Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
""'UANIJO o M*
Ima ens e representações
sobre o ovo Con· ente entre
os sé os e II
"Voi/à un monde qui ne peut estre va-se a outra, igualmente cara ao Renasci
remply que de toUles sortes de biens et mento: aquela de urna Idade de Ouro onde
c/wses Ires excellentes; iI ne faut que vicejaria o estado natural que teria antece
les decouvrir". dido a Antiguidade. O século xvn é mar
cado por uma visão ao mesmo tempo mis
La Popeliniere, Les trois Mondes, 1582 sionária e colonial, fruto do desejo univer
sal de conquista, mas também do poder
absolutista de jovens Estados Modernos e
esde o achamento da América, cada da Igreja reformada. Na visão naturalista e
século exprimiu-se na pelOepção do científica do xvm, os enciclopedistas as
Novo Continente através de uma visão de sociavam a relatividade religiosa com a
mundo que 'lhe era própria e específica. noção de um homem originalmente puro,
Suoedendo-se uma a outra, podemos, de o ''bom selvagem", o que abriu as portas
início, identificar imagens da América c0- para o pré-romantismo. Já no infcio do
mo uma passagem para o Oriente -grande XIX, a França, por exemplo, olhava a
preocupação do século XVI - caminho, América através de uma visão de mundo
portanto, para a fontede sonbadas riquezas que fez desabrochar uma sensibilidade r0-
referidas ao Eldorado. Esta imagem liga- mântica, na qual o exotismo teve um gran-
Sou ..ta • OEA e lO Goveroo da França pelo p'êmio que me vamitiu pcsqwlU na Bibliolhhquc NltionaledcParia,
•
e"
..k,H� RiodeJaneir� vai. S. D. 9,1992, p. 3-13
•
de papel. Vejam-se os clássicos Atala, de foram obra do acaso. &tão ligadas ao de
Chateaubriand, ou Les Incas, de Mannon senvolvimento do comércio da época e à
tel, para ficar nos mais conhecidos. evolução de conhecimentos técnicos, co
Thstemunha atenta destas variações na mo a descoberta da b1Ísso la, da orientação
perrepção do Novo Continente, o mapa e de ventos e correntes, o aperfeiçoamento
seus ornamentos apresenta-se como um ali da navegação marítima e a introdução de
ceICe cognitivo no qual se entrelaçam a novos tipos de barcos, nos quais os mari
imagem de positividade do próprio docu nheiros tinham mais esperanças de voltar
mento e a visão de mundo de que é portador ao porto.
e a partir da qual se funda a imagem do Neste mesmo período, inicialmente na
Outro. É importante o estudo do sentido das Itália e depois no resto da Europa, a im
imagens nas vinhetas dos mapas para co prensa começa a se impor, e sem ela é
nhecer a representação dada pelo cartógra impossível pensar no desenvolvimento da
fo, somada àquela dada pelos indivíduos, cartografia. A xilogravura pertencia às téc
grupos e sociedade que, ao contemplá-los, niOlS gráficas mais antigas e foi, até mea
vêem aí uma paisagem real e outra, ideal. dos do século XVI, a técnica principal para
Os mapas medievais, Mappae Mundi, a fabricação de mapas. Neste setor de artes
reconbecidos como "cartes moralisées", gráficas os alemães tinham a primazia, por
eram mais portadores de valores ideológi serem mais artistas do que artesãos. A1-
cos do que repositórios·de fatos geográfi brecbt Dürer era um destes expoentes e,
cos e históricos. Um saltério anônimo do entre outros, destacou-se por suas cartas
século XIII, por exemplo, revelava a loca imp ressas à mão, ou por xilogravuras pro
lização da muralha atrás da qual Alexandre duzidas a cores.
o Grande prendera as bordas de Gog e O peosamento na Europa à época dos
Magog. trazia um catálogo de bumanida descobrimentos inseria-se numa concep
des consideradas monstruosas e derivadas ção de História dominada pela idéia de que
dos escritos de Solinus, bem como aponta o Mediterrâneo e as partes orientais eram o
va a situação de Jerusalém e do Paraíso. centro de difusão em tomo do qual se agru
Neste período, desenhavam-se distâncias pava o mundo habitado. A multiplicação de
de forma esquemática, e sábios religiosos civilizações exóticas conhecidas incenti
copiavam, segundo a tradição, manuscri vou, todavia, analogias, e nelas, o sentido
tos e cartas geográficas transmitidas por de contrastes, às vezes críticos, sobre ternas
gerações passadas. Os homens se interes comparativos como as representações an
savam muito pouco pela forma verdadeira tropomórfiOls ou as cOllespondências esta
da terra, enquanto a Igreja Católica incen belecidas entre os ciclos históricos do Velbo
tivava os cartógrafos a retratarem-na como e do Novo Mundo. Neste contexto, os ma
expressão artística e contemplativa de suas pas e seus omamentos acabaram por cons
próprias idéias. &ta imagem "fechada" do tituir-se mais numa invisível paisagem de
mundo não foi jamais modificada pelos idéias do que na descrição de um terreno
relatórios de religiosos que fizeram via tangível sobre o qual se destnbufam formas
gens de missões nas regiões longínquas, e direções. O 1heatrum Orbis Terrarum, de
em particular na Ásia. Outras viagens fo Abrabam Ortelins (1527-1548), é um bom
ram necessá rias até que este mundo se exemplo desta maneira de pensar, uma vez
abrisse. que coloca em causa a v.isão aristotélica e
O Renascimento da cartografia foi ptolomaica do mundo sem que as crenças
�ndemente determinado pelas descober populares nem a prática marítima tenham
tas geográficas. &tas, por sua vez, não sido transformadas. Nele, a viagem real e
•
REIRAro DA AMÉRICA QUANDO JOVEM 5
11 , I
leitor a coneta compreensão do texto e sua literatura, tanto a gravura sobre madeirn
justa significação. Neste papel, elas são um qll3nto aquela realizada em talho doce foi
lugar de memória crista livmdo uma única largamente utilizada para permitir uma
representação, uma história, uma propa maior riqueza de modelos ou de detalhes
ganda, um ensinamento. Ou bem, como sobre os habitantes e os mores americanos.
sugere Roger Chartier, são construídas co As duas diferentes técnicas não t inham se
rno uma figura moral, simbólica e analógi não o alvo de apriinorar o texto com ima
ca, que salva o sentido global do texto gens singulares deste vasto e aparentemen
cartográfico de sofrer uma leitura descontí te estranho mundo novo.
nua e errática. Neste uso, portanto, envol Antes que a América fosse descoberta,
vem adesão, produzem persuasão e crença, existia, contudo, um outro tipo de imagem
exprimindo, finalmente, a teoria da intelec e estampa de tema alegórico que repre
ção pela imaginação. sentava as quatro estações, os quatro hu
Nesta perspectiva, observa-se também mores, as quatro virtudes cardeais etc. Esta
que desde o Renascimento uma nova con fonna de decoração de vinhetas era berdei
venção pictura I somara-se à já tão utilizada ra de tradições medievais. Santo Isidoro
iconografia das alegorias presente na car expusera o significado escondido dos nú
tografia. A América, como os outros con meros num tratado intitulado Liber Nume
tinentes, surge personificada como uma rorum, e este tipo de especulação estendeu
mulher vestida de atributos e acompanha se a outros autores do peóodo moderno. O
da de animais característicos do Novo número quatro era o dos evangelistas, dos
Mundo. Assim, com variantes de detalhes elementos (água, ar, fogo, terra), dos qua
que se revezam desde o século XVI, ela tro rios do Paraíso, dos quatro ventos, das
emerge num "décor" de árvores tropicais, quatro idades do homem, das quatro letras
paramentada com uma coroa, um cinto e do nome de Adão. Sete eram os dias da
um bracelete de penas. A seus pés jaz um semana, os pecados mortais, as idades do
tesouro, guardado por um jacaré, uma tar mundo. Nos mapas modernos, esta tradi
taruga, um tatu e papagaios. Suas armas ção mantém-se incorporaodo também os
são um arco, aljava e flechas. A noção de quatro continentes. Willem Janszoon
exotismo domina a representação da Amé Blaeu, em seu Nova Totius Orbis Terra
rica como o índio no motivo do selvagem Mim, utilizou vinhetas com os sete deuses
bárbaro, cruel, antropófago, ou o seu con gregos, as sete maravilhas, os quatro ele
trário, o homem em estado natural, o Hbom mentos e as quatro estações. Ortelius, no
selvagem" das Luzes. Este índio de con seu já mencionado Theatrum.. , apresenta
.
venção se prestará a inúmeras metamorfo 70 mapas detalhados dos países dos quatro
ses e será freqüentemente utilizado nas continentes, além de mapas sobre os quatro
vinhetas ou cartouches dos mapas. continentes e um mapa-múndi, todos
Observe·se que a descoberta da América alegoricamente decorados. Em 1668, Fre
trouxe, na sua esteira, a proliferaçao de um derick de Wit reconeu às ilustrações de
certo gênero literário: atlas, relações de via Romeyn de Hooghe para encher as vinhe
gens, cosmogra fias e mesmo coleções tas sobre os quatro elementos que adorna
agrupando diferentes relatos de diversos riam um de seus mapas, e este artista, por
.. . . .
vIajantes nos quaIS emergIa a expenencla .
sua vez, utiliza seminuas e anendondadas
•
'
européia nas novas terras, mas também a figuras femininas que se espalham em
visão própria da cultura ocidental na per- campos de trigo, no céu entre anjos e pás
, . saros, entre monstros, barcos e sereias no
manêncla de seu laço com O Novo Mundo
e suas trallSfonnações. No inlerior desta mar, e em meio ao fogo da guem.
EIRAlO DA AMÊRICA QUANDO JOVEM
R 7
( .
• •
-
�
•
..�
....
-
I
" r " ,
, •
f-. , ,
'
\
- -
2 I te
- " ,
•
•
flechas, uma maça, tendo aos pés um tatu culturnl entre os povos representados. Em
ou um jacaré, apresenta-se a América. contraste com os vestidos luxuosos da Eu-
ropa, ou sofisticados da Asia, a América
•
nhada como uma mulher madura aljo midade e também uma uniformidade no
potencial está em plena fruição ou desfrute. despudor.
Esta sucessão de significantes na alegoria Numa época de releitura da Biblia, de (,
sollre a América testemunha a lenta diges vido às Reformas, poderiam seres marca
tão intelectual do traumatismo que foi para . dos pelo pecado original andar nus sem
OS europeus a descoberta do Novo Mundo. infringir as leis de Deus? A quase nudez
Esta estranheza diante da distante diversi dos americanos não os aproximaria da sei .<
Distante ou próximo, diz Nicole Pelle Ao visualizar sob formas sintéticas a apa
grin, o Outro é permanentemente aquele rência de sociedades inteiras, elas colocam
que está vestido de forma diversa. E isto em evidência um sistema iconográfico que
revela menos as diversas formas de viver
em um tempo em que a veste, não oontente
dos vários grupos que povoavam o Novo
de distinguir o animal do homem, lama-se
Mundo do que os reduzidos estoques de
também um costume e elemento funda
imagens de que dispunham OS ateliers de
mental de discriminação social e cullural.
impressores entre os séculos XVI e XVII.
A representação da nudez dos americanos,
No imaginário ocidental o índio nu e
ou a escolha de seus objetos vestimentares,
emplumado reemerge no fim do século
reporta- se à influência da dupla herança, ,
XVIII, depois de atravessar um purgatório
biblica e mitificante, que eslrutura, então,
de baileIS à fantasia que ponlilharam as
a cultura européia e cristã. Não é necessá
suas aparições nas cortes européias no pe
rio lembrar as quatro significações simbó
óodo anterior. Sua presença nas vinhetas e
licas que a teologia medieval emprestava à •
alegorias, todavia, não teve por finalidade
nudez (naluralis, temporalis, virtualis,
fornecer, na sua totalidade, os maleriais de
criminalis) para explicar os julgamentos
um verdadeiro conhecimento do Oulni en
contraditórios sobre a nudez dos america
tre os séculos XVI e XVII. Evocando a
nos estampada nas representações icono
bizarria humana, sua diferença trabalhava
gráficas dos mapas. A insistência e a am
para a única Ciência digna deste nome,
bivalência destes julgamentos são o fruto
aquela que procurava encontrar, através
de uma obsessã o onde coabitam tanto a das coisas, a vontade de Deus.
idéia de uma nudez vergonhosa, devido ao Uma vinheta num mapa de Josua v..n
impudor e à indigência, quanto aquela, Ende (1640) permite uma observação mais
motivada pelas descobertas greco-latinas aalrada do tipo de leitura que se fazia:
no Renascimento, de uma nudez gloriosa, gesticulando, uma fúa de homens segue
símbolo de inocência ou de humildade. um índio que bate um tambor em direção
Entre o sonbo da Idade de Ouro e o a um pequeno santuário com uma abóbada
fantasma da besta brutal, a realidade dos arrendondada. Em seu inlerior, índios em
costumes indígenas arriscava-se a fecun transe oficiam diante de um ídolo que sus-
dar o tema culturalmente valorizado na . tentava várias cabeças de animal. Ao flm
Europa, de col]los nus e bem proporci do, homens enterram um morto. À volta, ,
onados, mas as escassas penas que co mulheres acocoradas choram. A aldeia é
briam as chamadas partes pudendas acaba constituída por palhoças alledondadas.
ram por introduzir uma irredutível defor- Um guerreiro observa a cerimônia. Senta-
REIRATO DA AMÊRICA QUANOO JOVEM 11
religião não têm nenhum ponto comum Ayalll de'iSUS /efront WIepiene de pris,
com os cristãos da Europa. Ele é definitiva Donte/le en a 10UI p/ein en sa Iene et
mente o Outro, cuja presença nem os anti
•
pourpns,
gos greco-Iatinos nem a Bíblia invocavam, Naus representons icy l'Amerique
diFerentemente do aFricano e do asiático, I'avare,
12 FSllJDOS IDSTÓRlCOS - 1992/9
Nos textos escritos ou iconográficos ob Frans Francken, num quadro sobre a
serva-se o empobrecimento temporário abdicação de Carlos V. retrata a alegoria da
que acompanhou os valores humanísticos América de joelhos, entre tesouros e um
no fim do Renascimento. Algreja Católica, tatu. Araras, papagaios e macacos freqüen
por seu tumo, colocando as artes a serviço tam as "festas campestres" pintadas por
da moral e do dogma, ensejava que se lesse Dirck Hals ou as gravuras de Jean d e Mes.