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362 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2):


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nial: na Amazônia colonial:
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à cura do corpo
orpo (1707-1750)

1750)
CLAUDIA ROCHA DE SOUSA
Universidade Federal do Pará, Brasil

363
Sousa, C. R. de

AS PRÁTICAS CURATIVAS NA AMAZÔNIA COLONIAL: DA


CURA DA ALMA À CURA DO CORPO (1707-1750)
Resumo
O presente artigo analisa as epidemias que grassaram no Estado do Maranhão e
Grão Pará na primeira metade do século XVIII, as quais apresentaram dois
grandes surtos epidêmicos que afetaram drasticamente a população indígena,
com alta taxa de mortalidade. Com a depopulação indígena, os moradores
sofreram a falta de trabalhadores. Além disso, houve a necessidade de contar
com profissionais da arte curativa, o que fez com que os religiosos passassem
a ser “médicos” da alma e do corpo. O artigo desenvolve uma análise acerca
das práticas curativas na América portuguesa e as relações entre os saberes
curativos de europeus, indígenas e africanos. A análise foi feita a partir da
documentação dos acervos do Arquivo Histórico Ultramarino, Anais da Biblio-
teca Nacional (volume 67), Anais do Arquivo Público do Estado do Pará e
das obras do padre jesuíta João Daniel e do viajante francês Charles-Marie
de La Condamine.
Palavras-chave: Amazônia colonial, epidemias, práticas de cura.

HEALING PRACTICES IN THE COLONIAL AMAZON REGION:


FROM THE CURING OF THE SOUL TO THE CURING OF THE
BODY (1707-1750)
Abstract
This present article analyzes the epidemics that spread across the state of
Maranhão and Grão Pará in the first half of the 18th century, when two
large epidemic outbreaks affected dramatically the indigenous population,
with high rate of mortality. Due to the indigenous population decrease, the
colonists were affected by lack of work force. Besides that, there was the
need for professional healers, a fact that led the priests to become “physi-
cians” of the soul and the body. The article further analyses the curative
practices in the Portuguese America and the relations among the curative
knowledge of European, Indigenous and African peoples. The analysis was
based on historical documents of the collections of the Overseas Historical
Archive, Annals of the National Library (volume 67), Annals of the Public
Archive of Pará State and the writings of the Jesuit priest João Daniel and of
the French traveler Charles-Marie de La Condamine.
Keywords: Colonial Amazon, epidemics, curative practices.

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As práticas curativas

LES PRATIQUES DE CURE EN AMAZONIE COLONIALE: DE LA


GUÉRISON DE L'ÂME À LA GUÉRISON DU CORPS (1707-1750)
Résumé
Cet article analyse les épidémies qui se sont étendues dans l’État du Maranhão
et Grão Pará dans la première moitié du siècle XVIII, auxquelles présentent
deux grandes éclosions épidémiques qui ont affecté radicalement la popula-
tion indigène, car c’étaient des périodes qui ont présenté des hauts taux de
mortalité entre ces peuples. Dans le contexte d’épidémies, il y a les problèmes
pour la société coloniale, puisque avec la dépopulation indigène, les habitants
ont souffert avec la manque de travailleurs. Au-delà de ça, il a eu la nécessité
de professionnels d’art curatif, fait qui a résulté dans l’action des religieux
qui sont devenus des « médecins » de l’âme et du corps ; on développe aussi
une analyse à propos des pratiques curatives dans l’Amérique portugaise et
les rapports entre les savoirs curatifs des européens, des indigènes et
des africains. L’analyse a été faite à partir de la documentation des fonds
d’Archives Historique d’Outre-Mer, d’Annuaire de la Bibliothèque Nationale
(volume 67), d’Annuaire d’Archives Publique de l’État du Pará et d’oeuvres
du prêtre jésuite João Daniel et du voyageur français Charles-Marie de La Condamine.
Mots-clés : Amazonie coloniale, épidémies, pratiques de guérison.

Endereço da autora para correspondência: Passagem Bom Jesus, 17. Bairro Terra
Firme. CEP 66077-070, Belém, PA. E-mail: claudiarochahistoria@hotmail.com

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INTRODUÇÃO destribalização e de homogeneização


deculturativa”, tendo como produto fi-
Na primeira metade do século XVIII,
nal “o índio privado de sua identidade
o Estado do Maranhão e Grão-Pará1
étnica”, e sendo os índios aldeados
passou por vários surtos epidêmicos,
(tapuios) a principal força de trabalho
destacando-se os de varíola ocorri-
regional, afirmou que o resultado das
dos nas décadas de 1720 e 1740, e o
epidemias de 1748 e 1749 foi a dizima-
de sarampo nos anos de 1748-1750.
ção da maior parte da população al-
Tais epidemias marcaram fortemente
deada (Moreira Neto 1988: 23).
a região, tornando-se um dos princi-
pais fatores de dizimação dos povos Dessa forma, os períodos epidêmi-
indígenas, pois como explicou Maria cos causaram vários transtornos na
Leônia Chaves Resende ao analisar as Amazônia colonial, prejudicando o co-
epidemias na América, os “índices de mércio, a cultura das fazendas, a coleta
mortalidade alcançaram proporções das drogas do sertão, as viagens fluvi-
tão assustadoras que as doenças são ais,2 e até na arrecadação da Fazenda
apontadas como um dos recursos de- Real, como foi ressaltado pelos mo-
cisivos para o sucesso da conquista da radores ao dirigirem suas queixas ao
América”, sendo consideradas mais rei; destacavam eles que os prejuízos
“fatais que a soma dos demais recursos advindos com a depopulação indígena
utilizados, como armas, a religião e a deixava-os impossibilitados de pagar
cultura geral dos europeus” (Resende os dízimos, sendo essa uma estratégia
2003: 232). para que suas solicitações fossem aten-
didas com maior urgência. Os sur-
Durante o processo de colonização, os
tos epidêmicos trouxeram consigo a
índios foram paulatinamente reduzidos,
problemática das práticas de cura, pois
fosse através da escravidão, ou como
nesses momentos se evidenciava a falta
vítimas de epidemias ou das guerras fre-
de médicos, sobressaindo-se as ativi-
quentes. Os aldeamentos propiciavam a
dades dos missionários, especialmente
transmissão de doenças entre os povos
os jesuítas, que auxiliaram no socorro
e, segundo John Hemming, os missionários
dos índios, seja através de conforto es-
jesuítas eram conscientes desse fato, o
piritual ou como agentes da cura.
que não os impedia de continuarem sua
congregação, ressaltando que “sempre As práticas de cura na Amazônia Co-
encheram os estabelecimentos esva- lonial, assim como na América Portu-
ziados atraindo mais inocentes para guesa, possuíam como característica a
eles”, pois parecia mais importante reunião entre os saberes dos europeus,
o “orgulho de manter o sistema das dos indígenas e dos africanos, resultando
missões”, o que os tornavam “ob- em métodos curativos multifacetados
cecados com o número de almas que (Abreu 2006: 11), que durante a ocor-
congregavam” (Hemming 2007: 224). rência de epidemias tornavam-se fun-
Para Carlos Araújo Moreira Neto, a damentais para a sobrevivência desses
missão era “o centro por excelência de povos que, ao se “encontrarem” du-

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rante o processo colonizador, pas- mundo diferenciado, com uma fauna e


saram a compartilhar não somente o flora que oferecia inúmeros produtos
mesmo espaço e suas culturas, como que contribuiriam mais tarde para o
as doenças (Calainho 2005: 68). Nesse enriquecimento da investigação na área
aspecto Alfred Crosby ressalta que da botânica, da zoologia e da farmaco-
foi por meio da troca de plantas, ani- logia europeia. Entrementes, essa ex-
mais e doenças entre índios, africanos pansão marítima e cosmográfica impôs
e brancos (que na maioria das vezes a necessidade de classificação dessas
era prejudicial aos habitantes do Novo regiões, abrangendo o aspecto natural
Mundo), destacando os efeitos destruidores e de seus habitantes, culminando as-
das epidemias como fatores fundamen- sim em inúmeros relatos de viajantes,
tais para a eficácia do imperialismo eu- cronistas, clérigos e funcionários da
ropeu (Crosby [1986] 2002). Fator esse coroa portuguesa que registraram in-
evidenciado nos recorrentes períodos formações importantíssimas, que en-
de surtos epidêmicos ocorridos no Es- riqueceram a farmacopéia e a botânica
tado do Maranhão e Grão Pará, em que a europeia ao longo do tempo (Calainho
mortandade tornava-se elevada, e a busca 2009: 255-271). Segundo Keith Thomas
de curas para suas mazelas era objetivo de todos os estudos botânicos iniciais
todos, seja através da medicina oficial, por eram medicinais e praticamente todos
meio dos missionários, dos indígenas ou os primeiros botânicos foram “médi-
dos africanos. cos ou boticários, preocupados com os
usos e ‘virtudes’ das plantas”, e após
o contato com o Novo Mundo inten-
DA EXPANSÃO MARÍTIMA À sificou-se a busca de “plantas medici-
PROBLEMÁTICA DAS PRÁTICAS nalmente úteis”, sendo criados “jardins
MEDICINAIS medicinais” em que se cultivavam as novas
A expansão marítima europeia ocorrida espécies (Thomas [1983] 1988: 72-73).
nos primórdios do século XVI buscava Nesse aspecto, segundo a historiadora
novas rotas comerciais, riquezas, e, de Daniela Calainho, destaca-se o trabalho
certa forma, uma verdadeira “renova- dos jesuítas, pois realizaram inúmeras
ção espiritual”, que foi efetivada por pesquisas sobre as propriedades me-
meio da ação da Igreja Católica, que dicinais das plantas naturais encontra-
nesse momento enfrentava o avanço das na colônia, tornando-se peritos na
do protestantismo, e por isso precisava observação da fauna e da flora o que
reafirmar seu lugar no tocante à es- lhes possibilitou a identificação de
piritualidade através da reconquista de várias espécies e seus efeitos curativos,
seus seguidores, e buscando novas al- culminando no registro de fórmulas
mas para o cristianismo nas Américas para os principais males desse período.
recém-descobertas (Calainho 2005: 62). Registros esses que se tornam funda-
Os novos domínios portugueses pro- mentais para a reconstrução de uma
porcionaram a descoberta de um história da medicina no Brasil, ganhan-

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do destaque a Coleção de Várias Receitas Para além da utilização e cataloga-


datada de 1766, de autoria de um padre ção da fauna e flora da colônia, outra
jesuíta não identificado; a importância consequência da expansão marítima
dessa obra decorre das informações para Portugal foi o aumento do poder
que podem possibilitar o reconhe- econômico através do comércio das
cimento de colégios onde os remédios especiarias e das drogas, que estimu-
eram feitos, e em alguns casos o nome laria, a partir do século XVI, nova pos-
do farmacêutico, os ingredientes uti- sibilidade de consumo de produtos
lizados, o peso e a utilidade; traz dados alimentícios, farmacológicos, olfativos
também das doenças que tinham mais e sensoriais, riquezas essas que encheram
receitas locais, e consequentemente as os navios dos portugueses com “pi-
principais moléstias que assolavam a menta da Índia, canela do Ceilão, cravo
colônia (Calainho 2005: 67). das Molucas, noz-moscada, ópio, cra-
vo, gengibre, tabaco, açúcar, café, chá,
Daniela Calainho ressalta também a
chocolate, variadas plantas terapêuticas
importância das boticas dos colégios
etc” (Calainho 2009: 256).
jesuítas, que seriam surpreendentes,
possuindo não somente os medica- A busca por novos domínios por parte
mentos e as ferramentas para sua pre- dos europeus ocasionou também, du-
paração, como bibliotecas contendo rante o contato, o compartilhamento de
livros medicinais para subsidiar seu doenças, que na maioria das vezes eram
preparo. inexistentes para os povos ameríndios
ou vice-versa, como, por exemplo, a
O padre jesuíta Serafim Leite, por sua
varíola; segundo Hermann Schatzmayr
vez, descreveu que as Boticas, geralmente,
a varíola teria surgido na Índia, sendo
eram constituídas por uma sala – loja ou
descrita na África e na Ásia, e que por
farmácia – e uma oficina – laboratório;
grassar constantemente nessas regiões
na loja os medicamentos ficavam à dis-
o medo dos povos culminou na criação
posição do público e no laboratório eram
de lendas e cultos, em que “as divin-
produzidos. Segundo o padre Serafim
dades representando a doença, tanto
Leite, na loja os produtos eram disponibi-
na Índia como na África, esta última
lizados gratuitamente ao público, com
trazida para o Brasil e que se apresenta
exceção dos moradores que possuíam
sempre com o rosto coberto, devido
condições financeiras para comprá-los.
às cicatrizes causadas pela doença no
Destacando que um dos fatores mais sur-
rosto” (Schatzmayr 2001: 1526).
preendentes sobre a botica dos jesuítas
seria a existência das chamadas “Botica Martius afirma que em alguns casos
do Mar”, que seriam embarcações que os europeus contribuíram para o alas-
transportavam remédios para abastecimen- tramento das doenças, exemplifica a
to de lugares ao longo da costa, como ocorrência no “interior das Províncias
foi o caso do Colégio do Maranhão que do Maranhão e Pernambuco” de colo-
abastecia o litoral em direção ao norte, até nos que “dependuram nas matas, cami-
o Pará (Leite 1952: 397). sas, peças outras infeccionadas” para

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propagar com “malícia diabólica, afim sez de alimentos que se espalhou pelas
de alastrar a peste entre os selvagens e, missões, e que além das doenças e da
por meio della, votar á mais cruel das fome os índios ainda sofriam com a
mortes uma população ingenua” (Mar- constante busca dos portugueses e es-
tius [1844] 1939: 98). panhóis pela sua captura para utilizá-los
como mão-de-obra escrava. Sendo assim,
De acordo com Ronald Raminelli,
a autora ressalta que as doenças infecciosas e
análises feitas em esqueletos de ín-
o aprisionamento dos nativos foram as prin-
dios pós-contato evidenciaram fortes
cipais causas da depopulação dos índios.
vestígios de “patologias e debilidades”,
em comparação a ossadas datadas de A elevada mortandade resultou em ver-
períodos anteriores, demonstrando as- dadeiro pavor por parte dos índios em se
sim que a “conquista, portanto, acelerou contaminarem com as doenças, fugindo
o processo de destruição das comu- para o mais longe que podiam para escapar
nidades indígenas na Amazônia”. deste “mal contagioso” (Carta de João
Essa perspectiva avigora-se pelo fato da Maia da Gama, 10 set. 1726) porque,
de que os índios, ao serem reunidos como alertava o governador do Mara-
nas aldeias missionárias, entravam em nhão e Grão-Pará, João Maia da Gama,
contato com europeus e africanos, a “morte dos escravos [índios] contami-
contaminando-se assim com “agentes nados é considerada certa”3 (Carta de
patológicos” desconhecidos; os aldea- João da Maia da Gama, 13 set. 1726).
mentos, no entanto, não foram a única A baixa demográfica da população in-
forma de alastramento dessas doenças, dígena, trouxe vários transtornos para
haja vista que as epidemias se espalha- os moradores da região amazônica,
vam pelo território “seguindo os pas- dada a importância da mão-de-obra
sos do colonizador” (Raminelli 1988: indígena, pois sem trabalhadores viam-
1361-1363). se em dificuldades. Para solucionar es-
ses problemas escreviam cartas ao rei
Outro fator explicativo para a intensa
solicitando permissão para realizarem
mortandade dos índios em períodos
descimentos dos índios do sertão,4 ou
epidêmicos, segundo Raminelli (1988),
que fossem enviados navios de escra-
era consequência do fato de que os in-
vos africanos (Barbosa 2009; Cham-
dígenas residentes nas aldeias “trabalhavam
bouleyron et al. 2011: 993-98), que na
mais do que comiam, faziam jejuns
mentalidade predominante da época
forçados ou ingeriam apenas farinha
seriam mais resistentes às doenças do
de mandioca e água”, sendo assim, a
que os índios.
falta de alimentação enfraquecia-os fa-
cilitando o contágio das doenças e fa- A recorrência das epidemias de varíola
zendo da Amazônia uma região em que no Estado do Maranhão e Grão-Pará
as epidemias e a carência de trabalhadores causavam grandes estragos, culmi-
fosse constante. Maria Leonia Resende nando assim na urgência de práticas
(2003), por sua vez, afirma que dentre de cura eficazes para solucionar os
os efeitos das epidemias havia a escas- problemas. Em meio a essa terrível

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situação, é possível perceber através técnicas de cura indígena e africana.


de correspondências de moradores, Entretanto, esses surtos epidêmicos
missionários e governadores, relatos desencadeavam também forte ativi-
sobre as dificuldades que enfrenta- dade dos religiosos, que se esforçavam
vam; queixavam-se os portugueses da em socorrer os doentes no aspecto es-
falta de médicos e até de medicamen- piritual e corporal.
tos, o que dificultava o tratamento das
doenças, levando assim os moradores
da região a buscar curas através dos DÉCADA DE 1720. O “LASTIMOSO
recursos naturais e de diversas práticas CASTIGO E FATAL ESTRAGO”
mágicas. A epidemia que grassou entre 1724-
A carência de médicos habilitados e os 25 causou elevada mortandade entre
problemas para obter remédios vindos brancos, e “mais de mil escravos”,
de Portugal e do Oriente, já que muitas principalmente os índios, como relata-
vezes, em decorrência da longa viagem va o ouvidor-mor do Pará, José Borges
os medicamentos poderiam chegar Valério (Carta de José Borges Valério, 8
deteriorados, levaram os moradores a set. 1725). O governador João Maia da
procurar na natureza e nos conheci- Gama dava conta do início do contágio
mentos curativos dos índios a solução que teria ocorrido durante a viagem do
dessa necessidade (Calainho 2005: 61). bispo do Pará, do Maranhão a Belém,
durante a qual em uma das canoas apa-
Entretanto, deve-se observar que os
receram dois índios doentes. Ao pararem
próprios conhecimentos médicos
na aldeia do Caeté, lá foram deixados os
da época eram cercados por práticas
enfermos; porém, ao chegar à aldeia de
mágico-religiosas, em que a ocorrência
Maracanã havia mais dois doentes que,
das doenças era vista como sendo con-
assim como os primeiros, ali ficaram.
sequência de alguma falta cometida, e
Tal atitude, adotada inicialmente para
não, por exemplo, devido à precarie-
se evitar a disseminação do contágio,
dade das condições sanitárias. A socie-
acabou trazendo poucos resultados,
dade era repleta de crenças místicas e
pois ao aportarem em Belém, havia
supersticiosas, que exerceram influência
mais seis índios bexigosos. A chegada
sobre as técnicas médicas, as quais eram
desses doentes fez com que o governa-
efetivadas por meio de procedimentos
dor procurasse evitar a propagação das
rudimentares (Lopes 2009: 83-94).
bexigas, isolando os índios adoentados.
Dessa forma, as constantes epidemias
Entretanto, essas medidas preventivas
que grassaram no Estado do Maranhão
não evitaram o alastramento da varíola;
e Grão-Pará culminaram no problema
segundo o governador, o restante dos
de sanar a falta de médicos e da busca
remeiros da Companhia de Jesus e tra-
por remédios que curassem os enfer-
balhadores pertencentes a um sargento
mos, indo desde os remédios euro-
que viajara na mesma canoa em que o
peus, como a água da rainha (Marques
bispo estava, também se contamina-
2003: 187)5 e os vinhos enxofrados, às

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ram com a doença; dessa forma, aos cioso veneno para seu sangue. Na
poucos o contágio se estendeu por língua tupi é chamada – Mereba-ayba
toda a cidade. Para agravar a situação, = doença maligna” (Martius [1844]
os índios doentes deixados na aldeia 1939: 98).
de Caeté “infeccionaram e atearam o Esse medo da varíola, segundo Luís
contágio na dita aldeia”; os que ficaram Camargo, em trabalho sobre a capita-
em Maracanã acabaram por alastrar a nia de São Paulo, fazia com que “frente
contaminação “que levou logo oitenta ao pavor causado pela doença” acon-
e tantas pessoas fora dois que se não tecessem muitos casos de índios que
sabia e morreram no mato para onde “abandonavam seus companheiros
fugiram”. atacados e fugiam espavoridos, dando
Ainda segundo o relato de João da grandes voltas nas matas para despistar
Gama, essas fugas ocasionaram o con- o demônio da varíola”. Camargo tam-
tágio nas dez ou doze aldeias circun- bém afirma que em decorrência dos
vizinhas da capitania do Pará, “onde frequentes surtos de varíola, o pavor
morreram muitos, e se despovoaram era tão elevado na população a ponto
todas”; segundo ele alguns dos que de que a simples menção de seu nome
fugiam para o mato se livravam da causava apreensão, pois “era este um
doença, porém os que escapavam já nome maldito e que causava muita an-
“feridos do contágio” acabavam mor- gústia” (Camargo 2007: 1).
rendo. Dessa forma, percebe-se a par- Martius igualmente relatou sobre esse
tir das notícias dessas fugas, o temor pavor dos índios para com a varíola,
dos índios em se contaminar com a referindo-se a um caso que ocorreu
varíola (Carta de João Maia da Gama, 2 durante uma viagem do governador
set. 1725). As fugas dos indígenas em do Estado do Grão-Pará, Mendonça
período epidêmico eram algo constan- Furtado; segundo o relato, a bordo
te, devido ao medo do contágio, levan- do navio que conduzia o governador
do os indígenas a se deslocarem para o do Pará a Macapá surgiu a notícia de
sertão ou para as aldeias vizinhas. um “varioloso”; o medo dos índios
Temor esse também observado num remeiros foi tão elevado que se joga-
relato apresentado por Martius no iní- ram “em alto mar e, a nado, preferiam
cio do século XIX, em sua obra sobre alcançar as praias, a tentar ficar em
as doenças dos índios brasileiros companhia dos brancos”, afirmou que
alguns índios ao “terem a notícia da
“a varíola era completamente
erupção da epidemia, não fogem de
desconhecida pelos índios, antes
do povoamento português. Agora,
casa para o esconderijo distante, em
porém, com a mais tremenda rapi- caminho reto, porém fazem toda sorte
dez e desumanas consequências, se de voltas, imaginando deste modo, es-
alastra até aos mais remotos ermos, capar ao inimigo perseguidor” (Mar-
e cada tribo conhece e teme essa tius [1844] 1939: 99).
doença, como se fora o mais perni-
No tocante às explicações para a ocor-

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rência dos surtos, era recorrente con- doença do que os índios nascidos en-
siderá-los como castigos divinos; nos tre os portugueses, ou os que moravam
anos 1720, a epidemia era considerada nas missões havia tempo. Por outro
por alguns como consequência dos lado, escrevia, alguns hábitos dos ín-
maus tratos que os portugueses infli- dios “bravos” favoreciam o contato
giam a seus escravos. O ouvidor Borges com as doenças, como o costume de se
Valério afirmava que “quis a mão de pintarem de urucum, jenipapo, e de di-
Deus castigá-los [aos moradores] com versos óleos, que com o uso repetitivo,
o terrível contágio de bexigas” (Carta obstruía-lhes os poros resultando em
de José Borges Valério, 8 set. 1725). Já chagas mais intensas (La Condamine
o governador Maia da Gama escrevia 2000:113-114).
que “quis Deus mostrar, a igualdade de
Sobre o surgimento do contágio de
sua justiça tirando os miseráveis índios
1743, o governador Francisco Pedro de
do injusto cativeiro, levando os para a sua
Mendonça Gurjão relatava ao rei que a
[Santa] Glória e castigando como Pai mi-
contaminação na capitania do Pará inici-
sericordioso aos injustos senhores” (Car-
ara por meio do contato com os índios
ta de João Maia da Gama, 2 set. 1725).
tirados dos sertões do Rio Negro; teria
a doença durado três anos, com grande
mortandade “tanto de índios, como mes-
DÉCADA DE 1740: A “PESTE MAIS
tiços e alguns brancos nacionais”. Infor-
TEMEROSA”
mava ainda que no ano em que chegara
O primeiro relato sobre a epidemia da ao Estado, 1747, continuavam as queixas
década de 1740 foi uma carta do gover- das mortes, embora em menor número.
nador José de Abreu Castelo Branco Entretanto, em novembro de 1748, es-
para o secretário do Maranhão e Ultra- tando na cidade de São Luís, o governa-
mar, na qual relatava que desde agosto dor teve avisos de que chegaram ao Pará
de 1743 a capitania do Pará e todos os moradores que viajaram ao sertão para a
seus distritos padeciam de uma “grande colheita das drogas, de onde trouxeram
mortandade” pelo contágio de bexi- um “novo mal contagioso”. Depois de
gas; o estrago fora tanto que resultou entrarem em contato com as “aldeias
numa fuga das aldeias, onde um número domesticadas” ao longo do Amazonas,
elevado de indígenas morrera. O gover- “contaminou a esta cidade e suas capita-
nador informava também que, em fins nias” (Carta de Francisco Pedro de Men-
de 1744, a doença encontrava-se quase donça Gurjão, 26 abr. 1749). Este “novo
extinta (Carta de José de Abreu de Cas- mal” tratava-se, segundo Antônio Baena,
telo Branco, 30 nov. 1744). de uma epidemia de sarampo (Baena
Em viagem pelo Amazonas naquela al- 1838: 228-229).
tura, Charles-Marie de La Condamine Francisco Gurjão escrevia ainda que,
esclarecia que os “índios recém-vindos ao retornar ao Pará, em janeiro de
dos bosques para as missões” eram 1749, recebeu o relato da situação a
afetados com maior gravidade pela que se achava “reduzida” não somente

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As práticas curativas

a cidade de Belém, mas também as Dados assustadores eram apresenta-


aldeias e as fazendas dos moradores, dos junto a uma carta dos oficiais da
“com um nunca aqui visto estrago de Câmara de Belém ao rei, de maio de
mortandade de índios e mestiços”. Os 1750. Ao lado de várias certidões as-
efeitos desse “perniciosíssimo con- sinadas por missionários das aldeias
tágio”, a carta do governador deixava de índios, contabilizando o número de
evidente, foram trágicos, pois “algumas mortos, havia um “Resumo da gente
fazendas populosas (…) ficaram quase falecida do serviço das religiões e das
despovoadas, e o mesmo sucedeu nas aldeias que administram e dos mora-
casas desta cidade [Belém]”. dores desta cidade”. O saldo do con-
tágio totalizava 18377 mortos, sendo
Ainda de acordo com o documento aci-
7600 dos moradores de Belém, e o res-
ma, Francisco Gurjão mandou que os
tante do serviço e aldeias das ordens
oficiais militares realizassem na sema-
religiosas (Carta da Câmara de Belém,
na santa (tempo em que os moradores
15 set. 1750).
recolhiam-se à cidade) a contagem do
número de mortos nas 450 casas que
se achavam com habitantes, o que seria
REZAS E CURAS
metade da população da cidade, pois
ao todo possuía 900 fogos. Contou- Numa carta do governador João da
se o número de 4900 pessoas faleci- Maia da Gama ao rei, escrita em 1725,
das na cidade do Pará; por achar que em que se relata a epidemia de bexigas,
não havia tantos moradores na cidade expõem-se as trágicas consequências
quanto havia nas relações de mortos, para a cidade, descrevendo os medica-
o governador pretendia efetivar uma mentos aplicados nessa terrível situação:
contagem em toda a capitania do Pará “Padeci de me ver rodeado de lágri-
e regiões adjacentes, como as aldeias mas e de choros, mais também de
desde os rios Solimões e Negro até o ver o desamparo geralmente de
Caeté; tratava-se de uma tarefa com- todos sem o poder remediar, mas
plicada, pois além da distância, a mor- mandando-lhe a servir a todos os
tandade continuava nessas localidades que podia com quanto havia na
(Carta de Francisco Pedro de Mendon- minha casa, galinha, marmelados,
biscoito, farinha do reino, triagas,
ça Gurjão, 26 abr. 1749). De qualquer
bezoárticos e tudo o mais que po-
modo, em consulta à carta do gover- dia, e fazendo com as minhas mãos
nador, o Conselho Ultramarino apre- remédios, não mais decentes, mas
sentava listagens do número de mortos úteis depois que se acabaram os
no Pará; uma delas dava o número de bezoárticos que era a infusão do
3348 (incluindo as fazendas dos padres esterco do cavalo, remédio que
jesuítas); a outra contava 3061 mortos aponta o curso, para fazer sair as
(referindo-se especificamente à fregue- bexigas, e vinhos enxofrados, e o
sia da Campina, em Belém) (Conselho mesmo enxofre no ido, e prepara-
Ultramarino. 16 mai. 1750). do na forma em que usava dele
Hipócrates para a peste o que eu

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 362-384, 2013 373


Sousa, C. R. de

tinha em um caderno, tirado de um “nativos da terra”, para que os índios


senhor estrangeiro, e me pareceu fossem instruídos a se batizar, objeti-
ser bom remédio, e usar dele e do vando assim que o maior número de in-
enxofre consertado, e bebido em dígenas recebesse o sacramento devido à
aguardente aproveitava muito, e
elevada mortandade (Sobre o Bispo da
para os interiores da garganta era
singularíssimo, eficaz remédio um
Capitania do Pará, 2 fev. 1729).
cozimento de vinagre com raiz De acordo com Daniela Calainho, a
(…), e casca de cajueiro, árvores de importância do batismo para a cate-
fruto agreste, mas que todos comem quese era fundamental, pois era o sím-
aqui em todo o Brasil” (Carta de João
bolo de um chamado “novo e verda-
da Maia da Gama, 2 set. 1725).
deiro nascimento, que não é físico, mas
Além do preparo de remédios, o gover- espiritual”; portanto, a preocupação
nador João da Gama enviou um escra- com a possibilidade de que inúmeros
vo angolano de sua propriedade, que indígenas pudessem morrer sem rece-
era barbeiro sangrador, para as ruas ber os sacramentos seria causa de an-
durante todo o dia, para socorrer a to- gústia para os religiosos, o que teria
dos, tendo, no entanto, adoecido após resultado numa associação entre vida,
ficar em contato durante tanto tempo saúde, conversão e salvação, na qual
com os “fedores malignos das bexi- a recusa da fé cristã poderia levar à
gas”, sem reagir a nenhum remédio morte (Calainho 2005: 74).
que lhe dessem (vinagre rosado, água Todavia, segundo John Hemming,
da rainha, triagas). Depois de um tem- muitos índios interpretaram “erronea-
po melhorou, e após sua recuperação mente a cerimônia do batismo”, uma
retornou ao seu trabalho imprescindível vez que por ser um povo que se “lavava
nesse momento de mazelas (Carta de várias vezes ao dia aquele era um rito
João da Maia da Gama, 2 set. 1725). curioso”, ao qual os jesuítas davam de-
A mortandade provocada pela epi- masiada importância para algo que era
demia atingiu o número de duas mil rotineiro para os indígenas, o que levou
pessoas na capitania do Pará e nas alde- muitos índios, geralmente induzidos
ias circunvizinhas, e mil na de São Luis pelos pajés, a associarem o batismo à
do Maranhão, sendo que alguns mora- morte, pois muitos morriam mesmo
dores achavam que haveria mais mor- após serem batizados (Hemming 2007:
tos (Carta de João da Maia da Gama, 218; ver também Kok 2001).
2 set. 1725). Esse elevado morticínio Entretanto, para Maria Leônia Re-
fez com que, no ano de 1729, fosse sende, ao analisar as Índias de Castela,
recomendado ao bispo da capitania do os índios também passaram a acusar os
Pará, Dom frei Bartolomeu do Pilar missionários de serem os responsáveis
(1721-1733), que em período de contá- por suas mazelas, haja vista que, du-
gio da bexiga intensificasse o batismo rante o processo de conversão os re-
dos enfermos, e que convocasse cinco ligiosos prometiam que no interior das
clérigos que conhecessem a língua dos missões os nativos estariam protegidos

374 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 362-384, 2013


As práticas curativas

das doenças, da fome e do constante “continuamente de dia e de noite


assédio dos moradores para utilizá-los quatorze padres da Companhia por
como mão-de-obra escrava. Aconte- todas as casas confessando, catequi-
cia, no entanto, de os indígenas aldea- zando, batizando, e ajudando a bem
morrer, e com sua caridade, com as
dos sofrerem os mesmos problemas
suas mãos lavando e limpando mui-
sob a tutela dos padres, chegando ao tos, indo buscar lenha, buscar panela,
ponto de associarem sua conversão ao acender fogo, e fazer os caldos ou de
cristianismo à escravidão, e por isso farinha do reino que levavam, (…)
fugindo dos religiosos. ou da terra porque em muitas casas
não havia quem fizesse nada disto,
A alternativa encontrada pelos jesuítas,
estando em muitas dez, e doze en-
segundo a autora, foi a de transferir
fermos, deste hediondo, horroroso,
as missões para locais mais distantes, e pestilento mal” (Carta de João da
no entanto os missionários somente Maia da Gama, 2 set. 1725).
convenceram os guaranis a retornarem
para os aldeamentos sob a promessa Sendo assim, para os religiosos as suas
de que não aconteceriam mais priva- curas, especialmente a intermediada
ções; e, para garantir que os nativos pelo batismo, seriam a legítima repre-
permanecessem lá, passaram a distri- sentação do poder de Deus. E nesses
buir alimentos após o cumprimento da tempos de mazelas o trabalho dos
doutrina cristã, notícia que teria se es- missionários, especialmente, da Com-
palhado, e estimulado a ida dos índios panhia de Jesus, recebeu proeminên-
para as aldeias. Dessa forma, apesar de cia, pois auxiliaram e cuidaram não
as missões padecerem das moléstias, somente da parte espiritual, como do
fome e miséria, tornaram-se uma espé- corpo através de atividades como en-
cie de porto seguro, em que os nativos fermeiros, boticários (farmacêuticos)
tinham possibilidade de reafirmar seus e, em alguns casos, cirurgiões.
valores (Resende 2003: 243). De acordo com o padre Serafim Leite,
Os religiosos, assim, pareciam ter papel os “serviços de saúde” dos missionári-
importante na administração do socorro os na colônia eram parte integrante da
em momentos de epidemias. Um relato caridade cristã, e a Companhia de Jesus
da epidemia de varíola que assolava a recebeu projeção por tratar esses ser-
capital do Pará na década de 1720, refere viços como ofício, dividindo-os entre
que o Bispo Dom Bartolomeu visitava o ofício dos que cuidavam e tratavam
as casas dos enfermos para dar-lhes con- dos doentes (irmãos enfermeiros e al-
forto (Pinto 1906: 2829). O governador guns cirurgiões), e dos que manipula-
João Maia da Gama, por sua vez, em car- vam remédios (irmãos farmacêuticos).
ta ao rei, datada de 1725, destacava que Afirma ainda o padre Leite, que alguns
teria sido “providência de Deus” o curso padres e irmãos haviam estudado me-
de teologia dos padres da Companhia de dicina antes ou depois de entrarem
Jesus ter se mudado para essa capitania, na ordem, haja vista que o indicado
pois os religiosos teriam era que possuíssem noções médicas

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Sousa, C. R. de

para que fossem destinados a países social estava abalado”, pois os padres
de missões; no entanto, era provável realmente disputavam o seu “lugar
que se tornassem habilitados a esses sagrado”, exercendo verdadeiro des-
serviços por meio da própria prática, lumbramento nos índios convertidos,
em vista da penúria constante dessa e para resistir a essa ameaça, tentavam
atividade, tornando-os capacitados a desacreditá-los (Resende 2003: 260).
exercê-la. Em regra, os médicos do
Segundo Maria Leônia Resende, os pa-
Colégio eram profissionais externos
dres associaram os pajés à função de
que prestavam seus serviços por amizade
“ministros do demônio” e “inimigos
ou mediante pagamento (Leite 1952:
do cristianismo”; essa visão por parte
386-4003).
dos religiosos, refletia, no entanto, que
Segundo o padre Serafim Leite, a Com- pelo papel que exerciam entre os in-
panhia determinava que todas as aldeias dígenas, os “feiticeiros” foram o “es-
indígenas dispusessem de enfermaria e, teio da resistência indígena à presença
em caso de não havê-las, deveria existir jesuítica” (Resende 2003: 244). Fator
algum padre com medicamentos para esse reafirmado por Daniela Calainho,
os índios enfermos, ficando aos irmãos que afirma que os inacianos objeti-
enfermeiros a tarefa de prestar os pri- vavam desmascarar os pajés, porque
meiros socorros de acordo com a sua eles eram os detentores do saber nas
aptidão, enquanto não se recorria ao comunidades indígenas e o alicerce
médico ou cirurgião, caso houvesse es- da resistência à conversão dos índios,
ses profissionais pelas proximidades das sendo necessário mostrar os seus “em-
aldeias (Leite 1952: 387). bustes e falsidades”, apresentá-los como
instrumento demoníaco e convertê-los,
Para além disso, tem-se outro aspecto
para que dessa forma o “verdadeiro
importante apresentado no artigo de
e único” saber de Deus prevalecesse
Maria Leônia Resende, que é sobre a
(Calainho 2005: 73).
disputa existente entre os pajés e os pa-
dres jesuítas; de fato, uma vez que am- Todavia, deve-se observar que os mis-
bos possuíam o papel de “instrutores” sionários tiveram que se “amoldar ao
espirituais e entendedores das práticas novo contexto”, e ao socorrer os en-
medicinais, tal situação culminaria em fermos, agora não somente no aspecto
verdadeiro conflito, em que os pajés espiritual; os religiosos, assim, pas-
muitas vezes acusavam os padres de saram a utilizar-se de práticas que eram
serem os causadores das doenças – o habituais aos pajés, resultando assim
que não estaria distante da verdade, na crença, por parte dos indígenas de
pois, de fato, foi através do contato que os padres assumiram o “papel da
com o europeu que vieram muitas pa- pajelança” (Resende 2003: 255). Deve-
tologias –, e incentivavam os nativos se ressaltar que os padres aprenderam,
a fugirem dos religiosos se quisessem através da convivência, muitas das
continuar vivos. Isso demonstrava que práticas curativas dos índios, então por
os pajés perceberam que o seu “espaço que eles também não passaram a ser

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As práticas curativas

considerados feiticeiros? Acredito que poucos curandeiros que faziam ver-


a resposta dessa pergunta reside no dadeiros “milagres” porque curavam
fato de que sob a justificativa de serem com remédios naturais de ervas, arbus-
representantes de Deus, consideravam tos, plantas e animais. Sendo assim, no-
as suas curas legítimas e sagradas. ta-se que o autor, assume a existência
de bons curandeiros (pajé catu), mas
O descrédito dos religiosos perante as
acredita que prevaleciam os embus-
práticas de cura dos pajés pode ser ob-
teiros (pajé aíba) (Daniel 2004: 338).
servado por meio da descrição de dois
tipos de pajés, apresentada pelo padre Outro aspecto importante observado
jesuíta João Daniel6: o pajé catu (pajé pelo padre João Daniel, foi que, dife-
bom) e o pajé aíba (mau); segundo o rentemente dos “homens brancos”,
jesuíta, os primeiros não seriam tão para quem quanto mais divulgação de
ruins, nem tão embusteiros, como o seus remédios melhor, uma vez que
aíba, que muitas vezes ao invés de cu- possuíam interesses econômicos para
rar as doenças, agravava a situação dos a venda de suas descobertas, os índios
doentes, com seus remédios “naturais e os escravos negros preferiam não
ou fingidos”. Ao descrever essas curas, divulgar seus remédios, e, mais ainda
relata que eram feitas através de muito seus ingredientes, narrando em seu
barulho, com gritos, com sopros na livro algumas curas miraculosas realizadas
parte ferida, porque os pajés afirma- por indígenas, e que apesar do esforço
vam que na “boca ou na língua” estava dos religiosos para que revelassem sua
a saúde, só que ao invés de melhorar fórmula, não conseguiam dissuadi-los,
os doentes pioravam com esses “so- pois “são os tapuias nestes seus segre-
pros violentos”, afirmava ainda que dos semelhantes aos negros da cafra-
“como charlatões cá se vendem por ria”, conhecem e aplicam ervas que
muito sábios, e capazes de encovar aos realizam “instantâneas curas e eficazes
Galenos, Riveiros, Hipócrates7”, e que efeitos”, mas não as revelam “nem
esses pajés de “assopro” eram os mais à força de promessas, nem de pau”
embusteiros e mais perigosos, porque (Daniel 2004: 302).
“tanto os acreditam, que não só os Para além disso, o padre João Daniel
do mato, mas ainda os de algumas relata as doenças mais mortais para os
missões, assim que adoecem, eles índios e os métodos de cura praticados
ou seus filhos, logo vão ao pajé; e pelos indígenas; descreve que o sua-
como não só ficam com as doen-
douro era o método mais utilizado na
ças, com que antes estavam, mas
muitas vezes ainda mais agravadas América, e que produziria bons efeitos,
então é que dão parte e recorrem sendo utilizado para a “constipação
aos seus missionários, para que os dos poros nos resfriamentos” expli-
curem” (Daniel 2004: 338). cando que os índios cozinhavam em
um tacho ou panela bastante grande,
No entanto, o jesuíta João Daniel afir- algumas ervas medicinais “mocura caa,
ma que entre os pajés existiam alguns pajé, merioba, e muitas outras aperien-

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Sousa, C. R. de

tes”, e depois de estarem bem fervidas, cavalo frescas, ou se são secas, (…) se
sentava-se o doente em uma cadeira borrifam com água, e se fritam: depois
furada e com pouca roupa, para que ao de bem fritas, se espalmam em em-
ser exposto ao calor fosse expelindo plasto sobre a parte lesa com todo o
o suor, e depois de alguns minutos, calor”, e após alguns minutos “experi-
acrescentava-se alguns “ladrilhos” já mentará o bom efeito livre totalmente
“vermelhos em brasa”, na panela para das dores, e se ainda fica alguma febre,
conservar o calor. O padre afirma que já facilmente se cura com a sangria8”
o “suor é tanto que ainda depois de (Daniel 2004: 383).
abafados na cama, suam e tressuam os
Portanto, o padre João Daniel destaca
constipados” (Daniel 2004: 381).
que, nas várias moléstias que gras-
Outra doença apresentada pelo jesuíta savam nas colônias portuguesas, as
são os catarros, que seriam mortais principais técnicas de cura eram ad-
quando eram muito fortes (denomina- vindas dos próprios recursos naturais,
dos de catarrões), afirmando que em “porque nas suas muitas ervas, raízes
algumas localidades poderiam se tor- e arbustos têm os americanos boticas
nar epidêmicos levando muita gente a bem providas” (Daniel 2004: 383).
morte. Entre suas formas de cura havia
os sudoríferos, os xaropes, aguardente
queimada, chá ordinário, café e outras DA VARIOLIZAÇÃO À SANGRIA
ervas sudoríferas, sobressaindo-se a De acordo com La Condamine uma
raiz de pajé merioba, que teria efeito maneira de ter evitado as trágicas con-
superior ao chá de violas, o chá de pi- sequências da varíola no ano de 1743,
menta cozida, cebolas, e outras boticas. seria a utilização da variolização dos
O padre João Daniel ressalta que o índios cativos, procedimento que já
catarro poderia degenerar em “es- seria utilizado com sucesso na região
quinências, garrotilhos ou pleurises”, por um missionário carmelita, do qual
sendo necessário usar o alcaçuz e o ele não informa o nome; de acordo
seu extrato para as tosses secas, além com a transcrição da Memoria dos mais
de gargarejo, tomar xaropes; no caso temiveis contagios de bexigas e sarampo d’este
da esquinência havia a raiz do alcaçuz Estado desde o anno de 1720 por diante, de
bravo, que por seus excelentes efeitos autoria do tenente coronel Teodósio
era chamada de raiz da esquinência; Constantino de Chermont (Chermont
para o garrotilho e pleuris, “tão difícil 1885: 28-30) e da pesquisa da historia-
de curar, e perigoso, apontarei aqui dora Magali Sá, esse religioso seria o
um remédio caseiro, tanto mais eficaz, frei carmelita José Madalena que nas
quanto mais fácil”, que de acordo com palavras desta autora foi o “primeiro
o jesuíta foi confirmado por um mis- a utilizar a técnica de variolização na
sionário do Amazonas que “por vezes Amazônia durante um surto de varíola
o experimentou com bom sucesso”; que irrompera na região na década de
esse remédio seria “umas castanhas de 1720, salvando inúmeros índios” (Sá

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As práticas curativas

2008: 823). Segundo o relato de La que não haviam encontrado nenhum


Condamine, remédio ideal, restando apenas “pedir
“Há 15 ou 16 anos [1728-1727] que a misericórdia divina” (Carta de Francis-
um missionário carmelita dos arre- co de Mendonça Gurjão, 26 abr. 1749).
dores do Pará, vendo todos os seus A admiração do governador Francisco
índios morrer um após o outro, e Gurjão sobre a ineficiência da sangria
tendo lido numa gazeta o segredo
como forma de combater a varíola é
da inoculação, que fazia então
muito barulho na Europa, julgou reflexo dos conhecimentos médicos
prudente que, usando tal remédio, do período; de fato, de acordo com
tornava pelo menos duvidosa uma Georgina Santos (2005), a sangria (fle-
morte que era certa empregando botomia) tinha um papel importante
os remédios ordinários. (…) ousou no repertório das práticas curativas uti-
fazer inocular a varíola em todos lizadas em Portugal na Época Moder-
aqueles [índios] que ainda não havi- na. Georgina Santos (2005) afirma que
am sido atacados, e destes não per- as bases da medicina ensinada em Por-
deu um só” (La Condamine [1745] tugal eram os princípios de Hipócrates
2000: 114). e de Galeno, alicerçados nos funda-
A variolização seria um método milenar, mentos greco-romanos, em que se
utilizado pelos povos orientais, o qual justificava o uso da sangria devido à
consistia em aplicar o pus das feridas crença de que o corpo humano seria
diretamente de uma pessoa a outra, composto pela combinação de quatro
sendo introduzida na Europa no século elementos, terra, água, fogo e ar, dando
XVIII. Era um método que fazia com origem a quatro “humores” distintos
que a doença se manifestasse de forma “o sangue e a bílis amarela, produzidos
mais branda, ocorrendo assim todo o pelo fígado, a fleuma, produzida pelo
seu “cortejo sintomático”, podendo deixar cérebro e a atrabílis (bílis negra), pro-
cicatrizes no rosto ou corpo, ou em duzida pelo baço”. Nessa concepção,
alguns casos desenvolver formas mais a saúde seria resultado da combinação
graves da doença podendo culminar na harmônica desses “humores”, a doen-
morte do inoculado (Sá 2008: 824, ver ça seria a comprovação de um desa-
também Camargo 2007). juste, e por isso o uso da sangria foi
reconhecido pelos primeiros tratados
Com relação a essas práticas de cura, algo
hipocráticos como sendo a forma ideal
que intrigava o governador Francisco
para retirar os “humores doentios” do
Gurjão, ao relatar sobre a epidemia de
corpo (Santos 2005: 44-45).
bexiga que ocorreu no Estado do Mara-
nhão e Grão-Pará em 1749, era o fato Georgina Santos (2005) afirma tam-
de que alguns remédios tinham bons bém, que a obra de Galeno foi deci-
resultados (dados antes ou depois do siva para que a sangria se tornasse a
mal), e outros tiravam a vida dos paci- “linha de frente das técnicas de trata-
entes, destacando que até com o uso da mento médico”, haja vista que Galeno
sangria isso acontecia; concluía assim concebeu que o “sangue não fazia um

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Sousa, C. R. de

movimento circular e sim centrífugo, fundamentado em autores da Antiguidade.


convergindo para os tecidos sem retor-
Entretanto, ressalta-se que apesar das
nar ao ponto de origem”. Por negar a
dificuldades em decorrência da falta
circulação do sangue, acreditava-se que
de médicos ou de medicamentos, os
o “desvio do fluxo sanguíneo, do seu
moradores da Amazônia encontraram
local de destino para a zona do corte,
como alternativa para solucionar esse
permitia que todos os humores dano-
problema na diversidade natural que
sos”, que entravam em contato com o
lhes cercavam, o que lhes propiciou
sangue durante esse percurso fossem
novos saberes curativos; como lem-
retirados (Santos 2005: 46).
brou o jesuíta João Daniel os america-
A sangria destaca-se por ter sido práti- nos eram possuidores de “boticas bem
ca utilizada nos três universos constitu- providas” (Daniel 2004: 383).
intes da sociedade colonial da América
portuguesa, os índios, os europeus e os
africanos, entre os “índios, era prati- CONSIDERAÇÕES FINAIS
cado com o uso de dentes de animais, O impacto das epidemias foi dissemi-
chifres, ossos e cascos” e em meio aos nado em praticamente toda a Amazô-
africanos havia um “termo equivalente nia colonial, fazendo com que ocor-
à palavra sangria encontrado entre as resse uma constante “depopulação”
medicinas Bakongo e Obi do oeste afri- indígena, que acarretava prejuízos a
cano” (Jesus 2001: 90). todas as camadas sociais, afetando
No universo europeu foi herança dos diretamente a economia da região, e
conhecimentos médicos da Antiguidade dessa forma mobilizaram toda a socie-
e, segundo Georgina Santos (2005), a dade. Os índios, por serem as maiores
sangria popularizou-se no medievo e vítimas dessas moléstias, passaram a
adentrou os Tempos Modernos, sua temê-la intensamente, e como estra-
popularidade devia-se ao fato de ser tégia de sobrevivência fugiam para os
o tratamento mais acessível à popula- sertões, só que acabavam por alastrar
ção pobre, ou nas palavras da autora, o contágio para as capitanias vizinhas.
“não descriminava as gentes”, era uma Os moradores, por sua vez, viam-se
prática efetivada, principalmente, pelos sem o “instrumento” principal para
barbeiros sangradores, e sua eficácia só a sua “sustentação” (Carta de José
passou a ser questionada em meados Borges Valério, 8 set. 1725), e por fica-
do século XVIII (Santos 2005: 46). rem impossibilitados de dar prossegui-
mento em suas atividades, escreviam
Dessa forma, percebe-se que as práti-
ao rei narrando suas mazelas, pedindo
cas curativas na Amazônia colonial,
soluções para suas dificuldades, seja
como dito no início desse artigo, mes-
por meio de descimentos indígenas
clavam os conhecimentos dos euro-
ou da vinda de escravos africanos, e
peus, dos indígenas e dos africanos,
para serem rapidamente atendidos, es-
sendo um multifacetado saber médico
trategicamente, ressaltavam que sem tra-
composto por crenças mágico-religiosas e

380 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 362-384, 2013


As práticas curativas

balhadores não poderiam pagar os dízi- tanto sociais, quanto econômicos. En-
mos a Fazenda Real, o que acarretaria fim, como lembrou Arthur Vianna,
prejuízos para o governo. as epidemias modificaram “estruturas
de governos, causaram devastações
Os governadores também queixavam-
graves, influenciaram no desenvolvi-
se das epidemias, relatavam a elevada
mento econômico de regiões” e “con-
mortandade, e a difícil situação pela
tribuíram para a dispersão dos povos”
qual passava o Estado; exemplo disso
(Vianna 1975 [1908]: 9).
pode ser visto por meio da carta es-
crita pelo governador Francisco Pedro
de Mendonça Gurjão ao rei, sobre a
AGRADECIMENTOS
epidemia ocorrida em 1749, na qual
o governante afirma ter encontrado a Ao professor Dr. Rafael Chambouleyron
cidade de Belém quase despovoada e que orientou minha monografia de con-
clusão de curso na graduação em História
passando por uma grande “penúria” de
pela UFPa intitulado de: “O ‘lastimoso castigo
mantimentos (Carta de Francisco Pe- e fatal estrago’ das epidemias no Estado do Ma-
dro de Mendonça Gurjão, 26 abr. 1749). ranhão e Grão-Pará na primeira metade do sé-
Os religiosos igualmente queixavam-se culo XVIII”, da qual se originou este artigo
dos infortúnios provocados pelas epi- (Sousa 2011). À CAPES, pela concessão de
demias, pela carência de índios nos bolsa de mestrado pelo Programa de Pós
conventos e a falta de trabalhadores Graduação em História Social da Amazô-
para dar prosseguimento às obras de nia (PPGH) da Universidade Federal do
construção da Igreja da Sé, em Belém Pará (UFPA).
(Sobre a necessidade de finalização da
obra da casa do Bispo, 4 fev. 1727).9
NOTAS
Segundo Crosby as epidemias teriam os se- 1
De acordo com Chambouleyron
guintes efeitos: causavam impacto extremo,
(2010:15) o Estado do Maranhão e Grão
com casos mortais; quase todos expos- Pará “corresponde em boa parte aos con-
tos adoecem, resultando em um índice de tornos atuais da Amazônia brasileira. Em
mortalidade que equivale ao da população; finais do século XVII e princípios do sé-
poucas pessoas tem condições de cuidar culo XVIII, compreendia várias capitanias
dos doentes o que causa a morte de pessoas reais – Pará, Maranhão, Piauí – e algumas
que sobreviveriam se tivessem tratamento capitanias privadas – Tapuitapera, Caeté,
adequado; não tem quem cultive, plante ou Cametá e Ilha Grande de Joanes”.
cuide dos animais (Crosby [1986] 2002: 90- 2
O viajante francês Charles-Marie de La
91), dessa forma todo o grupo é afetado, Condamine, que esteve em Belém no ano
o que explica os problemas causados pelas de 1743, relata em sua obra ter ficado im-
epidemias. possibilitado de seguir viagem, pois teve
“dificuldade de formar equipagem de re-
Portanto, torna-se perceptível que os madores”, uma vez que as “bexigas faziam
períodos epidêmicos exigiram uma re- então um grande estrago, e os índios na
ordenação do Estado do Maranhão e maior parte se refugiaram nas aldeias cir-
Grão-Pará, para minimizar os prejuízos, cunvizinhas.” (La Condamine [1745] 2000:

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 362-384, 2013 381


Sousa, C. R. de

113). para o tratamento de doenças (Santos


2005: 43-60). Riveiro (1699-1783) foi um
3
Objetivando a melhor compreensão dos
famoso médico português de meados do
leitores houve atualização do vocábulo das
século XVIII (Araújo 1984).
fontes documentais.
8
Sangria é a sucção do sangue por sangues-
4
No decorrer do século XVII, em diversas
sugas ou ventosas, segundo Georgina San-
partes do Império Português, moradores,
tos as sanguessugas eram recomendáveis
autoridades e religiosos referiam-se ao
em doentes muito debilitados e que não
sertão para designar o interior do território
suportariam cortes e deviam ser aplicadas
amazônico, entretanto haviam outros sen-
apenas “beiços, nariz, gengivas” e as “veias do
tidos no contexto da conquista portuguesa
ânus”, enquanto que a ventosa tinha um
da Amazônia, como local em que se bus-
“leque variado de prescrições” (ver Santos
cavam os escravos, drogas (produtos como
2005: 56).
cacau e cravo), onde se realizavam comér-
cio e habitavam nações de índios. Dessa 9
Para mais informações ver os seguintes
forma “são vários os eixos que permitem documentos: Carta de João da Maia da
entender esse tão dilatado território” Gama ao rei. Belém, 10 set. 1726. Pará
(Chambouleyron, Bonifácio e Melo 2010: 18). (Avulsos), AHU, caixa 9, doc. 838. Carta
de João da Maia da Gama ao rei. Belém,
5
Segundo Marques, a água da rainha, ou
2 set. 1725. Pará (Avulsos), AHU, caixa 9,
água da Inglaterra foi um dos mais famo-
doc. 757.
sos remédios de segredo, tendo entre seus
compostos a quinina que era utilizada para 10
Documentação microfilmada e digitali-
combater as “febres intermitentes”. Sua zada pelo Projeto Resgate do Ministério
preparação era feita em Portugal, sendo da Cultura para facilitar o acesso de pes-
muito comercializada no Brasil. Para mais quisadores brasileiros. Esses documentos
informações sobre os chamados remédios estão disponíveis (cópias digitalizadas) no
de segredo, sua utilização e comercializa- Arquivo Público do Estado do Pará e no
ção ver Marques (2003: 187). Laboratório de História da Universidade
Federal do Pará; este último sendo o acer-
6
O padre jesuíta João Daniel viveu como
missionário na Amazônia por seis anos vo em que realizei a presente pesquisa.
(1741-1757), quando foi expulso e preso
em Portugal, sua obra foi escrita na prisão
e “revela intensa vivência na região, admi- REFERÊNCIAS
ração e interesse pela exuberante natureza Abreu, J. L. N. 2006. O corpo, a saúde e a
descrita com detalhes e entusiasmo, o que doença: o saber médico luso-brasileiro no
torna o autor além de religioso naturalista” século XVIII. Tese de Doutorado. Univer-
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7
Hipócrates (460-377 a.C) refutava as de Pós-Graduação em História..
práticas mágicas para o tratamento das en- Almeida, M. R. C. de. 1995. Um tesouro
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