importância política para o regime do Estado Novo. Com
efeito, segundo Barbosa (2008: 9), a Sociedade Portuguesa de Antropologia e de
Etnologia declarara numa circular de 1934, referindo-se ao 1° Congresso
Nacional de Antropologia Colonial que,

o conhecimento destas populações (das colónias) sob os seus aspectos


biológicos, étnicos e sociais está necessariamente na base de qualquer
plano racional de organização e aproveitamento das colónias. Assim, os
assuntos de que vai ocupar-se o Congresso, revestem, além do seu grande
interesse científico, uma alta importância nacional.

Assim, coube a António Augusto Esteves Mendes Correa a organização do


Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial. Como se pode deduzir

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
dos muitos votos de académicos das universidades do Porto, Coimbra, Lisboa e
da Escola de Medicina de Goa, os antropólogos físicos apostavam em colocar a
investigação científica ao serviço da “revalorização das colónias”. Na sessão de
encerramento do Congresso os participantes aprovaram um programa
detalhado para a criação de institutos científicos coloniais e missões de
pesquisa no terreno para a investigação sistemática dos “indígenas” sob uma
perspectiva antropológica, psicológica e linguística (Rui Pereira 2004/2005:
213). Com efeito, este congresso preconizou, entre outros:

(i) A criação de centros de pesquisa nas principais províncias ultramarinas


com o objectivo de produzir um conhecimento destinado
simultaneamente a académicos bem como aos colonos;

(ii) A obrigatoriedade do ensino da antropologia dentro da Escola Superior


Colonial criada em 1906, assim como a preparação científica dos
missionários;

(iii) A criação de institutos de antropologia física e criminal nas


províncias ultramarinas;

(iv)A inscrição no orçamento do Ministério das Colónias de uma verba para


realização de campanhas científicas nas colónias. Ou seja, que o governo
participe no financiamento de pesquisas de campo nas colónias
propostas por entidades administrativas, comerciais, militares,
científicas e religiosas (Barbosa 2008: 9).

Supõe-se que na sequência das conclusões do Congresso, a Junta de Educação


Nacional do Ministério da Educação encarregou a Mendes Correa da
elaboração de um plano para a “ocupação científica das colónias”. O plano,
apresentado por Mendes Correa em 1935 à Junta de Educação Nacional,
previa o envio de missões de investigação científica das universidades do Porto,
Coimbra e Lisboa, essencialmente para Angola e Moçambique, nas áreas da
Botânica, da Zoologia e da Antropologia Física. Contudo, ignorando todos esses
esforços para colocar as universidades no centro da investigação colonial, em
Janeiro de 1936 o Governo colonial português decidiu fundar um organismo
autónomo, na dependência do Ministério das Colónias, para a coordenação e
promoção das ciências coloniais. A criação da Junta das Missões Geográficas e
de Investigações Coloniais foi incluída no decreto (Decreto-Lei no 26 180 de 7
de Janeiro de 1936) de reforma da lei orgânica do Ministério das Colónias (Rui
Pereira 2004/2005: 213-214).

Foi no seguimento das recomendações do I Congresso Colonial de Antropologia


que foram institucionalizadas as Missões Antropológicas e Etnológicas sob a
égide da Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais (JMGIC)
(Rodrigues 1999: 265-266).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
A primeira Missão a ser estabelecida foi a de Moçambique em 1936, para a
qual foi indicado António Augusto Esteves Mendes Corrêa (professor de
Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Porto), tendo este
designado o seu Assistente, o Dr. Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior
(Rodrigues 1999: 266).

ANTÓNIO AUGUSTO ESTEVES MENDES CORREA E O ESTUDO


DAS RAÇAS DO IMPÉRIO

António Augusto Esteves Mendes Correa fora o principal promotor


do I Congresso Colonial de Antropologia e há muito que se dedicava ao
estudo dos “indígenas” dos espaços coloniais portugueses.
Considerado o “primeiro antropólogo português”, doutor em medicina
pela Universidade do Porto, Mendes Corrêa destacou-se por
desenvolver estudos que, partindo da antropologia física e da
antropologia criminal, passam cada vez mais por um enfoque ora
“etnopsicológico”, ora histórico e cultural, sem, contudo, abandonar
jamais determinados postulados da biologia.

Na Exposição Colonial de 1934, professores e alunos, sob a


coordenação de Mendes Corrêa, realizaram estudos antropométricos e
inquéritos junto aos indígenas vindos das colónias africanas, da Índia,
de Macau e do Timor (Thomaz 2001: 67).

Na sua obra Raças do Império, publicada em 1945, Mendes Corrêa


sintetiza um conjunto de informações que vai da composição “racial”
aos costumes “exóticos” ou “pitorescos” de cada um dos grupos sociais
e étnicos da metrópole e das colónias (Thomaz 2001: 67).

Logo no início de Raças do Império, Mendes Corrêa salienta a


necessidade de não se desprezar o conceito de “raça” em favor do de
“cultura”: ambos estariam profundamente relacionados. Mendes
Corrêa deixava clara a sua opção por um estudo que considerasse os
aspectos biológicos e hereditários de cada grupo humano, bem como
seus comportamentos psicossociais, sua aptidão maior ou menor ao
trabalho e sua produção cultural.

Pode-se afirmar que o antropólogo Mendes Corrêa foi um dos arautos


do “saber colonial” português entre os anos 30 e 40, e que a sua
produção intelectual era absolutamente coerente com os princípios do
Acto Colonial e com a própria política colonial portuguesa. O seu
estudo Raças do Império acabava, assim, por satisfazer uma das
maiores pretensões do Estado Novo: conseguir integrar, em um todo
nacional, a estrutura hierárquica do império (Thomaz 2001: 72).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
2.1.2. JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR E AS CAMPANHAS
DA MISSÃO ANTROPOLÓGICA DE MOÇAMBIQUE

A Missão Antropológica de Moçambique foi criada em 1936 pelo Decreto-lei n o


26 842, de 28 de Julho, e desenvolveu os seus trabalhos em Moçambique ao
longo de seis campanhas – 1936, 1937/38, 1945, 1946, 1948 e 1955/56, todas
sob a liderança de Joaquim Rodrigues Santos Júnior. Inicialmente, a missão
designou-se Missão Etnográfica e Antropológica de Moçambique e só em 1945,
por Decreto-lei no 34 478 de 3 de Abril, se passou a designar Missão
Antropológica de Moçambique (Roque XXXX: 184).

Os campos de acção e as tarefas que lhe foram cometidas tiveram como base
as que foram consideradas prioritárias e haviam sido definidas de acordo com
as teses defendidas e aprovadas no I Congresso Colonial (Rodrigues 1999:
266). O paradigma de raça, sangue e robustez física bastante defendido pela
Escola do Porto, e que tinha no Mendes Correa um dos seus principais
defensores penetrava assim em Moçambique logo após a implantação do
Estado Novo e no seguimento das recomendações do I Congresso Colonial de
Antropologia.

JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR

Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior após concluir o ensino liceal,


frequentou Instituto Superior de Agronomia, que foi forçado a
interromper por motivo de doença. Uma vez recomposto, matricula-se
na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde viria a
concluir o curso (Bourbon 1993:15).

Seguidamente frequenta a Faculdade de Letras da Universidade do


Porto, tendo frequentado a cadeira de Grego, bem como as de
Etnologia e de Estética e História da Arte (Bourbon 1993:15).

Mais tarde frequenta o curso de especialização de Química Coloidal,


realizado pelo Professor Kopakzewsky, na Faculdade de Medicina do
Porto. Assim, passou a frequentar a Faculdade de Medicina, tendo
concluído a respectiva licenciatura (Bourbon 1993:15).

Em 1944, obtém o doutoramento em Ciências Histórico-Naturais e em


1953 concorre a Professor Catedrático do Grupo de Zoologia e
Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
(Bourbon 1993:15).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
2.1.2.1. AS CAMPANHAS DA MISSÃO ANTROPOLÓGICA DE MOÇAMBIQUE

As duas primeiras campanhas da Missão Antropológica de Moçambique, as de


1936 e 1937-38, não foram subsidiadas pela Junta das Missões Geográficas e
de Investigações Coloniais (JMGIC), mas sim pelo Instituto de Alta Cultura do
Ministério da Educação (Pereira 2004/2005: 218-219).

Estas primeiras duas campanhas foram feitas em articulação com a Missão


Geográfica de Moçambique, à qual a Missão Antropológica de Moçambique
ficaria oficialmente agregada até à reestruturação de 1945. A articulação com a
Missão Geográfica de Moçambique (MGM) revelar-se-ia fundamental não só
pela experiência que as brigadas desta Missão já tinham no terreno, como pela
maior facilidade nos contactos locais e possíveis apoios a conseguir já que, nas
duas primeiras campanhas, a Missão Antropológica de Moçambique (MAM)
contava apenas com o seu chefe como único membro efectivo do que
supostamente deveria ser uma equipa (Roque XXXX: 184). Com efeito, nas
primeiras duas campanhas, o Professor Santos Júnior foi mandado sozinho
para Moçambique e teve como colaborador um Chefe de Polícia e
posteriormente um agricultor que lhe servia de intérprete. A partir da 3ª
campanha passou a dispor de uma equipa (Rodrigues 1999: 267-268).

a) A Primeira Campanha: Julho a Dezembro de 1936

O Decreto-Lei no 26 842, de 28 de Julho de 1936 – que no quadro da


reorganização do Ministério das Colónias, fundava a JMGIC – autorizou o
Ministro das Colonias Francisco Vieira Machado a incorporar na Missão
Geográfica de Moçambique um especialista para “estudos antropológicos,
arqueológicos e etnológicos”. Como foi referido, a escolha recaiu sobre Mendes
Correa que não estando disponível, devido a outros compromissos, concedeu
ao seu assistente Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior uma bolsa para a
realização dessa viagem de estudo. O programa dessa missão de estudo que
viria a constituir, mais tarde, a primeira campanha da Missão Antropológica de
Moçambique, incluía, além de uma estadia de vários meses no distrito de Tete,
uma visita às universidades da União Sul-Africana.

Joaquim Rodrigues Santos Júnior chega a então Lourenço Marques, hoje


Maputo, no final do mês de Agosto, tendo sido recebido pelo então Governador
Dr. Nunes de Oliveira, a quem expôs o plano dos trabalhos da missão. Nesta
cidade, o Professor trabalhou no então Museu Provincial de Álvaro Castro.

No dia 24 de Setembro de 1936, J. R. Santos Júnior chegava a cidade de Tete


depois de passar por África do Sul e pela então Rodésia. No dia 27 de Setembro

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
iniciou com a recolha de informação antropológica, estudando os indígenas de
Tete, pertencentes ao grupo étnico dos Nhungues.

Os serviços de recolha foram montados na Polícia, para onde eram chamados


os indígenas. O Chefe da Polícia, senhor Luiz Santos, de acordo com as ordens
transmitidas pelo Senhor Intendente do Governo, Capitão Lucílio Rebelo,
organizou tudo da melhor forma. Foi este apoio que tornou possível que entre
27 de Setembro a 10 de Outubro tivesse medido 60 homens e 31 mulheres. Em
cada indivíduo fazia determinações antropométricas além do registo de
numerosos caracteres descritivos. Tirou fotografias e fez numerosos desenhos,
especialmente tatuagens.

A 11 de Outubro J.R.Santos Júnior chegava a então Vila Coutinho, em


Angónia onde durante cinco dias procedeu a colheita de elementos
antropológicos em Antumbas, tendo medido 29 Antumbas e 6 Angones ou
mestiços.

A 17 de Outubro deslocou-se para Furancungo e no dia seguinte para


Chifumbazi para analisar as pinturas rupestres. Depois, trabalhou na
povoação de Coéra. No dia 24 de Outubro partiu de Furancungo para a Tete
onde continuou com os trabalhos das determinações de grupos sanguíneos. No
dia 28 de Outubro partiu para Cabora-Bassa e regressou no dia 29 de
Outubro. No dia 1 de Novembro de 1936 deixou a cidade de Tete em direcção a
Beira. Saiu da Beira no dia 4 de Novembro e chegou a Lisboa no dia 9 de
Dezembro.

b) A Segunda Campanha: Agosto de 1937 a Janeiro de 1938

Em 1937, através do Decreto-Lei no 27 922, de 4 de Agosto foi aprovada uma


segunda campanha da Missão Antropológica de Moçambique em Tete e na
Zambézia e, em seguida, uma viagem de estudo de um mês aos museus
coloniais de Paris, Bruxelas, Amesterdão e Berlim. Esta disposição legislativa
não definia ainda objectivos de investigação concretos, limitando-se as áreas de
investigação: Antropologia, Arqueologia e Etnografia.

Os grupos da Zambézia estudados foram Sengas, Sêrêros, Chicundas, Atandes,


Tauaras, Dêmas e Antumbas onde mediu cerca de 30 indivíduos de cada um
destes grupos étnicos. Em termos de recolhas etnográficas procedeu-se ao
estudo de alguns tipos de palhotas e o mobiliário corrente nas mesmas.
Auscultou os portugueses há muito tempo na região para deles obter
informações sobre os usos e costumes dos indígenas, práticas rituais
observadas aquando do nascimento, na época de puberdade, no casamento,
bem como nas cerimónias fúnebres. O estudo das tatuagens mereceu uma
especial atenção na Zambézia.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
A partir do material colhido na primeira e segunda campanhas foram
publicados os seguintes trabalhos:
 Grupos sanguíneos nos indígenas de Tete (vale do Zambeze);
 Contribuição para o estudo da Idade da Pedra em Moçambique;
 Pinturas Rupestres do Chifumbázi;
 Sobre Tatuagens de Relevo nos indígenas da Zambézia;
 Anomalias dos membros nos negros da Zambézia portuguesa;
 Relatório da Missão Antropológica de Moçambique (2a. Campanha-1937)
 Alguns muzimos da Zambézia e o culto dos mortos;
 Negros de Moçambique e especialmente da Zambézia.

c) Terceira Campanha e a reestruturação da JMGIC em 1945

A Terceira Campanha teve lugar em 1945, na mesma altura em que teve lugar
a reestruturação da JMGIC. Num primeiro momento, através do Decreto-Lei n o
34 478, de 3 de Abril de 1945, a JMGIC assumiu a tarefa de elaborar linhas
programáticas para a organização de “missões antropológicas e etnológicas”
enquanto missões de investigação específicas e independentes de outros
domínios de investigação, como a Geografia. Com o envio dessas missões de
investigação também para as colónias, almejava efectuar uma comparação
sistemática de resultados. De facto, o Decreto-Lei n o 34 478, de 3 de Abril de
1945, determinava que as “missões antropológicas e etnológicas” a organizar
deveriam ter por finalidade investigar as populações das colónias de uma
“perspectiva bio-étnica” e que os objectivos de investigação a cumprir seriam os
seguintes:

“os objectivos fundamentais das missões antropológicas são: 1o – O


reconhecimento geral dos grupos étnicos de cada colónia, seus
indivíduos, sua sistematização e definição das suas condições de
vitalidade; 2o – O estudo das instituições tradicionais das populações
indígenas e do seu direito consuetudinário”.

Apesar de o Decreto não indicar explicitamente áreas de especialização


específicas, estes objectivos de investigação permitem deduzir que tanto a
Antropologia Física como a Etnografia e a Etnologia Jurídica deveriam ser
incluídas nas áreas de investigação das “missões antropológicas e etnológicas”.
Para a elaboração do programa de cada campanha, os líderes das missões,
nomeados pela JMGIC, deveriam consultar ainda os serviços de saúde e a
administração civil da colonia em questão, de modo a orientar os principais
objectivos de investigação para as necessidades locais da administração
colonial e as autoridades das colónias deveriam, por seu lado, prestar às
missões de investigação todo o auxílio solicitado e, em caso de necessidade,
disponibilizar temporariamente todo o pessoal necessário. Os programas
definitivos, as calendarizações das campanhas e o pessoal que participava nas
missões de investigação deveriam ser regulamentados por decreto do Ministro
das Colónias (Pereira 2004/2005: 219).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Foi nesse processo de reestruturação que a Missão Antropológica e Etnológica,
através da Portaria no 10 977, de 19 de Junho de 1945, deixaria cair o
adjectivo “Etnológica” e seria sempre designada sempre Missão Antropológica
de Moçambique. Esta Missão cumpriu em termos gerais os objectivos de
investigação definidos no Decreto-Lei no 34 478 que enquadrava a organização
das missões antropológicas e etnológicas a enviar às colónias.

Para além dos objectivos mais importantes de Antropologia Física, Etnografia e


Etnologia Jurídica, foi ainda introduzida a Pré-História, na sequência das
campanhas de 1936 e 1937, tendo-se especificado que a Antropologia Física
deveria incluir o estudo da “robustez e vitalidade” das populações africanas. Os
chamados estudos psicotécnicos foram introduzidos como novo domínio de
investigação e a sua função consistia em avaliar as capacidades profissionais
dos indígenas (Pereira 2004/2005: 220).

Definiu-se um período de seis anos para as investigações planeadas da Missão


Antropológica de Moçambique, durante as quais se deveria estudar, se
possível, todo o território de Moçambique, de norte a sul, durante várias
campanhas, sempre durante a época seca. O pessoal da Missão foi ainda
encarregado de apresentar conferências públicas “de carácter prático” em cada
capital de província, “de forma a despertar o interesse por estes estudos, tanto
por parte de funcionários como de outras entidades” (Pereira 2004/2005: 220).

Foi nesse quadro de reestruturação que teve lugar a 3ª campanha, onde o


Professor Santos Júnior já não actuou sozinho, pois passou a dispor de uma
equipa (Rodrigues 1999: 267-268).

Uma parte dos trabalhos de terreno desta campanha decorreu também no Vale
do Zambeze (Zambézia e Tete) e no então distrito de Manica e Sofala. Durante
esta campanha para além dos estudos psico-métricos foram realizados estudos
linguísticos tanto em Tete como na Zambézia. Para o efeito foram integrados no
grupo de trabalho, oficiais da administração colonial conhecedores das línguas
locais.
No então distrito de Manica e Sofala, foram observadas muitas tribos desta
zona.
 Observação e registo de caracteres descritos;
 Colheita de impressões dermatológicas quer dos dedos e palma das mãos
quer da planta dos pés.

Num segundo momento, através do Decreto-Lei n o 35 395, de 26 de Dezembro


de 1945, a JMGIC acolheu uma nova lei orgânica, através da qual se declarava
que a Junta e, em ultima instancia, o Ministério das Colonias, passava a ser
responsável pela condução e coordenação de todas as missões de investigação
oficiais nas colónias, bem como por todos os centros de estudos e investigações

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
na área das ciências coloniais por iniciativa privada ou de institutos
estrangeiros.

Esta nova lei orgânica da Junta determinava as áreas de especialização das


ciências coloniais por ela abrangidas, as quais foram divididas em duas
secções: uma secção geográfica e uma secção para a “história natural”. A esta
última pertenciam a Geologia, a Zoologia, a Botânica, a Antropologia e
Etnologia. Infelizmente o decreto não explana mais detalhadamente os
conteúdos dos estudos antropológicos e etnológicos para poder se aferir dos
critérios que presidiram à sua distinção.

d) Quarta Campanha: De Maio a Novembro de 1946

A quarta Campanha teve lugar de Maio a Novembro de 1946. A equipa de


Joaquim R. Santos Júnior desembarcou na Ilha de Moçambique e seguiu para
Nampula e deste ponto para o interior, tendo percorrido um certo número de
circunscrições da província da Zambézia e outras do Niassa. Os trabalhos
incluíram recolha de informação ao nível de 4 secções, nomeadamente da
antropologia física ou somatologia, da psicotecnia, da arqueologia e da
etnografia.

Ao nível da etnografia, a recolha para o estudo dos usos e costumes dos


indígenas de Moçambique foi especialmente nos capítulos respeitantes à
alimentação e à habitação onde se procedeu a recolha de maior número de
apontamentos. Para além disso, certos usos, que pela sua especial natureza
eram apontados como específicos ou quase, mereceram especial atenção e
cuidadoso exame, como foi o caso do “Mapico” singular batuque entre os
Macondes. Foram analisadas ainda as mutilações onde se incluem as
tatuagens. Foram feitas algumas fotografias e desenhos, especialmente das
tatuagens faciais.

As mutilações dentárias, as perfurações dos lábios e do nariz, para nos


respectivos buracos usarem enfeites, as mutilações auriculares, foram
estudadas de um modo sistemático tendo em vista averiguar, de maneira
concreta, se as tão apregoadas marcas de tribo tem ou não existência real.

O outro aspecto pesquisado foi a medicina indígena. Neste sentido, a equipa


recolheu alguns cestos de “nhabézis”, os doutores cafres, curandeiros com seu
quê de feiticeiros a mistura.

O Chefe da Missão Antropológica de Moçambique ministrou conferências nas


capitais dos distritos em que decorreram as diversas campanhas de
investigação: Beira (Manica e Sofala), Quelimane (Zambézia) e Nampula
(Moçambique).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
e) Quinta Campanha (1948)

Esta Campanha realizou-se nos distritos colónias de Manica e Sofala e no Vale


do Zambeze (Tete e Zambézia). Durante esta campanha foi medida a
inteligência global de 506 indígenas pertencentes a 12 tribos as quais tinham
sido examinadas durante a Campanha de 1946.

f) Sexta Campanha: 1955 a Dezembro de 1958

No âmbito da Missão Antropológica de Moçambique ainda decorreria em 1955,


uma derradeira campanha. Mas toda a 6 a campanha esteve envolta em
equívocos, muitos dos quais ainda não totalmente esclarecidos. Em primeiro,
não são claros os motivos para que só se tenha prosseguido com os trabalhos
de investigação seis anos após o término da 5 a campanha, ate porque nos
primeiros anos da década de 50 a antropologia Física ainda gozava de todos os
favores institucionais. Depois, no final de 1958, toda a Missão de investigação
dissolvida, prematura e definitivamente, por ordem superior e sem qualquer
explicação, apesar dos protestos de J. R. Santos Júnior.

2.1.3. MISSÃO ANTROPOLÓGICA DE MOÇAMBIQUE: O CONTEXTO DA


SUA IMPLEMENTAÇÃO E O PARADIGMA DA RAÇA, SANGUE E
ROBUSTEZ FÍSICA

As diferentes campanhas conduzidas pela Missão Antropológica de


Moçambique mostram que o seu enfoque era fundamentalmente nos estudos
de antropologia física, enfoque nas questões de raça, medições
antropométricas, etc. A produção antropológica daí resultante enquadra-se no
que Pereira (XXXX) chamou de paradigma da raça, sangue e robustez física,
que tinha na Escola Antropológica do Porto a sua base, e tendo Mendes Correa
como a principal figura.

O enfoque no paradigma da raça, sangue e robustez física em Moçambique


ocorre numa altura em que o contexto político, económico e social era, na
perspectiva das autoridades coloniais portuguesas, favorável à sua
implementação. Com efeito, as actividades da Missão Antropológica de
Moçambique foram realizadas no período que compreende do Estado Novo até
a Independência de Moçambique, um período que segundo Carlos Serra (1997:
82) a actuação colonial assenta na preocupação de como fazer para que os
africanos produzam matérias-primas (copra, sisal, cana-de-açúcar, chá,
algodão, arroz).

Ou seja, a actuação colonial nesse período gira em torno do que Serra (1997:
83) chamou de “colonização das energias musculares negras”, um processo que
partia das aldeias, local onde se fazia regularmente o recenseamento e aí

13
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
avaliava-se o potencial de motricidade existente; aqui e acolá recorria-se
mesmo às medições antropométricas (altura dos rapazes, volume dos seios das
raparigas); estimava-se com minúcia o futuro da “raça dos trabalhadores”
(movimentos populacionais, potencial reprodutivo, períodos de ritos de
iniciação, etc.).

É nesse quadro da busca pela invenção duma sociedade susceptível de


intervenção colonial – de modo a colonizar as energias musculares do
colonizado – que se situa a produção científica antropológica conduzida pela
Missão Antropológica de Moçambique.

Na segunda metade da década de 50, há emergência de um novo contexto


político e social nas colónias e os novos assertos na política internacional,
como o despontar dos movimentos anti-colonialistas, o que não se compadecia
com a natureza dos estudos desenvolvidos no âmbito daquela Antropologia
Física efectuada pela Missão Antropológica de Moçambique. Por um lado, no
seio da Antropologia Física europeia, as bases científicas das descrições
tipológicas das raças e a sua cartografia Geográfica tinham já caído em
declínio. Por outro lado, é muito provável que, na sequência da diferenciação
científica e institucional iniciada nos anos 50 em Portugal entre Antropologia
Física e Etnologia, a investigação conjunta nesses dois domínios fosse sendo
gradualmente considerada obsoleta (Pereira 2004/2005: 235). O novo contexto
vai favorecer uma abordagem antropológica diferente: a antropologia social e
cultural.

Mesmo Mendes Correa que durante décadas fora o grande paladino da


Antropologia Física portuguesa, começou paulatinamente na década de 50 a
integrar a sua disciplina nas “ciências humanas” enquanto conceito
abrangente para o “estudo integral do homem”, agregando as ciências naturais
e sociais e reconhecendo finalmente a importância das ciências sociais e da
Etnologia como ciências coloniais aplicadas. A conjuntura política
internacional da época e, por outro lado, o cuidado retórico posto na
conservação do regime, tornaram incómodo um discurso demasiado assente
em pressupostos de raça (Pereira 2004/2005: 232).

Mendes Correa iria mais longe. Perante a evolução dos acontecimentos sociais
e políticos em África, com os primeiros levantamentos nacionalistas como a
revolta Mau-Mau no Quénia, Mendes Correa lembrou que os britânicos, graças
à utilização de etnólogos profissionais no serviço colonial, estavam muito
melhor equipados contra esse tipo de ameaças do que os portugueses,
acrescentando que a formação desses especialistas em Portugal era desde há
muito necessária para ultrapassar o carácter de improvisação que tinha
dominado essa área até à época (Pereira 2004/2005: 233).

14
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Não se pense, contudo, que a substituição da Antropologia Física pela
Etnologia foi imediata e que aquela perdeu influência e campo de acção. Até
aos anos 60, houve congressos internacionais (International Congresses of
Anthropological and Ethnological Sciences) que abordavam questões de
Antropologia Física e de Etnologia, embora esses domínios se fossem
separando de forma cada vez mais clara (Pereira 2004/2005: 234).

No caso de Moçambique, J.R. Santos Júnior e os restantes membros da Missão


Antropológica assistiram à transição de paradigma no seio dos institutos de
ciências coloniais da Metrópole mas essa mudança conceptual não implicou a
imediata saída de campo dos antropólogos físicos. Antes os induziu a
mostrarem um cada vez maior interesse por estudos etnológicos e etnográficos,
embora ignorando as bases teóricas e metodológicas da Etnologia enquanto
disciplina científica. Os resultados desses estudos, como não poderia ter
deixado de acontecer, foram, inelutavelmente, ainda mais fracos e enviesados
pela ideologia colonial, tanto mais que J.R. Santos Júnior e os seus pares
continuavam a defender o valor intrínseco dos estudos psicotécnicos como
base para a “diferenciação” no que se referia à “alma dos indígenas”. No
contexto colonial, tornou-se evidente que não havia qualquer hipótese de
conciliação entre os pressupostos básicos de uma Antropologia Física “clássica”
e os da Etnologia Cultural e Social (Pereira 2004/2005: 235).

Leituras adicionais

Bourboun, Francisco Peixoto 1993. “Breves considerações sobre o notável


investigador professor Santos Júnior” in M. Conceição Rodrigues (coord).
Homenagem a J.R. dos Santos Júnior vol. II. Lisboa: Instituto de Investigação
Científica Tropical, pp. 15 -16

Loforte, Ana 1987 “Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em


Moçambique” Trabalhos de Arqueologia e Antropologia nº 2, Maputo: DAA pp.
61-65

Pereira, Rui 1986 “Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do


Estado Novo” Revista Internacional de Estudos Africanos nº 4-5: 191-235 [Ver
as seguintes secções: Introdução; Ideologia Colonial e Prática Antropológica:
momentos de um encontro; O Estado Novo e o discurso antropológico possível; A
Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português: uma natural
convergência de interesses; e Conclusão]

Pereira, Rui M. 2004/2005. “Raça, Sangue e Robustez. Os paradigmas da


Antropologia Física portuguesa” Cadernos de Estudos Africanos nº 7-8: 209-
241

15
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Rodrigues, M. Conceição 1999 “Os Primórdios da Investigação Arqueológica em
Moçambique e o Prof. Santos Júnior: Um reconhecimento arqueológico”
Portugália Nova Série, Vol. XIX-XX 1998-1999: 265-278

Serra, Carlos 1997 “Gestão de Estado 1: O colonialismo Português em


Moçambique (1890/1974)” in Novos Combates pela Mentalidade Sociológica.
Maputo: Livraria Universitária/Universidade Eduardo Mondlane pp. 78-94

Thomaz, Omar Ribeiro 2001 “‘O Bom Povo Português’: Usos e costumes
d’aquém e d’além-mar” MANA 7 (1): 55-87
Thomaz, Omar Ribeiro 1977 “Introdução” in Ecos do Atlântico Sul
Representações sobre o Terceiro Império Português, São Paulo: UPS pp. 60-70

“A História de Moçambique, 1885-1930” 1999 in David Hedges (coord.) História


de Moçambique. Vol. 2 Maputo: Livraria Universitária, pp.1-34

16
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
2.2. MISSÃO DAS MINORIAS ÉTNICAS DO ULTRAMAR (1956-1974):
SEGUNDO MOMENTO DE ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS OFICIAIS
FEITOS POR INVESTIGADORES DA METRÓPOLE

O segundo momento em que as autoridades coloniais portuguesas na


Metrópole decidem enviar antropólogos para efectuar pesquisa em Moçambique
foi no âmbito da Missão das Minorias Étnicas do Ultramar, dirigida por
António Jorge Dias.

2.2.1. CONTEXTO DE CRIAÇÃO DA MISSÃO DAS MINORIAS ÉTNICAS


DO ULTRAMAR E O SEU ENFOQUE NA ANTROPOLOGIA SOCIAL
E CULTURAL

Como foi referido, na segunda metade da década de 50, um novo contexto


político e social emerge nas colónias, acompanhado de novos assertos na
política internacional, como o despontar dos movimentos anti-colonialistas, o
que concorreu para a adopção de uma abordagem antropológica diferente, a
antropologia social e cultural, em detrimento da antropologia física e estudos
antropométricos que até então dominavam.

Ao nível científico, ocorre nesta altura um conjunto de transformações nas


instituições coloniais portuguesas. Primeiro, houve mudança de terminologia
dos institutos de ciências coloniais em linha com revisão constitucional de
1951: assim, em 1953 a Junta das Missões Geográficas e Investigações
Coloniais mudou seu nome para Junta de Investigações do Ultramar e, em
1954, a Escola Superior Colonial passou a Instituto Superior de Estudos
Ultramarinos (Pereira 2004/2005: 231).

Depois, teve lugar a criação de centros de estudos e institutos especializados


na Metrópole e nas colónias, sendo que em meados dos anos 50 verificou-se, a
criação de instituições de investigação sob a égide da Junta de Investigações do
Ultramar, três das quais foram relevantes no contexto da Etnologia e da
Antropologia Física:

 Em 1954, foi criado o Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar,


fundado pelo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, no qual a
Antropologia Física encontrou uma base institucional sobretudo em
Lisboa;

17
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
 Em 1955, foi criado em Lourenço Marques, o Instituto de Investigação
Científica de Moçambique, que considerava todas as ciências coloniais, e
também, entre outras, a Antropologia Física e a Etnologia, como
subdomínios das Ciências Humanas; e

 Em 1956, foi criado em Lisboa o Centro de Estudos Políticos e Sociais, no


âmbito da Junta de Investigações do Ultramar, e que assumia pela
primeira vez como área de investigação prioritária a Etnologia na sua
verdadeira dimensão, a cultural (Pereira 2004/2005: 231-232).

Como consequência, começa então a desenhar-se, no seio dos institutos


coloniais portugueses, um consenso quanto à necessidade de uma nova
orientação da Etnologia como ciência independente da Antropologia Física.
Como os representantes da até então dominante Antropologia Física não
possuíam as bases científicas para conduzir uma reorganização da sua prática
científica, começaram a ganhar relevo no seio das instituições científicas
coloniais portuguesas todos aqueles que reivindicavam uma prática de
Etnologia Cultural. António Jorge Dias, pela sua formação académica mas
também por tudo quanto tinha feito no campo da Etnografia e Etnologia
portuguesas, foi o primeiro a ser chamado a assumir responsabilidades de
investigação nas instituições científicas coloniais (Pereira 2004/2005: 233).

ANTÓNIO JORGE DIAS (1907-1973)

António Jorge Dias tinha se licenciado em Filologia Germânica pela


Universidade de Coimbra em 1937, o que lhe permitiu concorrer a
um leitorado em Rostock, na Alemanha, onde foi colocado em 1938,
transitando, em 1939, para a Universidade de Munique onde
descobre a Etnologia enquanto disciplina científica autónoma.

Em Janeiro de 1940, Jorge Dias conhece Margot Schmidt, alemã,


pianista profissional, que tinha terminado na Academia de Música o
exame do Estado e dois anos de Meisterklasse (curso de mestres) em
piano, concluído em 1931. Em 1941, Jorge Dias inscreve-se no curso
de Etnologia (Volkerkunde) e, simultaneamente, rege leitorado de
Português na Universidade de Berlim, durante o auge da guerra.

Em 1944, Jorge Dias doutorou-se com uma tese sobre Vilarinho das
Furnas, na Universidade de Munique. Depois de terem casado, Jorge
e Margot, ainda antes do final da guerra, vão para Portugal.
Constituem então uma equipa a que se juntaram Fernando
Galhano, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Enes Pereira,
equipa esta que foi responsável por uma grande renovação nos

18
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
estudos etnológicos em Portugal, assim como pela criação e
organização do Museu de Etnologia (Museu Nacional de Etnologia
1997: 8).

Com efeito, depois de sua estada em Berlim, como estudante de


Doutoramento, Jorge Dias volta a Portugal e se instala, em 1940, em
uma pequena aldeia do norte (Vilarinho da Furna), onde realiza seu
primeiro trabalho de campo. Alguns anos depois, realiza outra
pesquisa, também no norte de Portugal, desta vez em uma pequena e
isolada comunidade situada junto à fronteira com a Espanha,
chamada Rio de Onor (Macagno 2002: 98-99).

2.2.2. CENTRO DE ESTUDOS POLÍTICOS E SOCIAIS E AS MISSÕES


PARA O ESTUDO DAS MINORIAS ÉTNICAS DOS TERRITÓRIOS
PORTUGUESES DE ULTRAMAR

A partir da segunda metade dos anos 50, e sob a liderança de Adriano Moreira,
o CEPS vai institucionalizar as missões ultramarinas. Destas, a mais sonante
foi a missão dirigida pelo antropólogo António Jorge Dias, que foi nomeado em
1957 pelo Ministério do Ultramar como encarregado das Missões para o Estudo
das Minorias Étnicas dos Territórios Portugueses de Ultramar. Sua mulher,
Margot Dias, de origem alemã, e Manuel Viegas Guerreiro foram, mais tarde,
nomeados como assistentes. No ano anterior, Dias já havia realizado uma
viagem de reconhecimento pela Guiné portuguesa, Moçambique e Angola
(Macagno 2002: 116).

O objectivo dessa missão, iniciada em 1957, consistia em elaborar informes


etnográficos sobre algumas das populações das colónias. Ademais, o grupo
devia elaborar um informe confidencial sobre as condições políticas e sociais
entre os “indígenas” das colónias. Assim, empreenderam-se estudos
etnográficos sobre os Chope do sul de Moçambique e sobre os Bosquímanos do
sul de Angola. No entanto, o trabalho principal, e que resultou em uma das
monografias etnográficas mais completas sobre o ultramar português, estava
dedicado aos Macondes do norte de Moçambique (Macagno 2002: 116).

A equipa sentiu a necessidade de dividir o trabalho de investigação em áreas


diversas. Jorge Dias dedicou-se à história, economia, religião, organização
política. Viegas Guerreiro à língua e tradição oral e Margot Dias estudou a
cultura material e ainda os rituais de puberdade e parentesco. Durante a
estadia no terreno, Margot Dias realizou uma série de filmes, para além do
trabalho de elaboração e escrita de parte da monografia, de gravações
extensivas de som, da colaboração na constituição de um arquivo fotográfico e
da recolha de objectos que viriam a constituir uma das mais importantes

19
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
colecções do Museu de Etnologia de Portugal (Museu Nacional de Etnologia
1997: 8).

Assim, a monografia sobre os Macondes foi editada inicialmente entre 1964 e


1970, em quatro volumes da autoria de Jorge Dias (I Vol. Aspectos Históricos e
Económicos, 1964), Jorge Dias e Margot Dias (II Vol. Cultura Material, 1964; III
Vol. Vida Cultural e Social, 1970) e Manuel Viegas Guerreiro (IV Vol. Sabedoria,
Língua, Literatura e Jogos, 1966).

Em busca da legitimação científica do colonialismo

Se por um lado, o envio de um investigador como Jorge Dias para pesquisar


sobre os Macondes de Moçambique mostrava uma preocupação em conhecer a
evolução da situação no terreno como consequência do alastramento dos
movimentos nacionalistas que lutavam pela libertação da África, por outro
lado, a abordagem seguida por este pesquisador – fortemente influenciada pelo
luso-tropicalismo - constituía uma forma de o sistema colonial adquirir a
sustentação científica que legitimasse a sua presença e acção nos territórios
coloniais, e por via dia disso perpetuar a situação de colonialismo.

A escolha de Jorge Dias para estudar os Macondes de Moçambique não foi por
acaso. Com efeito, antes de ser indicado pelo Ministério do Ultramar para
liderar o estudo das minorias étnicas dos territórios portugueses de Ultramar,
das quais viria a efectuar o seu trabalho de campo entre os Macondes do norte
de Moçambique a partir de 1957, Jorge Dias havia realizado vários trabalhos
de campo em áreas rurais de Portugal. No entender de Dias, o estudo dessas
pequenas comunidades ofereceria elementos fundamentais, não só para
entender a cultura portuguesa, em geral, e o carácter nacional português, mas
sobretudo, e além disto, para entender a relação dos Portugueses com outros
povos durante a expansão colonial. Isso significa que a experiência africana de
Jorge Dias se nutre de um antecedente fundamental, isto é, da experiência
etnográfica na própria metrópole colonizadora (Macagno 2002: 98-99).

Desse modo, para Jorge Dias, as sociedades da metrópole e das colónias


portuguesas compartilhavam um conjunto de representações e imaginários
etnográficos comuns. Ou seja, para além das diferenças entre África e Portugal,
existiria um carácter nacional cujo núcleo essencial podia ser encontrado nas
aldeias comunitárias do norte de Portugal. Como uma espécie de embrião
primordial, esse núcleo ter-se-ia expandido e desenvolvido nos territórios do
ultramar português (Macagno 2002: 97-98).

Na concepção de Jorge Dias, uma sociedade comunitária é, basicamente, uma


espécie de família complexa, formada por um conjunto de famílias extensas de
natureza patriarcal. A organização política e o governo dessa comunidade se
baseia em um conselho formado por chefes de família. Segundo Dias, esse tipo

20
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
de organização foi se perdendo e se transformando. O importante, neste caso, é
que haveria uma espécie de analogia entre o tipo de organização comunitária
da metrópole e as próprias sociedades “exóticas”, nas quais os portugueses se
instalaram. Sem dúvida, essa elaboração imaginária de Dias procura amortecer
os efeitos hierárquicos e violentos da expansão ultramarina de Portugal
(Macagno 2002: 105-106).

Trata-se, basicamente, de encontrar um fundamento idiossincrático que


distinga Portugal do resto das potências colonizadoras, e de promover uma
auto-imagem de tolerância e plasticidade. Aqui, obviamente, Jorge Dias bebe
da fonte lusotropicalista de Gilberto Freyre (Macagno 2002: 106). O apelo ao
carácter nacional por parte de Portugal é produto de uma estratégia para
mostrar ao mundo de pós-guerra a singularidade da “cultura” portuguesa e,
portanto, o carácter sui generis do colonialismo português. Cabe lembrar, neste
sentido, que, em 1951, por um simples decreto do Estado Novo, as colónias
africanas portuguesas passaram a chamar-se províncias ultramarinas. Com
isto, tentava-se dar uma forma orgânica ao que até esse momento, tinha sido
somente uma metáfora: as colónias africanas como simples prolongamentos da
Mãe Pátria. Desta forma, além de reforçar o princípio da unidade política entre
metrópole e ultramar, tentava-se neutralizar as crescentes pressões das Nações
Unidas a favor dos territórios ainda sem governo próprio (Macagno 2002: 107).

O facto de Jorge Dias ter estado numa situação confortável em contextos


autoritários não deve ser negligenciada: do ponto de vista conceitual, a visão
“culturalista” que ganha corpo ao longo de sua obra não deixa de alimentar a
própria ideologia salazarista; e seu posterior compromisso com o colonialismo
salazarista fica evidente nos relatórios que se predispõe a enviar ao Ministério
do Ultramar, detalhando as condições sociais e políticas dos povos visitados.
Se é claro que seus relatórios são honestos e nada laudatórios para com o
regime colonial português, o fato é que seu propósito era colaborar para a
“correcção” de um “acidente de percurso”, sem colocar em causa o colonialismo
— e o autoritarismo —, pois Dias jamais deixou de ser um homem do regime e
de louvar as “qualidades inerentes” ao colonialismo português (ver, p. ex., Dias
1961a; 1961b). Sua admiração pelos Estados Unidos e pela Academia
americana não revela necessariamente qualquer tipo de apego a sistemas
democráticos: aquilo que servia para os Estados Unidos não era apropriado
para Portugal e para o ultramar, em função da própria “cultura” do povo
português (Thomaz 2001: 74).

Dialogando com o culturalismo, Dias não chega a conclusões muito diferentes


daquelas de Mendes Corrêa, que estava em absoluto acordo com a ideologia
oficial promovida pelo regime. Se para Mendes Corrêa a raça definiria uma
série de constantes que seriam reveladoras de um espírito português, para
Jorge Dias essas constantes estariam expressas na cultura, que definiria uma
identidade portuguesa distinta da dos outros povos latinos (Thomaz 2001: 75).

21
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
É evidente que passar do conceito de “raça” para o conceito de “cultura” revela
um passo crucial na história da antropologia em Portugal. No entanto, do
ponto de vista político, as leituras a que essa noção de “cultura” se prestou
foram absolutamente conservadoras: a “cultura portuguesa” definiria um
“padrão” que tenderia a se reproduzir ao longo do tempo (da história) e do
espaço (a geografia do império). A estrutura política do Estado Novo e do
império colonial português deveria se aproximar dessa realidade do espírito e
qualquer tipo de distanciamento dessa “personalidade-base” do “bom povo
português”, como a violência expressa pelo sistema colonial, o trabalho forçado
promovido pela administração portuguesa e pelos colonos etc. — observado e
descrito por Jorge Dias nos relatórios elaborados sobre as regiões visitadas —,
deveria prontamente ser corrigido: tratava-se de algo estranho ao ser
português, naturalmente afável no trato com os povos exóticos (Thomaz 2001:
75).

Mário Moutinho (1982), ao analisar as relações entre a produção etnológica e o


colonialismo, aponta para o papel da antropologia na legitimação do Estado
Novo tanto na metrópole como nas colónias. Esta se daria, talvez, mais de uma
perspectiva ideológica do que propriamente pelo fornecimento de subsídios
para a acção do Estado. Seu trabalho é surpreendente no sentido de atrelar a
fins políticos o pensamento de intelectuais reconhecidos e bastante sofisticados
que, como Jorge Dias, davam uma visão “messiânica” da missão cultural
portuguesa no mundo, o que a particularizaria em face das demais acções
colonizadoras (Thomaz 2001: 76).

Absolutamente comprometidos com a ideologia imperial da época — que pouco


tempo depois se transformará no luso-tropicalismo —, Mendes Corrêa, Jorge
Dias e outros profissionais vinculados à Escola buscaram produzir um saber
colonial em geral (e uma antropologia em particular) à altura das demais
potências colonizadoras da época, salvaguardando sempre as particularidades
da colonização portuguesa. Tal processo será evidenciado no rumo dos estudos
de alunos e professores da Escola a partir, sobretudo, da década de 50
(Thomaz 2001: 76).

Uma abordagem teórica diferente da antropobiologia

A abordagem de Jorge Dias marca uma ruptura com a antropologia biológica


que vinha dominando muitos dos trabalhos antropológicos produzidos em
Moçambique. Com efeito, depois de realizar os seus primeiros trabalhos
etnográficos em Portugal, em princípios da década de quarenta, Dias tem uma
passagem por Espanha onde permanece até 1947. De regresso a Portugal,
obtém um posto no Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto, onde havia uma forte hegemonia da antropologia

22
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
biológica, cujo impulsionador principal era Mendes Correa (Macagno 2002:
103).

Mais tarde, a partir de uma viagem aos Estados Unidos da América em 1950,
Jorge Dias sofrerá uma importante influência da antropologia cultural
americana. Neste contexto, começa a incorporar autores tais como Ruth
Benedict, Lowie, Kluckhohn, Kroeber, Murdock e uma preocupação pelos
processos de aculturação e contacto cultural que, depois procuraria plasmar
em vários textos (Macagno 2002: 103).

Quando Jorge Dias é indicado para liderar a Missão de Estudo das Minorias
Étnicas do Ultramar em 1957, já trazia consigo toda a bagagem antropológica
dos discípulos de Franz Boas nos Estados Unidos. As discussões sobre os
processos de aculturação, os estudos sobre o carácter nacional e as reflexões
sobre o etnocentrismo nos contextos de interacção cultural estavam, havia
algum tempo, na agenda de trabalho da antropologia norte-americana,
especialmente durante a Segunda Guerra Mundial (Macagno 2002: 106).

Leituras adicionais

Gallo, Donato 1988 “O Saber Colonial e a Antropologia Aplicada Através dos


Relatórios Confidenciais do Centro de Estudos Políticos e Sociais (1950-1960)
in Antropologia e Colonialismo: o Saber Português, Lisboa: erheptágono pp. 79-
91

_______. 1988 “A Antropologia entre Curiosidade e Fidelidade ao Regime


Colonial: A produção Cultural do Instituto Superior de Ciências e a Politica
Ultramarina (1960-1975)” in Antropologia e Colonialismo: o Saber Português,
Lisboa: erheptágono pp. 94-130

Macagno, Lorenzo 2002 “Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias


entre Portugal e Moçambique” Afro-Asia 28: 97-124

Museu Nacional de Etnologia. 1997. Guia para os filmes realizados por Margot
Dias em Moçambique 1958/1961.

Pereira, Rui 1986 “Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do


Estado Novo” Revista Internacional de Estudos Africanos nº 4-5: 191-235
[Ver as seguintes secções: Introdução; Ideologia Colonial e Prática Antropológica:
momentos de um encontro; O Estado Novo e o discurso antropológico possível; A
Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português: uma natural
convergência de interesses; e Conclusão]

23
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Pereira, Rui M. 2004/2005. “Raça, Sangue e Robustez. Os paradigmas da
Antropologia Física portuguesa” Cadernos de Estudos Africanos nº 7-8: 209-
241

Thomaz, Omar Ribeiro 2001 “‘O Bom Povo Português’: Usos e costumes
d’aquém e d’além-mar” MANA 7 (1): 55-87

2.2.3. CARLOS RAMOS DE OLIVEIRA E A PESQUISA SOBRE OS


TAUARAS DO VALE DO ZAMBEZE NO ÂMBITO DA CONSTRUÇÃO
DA BARRAGEM DE CAHORA BASSA

Carlos Ramos de Oliveira é exemplo de um dos antropólogos enviados pela


Metrópole portuguesa para fazer pesquisar em Moçambique no período
compreendido entre anos 50 a 1974. Em 1972 o Professor Jorge Dias tinha
sido encarregado de coordenar a investigação científica na zona que ia ser
alagada pela Barragem de Cabora Bassa. Uma vez que ele já não se sentia em
condições de saúde para o fazer, convidou ao Carlos Ramos de Oliveira para o
substituir. Assim, Carlos Oliveira esteve no Vale do Zambeze durante 4 meses e
meio, por duas vezes, primeiro de Janeiro a Março e depois durante os meses
de Outubro de Novembro (Oliveira 2011: 5-6).

A respectiva monografia só viria a ser publicada em 1976, com o título Os


Tauaras do Vale do Zambeze (Castelo 2011).

CARLOS RAMOS DE OLIVEIRA E A PESQUISA SOBRE OS TAUARAS


DO VALE DO ZAMBEZE NO ÂMBITO DA CONSTRUÇÃO DA
BARRAGEM DE CAHORA BASSA
Carlos Manuel Graça Ramos de Oliveira nasceu em Algés, em 1943.
Diplomou-se em Administração Ultramarina, pelo Instituto Superior de
Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) em 1963. Após ter
cumprido três anos e quatro meses de serviço militar, decidiu inscrever-
se no curso complementar de Ciências Antropológicas, entretanto criado
no ISCSPU, onde teve docentes como os professores Jorge Dias,
Francisco Tenreiro, Narana Coissoró. Licenciou-se em Ciências
Antropológicas e Etnológicas em 1971 (Castelo 2011).

Foi investigador no Centro de Estudos de Antropologia Cultural (CEAC) e


no Museu de Etnologia do Ultramar, da Junta de Investigações do

24
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Ultramar, por sugestão de João Pereira Neto e a convite de Jorge Dias
(1970-1974) (Castelo 2011).

Com uma bolsa do British Council realizou estudos de pós-graduação


sobre Antropologia Ecológica na London School of Economics and
Political Science, de Janeiro a Junho de 1973. Em Fevereiro de 1974
demitiu-se do CEAC, desiludido com as perspectivas de trabalho e
carreira e a tentativa de censura do seu manuscrito sobre os Tauaras.
Desde então, trabalhou na Banca, na área do Marketing e dos Recursos
Humanos. Paralelamente, foi docente no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas (Castelo 2011).
Referências Bibliográficas

Cláudia Castelo, “Carlos Ramos de Oliveira”, in Ricardo Roque (org.),


History and Anthropology of “Portuguese Timor”, 1850-1975. An Online
Dictionary of Biographies, available at
http://www.historyanthropologytimor.org/(downloaded on 16 de Janeiro
de 2016)

25
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
2.3. ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS OFICIAIS FEITOS POR FUNCIONÁRIOS
DA ADMINISTRAÇÃO COLONIAL RESIDENTES EM MOÇAMBIQUE

Como foi referido nas secções anteriores, houve estudos antropológicos em


Moçambique realizados em dois momentos distintos por antropólogos
provenientes da Metrópole para tal propósito. No entanto, ao nível local, em
Moçambique, registou-se uma produção antropológica feita por funcionários da
administração colonial local, decorrente das orientações nesse sentido feitas
pelo Governo Geral da Colónia de Moçambique. São exemplos disso a
institucionalização da Missão Etognósica de Moçambique, que tinha a missão
de proceder ao levantamento de usos e costumes da população local com vista
a informar o processo da administração colonial da população africana local.
Contrariamente as outras duas missões anteriormente mencionadas, esta
integrou funcionários da administração civil local. A outra fonte da produção
antropológica oficial foram as monografias produzidas por administradores e
candidatos a administradores em cumprimento com os requisitos dos
concursos para a Administração local.

2.3.1. MISSÃO ETOGNÓSICA DE MOÇAMBIQUE: ESTUDO SOBRE USOS


E COSTUMES DOS AFRICANOS REALIZADO POR
FUNCIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO COLONIAL RESIDENTES
EM MOÇAMBIQUE

Em Julho de 1941, o Governador-Geral de Moçambique nomeou por despacho


a Missão Etognósica da Colónia de Moçambique que tinha como principal
missão estudar os usos e costumes das populações africanas de Moçambique.
Na realidade, com a implantação do Estado Novo, foi promulgado em 1930 o
Acto Colonial. Além da gestão da “questão indígena”, o Acto Colonial abarcava
todos os outros domínios respeitantes à administração das parcelas coloniais,
assumindo, desde logo, força constitucional por se fazer substituir ao capítulo
V da Constituição então em vigor, a de 1911, em cuja reforma, a breve trecho,
deveria vir a ser integrado. De facto, o artigo 133º da Constituição de 1933
declarava que eram “consideradas matérias constitucionais as disposições do

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Acto Colonial”, conferindo-lhes assim dignidade constitucional (Pereira 2001:
10).

Pouco depois da integração do Acto Colonial na Constituição, foi lavrada a


Carta Orgânica do Império Colonial Português, cujo capítulo VII, “Dos
Indígenas”, além de lhes conferir as “garantias” já presentes no Estatuto e
consagradas no Acto Colonial, instituía a protecção dos “indígenas” como um
dever, não só nas disposições anteriores, dos colonos que, em conjunto,
“deveriam velar pela conservação e desenvolvimento das populações” (Pereira
2001: 10).

Na prática, no terreno a situação mostrava que havia indeterminações,


imprecisões e indefinições, originados pela incoerência entre, por um lado, um
conjunto de disposições legislativas que mandavam contemporizar e atenuar, e,
por outro, a inexistência de um conjunto de instrumentos legais específicos a
essa acção, tomar-se-ia imperioso elaborar códigos dirigidos à “aplicação da
justiça aos indígenas”. Enquanto tal não ocorria, o Governo-Geral de
Moçambique tomava algumas disposições reguladoras da actividade das
autoridades administrativas face aos “usos e costumes gentílicos”. Em 1940,
por Portaria no 4 844, de 16 de Dezembro desse mesmo ano, aprovava as
“Instruções Reguladoras do Funcionamento das Secretarias dos Serviços
Administrativos Provinciais e Locais”, onde, entre muitas outras disposições
quanto a normas de serviço administrativo corrente, determinava que se
elaborassem em cada uma das secretarias de administração de circunscrição
“Livros de Registo de Usos e Costumes Gentílicos” e que se enviassem cópias de
todos os registos desses livros à Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas
à qual competia, por esse disposição legal, proceder à sua codificação (Pereira
2001: 12).

Assim, em Julho de 1941, o Governador-Geral nomeou por despacho a Missão


Etognósica da Colónia de Moçambique que tinha como primeiro objectivo
“proceder, in loco e relativamente a cada um dos grupos étnicos diferenciados, a
investigações conscienciosas do direito, da moral e mentalidade das populações
aborígenes” conducentes à elaboração de um código penal e de um código de
direito privado (Pereira 2001: 12).

O objectivo principal da Missão era o de lançar as bases jurídico-etnológicas


para um direito civil e penal “indígena” adaptado aos “usos e costumes” e, esse
modo, alcançar uma solução para um aspecto da política indígena que estava
desde há muito em falta. Repetidamente declarado desde o século XIX, tal
objectivo apontava para fazer adaptar o direito português aos “usos e
costumes” locais no sistema judicial para os “indígenas”, desde que não
entrassem em confronto com a soberania portuguesa nem as “leis da
humanidade e da moral”. Prevendo-se um registo escrito destes usos e
costumes que deveria servir de base para os funcionários coloniais com

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
responsabilidades de jurisprudência, na prática, até aos anos 40 do século XX,
tais intenções, paulatinamente consolidadas ao longo de décadas por legislação
específica, falharam na redacção de um código de direito consuetudinário
(Pereira 2001: 12).

O ano de 1941 marca o início de uma nova fase da administração colonial do


território. Um passo decisivo para a afirmação da administração colonial era o
estabelecimento de normas jurídicas para o exercício da função judicial
colonial sobre os “indígenas”, não apenas como expressão de uma dominação
colonial, mas, também deve ser referido, em alguns casos as próprias
populações colonizadas procuravam crescentemente a administração como
instância de recurso para os seus milandos (disputas de direito civil),
sobretudo nas regiões onde as autoridades tradicionais, que podiam ser
nomeadas ou destituídas dos seus cargos ao bel-prazer da administração
colonial, perderam prestígio ou se encontravam fragilizadas (Pereira 2001: 13).

A nomeação de José Gonçalves Cota, reputado jurista da colónia, como Chefe


da Missão Etognósica da Colónia de Moçambique, por sugestão de Furtado
Montanha, Chefe da Repartição Central dos Negócios Indígenas, visava, para
além do objectivo final de redacção dos códigos civil e penal para indígenas, a
partir do levantamento das concepções morais e jurídicas das populações
autóctones, um objectivo paralelo, o de publicar, no termo dos trabalhos, um
estudo etnológico capaz de transmitir aos funcionários coloniais uma ideia
sobre a mentalidade das populações africanas. Tratava-se de fornecer um
quadro complementar de referência etnográfica e sociológica aos funcionários
administrativos sempre que estes tivessem que se ater ao estipulado nos novos
códigos (Pereira 2001: 14).

Gonçalves Cota iniciou as pesquisas no terreno logo no mesmo ano em que foi
publicado o despacho que criava a Missão, editando em 1944 o seu estudo
etnológico, Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique. O
seu Projecto do Código Penal dos Indígenas estaria pronto nesse mesmo ano de
1944, mas o Tribunal de mais alta instância da colónia, o Tribunal da Relação
de Lourenço Marques, só o aceitou, numa versão melhorada, dois anos depois
da data da sua publicação definitiva (Pereira 2001: 15).

Quanto aos métodos de investigação da Missão Etognósica de Moçambique,


deduz-se que Cota realizou extensos inquéritos em todos os locais que visitou,
nas chamadas banjas (reuniões das autoridades tradicionais com os
funcionários da administração colonial). Infelizmente, excluindo as evocações
de Morgan, Bachofen e Frazer no correr do texto, Cota não incluiu qualquer
tipo de bibliografia ou de fonte nos seus trabalhos, e apenas são registadas
esparsas observações, em parte extremamente imprecisas mas também
reveladoras de uma falta de preparação antropológica e científica específica
(Pereira 2001: 16).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Quanto aos objectivos da sua investigação no terreno, Gonçalves Cota tinha
uma premente preocupação em se demarcar de outros estudos de natureza
antropológica que em simultâneo decorriam na colónia. A Missão Antropológica
de Moçambique, instituída para Moçambique por decreto ministerial e que viria
a trabalhar por cerca de 20 anos, era, por assim dizer, uma emanação do poder
central e correspondia a uma determinada fase de desenvolvimento do modelo
económico colonial português, conforme ele era entendido no seu aspecto
global, independentemente das realizações locais; ao invés, a Missão
Etognósica era uma realização local, determinada pelo Governador-Geral de
Moçambique em resposta a uma sugestão do Chefe da Repartição Central dos
Negócios Indígenas e correspondia a uma necessidade efectiva de “gestão
social” das populações dominadas (Pereira 2001: 16).

A Missão Antropológica tinha por objectivo mais geral proceder a uma


taxionomia das características físicas dos “indígenas” de Moçambique. Ao
contrário, os estudos jurídico-etnológicos de Gonçalves Cota representariam
uma tentativa de classificar os grupos étnicos de acordo com a sua semelhança
no que se referia às estruturas familiares e às instituições jurídicas (Pereira
2001: 16).

Em conclusão, pode-se dizer que os trabalhos da Missão Etognósica de


Moçambique, conquanto não tivessem sido sancionados pelo poder central
metropolitano, acabaram por cumprir um objectivo de relevo, apontado, de
resto, na disposição legislativa que a instituiu: fornecer aos funcionários
coloniais em Moçambique uma base de orientação para a prática
administrativa do quotidiano das populações colonizadas, num processo
dialéctico entre os ditames configurados nos Projectos de Gonçalves Cota e os
“crimes gentílicos” que, caso a caso, se apresentavam à apreciação judicial das
autoridades coloniais (Pereira 2001: 29).

As obras de Gonçalves Cota foram sendo recorrentemente citadas até ao final


da década de 50, em relatórios ou monografias etnográficas de funcionários
coloniais. Para a história da antropologia colonial portuguesa em Moçambique,
importa reter que a Missão Etognósica de Moçambique foi, decididamente, a
mais sistematizada e articulada das iniciativas de uma “etnografia
administrativa”. Enquadrada localmente, confrontando e dando resposta a
necessidades prementes da administração colonial em Moçambique nessa fase
do Estado Novo, estava imbuída de uma dimensão prática e utilitária afirmada
quotidianamente no “terreno”. Abriu caminho, finalmente, ao que tinha sido
anteriormente determinado em 1933 mas só posto em execução a partir de
1945, quanto aos concursos para funcionários dos quadros administrativos
coloniais em Moçambique, demonstrando uma prática de levantamento
etnográfico depois amplamente seguida e citada nas monografias dos
concursos, não só quanto ao método mas também quanto aos dados

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
resultantes. No conjunto, esta “atenção antropológica” local afrontava,
portanto, as missões antropológicas instituídas em 1935 por decreto
ministerial do governo metropolitano e que foram, na altura, entregues ao
cuidado da “Escola do Porto”. Se a antropologia física desta escola, com suas
mensurações e quantificações, os seus índices de robustez e restante
parafernália de indicadores antropométricos visava dar cobertura científica à
exploração mais primitiva da força de trabalho “indígena”, correspondendo
assim a uma fase particular da economia colonial do Estado Novo, a
“etnografia administrativa” da Missão Etognósica de Moçambique e das
monografias etnográficas dos funcionários coloniais, era a resposta local e útil
a problemas levantados pela gestão social das populações colonizadas (Pereira
2001: 30).

De todo o modo, uma e outra, fosse a antropobiologia ou a “etnografia


administrativa” perderam a sua razão de existência quando, em 1961, o
Ministro do Ultramar decreta a abolição do Estatuto do Indigenato, por artigo
único do Decreto-Lei no 43 893, de 6 de Setembro de 1961 (Pereira 2001: 30).

2.3.2. PRODUÇÃO DE RELATÓRIOS E MONOGRAFIAS POR


ADMINISTRADORES COLONIAIS

A institucionalização do Estado Novo possibilitou por um lado - sem que o


campo da antropologia perca sua autonomia - que as técnicas etnográficas
fossem reapropriadas pelos funcionários coloniais e por outro lado, que o saber
etnológico – como instrumento político – colaborasse na objectivação e na
gestão prática das populações indígenas (Barbosa 2008: 9).

Com efeito, no caso de Moçambique assiste-se que de Dezembro de 1933 a


Dezembro de 1968 o governo português promulgou um conjunto de textos
legais que regulamentava o acesso aos diferentes postos da carreira
administrativa em Moçambique. De acordo com essa regulamentação, os
concursos para Administrador de 3ª classe e para Administrador de Concelho,
quando estes foram criados, constavam de provas escritas sobre as seguintes
matérias: Topografia, Construção Civil, Finanças Coloniais, Economia Colonial,
Direito Constitucional e Administrativo e Administração Colonial, Política
Indígena, Serviço das Circunscrições, Línguas Indígenas, Agricultura,
Silvicultura-Pecuária/Etnografia (Medeiros 1993: 4).

A prova de Etnografia consistia numa monografia original escrita


expressamente para o Concurso sobre uma população indígena, geralmente da
região onde o candidato trabalhara anteriormente. A monografia etnográfica era
enviada ao Júri no acto da candidatura às provas do Concurso (Medeiros 1993:
4).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Neste sentido, foram produzidas muitas monografias pelos então candidatos.
Medeiros (1993: 4-5) considera que salvo raras excepções as Monografias têm
um valor científico limitado, e retomam geralmente textos ou parte de textos
administrativos ou textos de missionários escritos sobre a região ou área
cultural tratada. A elaboração da Monografia etnográfica era uma imposição
administrativa sem a qual não podia haver candidatura ao Concurso; ora, nem
todos os candidatos tinham sensibilidade para estas questões, nem sequer
tinham tido, na sua grande maioria, pelo menos até à segunda metade dos
anos cinquenta, uma aprendizagem etnológica nem adquirido um mínimo de
saber metodológico e de conceitos teóricos para a pesquisa etnográfica.

Por causa dessas lacunas teóricas encontramos nos próprios títulos das
Monografias erros grosseiros de utilização do vocabulário etnográfico, como por
exemplo “sub-raças dos senas”, “tribo Achirima” ao invés dos vocábulos “povo”,
“etnia” ou “sub-etnia”. Nalgumas das monografias predominam temas da
Antropologia Física ou Antropobiologia: caracteres somáticos/caracteres
fisiológicos/ tatuagens e mutilações corporais, etc. (Medeiros 1993: 5).

Entretanto, essa produção é de grande valor para o estudo da mentalidade e


das práticas dos agentes da administração colonial (Medeiros 1993: 4).

A publicação em português, em 1944, na cidade de Lourenço Marques, dos


dois volumes de Henri Junod: Usos e Costumes dos Bantos – A Vida duma
Tribo do Sul da África, viria a influenciar muitos candidatos (Medeiros 1993:
5).

O Governo da colónia, pretendendo mandar aplicar a legislação para o acesso


às carreiras administrativas, encomendou a um funcionário da Repartição
Central de Estatística, Manuel Simões Alberto, um manual de recolha
etnográfica para apoio dos funcionários administrativos. Esse manual foi
publicado em Lourenço Marques em 1945 com o título Elementos de
Antropologia geral, Etnografia e Etnologia (para satisfazer ao exigido nos
programas dos concursos para funcionários dos quadros administrativos
coloniais) (Medeiros 1993: 5).

Leituras adicionais

Barbosa, Pablo 2008 “Saberes antropológicos e práticas coloniais em Portugal


entre 1933 e 1974” Revista História em Reflexão 2(4): 1-22 [D]

Medeiros, Eduardo. 1993 …..

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
3. A PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA INDEPENDENTE EM MOÇAMBIQUE

Neste período, assiste-se em Moçambique a uma produção antropológica


independente, feita por cidadãos portugueses residentes em Moçambique, por
um lado, e por cidadãos estrangeiros que se deslocaram a Moçambique para
realizar suas pesquisas.

3.1. A PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DE PORTUGUESES RESIDENTES


EM MOÇAMBIQUE

Muitos dos cidadãos português residentes ou a trabalhar em Moçambique


durante esse período deram o seu contributo ao nível da antropologia. Muitos
desses trabalhos foram publicados nas revistas da Sociedade de Estudos de
Moçambique e do Instituto de Investigação Científica de Moçambique. Dentre
os trabalhos publicados podem se apontar os de Manuel Simões Alberto, Luís
Polanah, António Rita-Ferreira, entre outros.

MANUEL SIMÕES ALBERTO E A PESQUISA ANTROPOLÓGICA

Manuel Simões Alberto nasceu na Freguesia de Nariz, Concelho de


Aveiro em 31 de Dezembro de1890, filho de Augusto Simões Birrento e
de Joana Costa. Em Nariz aprendeu as primeiras letras e música, com
o padre José Augusto Carvalho e o professor Sarabando Rocha. Em 1
de Novembro de 1910, ingressou no serviço militar, integrando o
Regimento de Infantaria 24 em Ovar. Foi durante o serviço militar que
prosseguiu os estudos.

De Maio de 1912 a Maio de 1917 não terá sido militar, mas volta a ser
incorporado e a 24 de Setembro de 1917 parte para Moçambique

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
integrado na força expedicionária no âmbito das operações da Primeira
Guerra Mundial. Regressa a Portugal em 1919 com a medalha
comemorativa “Moçambique, 1914-1918”. Desta experiência de soldado
da I Grande Guerra em África resultou, por um lado, o livro
Condenados – A Grande Guerra vivida às portas do degredo, que ele
mesmo fez imprimir em Aveiro em 1933 e, por outro, a sua curiosidade
pelas coisas moçambicanas (Medeiros 1995: 5).

Não deve ter sido estranho a este interesse o convívio com o médico
militar do mesmo Corpo Expedicionário, Américo Pires de Lima, que era
professor da Faculdade de Ciências do Porto e que, paralelamente à
sua ocupação militar, realizou algumas pesquisas de carácter
antropobiológico, botânico e etnográfico. O que é certo é que Manuel
Simões Alberto irá voltar anos mais tarde a Moçambique e orientar os
seus interesses intelectuais para estas áreas e ter mesmo ligações com
o Instituto de Antropologia da Universidade do Porto, dirigido pelo
Professor Mendes Correa, de cuja Faculdade Pires de Lima foi director
(Medeiros 1995: 5).

A 13 de Abril de 1935 embarca de novo para Moçambique, tendo sido


colocado na 7ª Companhia Indígena de Infantaria em Tete. A partir de
Março de 1935, passou a ser editado na capital da colónia, o excelente
Moçambique – Documentário Trimestral, com artigos dedicados à pré-
história, etnografia, linguística, demografia e história colonial. Foi em
1938, no no 14 de Moçambique que Manuel Simões Alberto publicou o
seu primeiro artigo na colónia: Vila e Praça de Tete: Elementos de
Estudo sobre as antigas obras de defesa (Medeiros 1995: 6).

Será entre 1938 e 1945 que Manuel Simões Alberto escreveu e


publicou vários artigos que reflectem a sua experiencia e o seu
interesse pela história e pelos povos da província de Tete, que para
além o primeiro artigo, publicou ainda O Império do Monomotapa e os
aborígenes africanos (em 1938) e Os Angones: últimos invasores da
Angónia Portuguesa (em 1941). Para além destes trabalhos mais
relacionados com Tete, publicou em 1942, de colaboração com
Francisco Toscano, O Oriente Africano Português: Síntese cronológica
da História de Moçambique e, neste mesmo ano, terminou um trabalho
sobre o Censo de 1940 a que chamou: Os negros de Moçambique, Censo
Etnográfico: Elementos de Estudo para a solução dos problemas
etnográficos do Império. Em 1945 publicou Problemas etnográficos do
Império: valores de Moçambique, a terra e os homens (Medeiros 1995: 6-
7).

Em 1945 tinha já contactos com a Repartição Central de Estatística, e


foi nessa qualidade que o Governo da Colónia lhe encomendou uma

33
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
espécie de manual que servisse de apoio aos funcionários
administrativos que se submetessem a concurso para provas de acesso
a chefe de posto, secretário de administração e administrador de
circunscrição. O manual foi publicado na então Lourenço Marques com
o título Elementos de Antropologia Geral, Etnografia e Etnologia (para
satisfazer ao exigido nos programas dos concursos para funcionários dos
quadros administrativos coloniais) (Medeiros 1995: 7).

Manuel Simões Alberto teve a oportunidade de frequentar, como aluno


extraordinário, a Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo,
dedicando-se a seguir à investigação histórica e científica do ramo das
Ciências Humanas e, em 1945-1946, ultimou, como bolseiro da Junta
das Missões de Investigações Ultramarinas, os seus estudos de
Antropologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto,
regressando de seguida a Moçambique (Medeiros 1995: 7).

Manuel Simões Alberto participou durante alguns meses no Instituto


de Antropologia do Porto num estágio para “preparativos de jornada e
apetrechamento e elaboração pormenorizada do programa da
campanha”. E foi na qualidade de ajudante da 4ª Brigada da Missão
Antropológica de Moçambique que embarcou para Moçambique, em
Maio de 1946, com os outros membros da brigada antropológica.

Em 1974, Manuel Simões Alberto terminou uma pequena monografia


sobre o povo Yao, com base nos trabalhos de campo realizados em
1946 quando visitou o Niassa integrado na Missão Antropológica.
Nitidamente, desiludiu-se com a Missão e ter-se-á incompatibilizado
com Santos Júnior. Manuel Simões Alberto permaneceu no seu posto
de trabalho na Repartição de Estatística em Lourenço Marques, tendo
os restantes membros da brigada regressado ao Porto (Medeiros 1995:
7).

A partir daí em diante, Manuel Simões Alberto passa a dedicar-se a


estudos de estatística demográfica com incursões pelos campos da
etnografia, antropologia física, história e etnolinguística. Assim, em
Setembro de 1947 apresenta uma comunicação na Sociedade de
Estudos da Colónia de Moçambique aquando da realização do I
Congresso desta Sociedade, comunicação intitulada: Contribuição para
o estudo da mestiçagem moçambicana. Em Novembro apresenta uma
nova comunicação: Controle fisiológico da mão-de-obra indígena
moçambicana – contribuição para o estudo do seu aproveitamento e
distribuição baseada na determinação científica do seu valor ergográfico
(Medeiros 1995: 7).

Manuel Simões Alberto terá sido um dos promotores do relançamento e

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
reestruturação da Sociedade de Estudos da Colónia de Moçambique,
começando a publicar regularmente no seu Boletim a partir de 1950.
No final desta década trabalha na área da etnolinguística com Vitor
Hugo Velez Grilo e na área da bioantropologia com Dionísio Barreto. De
colaboração com este último viria a estudar a mancha azul congénita
entre os negros, primeiro estudo deste género em Moçambique e o
segundo em África (Medeiros 1995: 7).

Foi o primeiro pesquisador em Moçambique que estudou as taxas de


criminalidade indígena (moçambicana), trabalho que apresentou no
Congresso de Durban e que surpreendeu os congressistas não só pelas
suas conclusões como por ser o primeiro trabalho deste género na
África a sul do Sahara. Em 1956-1957, foi encarregado pelo governo da
ex-província de proceder a um estudo de demografia das populações
nativas, estudo subsidiado pela Junta do Comércio Externo e depois
pelo Instituto de Investigação Científica de Moçambique, onde passou
aliás a ser “colaborador” atirado no Departamento de Ciências
Humanas, a partir de 1959. São destes anos os seus trabalhos sobre O
mestiçamento humano em Moçambique e a sua influência na aculturação
dos povos negros; Problemas populacionais de Moçambique; Ensaio de
demografia etnográfica: populações nativas a Sul do Save e Contribuição
para o estudo da interpenetração racial em Moçambique provocada pelo
mestiçamento humano (Medeiros 1995: 7-8).

No início da década de 60 continuava a colaborar no Instituto de


Investigação Científica de Moçambique, com o estatuto de assistente.
Em 1965 Manuel Simões Alberto regressou a Portugal. Tinha então 75
anos, tendo se instalado na região de Lisboa. Contudo, não deixou de
trabalhar nas suas notas moçambicanas. Já depois da sua ida para
Portugal, foram publicados em 1967 mais dois trabalhos seus em
Lourenço Marques: A evolução da construção civil em Tete e a sua
repercussão no valor das suas obras de defesa e Os Angonis: elementos
para uma monografia. Em 1974 terminou um manuscrito de 27
páginas dactilografadas sobre os Wayao do Niassa, com base em
trabalhos de campo realizados em 1946; cópias deste trabalho foram
enviadas para Moçambique (Medeiros 1995: 8-9).

Manuel Simões Alberto faleceu a 10 de Outubro de 1976 na freguesia


do Santo Condestável, em Lisboa, motivado por doença cérebro-
vascular (Medeiros 1995: 9).

LUÍS POLANAH

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Luís António Domingues Polanah nasceu no Chinde em Junho
1921. Seu pai era mauriciano e fora contratado pela Sena Sugar como
perito provador. Após conclusão do ensino secundário, Polanah
ingressou no quadro dos Correios, Telégrafos e Telefones, onde
permaneceu de 1941-51. Desde esta última data até 1959 foi
funcionário da Câmara Municipal de Lourenço Marques, mais
precisamente como encarregado do seu Bairro Social. Entre 1950-58
participou em várias exposições artísticas promovidas pela “Casa da
Metrópole” e pelo “Núcleo de Arte” com desenhos, aguarelas,
monotipias e óleos.

Entre 1955-59 escreveu para o semanário “O Brado Africano” e em


outras duas publicações, numerosos artigos em defesa dos direitos da
população indígena. Graças ao seu talento artístico obteve uma bolsa
que lhe permitiu concluir em 1963 o curso Geral de Pintura pela
Escola Superior de Belas Artes em Lisboa.

Logo a seguir ingressou no Instituto Superior de Ciências Sociais e


Política Ultramarina de Lisboa e em Janeiro 1966 foi-lhe concedida
uma licenciatura, com excelente classificação. Até 1968, efectuou um
estágio no Centro de Estudos de Antropologia Cultural e Museu de
Etnologia do Ultramar, sob a direcção do Prof. Jorge Dias. Auxiliou
também o professor americano Donald Pierson, na tradução de textos
clássicos da sociologia americana. Ao contrário do que julgava esta
actividade artística, literária e administrativa veio a transformar-se em
sério obstáculo no que respeita ao seu regresso a Moçambique. Tinha
sido objecto de uma acusação de actividades subversivas, acusação
que oportunamente o levou à barra dos tribunais onde foi absolvido.

Todavia o Ministério do Ultramar, tornou bem claro que, caso


desejasse regressar ao Ultramar teria que escolher qualquer outra
província alternativa. Foi esta obstrução que o decidiu a optar por
Angola, partindo para Luanda em Dezembro 1968, onde tomou posse
do cargo de Técnico de 1ª classe da Junta Provincial de Povoamento de
Angola. Realizou um trabalho brilhante e internacionalmente
conhecido em prol das populações rurais de Angola.

Após o golpe de estado de 25 de Abril, pede a sua colocação, em


comissão de serviço, como Assistente da Universidade de Luanda, na
Secção de Letras da cidade de Sá da Bandeira (Lubango). Contudo, a
situação militar veio a agravar-se de tal maneira que foi obrigado a
abandonar o cargo para partir no último avião. Levando apenas
alguma roupa e a documentação indispensável, conseguiu atingir
Lourenço Marques, onde viviam suas tias.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Entre 1975-76 foi admitido como assistente na Universidade de
Eduardo Mondlane.

ANTÓNIO RITA-FERREIRA

António Rita-Ferreira nasceu a 14 de Novembro de 1922 em Mata de


Lobos, Portugal. Em 1924 foi levado para Moçambique onde viveu
mais de meio século. Concluiu em 1941 o sétimo ano liceal, cursando
depois Estudos Bantus na Universidade de Pretoria da África do Sul.

Ingressou nos Serviços da Administração Civil em 1942, tendo


passado sucessivamente por Aspirante, Chefe de Posto, Secretário de
Circunscrição até atingir a categoria de Administrador de
Circunscrição. Neste sentido, trabalhou nas Administrações das
circunscrições de Mogincual, Bárue, e Marromeu. Depois, seguiram-
se as passagens pela Administração do Concelho de Quelimane, pela
Inspecção de Emigração em Ressano Garcia, pelo Posto
Administrativo de Lioma (Gúruè) e pela Direcção dos Serviços de
Administração Civil de Lourenço Marques. De seguida, foi o regresso
as administrações de circunscrições de Macanga e mais tarde de
Homoine, antes de ir para a Inspecção do Transvaal Oriental
(Curadoria dos Indígenas Portugueses na África do Sul). Depois da
experiência sul-africana foi colocado na Secretaria Distrital da
Administração Civil de Manica e Sofala (Beira), de onde viria a ser
transferido para a Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas
(Lourenço Marques).

Em 1963, transitou, como primeiro assistente, para o Instituto do


Trabalho, Previdência e Acção Social. Em 1971, aceitou o cargo de
Chefe de Serviços de Cultura Popular no Centro de Informação e
Turismo, onde ascenderia a técnico-director, e depois da
Independência, a director do Centro, ao abrigo do acordo firmado
entre a FRELIMO e o Governo Português.

Em 1972, a convite de várias universidades norte americanas, visitou


os respectivos Centros de Estudos Africanos, onde proferiu palestras e
participou em debates.

Após a Independência, e por solicitação do próprio Reitor, leccionou


na UEM como contratado, por conveniência urgente de serviço, como
equiparado a assistente, em regime de acumulação e além do quadro
da Universidade.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Entre 1983 e 1988 participou no Projecto de Microfilmagem de
Documentação sobre Moçambique existente em Portugal, organizado
pelo Arquivo Histórico de Moçambique.

A contribuição de Rita-Ferreira para a antropologia em Moçambique

À margem das ocupações profissionais e aproveitando as


oportunidades surgidas, desenvolveu notável actividade nos domínios
da Antropologia e da Sociologia. Foi assim que durante a sua
permanência de dois anos na Macanga, Rita-Ferreira aproveitou a
oportunidade para elaborar uma primeira monografia sobre os
Zimbas (etnónimo de conotações depreciativas que depois substituiu
por Cheuas). Foi a partir daí que surgiu uma definitiva predilecção
pelo estudo da antropologia cultural e da etno-história. Após ter
enfrentado grandes delongas e dificuldades na inventariação, compra
ou consulta da respectiva bibliografia, Rita-Ferreira acabou por
chegar à conclusão de que, para ser bem sucedido nessa nova
actividade cientifica, seria indispensável que elaborasse, em primeiro
lugar, uma “Bibliografia Etnológica de Moçambique”.

Facilitado por uma licença da Junta de Saúde, Rita-Ferreira


conseguiu iniciar em Paris, na Biblioteca do Museu do Homem, a
elaboração desse indispensável instrumento, cuja conclusão viria a
ocorrer em 1955, quando prestava serviço em Homoíne. Na altura, a
Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas mostrou interesse na
sua aquisição. Os direitos de autor viriam a ser adquiridos pelo então
Governo de Moçambique, por proposta dos Negócios Indígenas. A
versão original foi remetida para a Junta de Investigações Científicas
do Ultramar.

Em 1959, o antropólogo americano Marvin Harris publicou o ensaio


Labour Emigration among the Moçambique Thonga: cultural and
political factors. Rita-Ferreira considerou o artigo uma interpretação
tendenciosa sobre o trabalho migratório para a África do Sul. Assim,
António Rita-Ferreira tomou a decisão de refutar Marvin Harris,
travando uma polémica discussão na revista África.

Além de participar em encontros e congressos nacionais e


internacionais. Publicou numerosos artigos e recensões em periódicos
especializados, avultando as centenas de editoriais publicados (1963-
1972) nos principais jornais diários, onde alertou para a gravidade
das carências que afectavam a maior parte das comunidades rurais e
tribais.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
3.2. O PAPEL DA SOCIEDADE DE ESTUDOS DE MOÇAMBIQUE, DA
REVISTA MOÇAMBIQUE DOCUMENTÁRIO TRIMESTRAL E DO
INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DE MOÇAMBIQUE NA
DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA

Três instituições se destacam neste período na divulgação da produção


antropológica em Moçambique, nomeadamente a Sociedade de Estudos de
Moçambique através do seu Boletim da Sociedade de Estudos; a revista
Moçambique Documentário Trimestral e o Instituto de Investigação Científica de
Moçambique através da revista Memórias e outras.

3.2.1. A SOCIEDADE DE ESTUDOS DE MOÇAMBIQUE E A PRODUÇÃO


ANTROPOLÓGICA

A Sociedade de Estudos de Moçambique foi criada por personalidades de


grande relevância na esfera politica, económica e social da então colonia de
Moçambique, fora dos organismos oficiais que eles representavam. A situação
então vivida e as reformas que então decorriam em Portugal levou a que
criassem um organismo que fosse capaz de promover e apoiar o estudo e
levantamento dos problemas de Moçambique (geográficos, humanos e outros),
das potencialidades económicas para atrair o investimento nacional e
estrangeiro e, deste modo, assegurar não só a extracção de matérias-primas
para alimentar a indústria metropolitana mas, também, as possibilidades
internas para o progresso económico de Moçambique (Machava 1990: 83-84).

O apelo para a criação da Sociedade foi feito pelo Eng o António Joaquim de
Freitas, na altura Chefe de Repartição de Minas e que viria a ser o sócio
número 1, ao qual aderiram 102 individualidades de diversas áreas espalhados
pela colonia e que incluíam adesões de residentes de então Lourenço Marques,
Gaza, Inhambane, Zambézia, Territórios de Manica e Sofala, Tete, Moçambique
e Niassa. Do grupo inicial de entusiastas constavam oficiais da marinha e do
exército, especialistas em agronomia, medicina, veterinária, advocacia,
astronomia, arquitectura, comércio, química e professores (Machava 1990: 84).

Através da Portaria Provincial n 10:186, de 6 de Setembro de 1930, foram


aprovados os estatutos da associação, cuja sede se situava em Lourenço
Marques, denominada Sociedade de Estudos da Colónia de Moçambique. Pela
Portaria n 11:795, de 19 de Janeiro de 1957, os estatutos foram alterados para
satisfazer as novas disposições legais (Decreto n o 2048, de 11 de Julho de
1951, que mudava o nome das colónias para províncias ultramarinas),
passando a associação a designar-se Sociedade de Estudos da Província de
Moçambique (Machava 1990: 84).

39
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Os principais órgãos da Sociedade de Estudos de Moçambique eram a
Assembleia Geral, o Conselho Fiscal, a Direcção e as Secções de Estudo e
Trabalho (Machava 1990: 84).

As Secções de Estudo e de Trabalho constituíam grupos ou equipas


interdisciplinares com o objectivo de estudar e debater questões que lhes eram
inerentes (Machava 1990: 85).

Em 1947, a Secção de História e Filosofia realizou conferências sobre


antropologia social. Em 1964, foi introduzida, juntamente com outras, a
Secção de Etnologia Africana (Machava 1990: 86).

A partir de 1931, a Sociedade de Estudos editou o Boletim da Sociedade de


Estudos de Moçambique. Foi através desse Boletim que foram sendo publicados
trabalhos de pesquisa antropológica. No entanto, o Boletim sofreu sempre
grandes dificuldades e atrasos, pois era fruto do labor voluntário de alguns
sócios (Machava 1990: 92-93).

3.2.2. A PUBLICAÇÃO DA PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA NA REVISTA


MOÇAMBIQUE DOCUMENTÁRIO TRIMESTRAL

A partir de Janeiro de 1935 a Junho de 1961, o Governo-Geral de Moçambique


começou a editar a publicação periódica Moçambique - Documentário Trimestral.
Através dessa publicação, muita pesquisa antropológica feita por missionários,
académicos, entre outros, sobre os vários grupos etno-línguísticos de
Moçambique, foi publicada. Autores como Henri-Phillipe Junod, Joaquim
Rodrigues Santos Júnior, Manuel Simões Alberto, Maria Leonor Correia Matos,
entre outros constam entre os que deixaram a sua colaboração nas páginas da
revista.

3.2.3. O INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DE MOÇAMBIQUE E


A PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA EM MOÇAMBIQUE

O Instituto de Investigação Científica de Moçambique (IICM), foi fundado em


1955, e era controlado a partir de Lisboa pela Junta de Investigações do
Ultramar. Era na época a única instituição existente em Moçambique dedicada
a pesquisa em Ciências Sociais. Era considerada a “catedral” das ciências
sociais coloniais, pois que mais do que a universidade era neste Instituto que
se realizava toda a pesquisa científica. Essa situação derivava do facto de uma
das características do ensino superior em Portugal era a clara separação entre
o ensino e pesquisa. A universidade era vista como uma instituição meramente
educacional, enquanto a pesquisa estava localizada fora da universidade e,
neste caso particular, no IICM (Fernandes 2012: 111).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Com a criação dos Estudos Gerais Universitários/Universidade de Lourenço
Marques, o IICM colaborou com a universidade, mas sempre se manteve como
instituição independente. Investigadores do IICM regiam cadeiras ou
ministravam palestras para estudantes da Universidade, e estes e outro
pessoal académico tinham acesso à biblioteca do IICM. O objectivo maior do
Instituto era a investigação científica, tecnológica, económica e sociológica. O
seu campo de pesquisa compreendia os ramos das ciências biológicas, ciências
da terra e as ciências sociais, sendo que, na década de 1950, era o único
organismo em Moçambique em cuja estrutura foi considerado o estudo das
ciências sociais e humanas (Fernandes 2012: 111).

A Secção de Ciências Humanas do IICM tinha somente 3 investigadores


permanentes. Devido ao escasso número de investigadores pertencentes a esta
instituição, estas pesquisas eram realizadas na sua maioria por colaboradores
do Instituto e, muitas vezes, por pessoas que não tinham nenhuma formação
na área de ciências sociais. Esta era uma situação que espelhava o fraco
desenvolvimento destas ciências em Portugal. Assim, a existência de
colaboradores permitia superar alguns desses vazios e consentia ao IICM a
possibilidade de ter investigadores disseminados por várias partes do país,
aonde se achavam no exercício das suas profissões em outras instituições.
Estes colaboradores do IICM eram basicamente funcionários da administração
colonial, missionários, exploradores, etnólogos, etc. Estavam assim
organicamente ligados à administração colonial, mais preocupados em
conhecer a realidade social moçambicana a fim de bem administrar. Não havia
ainda uma tradição vigorosa de pesquisa em ciências sociais, pois que
disciplinas como História e Sociologia ainda não se tinham estabelecido no
campo científico português, e muito menos o conhecimento profundo e
imparcial sobre a realidade moçambicana (Fernandes 2012: 112).

O IICM efectuava pesquisa na área de Etno-História, Sociobiologia, Pré-


História, Antropologia, Geografia Humana e Linguística. Contudo, eram poucos
os trabalhos que reflectiam um interesse contemporâneo sobre a realidade
social e cultural moçambicana. A par destes pequenos estudos sobre a
realidade contemporânea moçambicana, o IICM limitava-se a fazer resenhas,
revisões bibliográficas e traduções de obras de antropologia colonial (Fernandes
2012: 111-112).

Nos finais de 1960, o IICM começou a publicar os estudos nas diferentes áreas
em que estava envolvida, através de publicações na qual o IICM era editor ou
co-editor, que variavam desde as ciências da terra, passando pelas biológicas
até às ciências sociais e humanas1. De entre essas publicações destacam-se
1
Nesse conjunto de publicações podem se apontar: o Boletim do Centro de Documentação
Científica; o Memórias do Museu Álvaro de Castro; o Novos Taxa Entomológicos; o Publicações
de Informação e Divulgação; a Revista de Entomologia de Moçambique; a Revista de Biologia; e
o Trabalhos do Instituto de Investigação Científica de Moçambique.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
algumas que publicaram material relativo à antropologia, nomeadamente a
revista Memórias do Instituto de Investigação Científica de Moçambique, a
revista Boletim do Instituto de Investigação Científica de Moçambique e a revista
Boletim do Museu de Nampula. Para além dessas revistas, o IICM publicou
ainda outras pesquisas antropológicas em forma de monografias ou
colectâneas.

3.3. A PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DE ESTRANGEIROS QUE


PESQUISARAM EM MOÇAMBIQUE

MARVIN HARRIS E A PESQUISA SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS


EM MOÇAMBIQUE

Marvin Harris nasceu em Nova Iorque em Agosto de 1927. Depois de


terminar os seus estudos universitários, ensinou durante vários anos
no Departamento de Antropologia da Universidade de Columbia.
Marvin Harris é mais conhecido na comunidade antropológica
mundial pelos seus livros sobre teoria e história da antropologia do
que pelos seus estudos sobre relações raciais nesses dois países. É
considerado um dos “inventores” do materialismo cultural (Macagno
1999: 144).

No entanto, como jovem pesquisador da Universidade de Columbia,


Marvin Harris empreendeu seus trabalhos de campo sobre relações
raciais no Brasil e Moçambique na década de 50 e surge como um dos
críticos da abordagem lusotropicalista de Gilberto Freyre.

Assim, entre Junho de 1956 e Maio de 1957, Harris desenvolve uma


pesquisa de campo em Moçambique que, diga-se, visava aferir até que
ponto o tão propalado carácter português de Gilberto Freyre havia
criado em Moçambique um mundo racialmente harmonioso.

De acordo com Macagno (1999), Marvin Harris focaliza o seu

42
Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
argumento de desmitificação do colonialismo português em cinco
aspectos, nomeadamente: (i) uma descrição do regime de Indigenato;
(ii) as questões relativas ao controle do indígena; (iii) a educação; (iv) o
trabalho forçado; (v) o trabalho migratório e o cultivo forçado do
algodão.

Em 1960 estalou uma polémica entre Marvin Harris e António Rita-


Ferreira em torno da interpretação diferente que os dois faziam do
trabalho migratório moçambicano. Segundo Rita-Ferreira, Marvin
Harris

“[...] Foi dos primeiros estrangeiros a serem autorizados pelo


Ministério Ultramar a efectuar investigações no território. Para
afastar suspeitas, garantiu de antemão que tinha como único
objectivo estudar a “literatura moçambicana de expressão
portuguesa”. Cerca de 1954, com aparente desafogo financeiro,
arrendou uma casa mobilada, mandou vir a esposa e filho e
adquiriu modesta viatura. Aqueles com quem veio a conviver
souberam que se interessava, efectivamente, pelos problemas
relacionados com a chamada “política indígena”.

Assim, Rita-Ferreira conta que nos inícios de 1957, e numa


deslocação a Lourenço Marques para participar no Concurso para
Administradores, teve a oportunidade de facultar a Marvin Harris a
consulta da colecção de separatas da “legislação aplicável aos
indígenas”. Contudo, o grande “pecado” de Marvin Harris, segundo
Rita-Ferreira, foi o facto de ter entrado

“[...] em contacto com figuras da oposição ao regime. Fazia


parte desses oposicionistas António de Figueiredo, ao tempo
simples empregado bancário mas que – após expulsão
administrativa por actividades subversivas – conseguiu em
Londres, fazer carreira internacional de jornalista
independente. Este Figueiredo convenceu Marvin Harris a
deslocar-se a uma conhecida açucareira do Vale do Limpopo e
aí indagar, junto dos trabalhadores, se o seu contrato colectivo
fora feito voluntariamente ou fora imposto pelas autoridades. A
polícia política, cedo informada, levou o assunto ao
conhecimento do Governador-Geral. Este convocou ao seu
gabinete o incauto académico para o interpelar em duro frente
a frente, antes de ordenar a sua imediata expulsão.
Regressado a Nova Iorque com a auréola de vítima do
imperialismo português, Marvin Harris foi acarinhado pelo
American Commitee on África – então dirigido pela viúva do
Presidente Roosevelt. Este organismo logo publicou em 1958 o
seu “Relatório em primeira mão dos problemas de trabalho e
de educação em Moçambique”.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
No ano seguinte, 1959, Marvin Harris publica o ensaio Labour
Emigration among the Moçambique Thonga: cultural and political
factors. Da publicação desse ensaio surge a polémica com António
Rita-Ferreira a partir de 1960 em torno da interpretação do fenómeno
do trabalho migratório em Moçambique.

Da documentação acumulada durante a polémica, António Rita-


Ferreira decidiu elaborar uma obra de grande fôlego, O Movimento
Migratório de trabalhadores entre Moçambique e África do Sul e que
viria mais tarde a ser publicada em 1963 na colecção “Estudos de
Ciências Políticas e Sociais” da Junta de Investigações do Ultramar. O
livro foi galardoado pela Academia de Ciências de Lisboa.
Leituras adicionais

Harris, Marvin 1958 “Portugal’s African ‘Wards’: A first-hand report


on labour and education in Mozambique” África Today Pamphlets 28
p.

Macagno, Lorenzo 1999 “Um antropólogo americano no ‘mundo que o


português criou’: Relações raciais no Brasil e Moçambique segundo
Marvin Harris” Lusotopie pp.143-161

MARTHA BUTLER BINFORD E A PESQUISA SOBRE A DINÂMICA


CULTURAL ENTRE OS RONGAS
Martha Butler Binford nasceu em 1939 em Washington, D.C. e recebeu
educação na América Latina e Estados Unidos da América. Estudou na
Radcliffe College. Obteve B.A. da Portland State University em
Anthropology and Literature, em 1965 e Ph.D. em Antropologia da
Michigan State University em 1971. A sua dissertação intitulada
Stalemate: A Study of Cultural Dynamic on value change foi baseada em
2 anos de trabalho de campo como uma N.I.M.H. Fellow entre os Rongas
de Moçambique.

Bem advertida da quase impossibilidade de obter fácil e rápida


autorização para realizar pesquisas de campo em Moçambique,
deslocou-se primeiramente a Lisboa. Aí logo teve de enfrentar as
rotineiras dilações e formalidades que podiam arrastar-se por um ano.
Levantou tão frequentes e indignados protestos (apoiada pela diplomacia
americana) que depressa conseguiu esta solução inédita e que jamais se
voltou a se repetir: foi autorizada pelo todo-poderoso chefe supremo da
PIDE a efectuar, com total liberdade, e onde julgasse conveniente,
trabalhos de campo em Moçambique.

Chegada a Lourenço Marques, conseguiu uma entrevista no maior

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
diário, pedindo auxílio a quem lhe pudesse indicar uma comunidade
acessível. Logo acorreu o pintor Malangatana que a convenceu a
estabelecer-se na sua terra natal, em Matalana, perto da capital. Martha
alugou aí uma ampla palhota, admitiu cozinheiro e um intérprete que
fora instrutor do ensino rudimentar numa missão protestante. Martha,
que já falava e compreendia o chi-ronga e já havia sido integrada na
comunidade local conseguiu assim recolher o material precioso e
abundante que serviu de base à sua tese de doutoramento.

Durante o seu trabalho de campo em Moçambique, Martha Binford ficou


seriamente doente mas felizmente conseguiu terminar a sua tese
(Macagno). Foi Professora Assistente de Antropologia na Wayne State
University, Detroit, Michigan, de 1971 a 1974 e, depois, Professora
Assistente de Antropologia da University of Michigan, Dearborn.

Ao se casar primeiro com Glenn Morris, adoptou o apelido do marido,


razão pela qual nos primeiros trabalhos nos anos 70 ela assina como
Martha Binford Morris (Macagno). Martha Binford morreu em 2011.

DAVID JOSEPH WEBSTER E O ESTUDO DA SOCIEDADE CHOPE

David Joseph Webster nasceu em 1945 na Zâmbia, na altura Rodésia


do Norte, onde o seu pai trabalhava como mineiro na região de Copper
belt. Mais tarde a sua família emigrou para a África do Sul, onde ele
decidiu seguir a carreira na área de antropologia. Estudou na Rhodes
University em Grahamstown. Nessa altura, David ficou bastante activo
na luta política e o seu primeiro acto de luta anti-apartheid foi o protesto
em 1965 na Universidade de Rhodes contra a decisão do Grahamstown
City Council de proibir aos estudantes negros de assistirem a primeira
equipa de Rugby da Rhodes University. Os estudantes protestaram
através da organização de sit-in nas escadas da livraria
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).

Em 1969, acompanhado da sua jovem esposa, Glenda, David Webster


iniciou a primeira de uma série de longas estadas de terreno entre os
chopes de Moçambique. Esta estada inicial de onze meses em três
povoações rurais da bacia inferior do Inharrime seria prolongada por
repetidas visitas mais curtas até 1972, tendo realizado ao todo quinze
meses de trabalho de terreno (Cabral 2009: 21).

Foi Walter Felgate, professor de antropologia na Rhodes University nos


anos 60, quem encorajou David Webster, na altura um dos seus alunos
de licenciatura, a desenvolver trabalho de campo em Moçambique, onde
os estudos etnográficos haviam sido escassos e espaçados no tempo.
Walter levou David e Glenda ao Sul de Moçambique a fim de

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
estabelecerem contacto com os responsáveis da administração local e
autoridades tradicionais e assim obterem autorização para que David
desenvolvesse um estudo antropológico na região conhecida como
Mucumbeni, um pouco para o interior de Inharrime. O trabalho
decorreu nas povoações de Nyakwaha, entre Nyatsiku, Mangani e Seven
Jack (Glenda Webster 2009: 417).

Webster realizou o seu trabalho de terreno durante o período tardo-


colonial em Moçambique (1961-1976) – em que a opressão colonial fora
mitigada, verificando-se uma relativa acalmia da violência inter-racial – o
que fez que com ele não encontrasse impedimentos de monta nas suas
tentativas de estudar os chopes, vivendo sem grandes problemas entre
as populações rurais que estudava. Provavelmente, na África do Sul,
onde a agressividade inter-racial crescia em violência na época, teria,
sem dúvida, encontrado dificuldades bem maiores (Cabral 2009: 22).

Em 1970, Webster começou a leccionar antropologia na Universidade de


Witswatersrand.

A última tentativa de visitar Moçambique foi em 1976, no calor do


período da Independência, e que foi gorada por uma trágica falta de
compreensão por parte das novas, e ainda pouco experientes,
autoridades, que não souberam interpretar as motivações benévolas do
jovem trio académicos brancos do qual David e Phil Bonner faziam parte.
Foram aprisionados e logo expulsos por terem tirado fotos às mulheres
que passavam na rua vestidas com capulanas vistosas gravadas com a
imagem de Samora Machel (Cabral 2009: 22).

O detalhadíssimo estudo da sociedade rural chope que David teve


oportunidade de realizar assume um valor único como documento
histórico de um período e de uma forma de vida que continuam a fazer
parte do legado histórico moçambicano, mas que já terminaram (Cabral
2009: 22).

O estudo de Webster sobre os chopes é um caso de destaque: uma obra


baseada em trabalho de campo com longa e intensa observação
participante, com conhecimento da língua local e escrita à luz das
correntes antropológicas mais sofisticadas da sua época. O detalhe e a
acuidade com que estuda instituições como as vicinalidades, os xarás ou
as facções políticas continuam ainda hoje a ser modelares da prática
etnográfica em qualquer lugar do mundo. Desde então, não só a guerra
civil moçambicana veio alterar profundamente a sociedade rural, como
também as ocasiões para a realização de obras antropológicas com este
tipo de empenho e profundidade não tem ocorrido (Cabral 2009: 23).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
O uso dos métodos de pesquisa antropológica junto das pessoas como
pesquisador expôs Webster à exploração directa dos trabalhadores
negros pelo governo e pelo mundo de negócios. Isto levou-o a integrar a
sua crítica académica às políticas públicas governamentais sul-africanas
com o activismo político da luta anti-apartheid
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).

A reputação de David Webster como antropólogo cresceu rapidamente


tanto dentro como fora da África do Sul. Em 1976, David foi convidado a
leccionar por dois anos na Universidade de Manchester, liderando
Departamento de Antropologia. Em 1978 ele retornou para a
Universidade de Wits. Contudo, foi a detenção de alguns estudantes em
1981, em particular Barbara Hogan, que catapultou David para uma
intensa actividade política que acabou levando ao seu assassinato.
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).

Assim, nos anos 80, Webster era muito activo no movimento anti-
Apartheid, especialmente para a Detainees’ Parents’ Support Committee
(DPSC), uma organização advogando a libertação dos presos políticos
mantidos sem julgamento na África do Sul (wikipedia). Ele ficou
conhecido por organizar encontros sociais conhecidos como “David
Webster tea parties”, cujo objectivo era de encontrar formas criativas e
inteligentes para apoiar a luta de libertação dos detidos. Procurava
juntar as famílias dos detidos para partilhar informação relevante de
modo a obter novidades e obter rastos dos detidos e desaparecidos.
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).

Webster esteve interessado na questão da trauma psicológica e tortura


usada sobre os detidos pelas forças de defesa sul-africanas durante os
seus interrogatórios. Junto com a sua parceira Maggie Friedman, ele
escreveu um relatório acerca da repressão durante o estado de
emergência. O seu trabalho expos a intensificação do estado de
repressão e como é que os movimentos de libertação estavam
encontrando novos e criativos métodos de resistência. Como resultado,
muitos activistas anti-apartheid interagiam com Webster.
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).

A 1 de Maio de 1989, cerca de nove meses antes da libertação de Nelson


Mandela, Webster foi morto a tiro à porta da sua casa na Eleanor Street,
em Troyeville, Johannesburgo, onde ele vivia com a sua parceira Maggie
Friedman. Os assassinos de Webster estavam ao serviço da Civil
Cooperation Bureau, uma agência clandestina do então estado sul-
africano do apartheid. O esquadrão de assassinos foi pago 40 mil
Randes na altura pela assassínio de Webster. Ferdi Barnard, o homem
que puxou o gatilho da espingarda usada viria a ser julgado e

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
considerado culpado em 1998 e condenado a duas penas de prisão
perpétua mais 63 anos de cadeia por um número de crimes, incluindo o
assassinato de Webster. Milhares de pessoas assistiram ao funeral de
Webster na St Mary’s Anglican Cathedral (wikipedia).

Quando foi assassinado, provavelmente era mais conhecido pelo seu


activismo político e pelas intervenções escritas que produziu como
testemunho contra as injustiças resultantes do sistema do apartheid do
que pelos seus textos académicos. Mas estes estavam longe de serem
irrelevantes. Também eles revelam uma amplitude admirável, dos artigos
antropológicos sobre a terminologia de parentesco ou as estratégias
matrimoniais e a vida doméstica entre os chopes e os tsongas Tembe,
por um lado, a textos sobre proletarização, capital e classes, nutrição e
doença ou a crise de desemprego no Soweto, por outro (James 2009:
429).

Formado na antropologia estrutural–funcionalista, David Webster julgou


esta abordagem voltada para a descendência inadequada para explicar o
carácter variável e flexível da sociedade chope. Como o livro mostra,
David começou, em vez disso, a aplicar quadros de análise resultantes
da Escola de Manchester, enfatizando a transacção e a estratégia. Mas,
pouco depois de ter concluído o doutoramento em 1976 e de ter
assumido o seu primeiro emprego fixo como docente na Universidade de
Witswatersrand, cedo se viu exposto a uma alternativa muito mais
radical. Ironicamente, o seu primeiro contacto directo com Manchester,
quando se mudou com Glenda para a Grã-Bretanha e leccionou no
Departamento de Antropologia daquela universidade durante dois
períodos consecutivos entre 1976 e 1978, em vez de estimular o seu
interesse pela análise transaccional, marcou o início do seu
distanciamento das teorias e técnicas da antropologia. Foi então
influenciado por sociólogos que aplicavam teorias marxistas, como Peter
Worsley, e pelo trabalho de historiadores sociais como E.P. Thompson
(James 2009: 431).

Profundamente influenciado por um ambiente académico em que as


experiências da classe trabalhadora e os efeitos do capitalismo e da
industrialização predominavam, regressou à África do Sul e à sua
actividade docente na Wits. A forma como ensinava, recorrendo a
chavões do cânone marxista, alguns dos quais eram proibidos na África
do Sul naquele período, informava – e reflectia – tendências sul-africanas
cada vez mais radicais. E as suas publicações sobre os chopes
começaram a reflectir preocupações semelhantes, manifestando um
interesse crescente na sua proletarização e incorporação nas fileiras da
mão-de-obra migratória empregada nas minas de ouro da África do Sul
(James 2009: 431).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Os interesses de David foram se afastando gradualmente das “cidades-
satélites” do trabalho migratório para se aproximarem das ‘metrópoles”
sul-africanas, em particular do Witwatersrand, em cuja universidade
continuava a ensinar. Começou a produzir uma serie de textos curtos,
que poderão ser considerados mais jornalísticos, cujo principal objectivo
era demonstrar as falhas do apartheid na África do Sul, do seu sistema
de saúde ou do provimento alimentar. Mas David continuou interessado
em Moçambique, onde viviam então muitos membros do Congresso
Nacional Africano e do Partido Comunista da África do Sul, alguns deles
na condição de exilados. Tanto as ligações de David em Moçambique
como o carácter radical da sua transformação enquanto vivia na Grã-
Bretanha alimentaram a especulação de que, a dado momento, teria sido
recrutado para o Umkhonto we Sizwe do ANC ou do SACP, ou mesmo
para ambos. Foi aproximadamente na altura em que regressou à África
do Sul que Ruth First, membro do SACP, escreveu a David manifestando
interesse no seu texto sobre o colonialismo, o subdesenvolvimento e o
trabalho migratório em Moçambique e pedindo-lhe ajuda a respeito de
fontes para o livro que então preparava sobre um tema semelhante, mais
tarde publicado como Black Gold (James 2009: 432).

A tese de doutoramento de Webster, que deu origem a sua obra A


Sociedade Chope: Indivíduo e aliança no Sul de Moçambique - 1969-1976,
ficou muito tempo sem ser publicada, pois durante cerca de uma
década, David virou-se contra o trabalho académico e opôs-se
explicitamente a que o seu trabalho fosse publicado. Nos últimos anos
da sua vida, porém, retomara já os seus velhos interesses antropológicos
e chegara até a escrever artigos baseados num novo estudo de terreno. O
seu assassínio teve mais esse lado trágico de cortar o reinício da sua
obra antropológica (Cabral 2009: 23).

Em 1992, a Universidade de Wits baptizou uma nova Residência de


Estudantes em memória de David Webster. No 20º aniversário da sua
morte a Cidade de Johannesburgo baptizou o então Bloemnhof Park em
Troyeville para David Webster Park em sua honra.
(http://www.sahistory.org.za/people/david-joseph-webbster).
Leituras adicionais

Cabral, João de Pina. 2009 “Prefácio do editor” in David J. Webster A


Sociedade Chope: Indivíduo e aliança no Sul de Moçambique – 1969-1976.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais pp. 21-28

James, Deborah. 2009 “Posfácio” in David J. Webster A Sociedade


Chope: Indivíduo e aliança no Sul de Moçambique – 1969-1976. Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais pp. 429-439

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Webster, Glenda. 2009 “Dossier Fotográfico” in David J. Webster A
Sociedade Chope: Indivíduo e aliança no Sul de Moçambique – 1969-1976.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais pp. 417-418

GERHARD LIESEGANG E A ETNO-HISTÓRIA DOS CHANGANES

Gerhard Liesegang nasceu a 2 de Outubro de 1940 em


Bromberg/Bydgoszcz, uma cidade actualmente na Polónia, numa região
presentemente chamada Kujawy. Bromberg, situada perto de um
pequeno rio, Brahe, está pelo menos 200km mais a leste que Frankfurt e
tinha sido ocupado pela Alemanha Nazi em 1939 (Setembro) depois do
ataque nazi à Polónia e a divisão deste país conforme um tratado com a
União Soviética.

Em 1959 ingressou na Universidade de Colónia estudando antropologia,


pré-história, arqueologia clássica e história de arte, e mais tarde
sociologia. Assim, de 1959 a 1964 estudei em Colónia, Berlim-Oeste
(Universidade Livre em Dahlem) e Londres.

A partir de 1963 começou a escrever a sua tese de doutoramento em


Antropologia, sob supervisão de Isaac Schapera, na London School of
Economics. Foi Schapera que lhe orientou para pesquisar sobre
Moçambique, uma área que até então ele considerava desconhecida.
Liesegang fez o trabalho de arquivo em Londres e Lisboa durante os anos
de 1964, 1965 e 1966, escrevendo depois a tese de 1964 a 66 na
Alemanha, em Colónia. Assim, a primeira publicação saiu em 1966,
baseada em trabalho de arquivo e interesses na História da Etnografia
por Jorge Dias. Teve apoio na reformulação do português por parte de
Maria Margarida Oliveira.

Em Londres, Liesegang teve ainda oportunidade de frequentar o


seminário do antropólogo social Raymond Firth, as aulas de Robin Fox.
Aproveitou ainda um seminário da SOAS, aonde estava Phillip Gulliver
entre os africanistas, e do University College com Mary Douglas ainda
quase jovem e Daryll Forde.

Liesegang fez o seu primeiro trabalho de campo etnográfico-antropológico


na Espanha, em Guadalupe em 1968, com um grupo de estudantes
depois de excursões que lhe tinham levado à Jugoslávia (Croácia,

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
Montenegro e Kosovo) e Grécia (1960), Suécia e Noruega (ca. 1961).

O trabalho de campo em Moçambique havia sido preparado com visitas


para estudar documentos de arquivo em 1968 em Genebra (Diários de
Georges Louis Liengme) e Lisboa (Mapas do Centro de Estudos de
Cartografia Antiga).

Em Moçambique fez investigação de campo e de arquivo em 1969 e 1971,


viajando com o geólogo Rudolf Förster em 1969 até Nova Sofala e à Ilha
de Moçambique, passando por Morrua e Nampula. E em 1971
novamente até Nova Sofala andando na zona costeira desde Inhambane e
para Espungabera, Mapungwana e Mandlakazi vindo de Salisbury
(Harare) para aonde tinha viajado de carro através da África do Sul.

Em 1977 Gerhard Liesegang começou a trabalhar na Universidade


Eduardo Mondlane, leccionando História de Moçambique e História de
África nas Faculdades de Letras e Educação, História Económica de
Moçambique na Faculdade de Economia, etc.

Em 1978 efectuou visitas de campo à província de Gaza (Alto Changane)


onde entrou em contacto com José Fialho Feliciano, que também tinha
convidado Alexandrino José.

Desde então, a vida académica de Liesegang foi sempre caracterizada


pela docência e investigação em Moçambique, entre a Faculdade de
Letras (Departamento de História e DAA) e o Arquivo Histórico de
Moçambique. Em 2007 foi nomeado Director Adjunto para áreas de
Investigação e Extensão da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da
UEM, Director interino e depois adjunto do CAP (Centro de Avaliação de
Políticas da Faculdade de Letras e Ciências Sociais) em 2008.

4. PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DOS MISSIONÁRIOS CATÓLICOS NO


CONTEXTO DO CRISTIANISMO MODERNO

Contrariamente ao período anterior, no período que vai do Estado Novo à


proclamação da Independência assiste-se a um crescimento na produção
antropológica feita por missionários católicos. A evangelização católica que
ficara virtualmente paralisada no período anterior, conhece neste período uma
mudança que viria com o novo governo de Salazar, o qual concluiu uma
Concordata com a Santa Sé, em 1940. O Acordo Missionário apenso a essa
concordata renovou praticamente o padroado real. Este acordo estendia o
apoio do governo a todas as sociedade missionárias católicas e ao seu trabalho

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
educacional, mas obrigava-as a ter um superior português e a cooperar na
política de assimilação dos africanos à cultura portuguesa (Baur 2014: 347).

O novo clima atraiu algumas sociedades missionárias: Consolata,


Combonianos, Padres Brancos. Em conjunto com estas congregações vieram
Franciscanos, Capuchinhos e Jesuítas portugueses. Exceptuando as
províncias do Sul de Moçambique, o trabalho de evangelização teve de começar
a partir do zero (Baur 2014: 347).

Muitos dos missionários que viriam a trabalhar em Moçambique tinham


alguma preparação etnográfica. Por exemplo, em 1948, por ocasião da
celebração dos 50 anos da presença dos Missionários Franciscanos em
Moçambique, António de Almeida (1948: 76) escreveu o artigo “A preparação
etnográfica dos Missionários Franciscanos Portugueses” onde retrata a
experiência dos alunos do Seminário da Luz daquela congregação, referindo
que

“[...] nos anos que decorreram entre 1930 e 1940, vários Missionários
Franciscanos frequentaram as aulas de Etnografia e Etnologia coloniais,
Política Indígena, Higiene tropical e de Construções e Topografia da
Escola Superior Colonial. [...] De não menor importância social e afectiva
se revestiu a passagem dos Franciscanos pela Escola Superior Colonial.
É que os laços amigáveis, criados e mantidos, entre eles e os seus
condiscípulos leigos, futuros funcionários do Ultramar, têm produzido os
melhores frutos: nas regiões coloniais mais distantes, a cada passo, se
têm encontrado e auxiliado mutuamente, na espinhosa empresa a que se
hipotecaram, uns e outros possuídos e irmanados no mesmo espírito de
missão”.

Almeida (1948: 77) aponta que o plano de matérias de Etnografia e de


Antropologia Física que era leccionado no Seminário da Luz estava dividido em
duas partes, em que primeira incluía:

A Etnografia, que versava sobre aspectos como alimentação, habitação,


vestuário e actividade económica;

A Animologia, que debruçava-se sobre jogo de entreténs, nomeadamente jogos


infantis, de adultos e desporto, Belas Artes, ciência, linguagem, religião e
magia; e

A Sociologia, que tratava das questões de família e de sociedade.

A segunda parte era dedicada a Antropologia Física, onde eram abordados


aspectos como instruções e instrumental antropométricos, caracteres
morfológicos, caracteres merísticos, caracteres fisiológicos, caracteres
psicológicos e caracteres patológicos.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
É neste novo quadro, que muitos missionários produziram e publicaram
estudos de natureza antropológica sobre os diversos grupos etno-linguísticos
de Moçambique, cobrindo as regiões norte, centro e sul do país.

4.1. PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DE MISSIONÁRIOS NA ZONA NORTE


DE MOÇAMBIQUE

Alguns dos missionários que trabalharam e publicaram sobre a região Norte de


Moçambique, podem se apontar, entre outros, os nomes dos padres católicos:

Francisco Manuel de Castro, que publicou “Contos Macuas” e “Origem do


nome da ilha, cidade, distrito e província de Moçambique” na revista Trabalhos
do 1º Congresso Nacional de Antropologia Colonial publicado em 1934.

Luís Wegher que produziu a obra Um Olhar Sobre o Niassa, editada em dois
volumes. Esta obra resulta de uma convivência do sacerdote de 55 anos de
trabalho na província do Niassa. Trata-se de uma obra que se focaliza sobre os
vários grupos etno-linguísticos do Niassa, mas com maior incidência sobre os
Yao.

Francisco Lerma Martinez que conduziu uma pesquisa sobre a cultura do


povo macua na província do Niassa. Lerma Martínez viveu cerca de 14 anos
entre os macuas, no período compreendido entre 1971 a 1985. Dessa
experiência missionária, na qualidade de estudioso e missionário
comprometido com a sua fé cristã e com o desenvolvimento do povo a quem
servia, o Padre Lerma entendeu prosseguir os seus estudos universitários com
uma pesquisa sobre o povo macua, a sua sabedoria e os seus valores, para a
obtenção do grau de doutor na Universidade Gregoriana de Roma, sob a
orientação científica dos Dr. Ary A. Roest Crollius, Dr. Adam Wolanin, e da
colaboração do africano Dr. Londi Boka de Mpasi, todos eminentes professores
jesuítas, peritos em missionologia e antropologia (Mazula 2009: 15).

Essa tese viria a ser publicada em forma de obra sob o título O Povo Macua e a
sua cultura: análise dos valores culturais do povo macua no ciclo vital – Maúa,
Moçambique 1971-1985. As principais fontes utilizadas na obra são de Maúa,
um distrito da província de Niassa, onde o autor teve no povo a sua primeira
fonte, participando no seu dia-a-dia, bem como em alguns professores-
catequistas. Para além de Maúa, Lerma trabalhou no distrito de Cuamba
(1974-1980), na zona habitada pelos macuas. Trabalhou ainda noutros
distritos macuas do Niassa, nomeadamente Marrupa, Cuamba, Mecanhelas,
parte de Mandimba e parte de Majune. Um terceiro grupo de fontes de
informação é constituído por pessoas não moçambicanas que aqui trabalharam
e estudaram a língua e a cultura macua (Martínez 2009: 23).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
O trabalho está dividido em três partes. A primeira apresenta uma visão
geográfica e humana de Maúa. Em três capítulos retrata Maúa (Cap I), o povo
macua, sua formação, história e cosmovisão (cap. II), a organização social
(parentesco, filiação) e política (cap. III). A segunda parte, dividida em seis
capítulos, focaliza-se no ciclo vital: o nascimento (cap. I), a iniciação masculina
(cap. II), a iniciação feminina (cap. III), o casamento (cap. IV), a doença e os
ritos de cura (cap. V), a morte e os ritos fúnebres (cap. VI). A terceira parte
trata da dimensão religiosa, como o alicerce de todo o ciclo e de todos os
valores culturais, contém três capítulos, nomeadamente o Ser Supremo (cap. I),
os intermediários (cap. II), e o sacrifício tradicional (cap. III) (Martínez 2009:
24).

Referências bibliográficas

Martínez, Francisco Lerma. 2009. O Povo Macua e a sua cultura: análise dos
valores culturais do povo macua no ciclo vital – Maúa, Moçambique 1971-1985.
Maputo: Paulinas Editorial

Mazula, Brazão. 2009. “Apresentação” in Francisco Lerma Martínez. O Povo


Macua e a sua cultura: análise dos valores culturais do povo macua no ciclo vital
– Maúa, Moçambique 1971-1985. Maputo: Paulinas Editorial pp. 15-18

4.2. PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DE MISSIONÁRIOS NA ZONA CENTRO


DE MOÇAMBIQUE

Na região Centro de Moçambique, há outros exemplos de produção


antropológica feita por missionários, como por exemplo os padres católicos:

António Alves da Cruz que publicou “Contribuição para o estudo do folclore


dos wanyungues da região do Zumbo” e “Notas sobre a língua ‘Chinsenga’
(Dicionário e gramática comparada com “o Chinyungue”)” na revista Trabalhos
do 1º Congresso Nacional de Antropologia Colonial publicada em 1934.

José Pampalk, antigo Padre Branco, autor das obras Nzerumbawiri –


Provérbios Sena: dinamizar o desenvolvimento comunitário valorizando a
literatura oral; e Mphyanga? – Contos Sena: Lideranças, desenvolvimento
participativo e empoderamento das mulheres.

Pampalk começou os estudos moçambicanos nos anos 1961/62, embora tenha


chegado somente no início de 1963 à Missão de Murraça como um dos
chamados Padres Brancos. Continuou na Missão de Chemba a aprender a
sabedoria transmitida pelos mais idosos. Entre 1964 a 1966, Pampalk
trabalhou na Missão do Charre, em Mutarara. Entre 1967 a 1971 trabalhou

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
em Inhamízia, cidade da Beira, no Centro de Nazaré, altura em que os Padres
Brancos foram expulsos de Moçambique pelo regime colonial, por afirmarem o
direito dos povos à liberdade e se oporem à instrumentalização do cristianismo
contra esta liberdade. Passou depois 4 anos na Tanzania e regressou a
Moçambique em 1975, depois da proclamação da Independência nacional e foi
trabalhar em Inhaminga. Em 1977 deixou de ser padre e casou-se, mas
continuou em Maputo no Ministério da Educação e Cultura até inícios de
1985.

Fernando Pérez Prieto que realizou a pesquisa sobre os Elementos da


Gramática e Aspectos da Vida Social e Cultural dos Senas. O Padre Prieto,
missionário de África (Padres Brancos), nasceu em Córdoba, Espanha, a 10 de
Janeiro de 1939. Estudou na Espanha e na Bélgica e chegou a Moçambique
em Dezembro de 1965. Trabalhou como missionário na província de Sofala,
com breves intervalos em Tete e em Maputo (Seminário Maior da Matola). Foi
expulso do país pelo regime colonial em 1971, junto com os outros Padres
Brancos. Regressou ao país em Junho de 1975, para Moçambique já
independente (Prieto 2015: 1).

Assumiu vários cargos pedagógicos como o de Professor no Seminário do


Zóbwe e na Escola Secundária Samora Machel, da Beira. Também
desempenhou o cargo de Vigário Geral da Arquidiocese da Beira. Conseguiu,
por cinco vezes, voltar por uns anos a trabalhar na Missão-Paróquia de
Murraça, no distrito de Caia. Este facto de mergulhar, periódica e
prolongadamente no terreno principal da língua sena, permitiu-lhe adquirir e
aperfeiçoar, cada vez mais, os conhecimentos da língua e da cultura Sena
(Prieto 2015: 1).

A obra Elementos da Língua e Cultura do Povo Sena integra seis fascículos e


oferece muito mais do que um dicionário e uma gramática da língua Chi-Sena.
Ela apresenta no 3º Fascículo as “Tradições Importantes do Povo Sena”
referentes às etapas mais significativas da existência humana, a partir da
concepção e do nascimento, passando pela juventude, pelo namoro e
matrimónio, até ao enterro. E este fascículo começa com o que é fundamental,
ao longo da vida toda: com a saúde – na medicina tradicional – e, assim,
contém uma lição maior ainda, para estudar pela medicina moderna. Esta
parte importantíssima da obra contém textos escritos, primeiro, em Chi-Sena
(não traduzidos, mas seguidos, depois, no fim, por apêndices em Portugues).
Estão baseados em estudos e recolhas feitas com a colaboração de anciãos, nos
anos de 1950 a 1965, por grandes missionários, como o falecido Padre Charles
Pollet, em Murraça, e o Padre Artur Bosmans em Chemba (Prieto 2015: 1-2).

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo
4.3. PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA DE MISSIONÁRIOS NA ZONA SUL DE
MOÇAMBIQUE

Na região Sul de Moçambique, o Padre católico Armando Ribeiro constitui um


exemplo de produção antropológica feita por missionários durante esse
período.

O Padre Armando Ribeiro, sacerdote da Congregação da Missão (Vicentino)


chegou a Moçambique a 1 de Setembro de 1951 e só regressaria a Portugal nos
finais de 1980 e viria a falecer a 12 de Março de 1981.

Colocado no distrito de Magude para trabalhar como professor no Seminário


Menor da Arquidiocese da então Lourenço Marques, o padre Armando Ribeiro
começou a dedicar-se ao estudo da língua changana. O legado do padre Ribeiro
inclui obras, entre outras, como Gramática Changana, o livro 601 Provérbios
Changanas, e Antropologia: Aspectos culturais do Povo Changana e a
Problemática Missionária.

Esta última obra está dividida em 5 partes, nomeadamente a primeira, que


trata da Antropologia, onde são apresentados conceitos básicos da disciplina,
bem como a história da tribo desde as origens até ao período mais recente; a
segunda, que examina a Lei Moral nos Povos Africanos; a terceira, que trata da
Alimentação; a quarta, que discute a Arte Médica e Magia; e a quinta, que
analisa a Morte.

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Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 3 – 2018 - Johane Zonjo

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