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TO DA AMÉRICA

""'UANIJO o M*
Ima ens e representações
sobre o ovo Con· ente entre
os sé os e II

Mary Lucy Murray Del Priore

"Voi/à un monde qui ne peut estre va-se a outra, igualmente cara ao Renasci­
remply que de toUles sortes de biens et mento: aquela de urna Idade de Ouro onde
c/wses Ires excellentes; iI ne faut que vicejaria o estado natural que teria antece­
les decouvrir". dido a Antiguidade. O século xvn é mar­
cado por uma visão ao mesmo tempo mis­
La Popeliniere, Les trois Mondes, 1582 sionária e colonial, fruto do desejo univer­
sal de conquista, mas também do poder
absolutista de jovens Estados Modernos e
esde o achamento da América, cada da Igreja reformada. Na visão naturalista e
século exprimiu-se na pelOepção do científica do xvm, os enciclopedistas as­
Novo Continente através de uma visão de sociavam a relatividade religiosa com a
mundo que 'lhe era própria e específica. noção de um homem originalmente puro,
Suoedendo-se uma a outra, podemos, de o ''bom selvagem", o que abriu as portas
início, identificar imagens da América c0- para o pré-romantismo. Já no infcio do
mo uma passagem para o Oriente -grande XIX, a França, por exemplo, olhava a
preocupação do século XVI - caminho, América através de uma visão de mundo
portanto, para a fontede sonbadas riquezas que fez desabrochar uma sensibilidade r0-
referidas ao Eldorado. Esta imagem liga- mântica, na qual o exotismo teve um gran-

Sou ..ta • OEA e lO Goveroo da França pelo p'êmio que me vamitiu pcsqwlU na Bibliolhhquc NltionaledcParia,

oode levantei omateriaJ cartogUico para elCe artiF.

e"
..k,H� RiodeJaneir� vai. S. D. 9,1992, p. 3-13

4 ESTUDOS HlSTÓRlCDS -1991}}

de papel. Vejam-se os clássicos Atala, de foram obra do acaso. &tão ligadas ao de­
Chateaubriand, ou Les Incas, de Mannon­ senvolvimento do comércio da época e à
tel, para ficar nos mais conhecidos. evolução de conhecimentos técnicos, co­
Thstemunha atenta destas variações na mo a descoberta da b1Ísso la, da orientação
perrepção do Novo Continente, o mapa e de ventos e correntes, o aperfeiçoamento
seus ornamentos apresenta-se como um ali­ da navegação marítima e a introdução de
ceICe cognitivo no qual se entrelaçam a novos tipos de barcos, nos quais os mari­
imagem de positividade do próprio docu­ nheiros tinham mais esperanças de voltar
mento e a visão de mundo de que é portador ao porto.
e a partir da qual se funda a imagem do Neste mesmo período, inicialmente na
Outro. É importante o estudo do sentido das Itália e depois no resto da Europa, a im­
imagens nas vinhetas dos mapas para co­ prensa começa a se impor, e sem ela é
nhecer a representação dada pelo cartógra­ impossível pensar no desenvolvimento da
fo, somada àquela dada pelos indivíduos, cartografia. A xilogravura pertencia às téc­
grupos e sociedade que, ao contemplá-los, niOlS gráficas mais antigas e foi, até mea­
vêem aí uma paisagem real e outra, ideal. dos do século XVI, a técnica principal para
Os mapas medievais, Mappae Mundi, a fabricação de mapas. Neste setor de artes
reconbecidos como "cartes moralisées", gráficas os alemães tinham a primazia, por
eram mais portadores de valores ideológi­ serem mais artistas do que artesãos. A1-
cos do que repositórios·de fatos geográfi­ brecbt Dürer era um destes expoentes e,
cos e históricos. Um saltério anônimo do entre outros, destacou-se por suas cartas
século XIII, por exemplo, revelava a loca­ imp ressas à mão, ou por xilogravuras pro­
lização da muralha atrás da qual Alexandre duzidas a cores.
o Grande prendera as bordas de Gog e O peosamento na Europa à época dos
Magog. trazia um catálogo de bumanida­ descobrimentos inseria-se numa concep­
des consideradas monstruosas e derivadas ção de História dominada pela idéia de que
dos escritos de Solinus, bem como aponta­ o Mediterrâneo e as partes orientais eram o
va a situação de Jerusalém e do Paraíso. centro de difusão em tomo do qual se agru­
Neste período, desenhavam-se distâncias pava o mundo habitado. A multiplicação de
de forma esquemática, e sábios religiosos civilizações exóticas conhecidas incenti­
copiavam, segundo a tradição, manuscri­ vou, todavia, analogias, e nelas, o sentido
tos e cartas geográficas transmitidas por de contrastes, às vezes críticos, sobre ternas
gerações passadas. Os homens se interes­ comparativos como as representações an­
savam muito pouco pela forma verdadeira tropomórfiOls ou as cOllespondências esta­
da terra, enquanto a Igreja Católica incen­ belecidas entre os ciclos históricos do Velbo
tivava os cartógrafos a retratarem-na como e do Novo Mundo. Neste contexto, os ma­
expressão artística e contemplativa de suas pas e seus omamentos acabaram por cons­
próprias idéias. &ta imagem "fechada" do tituir-se mais numa invisível paisagem de
mundo não foi jamais modificada pelos idéias do que na descrição de um terreno
relatórios de religiosos que fizeram via­ tangível sobre o qual se destnbufam formas
gens de missões nas regiões longínquas, e direções. O 1heatrum Orbis Terrarum, de
em particular na Ásia. Outras viagens fo­ Abrabam Ortelins (1527-1548), é um bom
ram necessá rias até que este mundo se exemplo desta maneira de pensar, uma vez
abrisse. que coloca em causa a v.isão aristotélica e
O Renascimento da cartografia foi ptolomaica do mundo sem que as crenças
�ndemente determinado pelas descober­ populares nem a prática marítima tenham
tas geográficas. &tas, por sua vez, não sido transformadas. Nele, a viagem real e

REIRAro DA AMÉRICA QUANDO JOVEM 5

11 , I

aquela do espírito se misturam, pennitindo dos mapas impressos ao longo do século


a coexistência de lendas e fatos, de mitos XVI que estes não satisfaziam a demanda
vividos como realidades e de verdades des­ crescente de tiragens novas. Destinados a
critas como fabulosas. Aí, por exemplo, a um largo público, somavam-se a eles as
ilha de Próspero é reconhecível pelo seu cosmografias acompanhadas por mapas
público, capaz de descobrir o real através executados em xilogravura, cujo objetivo
do imaginário. Esta geografia fantástica, era familiarizar ao máximo o leitor com
patrimônio que desde a Antiguidade era fenômenos e eventos ali descritos.
transmitido aos diversos autores, irrigava
outros trabalhos igualmente importantes.
Duarte Pacheco, no seu Esmeraldo de Siru
Orbis, indica na região da Serra Leoa a
Diálogos silenciosos
existência de "homens selvagens a que os
entre o real e o sonho
antigos chamavam de sátiros, todos cober­
tos de cabelos e cerdas tão ásperos quanto
o estudo dos ornamentos cartográficos
porcos". A cosmografia de Jean de Fonte­
pennite acompanhar a trajetória de um in­
nau (1559) explicita, por sua vez: "Et ou ventário de variantes que, modificando tal
dedans de la /erre, (Angola), y a des gens figura ou tal imagem, traz sentidos novos à
qui n'ontpointde teste et est la testededans interpretação dos mapas modernos. Atrás
lapoitrine, et lOut /e resteformed·"omme. "
de cada vinheta dissimula-se uma intenção
lesin U1sius, numa carta feita em 1599 so­ polêmica, mllis ou menos expücita ou es­
brea América do Sul, i1ustra-a com homens condida, que visa justificar, convencer ou
sem cabeça, amazonas, animais insólitos e sublinhar. As imagens nos ornamentos e
antropófagos. Tal era a beleza e a riqueza vinhetas das cartas geográficas propõem ao
6 ESlUDOS mslÓRlCX)S - 199219

leitor a coneta compreensão do texto e sua literatura, tanto a gravura sobre madeirn
justa significação. Neste papel, elas são um qll3nto aquela realizada em talho doce foi
lugar de memória crista livmdo uma única largamente utilizada para permitir uma
representação, uma história, uma propa­ maior riqueza de modelos ou de detalhes
ganda, um ensinamento. Ou bem, como sobre os habitantes e os mores americanos.
sugere Roger Chartier, são construídas co­ As duas diferentes técnicas não t inham se­
rno uma figura moral, simbólica e analógi­ não o alvo de apriinorar o texto com ima­
ca, que salva o sentido global do texto gens singulares deste vasto e aparentemen­
cartográfico de sofrer uma leitura descontí­ te estranho mundo novo.
nua e errática. Neste uso, portanto, envol­ Antes que a América fosse descoberta,
vem adesão, produzem persuasão e crença, existia, contudo, um outro tipo de imagem
exprimindo, finalmente, a teoria da intelec­ e estampa de tema alegórico que repre­
ção pela imaginação. sentava as quatro estações, os quatro hu­
Nesta perspectiva, observa-se também mores, as quatro virtudes cardeais etc. Esta
que desde o Renascimento uma nova con­ fonna de decoração de vinhetas era berdei­
venção pictura I somara-se à já tão utilizada ra de tradições medievais. Santo Isidoro
iconografia das alegorias presente na car­ expusera o significado escondido dos nú­
tografia. A América, como os outros con­ meros num tratado intitulado Liber Nume­
tinentes, surge personificada como uma rorum, e este tipo de especulação estendeu­
mulher vestida de atributos e acompanha­ se a outros autores do peóodo moderno. O
da de animais característicos do Novo número quatro era o dos evangelistas, dos
Mundo. Assim, com variantes de detalhes elementos (água, ar, fogo, terra), dos qua­
que se revezam desde o século XVI, ela tro rios do Paraíso, dos quatro ventos, das
emerge num "décor" de árvores tropicais, quatro idades do homem, das quatro letras
paramentada com uma coroa, um cinto e do nome de Adão. Sete eram os dias da
um bracelete de penas. A seus pés jaz um semana, os pecados mortais, as idades do
tesouro, guardado por um jacaré, uma tar­ mundo. Nos mapas modernos, esta tradi­
taruga, um tatu e papagaios. Suas armas ção mantém-se incorporaodo também os
são um arco, aljava e flechas. A noção de quatro continentes. Willem Janszoon
exotismo domina a representação da Amé­ Blaeu, em seu Nova Totius Orbis Terra­
rica como o índio no motivo do selvagem Mim, utilizou vinhetas com os sete deuses
bárbaro, cruel, antropófago, ou o seu con­ gregos, as sete maravilhas, os quatro ele­
trário, o homem em estado natural, o Hbom mentos e as quatro estações. Ortelius, no
selvagem" das Luzes. Este índio de con­ seu já mencionado Theatrum.. , apresenta
.

venção se prestará a inúmeras metamorfo­ 70 mapas detalhados dos países dos quatro
ses e será freqüentemente utilizado nas continentes, além de mapas sobre os quatro
vinhetas ou cartouches dos mapas. continentes e um mapa-múndi, todos
Observe·se que a descoberta da América alegoricamente decorados. Em 1668, Fre­
trouxe, na sua esteira, a proliferaçao de um derick de Wit reconeu às ilustrações de
certo gênero literário: atlas, relações de via­ Romeyn de Hooghe para encher as vinhe­
gens, cosmogra fias e mesmo coleções tas sobre os quatro elementos que adorna­
agrupando diferentes relatos de diversos riam um de seus mapas, e este artista, por
.. . . .
vIajantes nos quaIS emergIa a expenencla .
sua vez, utiliza seminuas e anendondadas

'

européia nas novas terras, mas também a figuras femininas que se espalham em
visão própria da cultura ocidental na per- campos de trigo, no céu entre anjos e pás­
, . saros, entre monstros, barcos e sereias no
manêncla de seu laço com O Novo Mundo
e suas trallSfonnações. No inlerior desta mar, e em meio ao fogo da guem.
EIRAlO DA AMÊRICA QUANDO JOVEM
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Os mapas publicados a partir do século todas as características do classicismo hu­


XVI já trazem consigo a marca de um manista.: a musculatura belamente Iornea­
olharcaracterístico sobre a América. Ainda

da, os troncos escassamente vestidos, as
presente em Pacheco Pereira ou Fontenau, fISionomias européias, os cocares, cintos e
o caldo do maravilhoso medieval confron­ alguns mantos de penas, as crianças com
tado com as realidades vai desaparecendo, ar angelical. No Theatre de la Gue"e en
e uma teoria humanista da pintura faza sua Amerique telle qu'elle est a present posse­
transferência para a cartografia. Nela, o dée par les espagnols, Pierre Mortier, em
pressuposlo fundamenlal é a imitação ideal 1705, inclui cenas de mineração de ouro e
da natureza humana em ação. A arte deve­ índios vestidos com penas, apontando para
ria exprimir uma verdade geral em detri­ os cofres cheios de moedas, barras de ouro
mento do específico ou do local e, inspira­ e jóias, ofertando ao espectador-sonhador
da na literatura greco-romana, almejaria um retraio da rotina e da rota dos tesouros
deleitar e instruir simultaneamente. Nesta americanos. Ao fundo, um dado real: bar­
linhagem é que, em 1630, Blau incorpora cos ingleses e holandeses disparam tiros de
a seu Atlas a iconografia de povos que canhão contra os espanhóis e franceses.
habitavam as terras americanas. Eram os A visão de mundo passada através des­
Mexicani, os Rex e Regina Floridae, os tas imagens e de outras tantas fundamen­
Peruvillni, os Brasiliani mUi/ales, entre ta-se num elogio ao presente e ao seu valor
outros. Seus corpos são desenhados com civilizacional. Por isso mesmo, os grava-
8 ESTUIXJS HISTÓRICOS -199219

dores europeus pennitem-se a tentativa de objetos emblemáticos (cachos de uvas, tri­


compatibilizar mundos diferentes. No ma­ go, comue6pias), um tema tomava-se ale­
pa mais prolífico, editado no final do sécu­ górico. O cristianismo, por exemplo, rep­
lo xvn, Frederick de Wit DÚStura na Amé­ resentava-se sob a forma de um castelo que
rica imagens naturalistas e tropicais: cara­ devia ser defendido; armas, castelo-forte,
vanas, camelos e autoridades trajadas com navios figuravam em sua alegoria. Depois
turbantes orientais freqüentam a mesma da descoberta do Novo Mundo, a Europa,
cena que europeus enchapelados, portando identificada com o cristianismo, repre­
crures e bandeiras, e negJos africanos ves­ sentava-se como o continente detentor de
tidos 11 americana. O jogo antropológico, um fonnidável poder geopolítico em face
como diria Luiz Felipe Barreto, faz-se no da Ásia, da África e da América. Aquestão
interior do espelho religioso, amvés do mais contundente a ser observada nas vi­
qual só se vê o Outro como o anticristão. nbetas alegóricas é a de como a cristandade
O cristianismo é o denominador cultural ocidental se projetava e se representava nas
europeu e, fora dele, só existem indícios do suas relações com os outros continentes.
que poss a anular o idmo anunciado pela Ou ainda, de como esta mesma cristandade
Igreja ou pelos Estados conquistadores. apreendeu e representou o Outro por inter­
A iconografia nos mapas modernos co­ médio de alegorias.
loca-se, assim, a serviço da legitimação Há três pontos que devem ser observa­
moral de assuntos profanos, bem como dos dos na cartografia para se ter uma idéia de
dogmas cristãos. O não-cristão apresenta­ como Um disculSO específico sobre a Amé­
se seminu para ser catequizado; o muçul­ rica e seus habitantes foi construído: a
mano, com cimitarra e turbante, devia ser postura (de pé, sentada, deitada). a roupa
convertido. Todo um conjunto de imagens (nudez, drapeado, saia, vestido) eos instru­
extraídas do caleidoscópio eurocêntrico mentos (cetro, tunoulo, ramos, maça, ca­
justificava a presença ocidental em terra beça decapitada). Tndos estes elementos
americana. E tudo se justificava ao ser traduzem uma ordem hierárquica social,
pintado na América. Até animais africanos, cultural e religiosa entre as distintas alego­
como antüopes e elefantes, aparecem nas rias sobre os continentes.
cartas sobre a América. O fato é que uma Sempre apresentada de pé ou sentada, a
leitura específica se fazia destas cartas. Europa porta coroa, vestido longo, às vezes
Uma leitura encorajada em nome da con­ chapéu, coroa de Dores ou capacete. Seus
veniência, da semelhança e, quando muito, instrumentos são o cetro, a comue6pia da
da erudição. abundância, a esfera e a cruz, um touro e
annas.

A Asia mostra-se de pé, com vestido,


chapéU/tUlbante, mzendo nas mãos ramos
de canela ou pimenta, tunoulo com espe­
A América e os americanos: ciarias, e acompanhada por um camelo.
Mj61as maravilhosas feitas de Seminua, vestida com um drapeado ou
astros e éter"? uma saia, aparece a África. Ora porta um
guarda-sol, ora um ramo, e está sempre
Como já afirmamos, a alegoria passa a secundada por crocod ilos, elefantes ou
ser muito utilizada nos mapas modernos, leões. Sua posição é sentada ou deitada.
pois ela pennite lecuperar uma enorme Quase sempre deitada, com a cabeça
nqueza de detalbes, inserindo-se nesta ma­ ornada de penas, mzendo sobre o Corpo nu
triz aquela da América. Pela presença de apenas um saiote e carregando um 31UJ,
REJRAro DA AMÉRICA QUM'DO JOVEM 9


flechas, uma maça, tendo aos pés um tatu culturnl entre os povos representados. Em
ou um jacaré, apresenta-se a América. contraste com os vestidos luxuosos da Eu-
ropa, ou sofisticados da Asia, a América

A posição espacial que ocupa a ima­


gem, valorizando ou oâo uma posturn di­ veste-se com plumas ou penas que a reme­
ferenciada, é denotativa da mensagem que tem ao aspecto arcaico do indivíduo primi­
se quer passar sobre o continente. Alonga­ tivo coberto com peles de animais. Até o
da ou deitada encontrn-se a culturn consi­ guarda-sol portado muitas vezes pela Áfri­
dernda prinútiva, ou seja: a América. De ca tem um caráter de vestimenta suplemen­
, pé, as civilizadas Ásia e Africa; espiritua­ tar contrn as agressões exteriores que o
Iizada e reinante, símbolo da hegemonia saiote de plumas oâo possui.
geopolítica, a Europa. Mesmo quando aparecem ambas senú-
nuas, Africa e América apresentam diferen-

A transformação de fibrns vegetais, ani­


mais ou núnernis denota, parn cada alego­ ças cuja leiturn esconde distintos sentidos.
ria, um estado de evolução técnica e uma A América é pintada com seios pontudos,
organização social concretizada na vestl­ cinlurn curvilínea e o ventre achatado de
menta. Esta constitui-se num elemento uma donzela púbere e, portanto, infecunda.
emblemático distintivo de uma hegemonia A África possui os seios pesados e é dese-

10 ESruDOS HlSTÓRJ = - I992'l

nhada como uma mulher madura aljo midade e também uma uniformidade no
potencial está em plena fruição ou desfrute. despudor.
Esta sucessão de significantes na alegoria Numa época de releitura da Biblia, de­ (,

sollre a América testemunha a lenta diges­ vido às Reformas, poderiam seres marca­
tão intelectual do traumatismo que foi para . dos pelo pecado original andar nus sem
OS europeus a descoberta do Novo Mundo. infringir as leis de Deus? A quase nudez
Esta estranheza diante da distante diversi­ dos americanos não os aproximaria da sei­ .<

dade, longe de favorecer o desabrochar de ta herética adamita, condenada tanto por


um olhar objetivo, revelou-se para a cris­ proteslantes quanto por católicos?
tandade como o mais ínlimo dos espelhos: As alegorias sobre a América e seus
aquele dos seus próprios desejos indivi­ habitantes sublinhavam a parcimônia com
duais e de seus sonhos coletivos. que as informações chegavam à Europa.

Distante ou próximo, diz Nicole Pelle­ Ao visualizar sob formas sintéticas a apa­
grin, o Outro é permanentemente aquele rência de sociedades inteiras, elas colocam

que está vestido de forma diversa. E isto em evidência um sistema iconográfico que
revela menos as diversas formas de viver
em um tempo em que a veste, não oontente
dos vários grupos que povoavam o Novo
de distinguir o animal do homem, lama-se
Mundo do que os reduzidos estoques de
também um costume e elemento funda­
imagens de que dispunham OS ateliers de
mental de discriminação social e cullural.
impressores entre os séculos XVI e XVII.
A representação da nudez dos americanos,
No imaginário ocidental o índio nu e
ou a escolha de seus objetos vestimentares,
emplumado reemerge no fim do século
reporta- se à influência da dupla herança, ,
XVIII, depois de atravessar um purgatório
biblica e mitificante, que eslrutura, então,
de baileIS à fantasia que ponlilharam as
a cultura européia e cristã. Não é necessá­
suas aparições nas cortes européias no pe­
rio lembrar as quatro significações simbó­
óodo anterior. Sua presença nas vinhetas e
licas que a teologia medieval emprestava à •
alegorias, todavia, não teve por finalidade
nudez (naluralis, temporalis, virtualis,
fornecer, na sua totalidade, os maleriais de
criminalis) para explicar os julgamentos
um verdadeiro conhecimento do Oulni en­
contraditórios sobre a nudez dos america­
tre os séculos XVI e XVII. Evocando a
nos estampada nas representações icono­
bizarria humana, sua diferença trabalhava
gráficas dos mapas. A insistência e a am­
para a única Ciência digna deste nome,
bivalência destes julgamentos são o fruto
aquela que procurava encontrar, através
de uma obsessã o onde coabitam tanto a das coisas, a vontade de Deus.
idéia de uma nudez vergonhosa, devido ao Uma vinheta num mapa de Josua v..n
impudor e à indigência, quanto aquela, Ende (1640) permite uma observação mais
motivada pelas descobertas greco-latinas aalrada do tipo de leitura que se fazia:
no Renascimento, de uma nudez gloriosa, gesticulando, uma fúa de homens segue
símbolo de inocência ou de humildade. um índio que bate um tambor em direção
Entre o sonbo da Idade de Ouro e o a um pequeno santuário com uma abóbada
fantasma da besta brutal, a realidade dos arrendondada. Em seu inlerior, índios em
costumes indígenas arriscava-se a fecun­ transe oficiam diante de um ídolo que sus-
dar o tema culturalmente valorizado na . tentava várias cabeças de animal. Ao flm­
Europa, de col]los nus e bem proporci­ do, homens enterram um morto. À volta, ,

onados, mas as escassas penas que co­ mulheres acocoradas choram. A aldeia é
briam as chamadas partes pudendas acaba­ constituída por palhoças alledondadas.
ram por introduzir uma irredutível defor- Um guerreiro observa a cerimônia. Senta-
REIRATO DA AMÊRICA QUANOO JOVEM 11

dos sobre um banco rústico, selvagens velhos companheiros de comércio e de tro­


conversam. Ao centro um homem está cas. Nestes, o estranha Olcnto ou a ubarbá·
ajoelhado e de sua cabeça escone matéria rie", a diferença c a "inferioridade" com­
encefálica. O ca rrasco brande a borduna. portavam IÚveis conhecidos. O Outro ame­
Outro índio lança-se, arco em punho e ricano, a despeito da bula Sublimis Dem de
a1java nas costas, em direção a um grupo Paulo m. promulgada em 1537, conferin­
, de selvagens. F.stes estão avaliando a cora­ do-lhe o status de ser humano, estava na
gem de um prisioneiro que, embora amar­ consciência comum e 00 iInaginário coleti­
rado pela cintura, atira uma pedra ao seu vo europeu mais próximo da besta selva­
sacrificador. A golpes de borduna e entre gem, por nutrir-<;e de carne humana. Con­
chuvas de flechas, selvagens gueneiam. trariamente ao "bárbaro", que a tradição
Feridos agonizam pelo chão. Ameríndios bumanista e a Antiguidade mediterrânica
desmembram um morto e cada qual toma tinham de alguma maneira assimilado, con­
a sua parte. O escalpo desta vítima será Ferindo-Ihe um status 00 seio de uma dialé­
retirado depois que um gueneiro enfiar-lbe tica lingüística e s6cio<ultural, o selvagem
uma flecha 00 ânus. Próximo à grelha, um americano é o primitivo que vive 00 seio de
homem agachado aviva o fogo, e todos à uma natureza exuberante e virgem, igno­
volta mastigam carne bumana. À sombra rando as leis mais elementares da sncieda­
de uma árvore, protegida por uma rede em de, sobretudo, da sociedade urbana, modelo
dossel, América observa a cerimônia de europeu de sociedade e de sociabilidade.
canibalismo. Seus cabelos estão amarra­ Ele não conhecia a comunidade familiar,
dos numa longa trança, colares de pérolas era incapaz de falar ou empregar uma lin­
pendem de seu pescoço e tornozelos, nas guagem de comunicação, e, em resumo,
costas uma capa curta de penas. Na mão melhor seria que constituísse um capítulo à
direita segura o Thpã, maça cerimonial, parte, num livro de História Natural, de
reconbecivel por pequenas penas f1X3daS Mirabilias et Monstra ou de singularida­
na parte iIúerior do punho. A seus pés, o des. O americano, do qual a alegoria da
chão está juncado de diferentes capacetes América é uma representação, faz jus ao
e chapéus que representam as variadas na­ texto simbólico e sintético do Atlas que
ções que povoaram a América, somados a Abrabam Ortelius editou em 1568:
diversas annas e ornamentos de plumas e
penas. Vê-se ainda um corno através do "Ce/le qui tOUl en bas sur la I'".e
qual os índios chamavam-se para a guerra c ouchée
e uma cabeça humana decapitada trespas­ TOUIeniie tu vois, deplwnenes coiffée
sada por duas flechas. Na mão esquerda, AyaJ/I ",.I'WIl! nuli/' /e cilefd'un
América traz seu arco. Seminua, está sen­ ilomme mort
tada sobre um gigantesco tatu. Ell'autre /e bastOll, d'ont e/lefait
A imagem pennite a descoberta de um l'e!Jort
Outro absoluto. Aquele sobre cuja antropo­ Meurdrissantles humains d'WIe
fagia Montaigne já tinha escrito. Nesta vi­ cruJluté grwuJe,
nheta o ameríndio não é apenas aquele cuja Les corps desquelz apres /ui serven/ de
aparência física, mores, vestes, vida social, v iaruJe · ,

religião não têm nenhum ponto comum Ayalll de'iSUS /efront WIepiene de pris,
com os cristãos da Europa. Ele é definitiva­ Donte/le en a 10UI p/ein en sa Iene et
mente o Outro, cuja presença nem os anti­

pourpns,
gos greco-Iatinos nem a Bíblia invocavam, Naus representons icy l'Amerique
diFerentemente do aFricano e do asiático, I'avare,
12 FSllJDOS IDSTÓRlCOS - 1992/9

La gourmandepar trop illhU/TUline et A alegoria da América, o ameríndio e


barbare seus petrechos, depois de sofrerem a ine­
Lesp lwnes sur son chefet gemmes sur vitável deformação dos quadros mentais
sonfront, europeus, saltam dos mapas para outras
A utour la greve encor des soruJe/!es en obras de arte. Circulam na cultura do Velho
rond Mundo associados à inferioridade técnica,
Son tous Ies ornemenJs dont el/e se à bestialização e, conseqüentemente, à es­
decore cravidão. São sempre representados de
EIl'1IIllIIie souventl' are etf1esches acordo com os objetivos europeus de ex­
encore, ploração e catequese. Micbelangelo os in­
Par lesquelles souloit les pouvres gens sere no grupo do Jufzo fina l pintado na
navret; Capela Sistina, próximo ao altar mor. É
Pour (comme je I'ay dit) desmembrer el Fidelino Figueiredo quem descreve: "Um
manger. moço vigoroso levanta para os céus, isto é
Puis, pleine de la c/Illir des hommes, para o mundo da salvação, com toda a
qu'en la chaçse energia mas sem constrangimento no es­
EIIe a prins et mez, et de la chasse /asse, forço dois homens etnicamente exóticos:
S'en va dormir dessus UI! hortUlS um negro e um índio, este em hábito ecle­
estellou siástico. Não lhes dá a mão diretamente,
A dera arbres voisins, ou e/Ie I'a levanta-os pelo rosário a que eles se ape­
pellou " gam, como náufragos se afincam no cabo
que lhes estendem ... "

Nos textos escritos ou iconográficos ob­ Frans Francken, num quadro sobre a
serva-se o empobrecimento temporário abdicação de Carlos V. retrata a alegoria da
que acompanhou os valores humanísticos América de joelhos, entre tesouros e um
no fim do Renascimento. Algreja Católica, tatu. Araras, papagaios e macacos freqüen­

por seu tumo, colocando as artes a serviço tam as "festas campestres" pintadas por

da moral e do dogma, ensejava que se lesse Dirck Hals ou as gravuras de Jean d e Mes.

a nudez e a antropofagia americanas como


As faianças de Delft, ilustradas por autores
anônimos, traziam africanos vestidos à
mais uma razão para a catequese. Apresen­
americana. O luxo vestimenta r aderiu às
ça de tais representações na iconografia
COres rutilantes, às plumas e aos rosários
cartográfica era a prova lógica da existên­
de pequenas conchas. Numa festa realiza­
cia de primitivismo nas terras �o Novo
da por Luís XIV em junho de 1662, o
Mundo, mas tais imagens sublinhavam
Duque de Guisc conduziu uma quadrilha
também a energia retórica e o poder de
de "americanos", vestidos com peles e ga­
legitimação conferido aos mapas na idade
lhos de pau-brasil, trazendo às mãos pesa­
moderna. Figurado nas cartas geográficas,
das e mortais bordunas. Israel Silvestre e
o ameríndio deixa de ser sujeito humano François Chaveau, encarregados de trans­
para constituir-se em objeto de saber euro­ portar para gravuras coloridas com guache
peu e cristão. Sua nudez é aquela da fé e da o famoso Carrousel que se formara, faz
lei. O olhar que lançam sobre ele é o de acompanhar os bizarros ameríndios por
um colecionador de curiosidades. Na Wun­ sátiros e um unicórnio, como se todos,
der kammer quepossuía Montaigneem seu indistintamente, pertencessem a uma terra
Choleau, exibia-se uma invejável america- imaginária.
,

na composta por redes, maças, bastoes de Montaigne perguntava:"Ya-l-iI rien de


-

ritmo e artefatos de penas. plus conforme a norre 1Illture que d'aimer


REIRA1'0 DA AMDICA QUANOO JOVEM 13

te changemenJ et de se plaire li la diversi­ BENASSAR, Bartolomé e BENASSAR, Luci­


té?" le. 1991. 1492 - Un monde fIOUveaU? Paris,
pemn.
A diversidade seIViu para semear, nesta
BRoc, Numa. 1974. La gé<Jg'.p/úe de. p/Ú/Q­
invisível paisagem de idéias que eram os
sophes - gé<Jgraphes et voyageurs fra"fl'is
mapas modernos, o retrato de uma Améri­ au XVII/e .iecle. Paris, Ophrys.
ca diferente, cuja diferença era sinônimo CEARD; Jean e MARGOLIN, Jean-CIaude.
de perigo e estranhamento. Este "retrato da 1987. Voyager à la Renaissance. Paris, Mai­
América quando jovem" foi pintado com sonneuve & Larose.
traços e imagens que procuravam conven­ DIAS,J.S. da Silva. 1973. O.descobrimenJos e
a problemática cultural do s<cu/Q XVI. Lis­
cer o leitor, cristali7JIndo representações e
boa, Editorial Presença
ensinamentos Polêmicos, discretos ou ex­
rnARTIER, Roger. 1990. A hislór;" cultural
plícitos sobre o que seria o Novo Continen­ entre prálicas e represe.maç&s. Usboa, Di­
te. Atrás de tais imagens, a cristandade fel.
européia projetava-se como superior, p0- ELLIOT,J.H.1984.0 Velha Mundo e oNovo-
derosa, remida pela fé e consagrada pelo 1492-1650. Lisboa, Edilorial Querco.
avanço técnico. Longe da visão romântica FIGUEIREDO, Fidelino de. t987.A épica por­
tuguesa no século XVI. Lisboa, Imprensa
que os pintou no século XIX como se
Nacional-Casa da Moeda.
fossem feitos de "astros e éter", os amerín­
LEE, Rensselaer W. 1991. UI pictura poesis­
dios são apreendidos, entre os séculos XVI
humanisme &. Ihéorie de lo peinturej XVe -
e xvm, como inumanos, bárbaros, avaros XVJlJe s;ules. Paris, Macula.
e gulosos. A descoberta, a que se referia LESTRlN GANT, Frank. 1990. Le huguenot et
iniciahnente um entusiástico La Pope linie­ � sauvage. Paris, Kliocksieclt.
re, transformou-se através dos mapas e -- .1991.L'aJelierdu cosmographe ou rima­
cartas geográficas num misto de espanto, ge du ,"onde à la Renaissance. Paris, AJbin
Michel.
desprezo e borror.
PELLEGRIN, Nicole. 1987. "Võlements de
peau (x) el de plumes: la nudité des indiens"
in Voyager à la R�isSQnce, org. Ceard e
Margolio, Paris, Maisonneuve & Larose.
TAfLLEMlTE, Étienne. 1987. Sur des mer.
Bibliografia Uaco1lll.l4U Paris, GaJlimard.

AIRUQUERQUE, Lufs. 1989. A náutica e a


ciência em Portugal. Lisboa, Gradiv8.
--o 1987. As navegaçõt!s e a .RIa projeção na Mary Del PriOJe é professora do Departa­
ciência e no cuUura. Lisboa, Gradiva. mento de História da USP.

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