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TEMA II: A PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICA EM MOÇAMBIQUE NO

PERÍODO ENTRE A CONFERÊNCIA DE BERLIM E A IMPLANTAÇÃO DO


ESTADO NOVO (ANOS 30)

OBJECTIVOS:

 Identificar as linhas de produção antropológica que marcam este período;


 Identificar os principais representantes dessas linhas; e
 Compreender as temáticas e as metodologias utilizadas nessa produção
antropológica.

ÍNDICE:

1. Introdução

2. Produção Etnográfica Oficial: os Serviços de Negócios Indígenas e a


recolha de informação etnográfica em Moçambique

3. Produção Etnográfica Independente

3.1. Produção Etnográfica Independente de Militares, Antigos


Governantes e Exploradores

3.2. Produção Etnográfica Independente de Missionários Protestantes

 Henri-Alexandre Junod e a pesquisa sobre os Tsonga


 Yohanna Barnabé Abdallah e a pesquisa sobre os Yao
 Emily Dora Earthy e a pesquisa sobre os Ndaus de Sofala e
sobre as Mulheres Valenges de Inhambane
 Henri-Phillipe Junod e a pesquisa sobre os Chopes, Thongas e
Ndaus
 Columbus Kamba Simango e a colaboração com Franz Boas e
Melville Herskovits na pesquisa sobre os Ndaus

3.3. Produção Etnográfica Independente de Missionários Católicos


 Daniel da Cruz e pesquisa etnográfica em Gaza

Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 2 – 2018 - Johane Zonjo


1. INTRODUÇÃO

No período compreendido entre a Conferência de Berlim (segunda metade do


Séc. XIX) e a implantação do Estado Novo (anos 30) assiste-se à emergência de
duas linhas de produção antropológica em Moçambique, nomeadamente:

 Produção antropológica oficial, que é o conjunto da produção que era


do interesse das autoridades coloniais portuguesas e gozava do seu
patrocínio e encomenda. No caso concreto de Moçambique, essa
produção neste período é representada pela acção dos Serviços de
Negócios Indígenas; e

 Produção antropológica independente, onde encontramos trabalhos


antropológicos produzidos por iniciativa e vontade própria dos autores,
mas que de certa forma as autoridades coloniais portuguesas acabam
tirando proveito das suas contribuições, quer aceitando os resultados ou
rejeitando-os. Neste conjunto encontramos a produção feita por:
o Antigos governantes, militares e exploradores; e
o Missionários (protestantes e católicos).

2. PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA OFICIAL: OS SERVIÇOS DE NEGÓCIOS


INDÍGENAS E A RECOLHA DE INFORMAÇÃO ETNOGRÁFICA EM
MOÇAMBIQUE

A linha oficial procurou associar a questão da produção antropológica com a


missão da conquista colonial. A produção antropológica oficial durante este
período é escassa e reflecte a ideia da conquista colonial para a ocupação
efectiva. Destaca-se neste período a preocupação dos Serviços dos Negócios
Indígenas na recolha de informação etnográfica dos diferentes povos africanos
de Moçambique, através de questionários etnográficos.

O objectivo dessa recolha de informação etnográfica visava a codificação dos


usos e costumes dos africanos, desta feita com o propósito de não apenas evitar
conflitos mas sim de criar condições para dominar. Trata-se do início da
estruturação dos estudos etnográficos oficiais em Moçambique virados para a
legitimação da ocupação efectiva.

Um dos exemplos dessa acção é António Augusto Pereira Cabral que chefiou
os Negócios Indígenas em Moçambique durante 21 anos, de 1914 até 1935 e
que se dedicou bastante na liderança da recolha oficial da informação
etnográfica por meio de questionário etnográfico.

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O empenho de Pereira Cabral ajuda-nos a compreender, na sua essência, o
empenho das autoridades dessa nova era colonial em codificar os usos e
costumes. Esta reassunção das primeiras décadas do Século XX no interesse
dos usos e costumes, destinava-se a assegurar a manutenção de um estatuto
permanente – e, se possível, perene – de inferioridade dos africanos
colonizados, pois que, a não serem regulamentados esses usos e costumes, os
africanos, enquanto cidadãos, poderiam sentir-se tentados a reivindicar
regalias, direitos e deveres inscritos no Direito Civil e Criminal dos europeus
(Pereira 2001: 8).

O novo entendimento se situa longe daquele do legislador do decreto de 1869 e


mais perto das intenções, cerca de 20 anos depois afirmadas, dos legisladores
coloniais do período do Estado Novo, mesmo quando estes parecem recuperar o
princípio programático da contemporização (Pereira 2001: 8).

Antes de chefiar os Serviços dos Negócios Indígenas, António Augusto Pereira


Cabral foi Secretário Civil do Governo do Distrito de Inhambane entre 1908 e
1914. Durante aquele período, a sua acção de maior relevo foi, entre outros,
uma codificação dos usos e costumes do distrito que viria a ser publicado em
1910 com o título Raças, Usos e Costumes dos Indígenas do Districto de
Inhambane, que se apresenta como uma síntese do “saber acumulado” sobre a
matéria (Pereira 2001: 7).

Nesta obra nada de significativamente novo pode se encontrar nas suas


páginas, a não ser algumas reflexões esparsas sobre o entendimento da política
colonial, a administração dos “indígenas” e a imperiosidade dessa
“contemporização” com os usos e costumes, essas sim muito reveladoras dessa
nova mentalidade colonial anti-liberal (Pereira 2001: 7).

No quadro da sua acção à frente da Secretaria Civil do distrito de Inhambane, e


para a prossecução dos objectivos de regulamentação dos usos e costumes em
um novo “código de milandos”, Pereira Cabral redigiu e enviou a todos os
administradores de circunscrição do distrito um inquérito etnográfico de que,
até hoje, se desconhecem as respostas, embora seja de supor que se existiram
foram utilizadas em obra posterior do autor com o título Raças, Usos e
Costumes dos Indígenas da província de Moçambique.

Na introdução a esta obra de 1925, Pereira Cabral reconhece que o inquérito


etnográfico que elaborara em 1916 – enquanto Secretário dos Negócios
Indígenas junto do Governo-Geral em Lourenço Marques, cargo que ocupou
entre 1915 e 1925 – e que fizera distribuir por todos os distritos do norte da
Colonia, teve “muito pouco sucesso, pois raras foram as autoridades
administrativas que responderam” (Pereira 2001: 8).

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Só depois do fim do mandato de Augusto Cabral, em 1935, é que novos
questionários foram postos a circular, como o de 1937 sobre a escravidão
(Liesegang 2008: 314-315).

Um segundo exemplo de recolha de informação etnográfica é Francisco


Alexandre Lobo Pimentel que em 1927 publicou o Relatório sobre os usos e
costumes no Posto Administrativo de Chinga. Crê-se que essa obra é fruto da
influência de Pereira Cabral. Assim, aponta-se que foi provavelmente em 1924
que Francisco Pimentel recebeu em Muite a visita de Augusto Cabral, que lhe
transmitiu a noção [errada], possivelmente ganha em Inhambane, que a
população africana de Moçambique estava a diminuir, e talvez o incitasse a
dedicar-se à etnografia (Liesegang 2008: 314).

A obra de Pimentel aparece a contribuir para a história dos povos africanos.


Embora seja um testemunho bastante personalizado e descrevendo problemas
do momento, acabou omitindo outros. Algumas informações são erradas, mas
há certamente observações reconfirmadas por outras fontes, temáticas onde as
observações completaram as descrições e explicações de fontes orais e escritas.
Há também informações não confirmadas que parecem dignas de crédito
(Liesegang 2008: 320).

No que toca à história, informa sobre movimentações das populações macuas


que Pimentel pode observar entre 1915 e 1927. Estas observações são
provavelmente válidas em parte para o séc. XIX. Descreve uma estrutura
clânica aparentemente estável, mas uma população bastante móvel no interior,
mobilidade que tinha talvez contribuído para a homogeneidade linguística da
população macua da região (Liesegang 2008: 321).

O seu trabalho ilustra o dia-a-dia dentro da estrutura colonial numa certa fase
histórica do norte de Moçambique. A sua própria linguagem aproxima-se as
vezes daquela dos discursos de capatazes e de alguns colonos que ainda se
podiam ouvir nos anos 60 do século XX. Ela própria é parte de um contexto
colonial e em si um documento (Liesegang 2008: 321).

Uma considerável parte do trabalho é um discurso dentro da classe dominante


na qual havia vozes discordantes sobre o africano, sobre a maneira de
administrar etc.. Partilha muitos preconceitos, mas questiona outros
(Liesegang 2008: 321).

Um terceiro exemplo foi a publicação em 1928, pela Companhia de


Moçambique de uma obra semelhante a de Pimentel, cuja autoria foi de
Gustavo Bívar Pinto Lopes (1864-1944), um participante nas guerras de
ocupação, e que tinha preparado a obra em 1922-23, condensando
aparentemente respostas ao mesmo questionário (Liesegang 2008: 314).

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3. PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA INDEPENDENTE

3.1. PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA INDEPENDENTE DE MILITARES,


ANTIGOS GOVERNANTES E EXPLORADORES

Com efeito, Loforte (1987: 62) aponta que na literatura dos finais do Séc. XIX
encontramos relatórios de descrições de teor etnográfico feitos por militares e
governantes durante o período de ocupação efectiva e no surgimento da sua
acção nas “campanhas de pacificação”. Nota-se nesta altura uma preocupação
em substituir as autoridades tradicionais por novas estruturas que sirvam os
interesses da nova administração.

Essas informações são apresentadas em forma de comunicações em


congressos, ou em obras patrocinadas pelo Ministério da Marinha e do
Ultramar.

Entre os exemplos dessas comunicações, podem se apontar:

AYRES D’ORNELLAS E VASCONCELOS E A COMUNICAÇÃO SOBRE


AS RAÇAS E LÍNGUAS DOS INDÍGENAS DE MOÇAMBIQUE

Aires de Ornelas e Vasconcelos nasceu no Funchal, Santa Cruz, São


Lourenço, Camacha, a 5 de Março de 1866. Concluídos os estudos
secundários frequentou os estudos preparatórios ministrados na Escola
Politécnica de Lisboa e ingressou no curso de Estado-Maior da Escola do
Exército. Concluiu o curso em 1889, ano em que foi
despachado Alferes da Arma do Estado-Maior do Exército Português.

Foi promovido a Tenente em 1892 e em 1895, a convite do então Capitão


do Estado Maior Eduardo Costa, foi enviado para Lourenço Marques,
integrado na expedição liderada por António Enes que naquele ano foi
enviada para a África Oriental. Em Moçambique, tomou parte nas
operações contra o régulo vátua Gungunhana, destacando-se na
preparação das colunas que tomaram Marracuene e Inhambane e tendo
os seus serviços sido classificados, oficialmente, de relevantes. Revelou-
se um militar exímio, alcançando grande reputação no Exército e junto
da opinião pública. Destacou-se no combate de Marracuene pela sua
valentia e sangue frio, qualidades que confirmou nos combates
de Coolela.

Essas qualidades fizeram com que Mouzinho de Albuquerque, nomeado


para o cargo de governador-geral de Moçambique, demonstrasse depois
grande estima e consideração por Aires de Ornelas, o que viria a resultar
na sua nomeação em 1896 para Chefe do seu Estado-Maior. Mouzinho

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de Albuquerque refere-se a Aires de Ornelas como sendo o oficial mais
completo que tinha conhecido, possuindo todas as qualidades de oficial de
cavalaria de campanha e de oficial de Estado-Maior. Estes louvores
valeram-lhe a promoção ao posto de Oficial Capitão do antigo Corpo de
Estado Maior no ano de 1897.

A convite de João de Azevedo Coutinho, ao tempo Governador-Geral de


Moçambique, em 1905 desempenhou o cargo de Governador do Distrito
de Lourenço Marques, cargo onde se manteve por apenas oito meses.
Tendo regressado a Lisboa, colaborou em diversos periódicos, assumindo
a direcção do Diário Nacional, cargo que manteve durante alguns anos.

Quando em Maio de 1906 o Partido Regenerador-Liberal, liderado


por João Franco, foi chamado por D. Carlos I para formar governo, coube
a Aires de Ornelas o cargo de Ministro de Estado e Secretário de Estado
da Marinha e Ultramar. Nestas funções, em 1907, acompanhou S. A. R.
o Príncipe Real D. Luís Filipe na sua viagem às colónias da África,
visitando Cabo Verde, Angola e Moçambique.

Em 1901 Aires D’Ornellas apresentou a comunicação Raças e Línguas


em Moçambique no Congresso Colonial Nacional.

EDUARDO DO COUTO LUPI E A BREVE MEMÓRIA DE ANGOCHE

Eduardo do Couto Lupi nasceu em Lisboa em 1874. Foi oficial da Armada, foi
capitão-mor de Angoche de 4 de Julho de 1903 a 5 de Dezembro de 1905.
Governador colonial, escritor, académico correspondente da Academia
Portuguesa de História, director da Biblioteca e Museu da Marinha.

Eduardo Lupi foi autor da obra Angoche: breve memória sobre uma das
capitania-móres do Districto de Moçambique. Esta obra está organizada em 8
capítulos, assim distribuídos:

 Capítulo I: Aspecto geral


 Capítulo II: Descrição pormenorizada
 Capítulo III: Antropologia do Macua
 Capítulo IV: Etnologia do Macua
 Capítulo V: Etnografia do Macua
 Capítulo VI: Lex Macua: Secção 1ª – Organização tribal; Secção 2ª –
Direito penal; Secção 3ª – Normas de Direito civil; Secção 4ª – Normas de
direito de propriedade; devolução da propriedade
 Capítulo VII: Influência Islâmica
 Capítulo VIII: Ocupação portuguesa

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3.2. PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA INDEPENDENTE DE MISSIONÁRIOS
PROTESTANTES

No conjunto da produção etnográfica independente dos missionários entre a


Conferência de Berlim e a implantação do Estado Novo, serão os estudos dos
missionários protestantes que irão dominar este período. Com efeito, um pouco
por toda a África, durante meio século (1792-1842) os missionários
protestantes estiveram praticamente sós em campo, e os evangelizadores
protestantes foram muito mais numerosos do que os católicos. A principal
razão disto é que no século anterior, a Igreja Protestante tinha experimentado
um grande movimento de renovação, enquanto que a Igreja Católica tinha
sofrido um sério declínio. O movimento protestante combinava
“evangelicalismo” (viver de acordo com o Evangelho) com o “evangelismo”
(pregação do Evangelho) (Baur 2014: 103).

A penetração de missionários protestantes em Moçambique iniciou no Sul, nas


actuais províncias de Maputo, Gaza e Inhambane, tendo ainda atingido alguns
núcleos da Zambézia, Tete e da região a volta do Lago Niassa (Gonçalves 1960:
123). Do conjunto dos missionários protestantes que trabalharam por estas
terras, destacam-se os trabalhos antropológicos de:

 Henri-Alexandre Junod, missionário da Missão Suíça que


trabalhou na região Sul de Moçambique, em Ricatla, no actual
distrito de Marracuene;
 Yohanna Barnabé Abdallah, pastor da Missão de Unangu que
trabalhou na actual província de Niassa sobre os Yao;
 Emily Dora Earthy, missionária da Missão Inglesa que escreveu
sobre os Ndaus de Sofala (da actual Província de Sofala) e sobre as
mulheres valenges (da actual província de Inhambane); e
 Henri-Phillipe Junod, missionário da Missão Suíça, filho de Henri-
Alexandre Junod e que trabalhou sobre os Chopes, Tsongas e
Ndaus.
 Columbus Kamba Simango, missionário da American Board, e a
colaboração com Franz Boas e Melville Herskovits na pesquisa sobre
os Ndaus.

HENRI-ALEXANDRE JUNOD E O ESTUDO DOS TSONGA DO SUL


DE MOÇAMBIQUE

Henri-Alexandre Junod nasceu em Neûchatel, um cantão da parte


francesa da Suíça, em 1863, e viveu desde 1889 na região sul de
Moçambique (Rikatla (1889-94) e Lourenço Marques (1894-96)). Sua

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ida para Ricatla, região da então “África Oriental Portuguesa”, ao
norte de Lourenço Marques (actual Maputo), deu-se como parte de
suas actividades como missionário da Igreja Presbiteriana de
Moçambique, geralmente conhecida como Missão Suíça (Feliciano
1996: 15).

Esta Missão, que havia iniciado a sua actividade na África Austral em


Spelonken (Transvaal) em 1875, expandiu-se rapidamente para leste,
constituindo um conjunto de bases em Moçambique – Magude (1881),
Rikatla (1887), Lourenço Marques (1889), Antioka (perto de Magude,
1890) e Mandllakazi, 1893) – animadas por um pequeno grupo de
missionários brancos, P. Bethoud, P. Loze, A. Grandjean, H.A. Junod
e G. Liengme (Feliciano 1996: 15).

Era uma equipa diversa mas coesa, bem preparada, com


conhecimentos em diferentes domínios (Geografia, Linguística,
medicina) e muito motivada para o trabalho. De facto, embora o seu
objectivo fosse converter a população africana ao cristianismo, no
pressuposto da inferioridade da religião local, sempre revelou grande
solidariedade com os africanos e uma avidez especial em conhecer a
cultura e a espiritualidade negras, para nelas integrar o cristianismo.
Por isso, delegava grandes responsabilidades a animadores locais, e a
comunicação oral e escrita com pessoas era realizada nas línguas
africanas (Feliciano 1996: 16).

Este tipo de experiência, acrescido de reparos e críticas feitas às


práticas do colonialismo português, comparado com as do inglês, e de
uma tradicional incompreensão mútua entre católicos e protestantes,
acabou por gerar grandes complicações entre os missionários e as
autoridades coloniais, sobretudo no contexto da guerra que envolveu
completamente, entre 1894-95, o espaço da Missão (Feliciano 1996:
16).

Quase todos os discípulos da Missão eram, desta forma, súbditos dos


chefes em guerra. Nesse contexto, os missionários aceitaram o desafio
de se manterem nos seus lugares de trabalho, procurando não tomar
partido, mas respeitando as opções dos seus fiéis, assumindo
inclusive as tentativas de mediação entre as partes envolvidas sempre
que foram solicitados, ainda que nenhuma tenha sido bem sucedida
(Feliciano 1996: 16).

Com o evoluir da guerra, as velhas suspeitas de que os missionários


seriam agentes da Inglaterra, defensores de teorias niveladoras,
cúmplices no conflito e na incitação à revolta, transformaram-se em
acusação. Vários jornais, opinião pública e autoridades coloniais

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exigiram mesmo a expulsão de Liengme, que partiu ainda em 1895, e
de Junod, que acabou por se ir embora no início de 1896, tendo
voltado a Lourenço Marques em 1907, onde de novo residiu entre
1913 e 1920 (Feliciano 1996: 16).

O conflito entre a Missão e as autoridades portuguesas foi enorme e


teria tido outras consequências, caso não tivesse havido alguma
contenção por parte do Governador-Geral António Ennes e uma forte
intervenção dos advogados suíços que constituíam a defesa de
Portugal no Tribunal de Genebra, no litígio com ingleses e americanos
acerca do Caminho de Ferro de Lourenço Marques – Pretória. Ainda
em carta de 15 de Janeiro de 1898 dirigida ao Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar de Portugal, Mouzinho
de Albuquerque reafirma que aqueles dois missionários deveriam ter
sido fuzilados por crimes de guerra devido a inteligências com o
inimigo e de promoção de desobediência a Portugal, defendendo a
igualdade entre brancos e negros e o direito à autonomia dos
africanos (Feliciano 1996: 16-17).

Foi neste ambiente e já em 1895 que Junod teve contacto com a


Antropologia, então emergente, através de James Bryce, historiador
britânico, professor em Oxford, que de visita a Lourenço Marques lhe
falou dos estudos desenvolvidos pelo seu colega James Frazer e o
motivou a colaborar no projecto de Antropologia que estava a
desenvolver. Frazer situava-se claramente na tradição evolucionista e
dava particular importância às dimensões espirituais (totemismo e
realeza sagrada) de diferentes povos que procurava comparar
(Feliciano 1996: 17).

Junod, com a ajuda dos questionários formulados pelo antropólogo


inglês, envolveu-se profundamente na investigação sobre diferentes
comunidades do Sul de Moçambique e Transvaal e, como resultado
dos seus estudos, publicou grande quantidade de textos de enorme
profundidade e importância, dos quais se podem realçar os seguintes:

 La Tribu et la Langue Thonga (1896);


 Les Ba-Ronga (1898);
 “Les conceptions physiologiques des Bantu Sud-Africains et leurs
tabous” (1910); e
 Usos e Costumes dos Bantus, a monografia em dois volumes,
que Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da moderna
Antropologia, definiria mais tarde como “o melhor livro de
Etnografia” (Feliciano 1996: 17).

A primeira edição em inglês, Life in a South African Tribe, foi

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publicada em 1913 e traduzida para português em 1917 pela
Sociedade de Geografia de Lisboa. Outra versão corrigida foi editada
em francês (1936) com tradução portuguesa em 1944, reeditada em
1974 e a terceira edição em 1996, pelo Arquivo Histórico de
Moçambique (Feliciano 1996: 17).

De 1921 a 1934, Junod se estabeleceu definitivamente na Suíça onde


viveu sua maturidade intelectual, participando dos debates
académicos tanto através de publicações em revistas quanto como
professor visitante em algumas universidades europeias. É nesse
período que revisa sua monografia e publica a 2ª edição actualizada
em 1927. Após sua morte, em 1934, seus restos mortais foram
levados para Ricatla (Gajanigo 2006: 173).
Leituras adicionais:

Feliciano, José Fialho. 1996. “Prefácio”. In Henri A. Junod. Usos e


Costumes dos Bantu (Tomo I). Maputo: Arquivo Histórico de
Moçambique pp. 15-20

Gajanigo, Paulo Rodrigues. 2006. “O Sul de Moçambique e a História


da Antropologia: Os usos e Costumes dos Bantos, de Henri Junod”.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP.

Ngoenha, Severino E. 2011. “A actualidade de Junod” in Severino E.


Ngoenha & José P. Castiano Pensamento Engajado: Ensaios sobre
Filosofia. Maputo: Editora EDUCAR, Universidade Pedagógica, pp. 97-
110

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YOHANNA BARNABÉ ABDALLAH E A PESQUISA SOBRE OS YAO

Nos documentos consultados não há nenhuma indicação sobre a


idade e data de nascimento de Yohanna Barnabé Abdallah. As
fontes missionárias e o próprio Abdallah até são divergentes a
respeito de quem foi o seu pai (Liesegang 1988: 16). A data de
nascimento que é apresentada por Liesegang (1988: 14) é de cerca
de 1870.

Em 1887 Yohanna decidiu enveredar pela carreira eclesiástica. A


Missão (anglicana e britânica) das Universidades na África Central
(U.M.C.A.) para a qual entrou, tinha o seu centro regional em
Zanzibar desde 1864, onde possuía uma escola central em
Kiungani, na mesma ilha, onde também havia uma imprensa. Nesta
missão, o acolhimento que teve foi provavelmente melhor, porque
nos anos 80 fizeram-se muitos esforços para recrutar africanos
livres (não escravos) para a missão. A missão não tinha encontrado
muitos adeptos em Zanzibar e na zona costeira, onde o meio era
fortemente islamizado. Pelo contrário, ela era aceite em certas zonas
do hinterland como Chiwata, Chitangali, Masasi e Newala (Liesegang
1988: 18-19).

Abdallah estudou algum tempo em Kiungani, onde funcionava


também uma espécie de colégio teológico e, em 1893-1894,
trabalhou ali como missionário. A sua área de trabalho era o
subúrbio de Ngambo, nos arredores da cidade de Zanzibar. Foi
escolhido porém para trabalhar numa missão do interior, na actual
província de Niassa, que tinha sido fundada em meados de 1893.
Em 12 de Agosto de 1894, pouco antes de partir, Abdallah foi
ordenado diácono. Saiu de Zanzibar com uma formação que devia
corresponder a cerca de dez anos de ensino formal, falava e escrevia
fluentemente o inglês e também o swahili, e tinha conhecimentos de
grego e árabe, além do Yao que parece ter sido a língua da sua
juventude. A sua experiência em Zanzibar, que era, à época, o
centro cultural e mercantil da região, deve lhe ter dado bastante
prestígio junto das populações do interior (Liesegang 1988: 19).

Depois da sua ordenação em Zanzibar, Abdallah chegaria a Unango


em finais de 1894 ou no começo de 1895. A 6 de Março de 1898,
Abdallah foi ordenado como padre (Liesegang 1988: 20; 22).

Yohanna Abdallah pertence a uma geração que recebeu toda ou


parte da sua educação antes da estruturação inicial do imperialismo
colonial (ca 1891-1907). Assim, talvez tenha visto a imposição do

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regime colonial como um processo inevitável, mas nem todos
concordaram depois com a transformação das relações sociais que
se seguiu. Muito provavelmente, contudo, ainda não conseguiriam
perspectivar uma independência dos territórios que o imperialismo
tinha delimitado. É neste contexto que Abdallah transformou o mal-
estar que sentiu numa valiosa obra de recolha de elementos da
história de um grupo linguístico e étnico, focando dinastias que
mais resistiram à conquista imperialista europeia (Liesegang 1988:
23-24).

Assim, Yohanna Abdallah é autor de uma obra cujo título original,


traduzido literalmente, significa “os tempos antigos entre os Yao”,
obra que foi impressa em 1919, juntamente com a sua tradução
inglesa, da autoria do médico Meredith Sanderson, que também
deve ser responsável pelo título inglês, mais curto, que é “The Yao”
(Os Yaos). A obra não foi editada pela imprensa da Missão
Anglicana, mas pela do Governo de Niassalândia, em Zomba
(Liesegang 1988: 14).

Não se conhecem documentos que descrevem como, porquê e


quando a obra foi redigida. E. A. Alpers, no seu ensaio, propõe que,
depois de uma viagem de romaria à Palestina, em 1905, surgiu um
vazio na vida de Abdallah, preenchido com um estudo sobre os
“tempos que não voltam”, estudo esse destinado aos próprios Yao
(Liesegang 1988: 15).

No seu trabalho, Abdallah apresenta-se simplesmente como autor


interessado no passado, com conhecimentos e capacidade de
escrever e documentar o assunto. Não exterioriza qualquer moral
cristã. Aliás, ele não terá sido o único pastor africano a aceitar o
passado pré-cristão tal como ele era, sem reinterpretações
excessivas (Liesegang 1988: 16).

Alpers sublinha que Abdallah se dirigiu principalmente aos Yao,


para os quais queria escrever uma história nacional, e que ali se
documenta uma certa viragem na sua personalidade, que se
demarca da anterior integração no mundo europeu. Mas, como se
verá, Abdallah nunca deixou de ter orgulho no que toca à sua
origem social e mantinha certas tradições africanas, deslocando-se,
por exemplo, com mais pessoas do que aquelas que um missionário
britânico teria considerado necessário (Liesegang 1988: 16).

Em 1924, Abdallah morreu acometido de doença súbita em


Montepuez, quando fazia viagem para a costa, onde pretendia
passar alguns meses de férias com a sua família. Na altura

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considerou-se que Unango estava “um pouco fora de contacto com o
resto da diocese” e o lugar de Abdallah não foi reocupado, talvez até
porque o cristianismo não esperava tornar-se ali religião dominante,
dado o rápido avanço do Islão (Liesegang 1988: 23).

Com a proclamação da Independência em Moçambique, e a


reestruturação do Arquivo Histórico de Moçambique, foi possível a
este organismo proceder à publicação da tradução anotada da obra
de Yohanna Abdallah a partir da versão inglesa reeditada em 1973
(Arquivo Histórico de Moçambique 1983).
Leituras adicionais

Abdallah, Yohanna B. 1983 [1919] Os Yao. Maputo: Arquivo


Histórico de Moçambique – Universidade Eduardo Mondlane

Liesegang, Gerhard. 1988 “Achegas para o estudo das biografias de


autores de fontes narrativas e outros documentos da história de
Moçambique, I: Yohana Barnaba Abdallah (ca. 1870-1924) e a
Missão de Unango” ARQUIVO 3: 12-34

Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 2 – 2018 - Johane Zonjo


EMILY DORA EARTHY E A PESQUISA SOBRE OS NDAUS DE
SOFALA E AS MULHERES VALENGES DE INHARRIME

Emily Dora Earthy nasceu em 1874 em Great Warley, Essex, no


Reino Unido. Aos 35 anos de idade, Dora Earthy tornou-se
missionária da Anglican Society for the Propagation of the Gospel
(SPG) [Sociedade Anglicana para a Propagação do Evangelho].

Antes de ser enviada para Moçambique, Dora Earthy trabalhou na


África do Sul, em Johannesburg e Potchefstroom, entre 1911 e 1916.
Entre Setembro de 1917 a Dezembro de 1930, Dora trabalhou em
Moçambique, mais concretamente em Maciene (Gaitskell 2000;
Gaitskell 2012).

A sua transferência para Moçambique contribuiu para uma


edificação evangélica baseada nas tradições culturais africanas e
numa pesquisa antropológica bem como na contribuição para a
protecção e validação da autonomia das viúvas cristãs contra novos
casamentos coercivos (Gaitskell 2000).

Dora Earthy tinha uma certa facilidade de aprendizagem de línguas,


comparada com outras missionárias da sua congregação. No seu
anterior emprego de indexação e catalogação de documentos na
Royal Society em Londres, Dora teve de lidar com questões de
línguas, pelo que por volta de 1910 ela procurou aprender Francês,
Alemão, Latim, Português e Espanhol. Mas foi mais proficiente em
Espanhol, tendo estado em Espanha cerca de quatro vezes (Gaitskell
2012).

Na África do Sul, Dora aprendeu o Dutch, Xhosa e Tswana. Mais


tarde, em Moçambique ela aprendeu o Chopi e o Shangana. Para
além disso, ela procurou melhorar o seu português em Portugal a
caminho de casa, por um ano.

Para além da facilidade com as línguas, Dora Earthy tinha uma forte
personalidade e era bastante simpática, o que facilitou imenso a sua
inserção no seio das mulheres onde fez o seu trabalho missionário
bem como a sua pesquisa antropológica.

Dora Earthy faleceu em 1960.

Interesse na pesquisa antropológica

Em 1921 Dora Earthy começou a reflectir profundamente na

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possibilidade de materializar o seu interesse antropológico, graças a
uma cópia da revista International Review of Missions (IRM) que trazia
um artigo sobre o trabalho antropológico no contexto da missão
religiosa, escrito pela Margaret Sinclair Stevenson (Gaitskell 2012).

O artigo em questão, “The Study of Anthropology on the Mission”, e


que fora publicado em 1920, serviu de inspiração, guia prático e uma
espécie de autorização da missão para essa aventura científica. No
artigo, Margaret Sinclair Stevenson, formada em Oxford e que estava
a trabalhar na Índia há cerca de 20 anos, encorajava o estudo
detalhado da religião daqueles com quem os missionários
trabalhavam, com vista a uma melhor e efectiva compreensão
(Gaitskell 2012).

Usando exemplos da Índia, e num estilo entusiástico, acessível,


prático e mais orientado para as mulheres missionárias, Margaret
Stevenson incentivava as missionárias para colocar um conjunto de
questões correctas, seleccionar bons informantes, colher as histórias
de vida de cerimónias e situações relevantes, proceder a devida
preparação antes de assistir em determinadas cerimónias, proceder a
tomada detalhada de notas e considerar a hipótese de produzir uma
tese para um grau académico (Gaitskell 2012).

Assim, Stevenson orientava que para começar o empreendimento de


pesquisa, o primeiro passo seria adquirir ou pedir emprestado pelo
menos 4 obras, nomeadamente:

 A obra de R.R. Marett, Anthropology, publicada pela Home


University Library;
 Notes and Queries on Anthropology, da British Association;
 Les Rites de Passage, de V. Gennep; e
 Anthropology, de Edward Tylor.

O interesse inicial da Dora Earthy em Antropologia como ciência


começou quando ela estava a trabalhar na Royal Society em Londres
onde tinha que catalogar e indexar papers de antropologia, entre
outros. Dora Earthy seguiu as recomendações de Margaret
Stevenson e encomendou as obras referenciadas e outras.

Foi por estas alturas, em 1923, que Dora Earthy recebeu


encorajamento para a pesquisa de Alfred Haddon, quando ela
escreveu-lhe a pedir aconselhamento (Gaitskell 2012). Haddon era
um eminente antropólogo da Universidade de Cambridge,
organizador da famosa Expedição ao Estreito de Torres em 1898 e
um dos fundadores da moderna Escola Britânica de Antropologia

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Social, e na altura considerado o mentor inicial de Winifred Hoernlé,
a chamada “Mãe da Antropologia Social na África do Sul” (Gaitskell
2012).

Por outro lado, Dora Earthy manteve contacto com antropólogos sul-
africanos ou que estavam na África do Sul. E neste grupo, as figuras
que se destacaram foram Radcliffe-Brown e Winifred Hoernlé. E as
instituições que deram mais apoio ao trabalho dela foram a South
African Association for the Advancement of Science (SAAAS) e a
respectiva revista South African Journal of Science (SAJS); bem como
o Transvaal Museum, com a sua publicação Annals of the Transvaal
Museum (Gaitskell 2012).

O ano de 1925 constitui um marco importante para Dora Earthy em


termos de publicação, pois publicou:

1. Três artigos no mesmo número do Annals of Transvaal Museum,


designadamente:

 Initiation of girls in the Masiyeni District, Portuguese East Africa;

 Note on the decorations on carved wooden food-bowls from


South Chopiland, Portuguese East Africa; e

 On some ritual objects of the Vandau in South Chopiland Gaza,


Portuguese East Africa.

2. O artigo The role of the father’s sister among the valenge of


Gazaland, Portuguese East Africa na revista South African Journal
of Science.

3. O artigo Some agricultural rites practiced by the valenge and


vachopi (Portuguese East Africa) na revista Bantu Studies. Esta
revista seria a terceira na qual Dora Earthy viria publicar os seus
trabalhos.

Em 1926, no Reino Unido, Dora Earthy foi convidada a escrever um


paper sobre a sublimação dos costumes nativos para o International
Review of Missions que resultou no artigo The customs of Gazaland
women in relation to the African church (Gaitskell 2012).

Pelo final da década dos anos 20, a Universidade de Witswatersrand,


de onde fazia parte a Hoernlé, concedeu significantes bolsas a Dora
Earthy para permitir que ela consolidasse e expandisse os resultados
da sua pesquisa. Com efeito, desde cerca de 1924 que a Hoernlé

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estava em contacto com Dora Earthy quando ela escreveu uma carta
a esta última agradecendo o artigo sobre os ritos agrícolas e que foi
publicado no Bantu Studies em 1925. No entanto, em 1928, Dora
Earthy, com a permissão da Igreja, recebeu uma bolsa de seis meses
da Universidade Witwatersrand para fazer a sua pesquisa sobre as
mulheres valenges (Gaitskell 2012).

Pesquisa sobre os Ndaus de Sofala

Em 1929, Dora Earthy recebeu uma bolsa adicional da mesma


universidade, através do Department of Bantu Studies, para
prosseguir a pesquisa sobre as populações situadas mais a norte,
neste caso os Ndaus de Sofala. Ela acabou publicando os resultados
dessa pesquisa num longo artigo e em duas notas no Bantu Studies,
nomeadamente Sundry notes on the Vandau of Sofala, P.E.A. (em
1930) e Notes on the ‘Totemism’ of the Vandau (em 1931).

Ainda sobre os Ndaus, publicou o artigo The VaNdau of Sofala em


1931 no número 2 do volume 4 do Journal of the International African
Institute.

Neste artigo, Dora Earthy começa pela descrição da região de Sofala,


então pertencente a África Oriental Portuguesa, desde a sua história
bem como a estrutura social e administrativa do local. Depois
caracteriza o grupo VaNdau examinando a sua origem, prestando
atenção para as várias linhagens de descendência. O terceiro aspecto
analisado é a religião dos Ndaus, seguida da questão das
escarificações e adornos pessoais. A terminar, o artigo analisa as
condições económicas em Sofala e o folclore Ndau (Earthy 1931).

Pesquisa sobre as mulheres valenges

Em 1933, Emily Dora Earthy publicou a obra Valenge Women: An


Ethnographic Study, que contou com o apoio do International Institute
of African Languages and Cultures. A obra teve uma breve introdução
de Alfred Haddon. A obra mereceu uma boa crítica por parte de
vários antropólogos.

Na obra, Dora Earthy lida com a vida económica e social das


mulheres entre as quais ela trabalhou por 13 anos como missionária.
Ela procura enfatizar aos trabalhos da rotina diária das mulheres, os
métodos de preparação dos alimentos e bebidas, a produção de
utensílios domésticos, cestos e cerâmica. A descrição dessas
actividades é obviamente baseada numa cuidadosa e consciente
observação e que é preenchida por folk-tales que são

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cuidadosamente transcritas. Desenho na ornamentação de utensílios
domésticos, no trato do cabelo, escarificação e tatuagem são
igualmente discutidos, e há excelentes plates ilustrando a cultura
material (Monica Wilson 1934: 110).

Dados importantes são discutidos sobre os direitos e deveres da


mulher em relação aos filhos do seu irmão. O papel especial do irmão
da mãe nesta cultura foi bastante discutido por Junod e Radcliffe-
Brown, mas tem havido pouca atenção do papel paralelo
desempenhado pela irmã do pai. A obra mostra ainda uma descrição
do comportamento dos parentes nos ritos funerais, o modo como eles
se agrupam na festa do funeral, as porções de carne que lhes são
alocadas, o que mostra sobre como funciona o parentesco (Monica
Wilson 1934: 110).

A obra apresenta uma descrição pormenorizada do ritual relacionado


ao nascimento. Há mais informação sobre a educação inicial da
criança do que em muitas monografias. Interessante é a descrição do
jogo através do qual as mães ensinam as crianças a contar, bem
como a parte desempenhada pelos bonecos (Monica Wilson 1934:
110).

Na altura da sua publicação, a obra foi considerada de grande valor,


não só para os estudantes como também para os antropólogos
trabalhando em diferentes áreas. A originalidade da pesquisa residia
no método usado que foi de uma aproximação simpática e íntima
para o estudo da vida social, religiosa e económica, um tema em que
os antropólogos do sexo masculino estavam claramente em
desvantagem, pois há capítulos na obra que tratam de temas como
gravidez, parto e ritos secretos de iniciação para as raparigas que
demonstram as vantagens da pesquisa por uma mulher. A descrição
sobre os ritos de iniciação para as raparigas foi considerada
provavelmente como a mais completa que até então havia sido feita
para uma tribo Negro Bantu (Wilfrid Hambly American
Anthropologist 1934, 36: 470).

A introdução da obra refere que este aspecto especializado de


pesquisa tem o seu background geral na obra de Henri Junod Usos e
Costumes dos Bantus, o que constitui uma vantagem que
proporciona uma visão geográfica, histórica e etnológica geral, antes
de se abordar a investigação de uma determinada cultura a partir de
um determinado aspecto, tais como sexo, alimentação ou magia.
(Wilfrid Hambly American Anthropologist 1934, 36: 470).

A introdução enfatiza a necessidade de tornar os estudos dinâmicos

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e não demasiados formais. Uma pesquisa simpática está preocupada
com o funcionamento de uma cultura e com os ajustamentos a novas
condições emergentes de contactos culturais. Mas, para ter o espírito
das pessoas, um estudo através das coisas materiais, incluindo a
colecta de objectos, constitui as vezes o melhor método. (Wilfrid
Hambly American Anthropologist 1934, 36: 470).

O livro começa com a descrição da origem e história dos Valenge,


através da consideração das suas tradições tribais, mostrando isso
através de nomes pessoais e dos clãs. (Wilfrid Hambly American
Anthropologist 1934, 36: 470).

*****************

O início precoce na pesquisa antropológica na África Austral nos


estágios finais da Primeira Guerra Mundial, coloca Dora Earthy a
frente com um avanço de uma década em relação aos estudantes de
Malinowski – a Monica Hunter, Hilda Kuper e Audrey Richards.
Contudo, Emily Dora Earthy continua a ser negligenciada como uma
das pioneiras no estudo científico da sociedade da África Austral.
Dora Earthy possui 11 publicações, sendo uma delas uma obra.

A história da Dora Earthy levanta questões acerca das relações entre


as missões cristãs e a antropologia científica no início do século XX,
bem como as questões de género e poder história da sociologia do
conhecimento.
Leituras adicionais

“Notes and News” in Journal of the International African Institute, vol.


3 no 2 1930: 231-234.

Earthy, E. Dora. 1931. “The VaNdau of Sofala”. Journal of the


International African Institute, vol. 4 no 2: 222-230.

Earthy, E. Dora. 1926. “The customs of Gazaland women in relation


to the African church”. International Review of Missions, vol. 15 no
60: 662-674?.

Earthy, E. Dora. 1933. “An African Tribe in Transition from


Paganism to Christianity”. International Review of Missions, vol. 22

Earthy, E. Dora. 1924. “On the significance of the body markings of


some natives of Portuguese East Africa”. South African Journal of
Science, vol. 21: 573-587.

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Earthy, E. Dora. 1925. “The role of the father’s sister among the
valenge of Gazaland, Portuguese East Africa”. South African Journal
of Science, vol. 22: 526-529.

Earthy, E. Dora. 1925. “Initiation of girls in the Masiyeni District,


Portuguese East Africa”. Annals of the Transvaal Museum, part 2 vol.
11: 103-117.

Earthy, E. Dora. 1925. “Note on the decorations on carved wooden


food-bowls from South Chopiland, Portuguese East Africa”. Annals of
the Transvaal Museum, part 2 vol. 11: 118-124.

Earthy, E. Dora. 1925. “On some ritual objects of the Vandau in


South Chopiland Gaza, Portuguese East Africa”. Annals of the
Transvaal Museum, part 2 vol. 11: 125-128.

Earthy, E. Dora. 1926. “Some agricultural rites practiced by the


valenge and vachopi (Portuguese East Africa)” Bantu Studies, vol. 2
no 4: 265-267.

Dora Earthy, E. 1930. “Sundry notes on the Vandau of Sofala,


P.E.A.” Bantu Studies: 95-107

Dora Earthy, E. 1931). “Notes on the ‘Totemism’ of the Vandau”


Bantu Studies V, 1: 77-79

Gaitskell, Deborah. 2012. “Dora Earthy’s Mozambique Research and


the Early Years of Professional Anthropology in South Africa” in
Patrick Harries and David Maxwell (ed.) The Spiritual in the secular:
Missionaries and knowledge about Africa. Michigan, Cambridge: WM-
B Eerdmans Publishing Co. pp. 275-321

Gaitskell, Deborah. 2000. “Female Faith and the Politics of the


personal: five missions encounters in twentieth-century South
Africa” Feminist Review 65: 68-91

Stevenson, Margareth Sinclair. 1920. “The Study of Anthopology on


the Mission Field” International Review of Missions, vol. 9

Wilfrid Hambly American Anthropologist 1934, 36: 470-471

Hunter, Monica. 1934. The Valenge Women. Journal of the


International African Institute, vol. 7 no 1: 110-112

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HENRI-PHILIPPE JUNOD E A PESQUISA SOBRE OS THONGA,
CHOPES E NDAUS

Henri-Philippe Junod nasceu em 1897 em Neuchatel, Suíça, filho de


Henri-Alexandre Junod e de Emilie Bioley, filha de um rico industrial
da Suíça ocidental. Durante os primeiros anos de vida, Henri-Philippe
viveu na África do Sul onde o seu pai trabalhava como missionário.
Com a morte súbita da mãe em 1901, seu pai enviou-lhe para a Suíça
para viver com a avó. Assim, passou a sua juventude na Suíça onde
fez a formação educacional e graduou-se com Bacharelato em
Teologia pela Universidade de Neuchatel em 1920 (Morier-Genoud
2011: 195)

Influenciado pelo percurso do seu (ausente) pai, Henri-Philippe


escolheu tornar-se missionário, tendo concorrido para a Swiss
Mission in South África (SMSA) que viria a recrutá-lo em 1920. A
SMSA enviou-lhe para o Reino Unido para frequentar um curso de
preparação missionária bem como a Portugal, juntamente com a sua
noiva Idelette Schnezler (uma enfermeira), para aprender a língua
portuguesa, a língua falada no Moçambique colonial. Depois do
casamento, Henri-Philippe e a esposa foram viver em Lourenço
Marques em Junho de 1922. Eles foram colocados numa missão
rural, em Manjacaze, sul de Moçambique, onde Henri-Philippe
trabalhou por 7 anos (Morier-Genoud 2011: 196).

A Missão de Manjacaze era nova, sem estruturas construídas quando


Henri-Philippe foi para lá. As condições na área eram difíceis, num
clima quente e propenso a ocorrência de Malária. A partir de 1925,
Idelette Junod e os filhos do casal começaram cada vez mais a andar
doentes e muitas vezes tinham que deixar a missão para recuperar na
cidade de Xai-Xai ou na então Lourenço Marques ou ainda na África
do Sul. As condições para o trabalho espiritual em Manjacaze eram
igualmente difíceis. Havia uma competição da Igreja Católica
Apostólica Romana e das Igrejas protestantes (Wesleyana, Metodista,
Nazarena, etc.).

A área de Manjacaze que foi a capital do Império de Gaza era objecto


de muita actividade missionaria. A SMSA enfrentava ainda uma forte
oposição da Administração colonial portuguesa quando o Governo de
Lisboa tornou-se cada vez mais nacionalista e pró-Católica nos anos
1920. Após a publicação em 1925 de um relatório muito critico sobre
o processo de recrutamento da mão-de-obra na África Portuguesa
pelo Professor Ross para a League of Nations’ Temporary Slaving

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Commission, a situação piorou para as sociedades missionarias
estrangeiras e não católicas. Algumas áreas fecharam-se o trabalho
da Missão Suíça e os conflitos com as autoridades coloniais
portuguesas tornaram-se constantes (Morier-Genoud 2011: 196).

Como resultado do trabalho religioso condicionado devido ao clima de


crispação com as autoridades portuguesas e com a sua família cada
vez mais ausente, Henri-Philippe Junod começou a dedicar mais
tempo a pesquisa etnográfica. O interesse de Henri-Philippe Junod
em antropologia começara antes de ele deixar a Europa. Quando
esteve em Londres, ele lera obras e frequentou cadeiras extras em
antropologia no Board of Study for Preparation of Future Missionaries,
que eram leccionadas pelo evolucionista Reverendo Professor Edwin
Oliver James (Morier-Genoud 2011: 196).

Henri-Philippe Junod pretende fazer o trabalho missionário, usando a


antropologia. Ou seja, a antropologia era para Henri-Philippe Junod
um meio destinado a atingir um fim, e não um fim em si. Ao longo da
sua vida, Henri-Philippe sempre procurou enfatizar que era
missionário. Mas, Por outro lado, Henri-Philippe procurou seguir o
legado do pai (Morier-Genoud 2011: 197).

Trabalhar em Manjacaze foi importante para a formatação do trabalho


de Henri-Philippe Junod, pois permitiu-lhe pesquisar novos grupos
sociais que não tinham sido investigados etnograficamente e nisso ele
foi pioneiro. A localização em Manjacaze permitiu ainda estudar não
somente um, mas sim três grupos étnicos e compará-los. Quando
Henri-Philippe chegou a Manjacaze aprendeu o Thonga, tal como era
recomendado pela sua Missão que, em grande parte trabalhava
dentro desse grupo étnico. Muito em breve, Henri-Philippe deu conta
de que o Chope era a língua dominante no sudeste da sua missão, daí
que tratou de aprender essa língua e estudar os costumes dessas
populações. Nesse processo, Henri-Philippe descobriu que muitos
médiuns na área da sua missão vinham do grupo étnico Ndau,
localizado mais a norte. Ele procurou investigar esse grupo também.
Assim, as primeiras publicações de Henri-Philippe foram sobre os
Thonga, depois sobre as origens e folclore Chope e, nos anos 30,
sobre a história, possessão de espírito, totemismo e demografia Ndau
(Morier-Genoud 2011: 197).

Para além de pesquisar sobre as raízes históricas das tribos da África


oriental, o interesse de Junod incluía o registo do folclore, história,
língua e outras formas de cultura no pressuposto do seu provável
desaparecimento no futuro (Morier-Genoud 2011: 198).

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Junod publicou o seu primeiro artigo académico em 1927, depois do
qual ele publicou mais dois artigos por ano sobre assuntos
antropológicos. Contudo, enquanto a sua contribuição em termos de
publicação crescia, em breve ele enfrentava uma barreira. A
antropologia estava a atravessar mudanças críticas nas primeiras
décadas do século XX como resultado da sua institucionalização e
profissionalização nas universidades. Associações profissionais,
revistas cátedras universitárias estavam sendo criadas pelo mundo (a
primeira cátedra de antropologia no estrangeiro era criada em Cape
Town em 1920 com Radcliffe-Brown) e como resultado disso,
desenvolveu-se uma competição entre antropólogos profissionais e
missionários sobre quem detinha melhores perspectivas sobre as
culturas e vida social dos africanos. Durante a primeira metade dos
anos 30, a competição dava vantagem aos antropólogos profissionais
e o seu sucesso significava a exclusão dos missionários do campo
académico. Antropólogos profissionais, liderados pelos
“revolucionários” tais como Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown
argumentavam que o seu profissionalismo contrastava com modo
como os missionários faziam a antropologia, isto é, com base na
agenda religiosa e falta de base teórica (Morier-Genoud 2011: 200).

A quebra na relação entre antropólogos profissionais e missionários


pode ter ocorrido entre 1928 e 1934, altura em que teve lugar uma
Conferência em Johannesburgo, organizada pela New Education
Fellowship, em que Henri-Philippe Junod participou e onde
antropólogos sonantes com Malinowski criticaram fortemente os
missionários, a sua falta de aceitação dos costumes dos nativos e a
falta de crítica do impacto da civilização ocidental. Para Junod, este
momento marcou a quebra formal entre antropologia profissional e os
missionários (Morier-Genoud 2011: 200-201).

Apesar de ter continuado a publicar trabalhos académicos nos 5 anos


seguintes, Junod não viria mais a publicar nenhum trabalho de
pesquisa em revistas académicas depois de 1938, pelo menos em
revistas não religiosas. O seu último contributo foi através de uma
monografia publicada em 1938 intitulada Bantu Heritage, publicada
através da Transvaal Chamber of Mines (Morier-Genoud 2011: 201-
202).

Junod deu uma contribuição ao publicar pela primeira vez a


descrição sobre os Chopes e os Ndau (Morier-Genoud 2011: 202).
Henri-Philippe Junod morreu em 1987 aos 90 anos de idade.
Leituras adicionais
Morier-Genoud, Eric. 2011. “Missions and Institutions: Henri-Philippe
Junod, Anthropology, Human Rights and Academia between Africa

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and Switzerland, 1921-1966 SZRKG, 105: 193-219

Junod, Henri-Philippe. 1927. “Some Notes on Tchopi Origins”, in


Bantu Studies 3, 1: 57-71

Junod, Henri-Philippe. 1929. “The Mbila or Native Piano of the Tchopi


Origins”, in Bantu Studies 3, 3: 275-285

Junod, Henri-Philippe. 1934. “A Contribution to the Study of Ndau


Demography, Totemism and History”, in Bantu Studies 8, 1: 17-38

Junod, Henri-Philippe. 1935. “Anthropology and Missionary


Education”, in International Review of Missions 34, 228

Junod, Henri-Philippe. 1951. “Penal reform in South Africa”, in


African Affairs 51, 36

Junod, Henri-Philippe; Jaques, Alexandre A. 1936. The Wisdom of the


Tsonga-Shangana People, Cleveland (South Africa);

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COLUMBUS KAMBA SIMANGO E A COLABORAÇÃO COM FRANZ
BOAS E MELVILLE HERSKOVITS NA PESQUISA SOBRE OS NDAUS
Columbus Kamba Simango é mais conhecido na História de
Moçambique pela faceta de proto-nacionalista. Contudo, a sua
trajectória leva-o a ser inscrito no conjunto de antropólogos
missionários que de certa forma contribuíram para a disciplina
antropológica em Moçambique. Com efeito, o percurso de Kamba
Simango revela produção conjunta com Franz Boas, Melville
Herskovits, entre outros.

DE MOÇAMBIQUE PARA OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Kamba Simango nasceu em 1890, na Ilha de Chiloane, distrito de


Machanga, província de Sofala. Em 1905, Kamba Simango se desloca
a Beira, onde começa a frequentar a escola do missionário Fred
Bunker, da American Board of Missions. Em virtude de conflitos com
as autoridades locais, a escola é impedida de prosseguir com as suas
actividades. Por este motivo, Bunker envia os seus alunos – dentre
eles Kamba Simango, à escola que a Missão mantinha em Mount
Selinda, na então Rodésia do Sul (actual Zimbabwe), localidade
próxima à fronteira de Moçambique (Macagno 2012: 129).

Em 1913, aos 23 anos de idade, Kamba Simango é enviado para


estudar nas instituições que a American Board mantinha na África do
Sul. Passa um ano em Lovedale e um período no Adams College, em
Natal, onde mais tarde estudaria também o Presidente do Congresso
Nacional Africano, Albert Luthuli. Devido ao seu bom desempenho,
Kamba Simango recebe apoio dos missionários para prosseguir seus
estudos nos Estados Unidos, mais especificamente, no Hampton
Institute em Virgínia, onde permaneceu até 1919. Tratava-se de um
instituto onde alunos “afro-americanos” e africanos aprendiam artes e
ofícios, além de disciplinas teóricas. Ao que parece, Kamba Simango
especializou-se em carpintaria (Macagno 2012: 129-130).

A COLABORAÇÃO COM FRANZ BOAS

A ligação entre Kamba Simango e Franz Boas acontece por via da


Natalie Curtis. Durante a sua formação no Hampton Institute, Kamba
Simango conhece a musicóloga e folclorista Natalie Curtis. Foi com ela
que Kamba começa a desenvolver, pela primeira vez, um interesse
etnográfico incipiente. Mais tarde, Natalie Curtis elabora, com a
colaboração de Kamba, um projecto de gravação e transcrição de

Antropologia em Moçambique – Texto de Apoio no 2 – 2018 - Johane Zonjo


músicas ndaus. Dessa colaboração foram publicadas as obras Negro
Folk Songs (1918-19) e Songs and Tales from the Dark Continent (1920)
(Macagno 2012: 130).

Natalie Curtis já conhecia o trabalho de Franz Boas e em várias


ocasiões apelaria para o conhecimento de Boas a fim de dissipar
dúvidas ou esclarecer questões referentes ao seu primeiro projecto
sobre músicas africanas. Franz Boas já estava ciente do trabalho da
musicóloga, cuja realização teria sido possível graças à colaboração de
um dos alunos mais notáveis do Hampton Instituto: Kamba Simango.

Em 24 de Novembro de 1919, Natalie Curtis envia uma carta a Boas,


onde apresenta Kamba Simango. Curtis descreve Kamba como alguém
profundamente interessado no livro The Mind of Primitive Man, que
Boas publicara em 1911. Na sua recomendação, Curtis não poupa
adjectivos para elogiar Kamba, a quem apresenta como um “nativo
puro da tribo vandau” (Macagno 2012: 131).

Depois da carta de apresentação de Natalie Curtis, Kamba Simango e


Franz Boas se encontram para conversar sobre os seus respectivos
planos. Entre Março e Abril de 1920, Kamba Simango começaria a
desenvolver algum trabalho com Boas, concentrando-se no estudo da
gramática da língua ndau. No entanto, o trabalho mais sistemático
começaria alguns meses depois, com o apoio do filantropo George
Forster Peadoby. Durante essa colaboração, Kamba estaria ligado ao
Teachers College na Universidade de Columbia, uma vez que o seu
vínculo com o Hampton Institute teria terminado (Macagno 2012: 132-
133).

O plano de Boas consiste, literalmente, em “poder capturar e


sistematizar tudo o que Simango conhece sobre África e, em
continuidade, redigi-lo para, finalmente, devolvê-lo sob a forma de
uma análise antropológica mais refinada. Assim, Simango poderia
retornar à África com os resultados desse material, cujos aspectos
pouco claros ou duvidosos serviriam como um guia para o seu
trabalho (Macagno 2012: 133).

Em 20 de Setembro de 1920, Boas e Kamba começariam a trabalhar


neste novo projecto. O trabalho, a ser iniciado no final de Setembro,
duraria nove meses. Da colaboração antropológica entre Franz Boas e
Kamba Simango resultaram na produção de cinco artigos sobre o
grupo étno-linguístico Ndau, um dos quais foi assinado em co-autoria
por ambos, designadamente o Tales and Proverbs of the Vandau of
Portuguese South Africa (1922). Os outros quatro artigos foram
assinados por Franz Boas: três deles foram publicados em alemão, e

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versam sobre religião, parentesco e vida quotidiana: Der Seelenglaube
der Vandau (1920-21); Das Verwandtschaftssystem der Vandau (1922),
e Ethnographische Bemerkungen uber die Vandau (1923); o outro foi
publicado na American Anthropologist, com o título The Avunculate
among the Vandau (1922). Dos três publicados em alemão, dois foram
republicados em inglês no seu livro Race, Language, and Culture
(1940) (Macagno 2012: 135).

A COLABORAÇÃO COM MELVILLE HERSKOVITS

No início de 1923, quando Melville Herskovits chega a Columbia,


Franz Boas coloca-o em contacto com Kamba Simango. Do diálogo
entre ambos resultará a tese de doutoramento de Herskovits, The
Cattle Complex in East Africa, publicada em 1926 em várias separatas
na American Anthropologist, além de um artigo, também publicado na
American Anthropologist sobre os vandau: Some Property Concepts
and Marriage Customs of the Vandau (1923) (Macagno 2012: 135).

Na biografia que Melville J. Herskovits (1953) escreveu sobre Franz


Boas, o nome de Kamba Simango e a etnografia que ambos
empreenderam sobre os Ndau aparecem, ao menos, em duas ocasiões.
George Stocking Jr. (2004), na sua conhecida colectânea sobre Boas,
fornece uma lista bastante densa da sua produção intelectual, onde
infelizmente os trabalhos sobre os vandau de Moçambique estão
ausentes (Macagno 2012: 136).

A COLABORAÇÃO COM HENRI-PHILIPPE JUNOD E EMILY DORA


EARTHY

A contribuição de Kamba Simango a essa etapa incipiente da


Antropologia em África não se limitará ao diálogo mantido com Boas e
Herskovits. Alguns anos mais tarde, Henri-Philippe Junod obterá
preciosas informações de Kamba Simango, quando este havia
retornado a Moçambique. A partir desse outro diálogo etnográfico,
Henri-Philippe Junod escreverá dois ensaios: Les cas de Possession et
l’Exorcisme Chez les Vandau (1934) e Coutumes Diverses des Vandau
de l’Afrique Orientale Portugaise. Mariage. Divination. Coutumes et
Tabous de Chasse (1937) (Macagno 2012: 135).

O REGRESSO A MOÇAMBIQUE

Apesar dos bons resultados que estavam a surgir do diálogo entre


Franz Boas e Kamba Simango, os missionários tinham outros planos
traçados para Kamba Simango e sua esposa. A American Board
planeava inaugurar uma nova sede missionária em Moçambique.

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Desde 1907 que a American Board vinha tendo dificuldades para
continuar a sua missão devido a conflitos com as autoridades locais.
As tensões entre as igrejas de denominações protestantes e a
administração colonial foram recorrentes. Em grande medida, a causa
desses conflitos era a suposta ameaça “desnacionalizadora”
proveniente dos protestantes. A presença de “nacionais” – como
Kamba Simango – poderia minimizar o sentimento de ameaça e abrir
caminho para negociações com a administração portuguesa (Macagno
2012: 137).

Por volta de 1923 e já formado, Kamba Simango retorna a


Moçambique para inaugurar e supervisionar a nova sede missionária
em Gogoi. Mas, para tanto, a administração portuguesa exigia que
Kamba aprendesse português. Como jovem saído cedo de
Moçambique, e tendo primeiro estudado na África do Sul e depois nos
Estados Unidos. Kamba não falava fluentemente o português. Os
missionários financiariam uma breve passagem do casal por Londres,
onde Kamba e Kathleen estudariam gramática portuguesa para, em
seguida, passarem um período em Lisboa, a fim de aperfeiçoarem seus
estudos nessa língua (Macagno 2012: 135).

Em 1924, Kathleen, a esposa de Kamba Simango faleceu. Em Março


de 1925, oito meses depois do falecimento da primeira esposa, Kamba
Simango se casa com Christine Mary Coussey, que é também
originária de Gana e prima da Kathleen (Macagno 2012: 141-142).

Antes de se instalarem em Moçambique, Kamba e Christine passaram


alguns meses na Missão Evangélica de Chisamba, no planalto central
de Angola. Em 11 de Setembro de 1926 chegam à Beira, Moçambique.
No início o casal permanece por um período na sede que a American
Board possuía em Mount Selinda, do lado da Rodésia. Em 1927, com
a anuência das autoridades coloniais portuguesas, instalam-se em
Gogoi, que seria a única base de apoio permanente da Missão nos
territórios de Manica e Sofala (Macagno 2012: 143).

A American Board estava interessada em apoiar uma liderança local


para as suas políticas, já que os missionários “estrangeiros” tiveram
que abandonar o território, mas não estava disposta a apoiar
financeiramente esse interesse. Paradoxalmente, Kamba começa a
construir uma relação de relativa cordialidade com a administração
portuguesa que passa a tratá-lo como “um dos seus”. Tal facto pode
ter incomodado os dirigentes da American Board, preocupados com a
possibilidade de perderem o controle sobre os seus seguidores
africanos. Na transição de 1934 para 1935, e após uma série de
reciprocas acusações e desavenças, a ruptura de Kamba Simango com

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os dirigentes missionários da American Board se consuma (Macagno
2012: 146-147).

Em face desse novo desafio, e sem poder contar com a tutela dos
missionários, Kamba se vê obrigado a tomar novos rumos a fim de
garantir a sobrevivência de sua família. Pouco tempo depois,
abandona definitivamente Moçambique e se instala, com sua mulher e
seus dois filhos (Louis e David), em Gana (Macagno 2012: 148).

Leituras adicionais

Macagno, Lorenzo 2012. “Franz Boas e Kamba Simango: epistolários


de um diálogo etnográfico” in Wilson Trajano Filho (org.) Travessias
Antropológicas: estudos em contextos africanos. Brasília: ABA, pp. 127-
157

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3.3. PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA INDEPENDENTE DE MISSIONÁRIOS
CATÓLICOS

Durante este período, a produção antropológica feita por missionários católicos


é ínfima, comparada com a dos protestantes. Embora tenha sido o primeiro a
receber mensageiros do Evangelho, na costa leste do continente africano,
Moçambique era o menos cristianizado dos países a sul do equador, até a
Segunda Guerra Mundial. Depois do governo republicano, anticlerical, em
1910, ter expulsado primeiro os Jesuítas e depois os Missionários do Verbo
Divino, a evangelização católica ficou virtualmente paralisada (Baur 2014:
347).

O contexto em que actuaram os missionários em Moçambique pode ser melhor


ilustrado pelo trabalho de Paul Schebesta, missionário da Congregação do
Verbo Divino que trabalhou na Missão da Zambézia entre 1912 a 1916 e que
viria a publicar em 1966 uma obra onde revela e critica a forma de actuação do
modelo colonial português bem como a da actuação do sistema de padroado
vigente nos territórios sob domínio português. Apesar disso, há trabalhos de
alguns missionários que são produzidos nessa altura, tais como a etnografia
sobre Gaza escrita pelo Padre Daniel da Cruz.

PADRE DANIEL DA CRUZ E ETNOGRAFIA SOBRE GAZA (1910): EM


TERRAS DE GAZA

Esta obra encerra os seguintes capítulos:

I - EM VOLTA DO CHAI-CHAI
(1 - Aspectos da região; 2 - Fauna e Flora; 3 - Meteorologia;)

II - OS POVOS DE GAZA
(1 - Esboço histórico dos povos bantu; 2 - Raças e caracteres; 3 - Acidentes da
vida indígena; 4 - Língua, numeração, moeda e chronologia;)

III - INSTITUIÇÕES SOCIAIS


(1 - Casamento; 2 - Criação e emancipação dos filhos; 3 - Realeza; 4 - Justiça;
5 - Crenças religiosas; 6 - Ritos fúnebres; 7 - Feitiçaria;)

IV - COSTUMES INDÍGENAS
(1 - Aldeias e palhotas; 2 - Ocupações domésticas; Refeições; 4 - Mistérios da
mulher; 5 - Batuque; 6 - Jogos; 7 - Vestuário e ornatos; 8 - Saudações e
cumprimentos; 9 - Emigração e principais mistérios dos emigrados;)

V - AGRICULTURA INDÍGENA

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(1 - As machambas; 2 - Cultura dos cereais; 3 - Cultura das principais
leguminosas; 4 - Tubérculos e raízes; 5 - Árvores e outras plantas fructiferas e
industriais; 6 - Animais domésticos, caça e pesca;)

VI - ARTES INDÍGENAS

VII - POVOS EXÓTICOS E A SUA INFLUÊNCIA NO MEIO INDÍGENA

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