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1ª EDIÇÃO

EDITORA IFMA
2023

BARRA DO CORDA - MA

Olhares sobre o
SERTÃO
MARANHENSE
CAMILA FERREIRA SANTOS SILVA
PAULO EDUARDO OLIVEIRA SANTOS
Organização
CAMILA FERREIRA SANTOS SILVA
PAULO EDUARDO OLIVEIRA SANTOS
Organização

Olhares sobre o
SERTÃO
MARANHENSE
1ª EDIÇÃO
EDITORA IFMA

BARRA DO CORDA - MA

2023
INSTITUTO FEDERAL DO MARANHÃO
Carlos Cesar Teixeira Ferreira
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Imagem da capa: Colégio do Sertão Maranhense, Carolina - MA.


Fonte: Biblioteca IBGE.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=430468&view=detalhes

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autorização dos editores, constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98).

S586o

Olhares sobre o sertão maranhense / Organizadoras: Camila Ferreira Santos Silva e


Paulo Eduardo Oliveira Santos. São Luís, MA: EDIFMA, 2023. 200 p.
ISBN: 978-65-5815-038-1
I. Sertão Maranhense. II. Espaços. III. Simbologias.

CDD: 910.012.7
1ª EDIÇÃO
EDITORA IFMA

BARRA DO CORDA - MA

2023
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Saulo Cardoso
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Luis Rodolfo Cabral Sales
Ciências da Saúde
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Johnny Herberthy Martins Ferreira
Nilvanete Gomes de Lima
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................................... 8

“O SERTÃO DO PRÍNCIPE REGENTE: fronteira de integração entre os ‘sertões dos


Pastos Bons’ e o ‘Maranhão do Mar’ no século XIX” ..................................................... 11

ENTRE EMBATES E CONCHAVOS: as relações de poder entre militares, colonos e


indígenas nos Sertões dos Pastos Bons na segunda década do século XIX. ............... 37

MULHERES E SEUS ESCRITOS SOBRE O SERTÃO SUL MARANHENSE: por uma


compreensão compósita a partir das obras de Carlota Carvalho, Socorro Cabral e Paula
Andrade .......................................................................................................................... 63

OS TENETEHARA-GUAJAJARA E O SERTÃO: conflitos e fronteiras .............................. 81

ENTRE TRANÇADOS E LAÇOS: a cestaria do povo Krikati e sua influência na identidade


cultural sertaneja Sulmaranhense ................................................................................. 113

SERTÃO MARANHENSE: Aspectos Físicos da Região Guajajaras ............................... 134

FRONTEIRA AGRÍCOLA NO SERTÃO SUL MARANHENSE: da pecuária à soja em


Balsas/MA. ..................................................................................................................... 154

AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOECONÔMICAS E AMBIENTAIS NO MUNICÍPIO DE


GRAJAÚ-MA .................................................................................................................. 174
APRESENTAÇÃO

Sertão? O que é o Sertão? Seria o espaço sobre o qual escreveram Euclides da Cunha
e Graciliano Ramos, inóspito, árido, de povo sofrido, mas forte e heroico? Seria o
Sertão um espaço de múltiplas realidades, experiências e sensações, como bem o
coloca Fernando Cristóvão, como inferno, purgatório e paraíso? Seria, por acaso, o
lugar – de origem e escrita – dos irmãos Carlota e Parsondas de Carvalho, com suas
particularidades de gentes e paisagens? O Sertão seria o local de João Renôr, que o
descrevera com muita paixão, ou, ainda de Alan Kardec Pacheco Filho, que também o
conheceu de pisar e estudar, nos falando tão minuciosamente de “outros sertões”,
de letras e de águas?

Somando-se aos nomes citados, referências obrigatórias sobre Sertão, seria possível
citar mais algumas dezenas. Mais do que um lugar, uma paisagem, o termo Sertão tem
se tornado uma categoria importante de análise, nas ciências humanas e sociais. A
palavra já era conhecida na fase colonial, inclusive, provavelmente usada em Portugal,
e, assim, carregava consigo vários significados que também foram atravessando
outras fases da história brasileira. Era a oposição à “civilização”, contraponto ao litoral
(espaço inicialmente ocupado pela colonização lusa no Brasil) e o espaço por
conquistar, para onde as fronteiras deveriam ser alargadas.

É complexo definir “o Sertão”, exatamente por conta de multiplicidade de sentidos


que pode assumir, sendo, assim, talvez mais adequado se falar em sertões. O Sertão
Maranhense, exemplifica essa diversidade, estando muito distante de visões mais
tradicionalistas. Difere das imagens cinzentas, áridas e estéreis presentes nas
representações literárias ou televisivas, sendo um lugar de rica hidrografia, natureza
exuberante, paisagem verdejante e acolhedora, tendo atraído numerosos povos
indígenas e ondas de colonizadores, estes últimos ligados fortemente às atividades
pastoris e agrícolas, sendo, inclusive, por isso alcunhado de Sertão dos Pastos Bons.

Nesse espaço, surgiram importantes cidades, como Imperatriz, Carolina, Pastos Bons,
São João dos Patos, Grajaú e Barra do Corda. Nesta última, tem-se o campus do
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), onde está
sediado o Grupo de Pesquisa Homnibus, que nasceu como expressão do desejo de
pesquisadores e pesquisadoras de áreas diversas (Humanas, Sociais, Educação,
Linguagens) a fim de ampliarem diálogos e produção de conhecimento em suas
respectivas searas de conhecimento, mais especificamente em temáticas sobre
Sertão e a ele subjacentes, como na presente produção.

Uma obra como esta cumpre importantes funções, como abrir espaço para divulgação
de trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras, ao mesmo tempo em que, por seu
formato, viabiliza o acesso da comunidade escolar e acadêmico-científica a esse
conhecimento e, mais do que isso, torna-se veículo de interface entre tais pesquisas e
quaisquer sujeitos que desejem ter acesso a elas, democratizando-as.
Nesse sentido, esta coletânea tem como objeto central o “Sertão Maranhense”. E, os
olhares para com o sertão estarão entrelaçados nos oito capítulos, em que trataremos
de variados aspectos desse espaço geográfico e simbólico que é o “Sertão
Maranhense”.

O primeiro capítulo aborda o processo de devassamento da região tradicionalmente


conhecida por Alto Itapecuru, situada no “Sertão dos Pastos Bons”, no sul do Estado
do Maranhão, demonstrando a importância do projeto do Arraial do Príncipe Regente
(1807-1820), no contexto da frente de colonização pastoril do final do século XVIII, e
do seu contato com a frente litorânea no início do século XIX.

O segundo capítulo trata das especificidades das ações que marcaram a colonização
da região Sul maranhense, trazendo para o centro do debate as relações de poder que
envolveram os colonos civis e militares com os nativos que formavam diferentes
nações nos Sertões dos Pastos Bons.

O terceiro capítulo discute a relação entre o Sertão, as Mulheres e seus escritos. O


Sertão, de Carlota Carvalho, publicado em 1924, Os gaúchos descobrem o Brasil, de
Maristela de Paula Andrade, lançado em 1982 e Caminhos do gado, de Maria do
Socorro Coelho Cabral, de 1992, são as três obras escritas por mulheres que deram
bases à compreensão do chamado sertão (Sul maranhense) e que instigaram a
pesquisa e a escrita do presente capítulo.

O quarto capítulo aborda a problemática ligada às disputas pelas terras indígenas,


sobre as quais o Estado deseja (e sempre desejou) avançar, com toda sua estrutura.
Assim, este capítulo discute, a partir de uma revisão bibliográfica, a relação entre o
Sertão maranhense, com suas peculiaridades, os interesses presentes no processo de
colonização desses sertões e a posição dos Tenetehara-Guajajara, diante dos avanços
dessa fronteira, de seus deslocamentos no território e demais repercussões agregadas
a esse processo.

O quinto capítulo apresenta as formas de produção cultural do povo Timbira: as


cestarias, especificamente dos Krikati, que ficam localizados próximo a cidade
de Montes Altos, Maranhão, levantando a importância das cestas na vida cotidiana
dos nativos Krikati, suas formas de uso e manejo.

O sexto capítulo faz uma explanação sobre os aspectos físicos da região centro Sul do
Maranhão, com enfoque na região Guajajaras, como forma de caracterizar as
singularidades da paisagem local.

O sétimo capítulo aborda a expansão da fronteira agrícola no Sul do Maranhão,


analisando o processo de ocupação do Sertão maranhense, em especial a região de
Balsas, e a questão fundiária.
O oitavo capítulo analisa como o município de Grajaú-MA se insere na lógica global
através do mercado de commodities e suas transformações socioeconômicas e
ambientais na contemporaneidade.

Assim, nesta primeira coletânea, os membros do Grupo Homnibus e todos os autores


e autoras com estudos aqui presentes, esperam que a comunidade possa fazer bom
proveito dos resultados de seus trabalhos. Almeja-se que muitas outras virão!

Barra do Corda, 20/08/2021

Carlos Eduardo Penha Everton


Professor de História IFMA/Campus Barra do Corda e membro fundador do Grupo Homnibu
O SERTÃO DO PRÍNCIPE
REGENTE: FRONTEIRA DE
INTEGRAÇÃO ENTRE OS
‘SERTÕES DOS PASTOS BONS’ E
O ‘MARANHÃO DO MAR’ NO
SÉCULO XIX

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

“O SERTÃO DO PRÍNCIPE REGENTE: FRONTEIRA DE INTEGRAÇÃO ENTRE OS


‘SERTÕES DOS PASTOS BONS’ E O ‘MARANHÃO DO MAR’ NO SÉCULO XIX”

Paulo Eduardo de Sousa Pereira1

1 Introdução

O presente estudo se inscreve, antes de tudo, numa inquietação que parece acompanhar
todos os homens, nas mais diversas temporalidades e, invariavelmente, presente em todas
as culturas: o desejo utópico de um “retorno às origens”. Nesse sentido, a tônica
impulsionadora do presente estudo são minhas indagações sobre o processo de
devassamento da região tradicionalmente conhecida por Alto Itapecuru, situada no “Sertão
dos Pastos Bons”, no Sul do Estado do Maranhão, cuja presente pesquisa adiu mais um
cognome bem simbólico: “Sertão do Príncipe Regente”. No âmbito da pesquisa, objetivou-
se demonstrar a importância do projeto do Arraial do Príncipe Regente (1807-1820), no
contexto da frente de colonização pastoril do final do século XVIII, e do seu contato com a
frente litorânea no início do século XIX.

Para além do devassamento, é inconteste que tal processo de reocupação e apropriação


dos chamados Sertões de Pastos Bons se identifica precisamente com o projeto de
integração geoeconômica do território brasileiro, no constante movimento de uma possível
“fronteira da integração”, tendo-se em vista que os colonizadores consideravam os sertões
como espaços “despovoados” e “incultos” que precisavam ser integrados produtiva e
economicamente à dinâmica colonialista do Estado português, representada pelo lugar
litoral.

A região do Alto Itapecuru, mais exatamente onde se implantou o núcleo militar regional e
portuário do Príncipe Regente, representa o lugar de contato entre os espaços da porção
norte, tomados pela grande lavoura de exportação, e no seio do pensamento social da
época, tidos como mais povoados e “civilizados”, e os espaços da porção Sul, onde vigorava
a pecuária, igualmente tidos pelos colonizadores como “despovoados” e onde, segundo
eles, a “civilização” ainda não havia chegado.

1 Mestre em História, Ensino e Narrativas pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do


Maranhão (UEMA-2016). Especialista em Metodologia do Ensino e da Pesquisa em História Brasil (FACVEST-
2006). Graduado em História (UEMA-2004). Professor de História da Rede Estadual de Ensino do Maranhão,
Pesquisador e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão – IHGM, membro do Núcleo de
Estudos sobre o Maranhão, Memória, Política e Sertão (NEMPeS/UEMA). Historiador e Curador do
Patrimônio Cultural do Município de Colinas, MA. E-mail: pauloeduardocol@hotmail.com /
paulinhomeneses34@gmail.com /Facebook: Paulo Meneses Pereira / Instagram: paulomenesespereira.

12
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A perspectiva do presente trabalho busca partir de um sertão conceitualmente natural que


avança, pela visão dos seus desbravadores, para uma concepção simbólica e geográfica
com vistas à formação oficial do território, o que se daria pela integração das distintas
regiões ou porções geoeconômicas do espaço maranhense.

2 O sertão e suas múltiplas visões

Proponho, a priori, um diálogo conceitual a partir dos estudos de historiadores,


antropólogos, sociólogos e outros teóricos que trabalham a categoria “Sertão”. O principal
motivo para esta abordagem reside no fato de que o Arraial do Príncipe Regente se situa
num espaço geográfico e simbólico configurado pelo militar major Francisco de Paula
Ribeiro como “Sertões dos Pastos Bons”, em uma alusão clássica de lugar interior e distante
do litoral, como forma de compreender melhor o nosso sertão maranhense, e como ele se
funde ao ideal de sertão disseminado no pensamento social brasileiro.

Configurado primeiramente como um “espaço” natural e simbólico, tratou-se de situar o


processo de colonização do Alto Itapecuru, demonstrando como o “Sertão dos Pastos
Bons” se insere nas discussões da categoria “sertão” no campo dos pensadores brasileiros,
sobretudo, por considerar o caráter extremamente plural que envolve a compreensão dessa
categoria conceitual.

Como forma de introduzir as discussões em torno do Arraial do Príncipe Regente e sua


importância no processo de devassamento da região Sul maranhense, especificamente o
Alto Itapecuru, apresento o sertão em estudo a partir da visão e percepção do ilustrado
militar português major Francisco de Paula Ribeiro, apontando as relações entre a natureza,
a economia e o pensamento de integração do sertão ao litoral, pensamento esse que
norteou a maior parte de suas ações nesse sentido.

Portanto, faz-se necessário esse diálogo com alguns estudiosos do campo temário “sertão”
no pensamento social brasileiro. Assim, para Amado (1995), Souza (1996, 1998), Oliveira
(1998), a categoria sertão passou a povoar o imaginário brasileiro a partir, principalmente,
da publicação de Cunha (1902), que a cristalizou pela percepção de um sertanejo atrasado,
mas não degenerado racialmente; e mais tarde por Rosa (1956), com um “sertão-mundo”
para além do geográfico, um sertão que está em cada um de nós.

No caso específico da noção espacial do Brasil, as denominações “sertão” e “litoral” são


consideradas legítimas categorias para se pensar a Nação; em outras palavras, o Brasil está
nacionalizado no sertão, levando-se em conta que a história da ocupação territorial, que
passa pelo espaço interior (sertão), se confunde com a história da formação territorial
brasileira, e, nesse sentido, observa-se que o processo de ocupação do território brasileiro
não teve, a priori, como objetivo a integração das suas distintas regiões.

13
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Embora o tema sertão já tenha sido abordado por outros autores, tais como: Alencar (1875),
em “O sertanejo”; Visconde de Taunay (1876) em “Inocência”, Arinos (1898) em “Pelo
sertão” e Coelho Netto (1896) em “O sertão” para citar apenas alguns, convém esclarecer
que o sertão em estudo não se insere nessa categorização romântica, uma vez que a
percepção que norteia a presente pesquisa é a de Francisco de Paula Ribeiro, um militar
ilustrado a serviço da coroa portuguesa.

No entanto, para efeito de conhecimento acerca da pluralidade que essa categoria


apresenta, trarei algumas dessas conceituações. Assim, conforme acentua Amado (1995, p.
146):
Sertão é uma das categorias mais recorrentes no pensamento social brasileiro,
especialmente no conjunto de nossa historiografia. Está presente desde o século
XVI, nos relatos dos curiosos, cronistas, viajantes que visitaram o país e o
descreveram, assim como, a partir do século XVII, aparece nas primeiras tentativas
de elaboração de uma história do Brasil, como a realizada por frei Vicente do
Salvador (1975).

A autora realça a presença da categoria sertão, com o mesmo significado que tem até hoje,
desde os primeiros relatos na literatura de viajantes que aqui estiveram, quer por conta
própria, quer a serviço da coroa portuguesa, mapeando o território, destacando também a
visão de outros estudiosos que colocaram tal categoria no âmbito das discussões sobre a
constituição da nacionalidade brasileira e tendo o sertão como um parâmetro para se pensar
a formação de uma “cultura brasileira autêntica”.

Outra estudiosa do tema, a antropóloga Candice Vidal e Souza (1996, p. 97), nos chama
atenção para um “sertão fronteira” existente entre o litoral e o sertão, ela afirma:
Sertão e litoral constituem o padrão das descrições do espaço nacional e dos
modos de vida concebidos como regionalmente diferenciados. As clivagens
políticas, sociais e econômicas encontradas na observação da "realidade" nacional
são inteligíveis, para os pensadores do Brasil, através desta bipartição geográfica e
cultural do território nacional. Têm-se, então, dois cenários, combinação de terra e
gente, que polarizam um amplo temário relativo aos problemas nacionais e ao
caráter do desenvolvimento político e econômico brasileiro.

Nesse sentido, conforme acentua Souza (1996, p. 96-7), a forma como nos vemos parece
estar associada à compreensão do lugar onde habitamos. No caso específico da noção
espacial do Brasil, as denominações “sertão” e “litoral” são consideradas legítimas
categorias para se pensar a Nação; em outras palavras, o Brasil está nacionalizado no sertão,
levando-se em conta que a história da ocupação territorial, que passa pelo espaço interior
(sertão), se confunde com a história da formação territorial brasileira.

Exemplo clássico dessa realidade é o caso da conquista do espaço geográfico do Maranhão,


o qual se dá no contexto de duas frentes de colonização distintas: uma advinda pelo Oceano
Atlântico, influenciada e financiada pelo Estado Português e que ocupou o litoral e áreas
adjacentes, a partir da Ilha de São Luís; a outra, oriunda dos sertões nordestinos, sob o
impulso da iniciativa particular de vaqueiros e fazendeiros que conquistaram o Sul do

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Maranhão, alcunhado de “Sertões dos Pastos Bons”. Reafirmo que ambas as frentes de
colonização, por sinal, muito peculiares em seus surgimentos e desenvolvimentos,
contribuíram para a formação social, política e econômica do Maranhão.

É forçoso realçar que apesar de toda sua relevância, a memória histórica dos municípios que
integram o antigo sertão de Pastos Bons, no decurso da constituição da história oficial, tem
permanecido à margem da historiografia maranhense, contribuindo para uma falsa
percepção de que a história do Maranhão, em toda sua complexidade e diversidade, pode
ser resumida na narrativa histórica de São Luís e de alguns outros poucos municípios tidos
como mais destacados. Conforme se verá adiante, a configuração territorial e econômica do
espaço maranhense se dá a partir da colonização do sertão, a qual dá corpo e enrobustece
o projeto colonialista da coroa portuguesa nessas plagas.

Na região dos “Sertões de Pastos Bons”, são realizadas as primeiras incursões oficiais da
porção Sul maranhense, precisamente entre o final do século XVIII e início do século XIX,
com vistas a ser traçado um esboço técnico da região, em função da necessidade de se
abstrair as mais pormenorizadas características do território interior, das entranhas da terra
maranhense. Em verdade, a coroa portuguesa, através de seus militares de academia, com
conhecimentos aplicados em ciências naturais, buscava aos poucos conquistar o espaço
sertão, até então concebido apenas como misterioso e imaginário, partindo daí então ao
seu conhecimento real, substancioso. Isto se dá pelo fato de que, desde a segunda metade
do século XVIII, a filosofia Iluminista, calcada na crença do progresso humano pela
“Revolução Científica”, influenciou fortemente as mentalidades e as práticas do homem
europeu. O encarregado de desbravar e registrar esse sertão maranhense, o militar
português Francisco de Paula Ribeiro, era um homem do Iluminismo, disto parece não haver
dúvidas.

Nesses termos, compreende-se que a integração regional era um desafio premente no


sentido de garantir a posse da rica região, àquela época assaz habitada pelos povos
autóctones Canela Fina e Timbira da Mata. No pensamento dos conquistadores urgia
conquistar e transformar a natureza bruta, convertê-la em atividades lucrativas em favor do
erário real. Dessa forma, o processo de conquista e reocupação dos Sertões de Pastos Bons
se identifica substancialmente com o projeto colonial do Estado português, no sentido de
integrá-los social e economicamente com a região litorânea.

A região do Alto Itapecuru2, mais precisamente onde se implantou o núcleo militar e


portuário do Arraial do Príncipe Regente (1807), representa, parece não haver dúvidas, a
zona de interstício, a lacuna que se converte em região de encontro entre os espaços da

2 A nomenclatura região ou zona do “Alto Itapecuru”, a qual ainda atualmente (2021) é topônimo de uso
oficial para designar essa porção do espaço maranhense em sua parte centro oriental, tem origem no século
XIX, grafado “Alto Itapicuru”, pelo desbravador Francisco de Paula Ribeiro, em seu Roteiro e Mapa de
Viagem de 1815.

15
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

porção Norte, tomados pela grande lavoura de exportação, e os espaços da porção Sul,
onde vigorava a pecuária. Representa, portanto, esse território a própria “fronteira interna
de integração”, a zona indistinta, que não representa nem uma das dinâmicas econômicas
das duas frentes de povoamento, mas cuja ocupação enseja garantir a conexão sertão –
litoral.

Nesse movimento das fronteiras econômicas do Norte e do Sul em convergência ao Alto


Itapecuru, no sentido de tangenciar sua atuação, faz-se indispensável o conhecimento de
um importante personagem, cuja história se mescla à dos espaços por ele diligentemente
palmilhados, o major português Francisco de Paula Ribeiro – desbravador dos “Sertões dos
Pastos Bons”, de quem tratar-se-á adiante.

3 O sertão do príncipe regente

A partir da segunda metade do século XVIII, sob a égide da filosofia iluminista, os Estados
europeus passaram por um processo de vigorosa sistematização política e econômica,
concebendo um modo de pensar e agir regido pelo ideal “racionalista” com vistas ao
“progresso” e ao “desenvolvimento” de seus reinos. Nessa mesma vertente, surge uma
corrente do “pensamento econômico” que valoriza os recursos naturais, especialmente a
terra, com as atividades agrícolas e mineradoras, como principal fonte de riqueza e
prosperidade de um Estado: o Iluminismo. Como bem descreve Márie-Nóelle Bourguet, em
“O Explorador”, trata-se de “Uma ambição curiosa e uma confiança na utilidade do saber
são a característica de uma época (Século das Luzes) que pretende unir o comércio, a
ciência e o progresso” (BOURGUET apud VOLVELLE, 1997, p. 209).

As atividades militares receberam, assim, a influência desse mesmo processo de


racionalismo que se desenvolvia na Europa. Os Estados europeus considerados fortes
procuraram paulatinamente investir em disciplinamento e sistematização de seu efetivo
militar, fugindo da figura do militar mercenário, indo em direção de um soldado que, pelo
devotamento à razão e à honra, ama e defende sua pátria. Formado no contexto descrito,
o militar português major Francisco de Paula Ribeiro, comissário a serviço dos interesses da
Coroa portuguesa no Brasil, realizou um estudo indispensável para o conhecimento mais
aprofundado do território maranhense, assim impulsionando o avanço da fronteira interna
de integração das regiões da capitania do Maranhão, no contexto de inúmeras comissões
demandadas pelas autoridades capitais portuguesas.

Francisco de Paula Ribeiro parece ser exemplo típico de intelectual racionalista, dos que não
confere ao seu trabalho de registro outro cunho senão o técnico-científico. Mas se deve
considerar que ele, enquanto observador e narrador oficial identifica-se com o pensamento
em voga na sua época, segundo sua formação ilustrada, e, nesse sentido, seus escritos

16
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

estão impregnados por termos, concepções e pensamentos, próprios do seu tempo, de seu
“lugar social” e do seu ofício de militar graduado.

Em sua incursão pelo interior da Capitania, que se estenderia por mais de duas décadas, sua
vida foi dedicada sob a forma de trabalhos árduos em defesa dos interesses portugueses
nas áreas setentrionais do Brasil. Sua ação rendeu como produto pessoal suas promoções
militares e para a historiografia e a etnografia um “traçado radiográfico” dos sertões
maranhenses, mormente em seus aspectos geográficos, físicos e antropológicos. Ressalte-
se que, no caso do presente estudo, a descrição que ele fez da “Ribeira do Alto Itapicuru”,
por ele destacada como a mais próspera de todos os “Sertões dos Pastos Bons”, nos
permite uma visão detalhada de como era o território, física e humanamente, no limiar do
século XIX, espaço de mais de dezena de municípios que presentemente integram a região.

Dando substância ao projeto e atento aos objetivos da política colonial portuguesa, o


desbravador Francisco de Paula Ribeiro esteve envolvido em diversas frentes de
colonização, participando da fundação de muitas fazendas, portos e povoações que hoje se
constituem atualmente como sedes municipais. Dentre essas podemos citar, como de suma
importância ao contexto da época, o Arraial do Príncipe Regente, em 1807, cumprindo
algumas das determinações da Carta Régia de 12 de maio de 1798, e cujo território
corresponde à atual cidade de Colinas, na região do Alto Itapecuru, primeiro distrito
geográfico por ele dividido e descrito na segunda parte de suas memórias.

E é bastante importante comentar esse caráter de “explorador” adjacente ao de militar, e


tão bem desempenhado por Francisco de Paula Ribeiro. Em verdade, conforme o estudo de
Márie-Noélle Bourguet (1997), o conceito de explorador nos séculos XVIII e XIX aparece
associado ao de informador, aquele que vai em missão oficial às terras estrangeiras
desvendar seus mistérios. É o explorador convidado a descortinar um determinado espaço
natural e oferecer informações sobre sua situação geográfica, sua extensão e seus recursos,
pois ele,
[...] o explorador é mais um reconhecedor do que um aventureiro, viaja em
cumprimento de uma missão organizada que conta com o financiamento de um
príncipe, de um grupo de comerciantes, de uma instituição científica ou
missionária, com objetivos precisos nascidos de um conhecimento geográfico
provisório e das expectativas de uma época. Em vez de se lançar no vazio, o
explorador sabe o que deve procurar, o que pretende encontrar. Antes de seguirmos
os seus passos, convém vermos primeiro o panorama político, econômico e mental
que idealizou sua partida (grifo nosso) (BOURGUET apud VOLVELLE, 1997, p. 212).

Esta conceituação de explorador vem esclarecer muito o homem experimentado, dotado


de sensibilidade e, sobretudo, de um apurado rigor técnico. Francisco de Paula Ribeiro, fiel
servo do Estado português, e notavelmente embevecido pelos sertões de Pastos Bons, que
foi o primeiro a percebê-lo para além da perícia técnica, o que o possibilitou conceber uma
obra dotada também de caráter etnográfico.

17
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

O texto de sua Descrição do território de Pastos Bons é estruturado sob a forma de uma
narrativa que é fruto do seu arguto olhar e de suas dilatadas vivências no território por cerca
de duas décadas. O cronista, portanto, não fala de algo que viu de forma fortuita, por
ocasião de uma rápida passagem, mas sim de uma vivência experimentada, de um homem
que nutria particular intimidade com os sertões, por ele visualizados, vividos e sentidos.

Ao estabelecer uma configuração espacial do território maranhense, já enuncia suas


especificidades e o regionaliza em duas zonas ou porções distintas: a primeira, do litoral até
a vila nova de Caxias, a qual denominada “porção norte” da capitania, concentrando a
produção de algodão e arroz, e mantendo efetivamente com o litoral importantes
atividades comerciais “o principal motivo de sua opulência”.

A segunda, compreendendo o território pouco abaixo da vila nova de Caxias, da barra do


riacho Corrente subindo em direção às cabeceiras dos grandes rios Parnaíba, Itapecuru,
Alpercatas, Balsas, Mearim e Grajaú, a “porção sertaneja”, segundo ele, com ampla
potencialidade a ser explorada, notadamente para a criação de gados e grande lavoura do
algodão.

Segundo Paula Ribeiro, no 2º parágrafo de sua Descrição, a divisão do território da capitania


do Maranhão em “porção norte” e “porção sul” se dá segundo critérios geográficos, físicos,
climáticos e de produção econômica, características que, segundo ele, poderiam levar
mesmo a se formar duas comarcas distintas, mas na sua visão progressista, não aconselha
a divisão. Nisso, refere-se às peculiaridades do Norte e do Sul, regiões geoeconômicas a
serem integradas, sendo que “é por isso mesmo que melhor entre si devem dar-se as mãos
e sustentar combinadas a sua florescência comercial e agronômica” (RIBEIRO, 2002, p. 107).

Vê-se com clareza o que permeia e sustenta esse discurso. Paula Ribeiro é um homem de
seu tempo, defende a integração espacial do sertão com o litoral, demonstra que o avanço
econômico não seria viável se a “fronteira integradora” não chegasse àquelas áreas. Áreas
essas segundo o cronista tão pródigas e fecundas, que racionalmente aproveitadas suas
potencialidades naturais, levariam a capitania do Maranhão à prosperidade. Em seu
discurso, apesar de demonstrar razoável respeito pelos povos nativos, é peremptório ao
afirmar a necessidade de conter os habitantes autóctones dos sertões, pois eram por ele
considerados “entrave” ante a “fronteira da integração”, pelo que precisariam ser
urgentemente pacificados ou erradicados.

Ao referir-se à “porção sertaneja” a qual designa “Pastos Bons” ou “Altos Sertões da


Capitania”, compreendendo desde os limites do território de Caxias até as cabeceiras dos
grandes rios meridionais, Paula Ribeiro chama atenção para a necessidade da ocupação
racional do território,
Somente, no entanto povoado por quatro ou cinco mil almas livres, que empregam
menos de mil escravos, e contendo, com parte também de boas matas ainda
devolutas, dilatadas campinas próprias quanto é possível para uma imensa criação

18
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

de gados, não só atualmente presta, mas pode para o futuro muito mais prestar
com os mesmos gados (RIBEIRO, 2002, p. 108).

Seguidamente, acrescenta a importância da criação de gados como forma de atender o


consumo da população do litoral, assim como o litoral fornecer os misteres comerciais
demandados pelos Altos Sertões, o que segundo ele faria “vigorar pelas forças desta a
cultura dos gêneros de que lhes resulta o comércio, e, por conseguinte, firmar-se o giro de
que depende o adiantamento dentre ambas ou o de toda a capitania em geral” (RIBEIRO,
2002, p. 108). Mais uma vez, o cronista evidencia a necessidade da integração
geoeconômica, destacando a complementaridade das práticas econômicas de cada região,
assentadas no pacto colonial: latifúndio, agricultura de exportação e comércio de
manufaturados.

Ao se referir à região em seus aspectos naturais, assevera que “A natureza de uns e outros
terrenos, excessivamente pródiga na sua vegetação, é que talvez tenha adquirido para todo
esse distrito o nome de Pastos Bons”. E continua a narrativa de forma minuciosa: “Os seus
campos nutridores, o seu ar cômodo, preciosas águas, grande fertilidade seguida ao mais
pequeno cultivo e a sua nunca interrompida verdura, são as circunstâncias que fazem com
que este país seja o mais abundante e delicioso” (RIBEIRO, 2002, p. 110).

O tom enaltecedor ao expressar a riqueza da terra é o “pano de fundo” da “publicidade


integradora” proposta por Paula Ribeiro, causa tão bem defendida. Procura, pela perícia de
suas investigações meticulosas sobre o espaço geográfico, demonstrar às autoridades
portuguesas a necessidade de investimentos na região por ele desbravada. Sendo ele um
entusiasta do “ideal integrador” em prol dos interesses lusos, incentiva e promove o
contato das frentes de povoamento e, por assim dizer, das regiões geoeconômicas, o que
leva as autoridades litorâneas a estenderem não somente suas atenções, como também
seus “fortes braços de ação” sobre o território dos sertões maranhenses.

Tanta importância atribui às bacias hidrográficas para o devassamento e efetivação da


conquista do sertão dos Pastos Bons que o major Francisco de Paula Ribeiro, como forma
de melhor compor sua descrição da região, divide a continental freguesia em oito
microterritórios os quais ele nomeia e enumera como “particulares distritos ou ribeiras”,
tendo os rios como referência, a saber: 1. Alto Itapecuru; 2. Parnaíba; 3. Balsas; 4. Além de
Balsas; 5. Neves; 6. Lapa; 7. Farinha e 8. Grajaú. Conforme se pode examinar no Mapa 1,
onde destaco a Ribeira do Alto Itapecuru, onde foi erguido o Arraial do Príncipe Regente.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 01 – Mapa da Localização Geográfica da Ribeira do Alto Itapecuru em 181


Fonte: Pereira (2016).

Para efeito do presente estudo, interessa-me mais a primeira ribeira, a do Alto Itapecuru que
compreendia o território desde a barra do riacho Corrente até as cabeceiras dos rios
Itapecuru e Alpercatas, terreno no qual Francisco de Paula Ribeiro fundou, em 1807, o Arraial
do Príncipe Regente. Sobre essa microrregião assim registrou no parágrafo nº 32 de suas
memórias:
A ribeira do Alto Itapecuru compreende todo o terreno que se acha desde a barra
do riacho Corrente até as cabeceiras dos rios Itapecuru e Alpercatas, tomando no
seu âmbito circunferencial o espaço cujas vertentes correm de oeste e de leste
para estes rios [...]. Ao centro os seus campos de criar os gados e suas excelentes
matas próprias de lavrar encostadas no rio Itapecuru tem proporções atendíveis.

20
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Cortada por este memorável rio, pode por isso mesmo adquirir tantas vantagens
de quantas se pode fazer ideia [...] (RIBEIRO, 2002, p. 121).

Aqui se vê algo bem útil ao nosso estudo no sentido de compreender a importância dada à
navegação pelo rio Itapecuru para constituição do ideal integrador. Paula Ribeiro descreve
o périplo do rio, no que tange sua navegação, a partir de sua foz no Golfão Maranhense.
Nesse trajeto, afirma somente ser ele navegável até a fazenda do Alegre, poucas léguas
acima de sua confluência com o rio Alpercatas, próximo de onde ele fundou o Arraial do
Príncipe Regente.

É conveniente observar como o pensamento social do século XIX interfere nas estruturas
narrativas de Francisco de Paula Ribeiro, mormente quando descreve geográfica, social e
economicamente o território dos altos sertões de Pastos Bons. Ao tratar do repovoamento
da ribeira do Alto Itapecuru, simbolicamente se vale do pensamento da ideia dos “vazios
aproveitáveis”, terminologia muito utilizada pelos exploradores em seus registros para
categorizar os sertões, desconsiderando que a presença das comunidades nativas já ali
assentadas marcavam a presença humano na região. Nesse sentido, há, segundo ele, duas
ribeiras distintas no rio Itapecuru: a que já entrou em contato com a “civilização”, de Caxias
para cima, e a outra ainda bravia – o Alto Itapecuru.

Contrariamente, a “porção Sul” da ribeira do Itapecuru (Distrito sede – Pastos Bons) é por
ele descrita com profundo pesar ante o descaso que se faz potente sobre ela. Segundo ele,
deserta, devolutas as suas terras, tomada pela “barbárie do gentilismo”, a despeito de suas
inerentes potencialidades a serem exploradas, pois “Já em outro tempo foram povoados
seus campos em Pastos Bons, os melhores para a criação de gados, e ali com mais de
sessenta estabelecimentos deste gênero formavam esta ribeira uma das mais populosas do
districto [...]” (RIBEIRO, 2002, p. 43).

Lamentando o estado desfavorável do processo de colonização, o major Ribeiro aponta


como principal causa para o “despovoamento dos colonos” da “mais rica porção do
território” da Capitania a forte presença das numerosas comunidades nativas (barbárie do
gentilismo, segundo ele), por sinal, seus primitivos povoadores. Para ele, a fronteira do
desenvolvimento estagnara, muito embora a navegação fosse possível, facilitada e capaz
de fazer “desenvolver os sertões”,
[...], porém, os índios Sacamecrãs, de que tratamos na memória respectiva, e
outros que com estes se confinam tornaram a vertê-los em desertas solidões,
desestruturando a maior parte dos ditos estabelecimentos, e indo gradualmente
tanto em aumento essa devastação, que já hoje na dita ribeira muito pouco
conhecemos, e esses mesmos quase exauridos, circunstância esta pela qual pode
fazer-se ideia do quanto ela estará devoluta, e de quão poucos é o número de seus
habitantes (RIBEIRO, 2002, p. 43).

Esta análise de Paula Ribeiro sobre o território de Pastos Bons é carregada de forte
simbolismo. A formação identitária dos sertões maranhenses está intimamente ligada à
negação do elemento étnico indígena como povoador primeiro, em função da construção

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

de uma identidade relacionada ao “boom econômico” do momento: a pecuária. O próprio


gado, conforme se vê claramente, é o impulsionador da dinâmica da conquista do território,
ele fez fixar os “invasores-desbravadores” nas campinas sul maranhenses, nas suas
pródigas e intermitentes ribeiras.

É, pois, a partir dos registros de Paula Ribeiro que esse espaço geográfico, já de muito tempo
povoado pelas populações nativas, começa a existir historicamente, oficialmente na
verdade. O topônimo usado por ele para representar os imensos sertões da capitania é
carregado de simbolismo: “Pastos Bons”, o que está em conformidade com a dinâmica de
ocupação econômica e social que se fará realidade na região, a partir da imposição dos
currais para criação de gado, das roças e das primeiras casas de pindoba pelos colonos.

O clima, o solo, as potencialidades naturais e minerais são apresentadas na obra de Paula


Ribeiro em tom de ineditismo e descoberta. As abundantes espécies de árvores e arbustos
com propriedades terapêuticas, milenarmente conhecidas dos nativos, são colhidas para
legitimar sua eficácia por botânicos e químicos europeus. Passam, assim, todos esses
aspectos naturais e geográficos, em função da nova dinâmica do (re)povoamento a serem
revisitados e (re)significados pelo colonizador, distanciando-se de um caráter paradisíaco e
aproximando-se do econômico. O sertão sai da sua dimensão cartográfica imaginária e
mística em direção de sua dimensão real e substancial.

O criador de gado, os vaqueiros e os outros produtores como lavradores e artesãos passam,


neste contexto, a representar a gene social e cultural do sertão. O elemento nativo passa a
função de “empecilho natural” ao desenvolvimento que se fazia concreto e inevitável. O
gado fez fixar o (re) povoamento, assim como o vaqueiro aquele que, no trato direto com
as crias, a desbravar os perigos das matas carrascais, é revertido de uma carga cultural e
simbólica forte para representar aquele sertão em formação.

Nesse contexto, observa-se que o indígena é categorizado como o algoz da civilização, o


entrave ao progresso; o colonizador como o herói, desbravador intrépido, benfeitor. Nesse
joguete de forças, prevalece o poder simbólico que o colonizador exerce ao registrar e
legitimar a história, sacralizar a memória de um grupo social a partir da versão do vencedor.
Conforme conceitua Bourdieu (2005, p. 14) o simbólico é um “poder de constituir o dado
pela anunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo,
[...] poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou econômica), entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos”.

4 O Arraial do Príncipe Regente entre a opulenta Caxias e a florescente Almeida

Como é sabido, em função, sobretudo, das dificuldades de comunicação, vivia o sertão de


Pastos Bons em certo insulamento com relação ao litoral, razão pela qual seu contato
comercial se dava mais com as capitanias do Piauí, Goiás, Bahia, Pernambuco e Minas Gerais.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Tal realidade desde muito incomodava as autoridades das capitais maranhenses,


notadamente pelas perdas comerciais que se davam em função das relações que se
processavam entre o sertão e as referidas capitanias.

Principalmente, ensejavam tais autoridades que o comércio de gados, carnes, couros, peles
e outros gêneros que estava sendo operacionalizado entre o sertão de Pastos Bons, pelo já
navegável rio Parnaíba, com São João da Parnaíba (hoje cidade de Parnaíba, PI), antiga e
estratégica vila portuária piauiense, fosse direcionado para a capital do Maranhão, via
navegação fluvial pelo rio Itapecuru.

Sobre isso registrou Paula Ribeiro, em 1819, em sua “Descrição do Território de Pastos Bons
[...]”; ao descrever a bacia hidrográfica do rio Parnaíba, ele ressalta: “Até hoje a principal
navegação de Pastos Bons se faz por ele (Rio Parnaíba) em balsas ou jangadas de buriti,
exportando seus moradores para a vila de São João da Parnaíba os insignificantes gêneros
que podem transportar, ou em que podem traficar” (RIBEIRO, 2002, p. 129). Esta situação
de conduzir pelo rio Parnaíba era uma estratégia econômica dos comerciantes piauienses
no sentido de manter o controle das exportações de gêneros, aproveitando-se da ainda
incipiente, ou mesmo inexistente, navegação pelo rio Itapecuru. Sobre isso corrobora
Santana (1965, p. 74) ao se referir às transformações das práticas comerciais naquele início
de século que “descendo pelo Parnaíba os algodões, os couros, e mais produtos da
Província, e não pelo Itapecuru, dar-se-ia às forças produtivas da Província (do Piauí) a
direção que era conveniente”.

Naquele principiar de século XIX, atendendo às determinações da Carta Régia datada de 12


de maio de 1798, consciencioso da necessidade de medidas emergenciais, dom Francisco
de Melo Manuel da Câmara, Tenente-coronel de Cavalaria e Comendador da Ordem de
Cristo, governador e capitão-general da capitania do Maranhão (1806-1809), ordenou a
promoção da navegação do rio Itapecuru, assim como a fundação do Arraial do Príncipe
Regente, como um núcleo militar de apoio ao avanço da frente de colonização.

O projeto do governador Câmara intentava, portanto, promover a navegação, incrementar


as atividades comerciais e a integração das distintas regiões, nesse contexto, facilitadas
exclusivamente a partir da contenção das populações indígenas que, segundo concepção
da época, “entravavam” o (re)povoamento do interior da dita ribeira, contrariando a
expansão da mais importante atividade econômica, àquela época, para a região de Pastos
Bons, a pecuária. A pecuária não era somente importante, assim como indispensável diante
da demanda do abastecimento de carne, serviço do qual o próprio governador era “sócio
ostensivo de José da Costa e Oliveira, arrendatário do abastecimento de carne” (MEIRELES,
1980, p. 206).

Seu projeto arrojado ensejava um possível enquadramento econômico da região ainda


“pouco povoada”, o sertão – com o litoral, assim como uma tentativa oficial de erradicar as
comunidades nativas tidas pelos desbravadores como “entrave” a esse projeto integrador.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Desse modo, o espaço físico da ribeira do Alto Itapecuru, onde fora fundado o Arraial do
Príncipe Regente, disso parece não haver dúvidas, é alvo de muitas disputas, desde o século
XVIII. Área estratégica, sobretudo por situar-se entre duas grandes bacias hidrográficas, do
Itapecuru e do Parnaíba, e que, além de terras muito férteis, eram reconhecidas por Paula
Ribeiro como próprias não somente para a criação de gados como para a lavoura “de raiz”
e de exportação, constituía-se na mais potencialmente rica porção do território Sul
maranhense.

Era manifesto nas ações de Francisco de Paula Ribeiro a entusiástica missão de promover o
desenvolvimento econômico, agronômico, como ele diz, dos sertões dos Pastos Bons.
Segundo ele, “o que com efeito ia a conseguir-se com passos agigantados, porque não só
algumas daquelas referidas fazendas de gado principiavam a recuperar-se, e a subir também
da vila de Caxias algumas feitorias de lavoura,[...]” (RIBEIRO, 2002, §44, p. 126) alojando-se
elas no espaço por ele considerado “deserto” entre o Arraial e a vila de Caxias,
estabelecendo a comunicação por estradas a serem abertas entre as fazendas, e avançando
o povoamento das margens dos rios para o interior do território, onde ainda se faziam
potentes muitas comunidades indígenas.

Em 1809, visitou a povoação-porto do Príncipe Regente o militar em ordenança oficial


Sebastião Gomes da Silva Berford, que, assim como Francisco de Paula Ribeiro, realizou
audaciosa viagem da cidade do Maranhão até a corte do Rio de Janeiro, produzindo, a partir
de suas observações, um roteiro circunstancial do Maranhão interior, percorrendo os
sertões. Ele registrou em um ofício de informação que:
[...] Governando a Capitania e o Estado do Maranhão em setembro do ano passado
D. Francisco de Melo Manuel da Câmara, [...] me fez saber o quanto convinha ao
Real Serviço que eu viesse pessoalmente a esta Corte do Rio de Janeiro [...] em
cumprimento das cartas régias de 12 de março de 1798, [...], daria uma exata e fiel
informação dos seguintes objetos: 1º) do Arraial do Príncipe Regente no Julgado de
Pastos Bons; (grifo nosso) 2º) da navegação do rio Itapecuru para ele; 3º) das
diferentes estradas que por terra vão ao dito Arraial, e dele seguem até o rio
Tocantins; e 4º) finalmente, da descoberta do mencionado Tocantins naquela
capitania, [...] (BERFORD, 2008, p. 27).

Ao se referir estritamente ao Arraial, primeiro ponto a ser por ele investigado, afirma que
logo se ocupou da observação do espaço e a se informar com pessoas conhecedoras “sobre
tudo quanto poderia com proveito merecer a menor atenção real e pública no dito Arraial”
(BERFORD, 2008, p. 27). Deste modo, narra sobre sua fundação, com informes que
acrescentam em muito aos deixados por Paula Ribeiro em seu roteiro:
E achei que ele fora fundado por ordem do governador e capitão-general que me
enviou, em 24 de junho de 1807, pelo tenente do Regimento de Linha do
Maranhão, Francisco de Paula Ribeiro, com 50 soldados do dito Regimento, cujo
número depois se aumentou com mais 10; que então se achava habitado por 215
almas, todo arruado com casas, quartel e capela; [...] (BERFORD, 2008, p. 28-9).

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Sobre sua instituição e importância estratégica para o povoamento e “segurança” dos


estabelecimentos no sertão, é enfático, Sebastião Berford, no trecho seguinte:
[...] achei mais que com sua criação tinha o Julgado de Pastos Bons, aliás sito no
interior dos sertões da capitania, obtido um porto navegável para a sua importação
e exportação, do que resulta que os habitantes pudessem importar e exportar para
ali os seus gêneros por um caminho de dezoito léguas, quando dantes o faziam
por outro de cinquenta e duas e meia até Aldeias Altas; [...] (BERFORD, 2008, p.
29).

Acrescenta o narrador um dado preciso sobre a relevância do Arraial no estabelecimento e


restabelecimento das fazendas de gados, bem como para o repovoamento do território
então considerado “deserto”, no interior da ribeira do Alto Itapecuru, afirmando que “[...]
mais observei a restauração de várias fazendas de gados que, desamparadas pelas
crueldades que nelas e seus possuidores fazia o gentio timbira da mata, então deviam a sua
nova ereção ao Arraial, por ocasião do qual até se achavam estabelecendo outras fazendas
[...]” (BERFORD, 2008, p. 29).

E uma vez fundado o Arraial, iniciada sua navegação com sucesso, atendendo ao fim pelo
qual foi erguido, arruado e habitado, questiona-se o porquê de sua não continuidade.
Perseguição política? Disputas econômicas com outros polos econômicos mais antigos?

Segundo Francisco de Paula Ribeiro (2002), tais motivações do fim do Arraial prevaleceram
“em razão da intriga, que é geralmente sabida por toda a Capitania e talvez até na Corte,
opiniões que fizeram destruí-lo só porque era uma criatura” daquele governador e capitão
general (O Arraial foi fundado no governo de dom Francisco de Melo Manuel da Câmara) e,
como consequência, “estancou-se de novo a navegação, tornaram a minorar as fazendas
de gado e as feitorias”. A grande lavoura que avançava em passos largos em direção do
centro-sul, e que guarnecidas pelo efetivo militar do arraial, avançando em diferentes
direções, e “cujo sucesso era certo pela comodidade da mesma navegação, tornou a
esmorecer” (RIBEIRO, 2002, §44, p. 126).

Paula Ribeiro (2002, p. 77) é enfático ao considerar sobre a descontinuidade do projeto


“Arraial do Príncipe Regente”.
Extinto ele, como, com efeito, está, são com ele extintas todas as vantagens que
tão útil navegação prometia; porque os estabelecimentos das povoações de gado
recuaram; estagnou-se outra vez a lavoura do algodão; e o sal, que em razão da
mesma navegação já se vendia a 2$400 réis o alqueire, subiu logo ao preço de
6$400, e está hoje a 12$800 ( por tanto o compramos nós nesta viagem); e todos
os mais gêneros levantaram como este, e à proporção dos preços que tinham.

O militar desbravador Sebastião Berford ajuizando a necessidade de se dar racionais


atenções ao projeto do Arraial, descrevendo sua abrangência e relevância para a
prosperidade econômica da região sertaneja, do Maranhão e da coroa, afirma:

Ninguém pode hesitar de que a realização e alcance disto mesmo é um grande bem, e tal
que pela falta dele ainda hoje vemos muitas cidades, vilas e lugares, cuja fundação, sendo

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

antiquíssima, contudo quase nada avançaram do pouco que eram em seus princípios, o que
se prova evidentemente do mesmo julgado de Pastos Bons, que, povoado no lugar da
freguesia desde 1744, nem por isso deixa de ser ali tão miserável que apenas conterá em si
oito palhoças e o quartel do destacamento (BERFORD, 2008, p. 31-2).

Ao dissertar sobre o processo de configuração espacial do sertão de Pastos Bons, a partir


da visão dos militares comissionados pela Coroa, entre o final do século XVIII e principiar do
século XIX, o historiador e estudioso do sertão maranhense Professor Doutor Alan Kardec
Gomes Pacheco Filho, em sua Tese de Doutoramento, “Varando Mundos: navegação no Vale
do rio Grajaú” (2011), traz importante versão para o aniquilamento do projeto do Arraial do
Príncipe Regente, ainda no seu nascedouro.

Dentre outras causas, o historiador afirma que a substituição do governador Francisco de


Melo Manuel da Câmara assim como as intrigas e estratégias dos políticos de Caxias
“queixosos de serem preteridos e comercialmente prejudicados com a criação do Arraial do
Príncipe Regente, colocaram em xeque a necessidade de sua existência” (PACHECO FILHO,
2011, p. 38).

De fato, pelo desenrolar da administração de Dom Francisco de Melo, cercada de celeumas


e perseguições políticas, o projeto do Arraial afeta claramente os interesses da classe política
e econômica de Caxias, àqueles tempos lutando para seu reconhecimento e elevação ao
status de vila, já que era considerada o maior empório comercial da Ribeira do Itapecuru,
interligando, as diversas dinâmicas econômicas que se processavam no espaço
maranhense.

Não é dessa época, no entanto, convém esclarecer, que o projeto de navegação pelo rio
Itapecuru até o local onde se estabeleceu o porto-povoação do Príncipe Regente esteve
nos tentames oficiais. Desde o século XVIII, notadamente após a criação do Estado do
Maranhão e Piauí, em 1772, no âmbito das reformas pombalinas, o projeto integrador do
sertão ao litoral tomou impulso, bem como promoveu a incursão oficial pelo território, no
objetivo de delimitar fronteiras, reconhecer os acidentes geográficos importantes e
incentivar o povoamento sobre as terras que mais potencialidades econômicas
oferecessem.

A recuperação econômica proposta pelo Marquês de Pombal, em seu projeto integrador


das diferentes porções do território maranhense, foi posta em prática especialmente por
dois governantes, são eles: Gonçalo Pereira de Lobato e Sousa (1753-1761) e Joaquim de
Melo e Póvoas (1761-1775). O primeiro, por sinal, fez inúmeras viagens ao interior, inclusive
a Aldeias Altas, atual Caxias, em 1758, sendo que um dos objetivos da viagem “foi promover
a articulação da Freguesia de Pastos Bons ao litoral, por meio de incentivos à
comercialização do couro. Para isso, procurou promover a navegação do alto Itapecuru, de
Aldeias Altas para cima” (CABRAL, 1992, p. 88).

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Joaquim de Melo e Póvoas, em seu governo, também se embrenhou pelos sertões,


chegando até a Freguesia de Pastos Bons, em 1767, também deixando clara a necessidade
de integração da zona criatória sertaneja com o litoral, via navegação pelo Itapecuru. Tal
necessidade não chegou a ser solucionada, e a navegação até a ribeira do Alto Itapecuru, só
teria impulso no principiar do século XIX, com o governo de Francisco de Melo Manuel da
Câmara, criador do Arraial do Príncipe Regente.

A necessidade de tal conexão residia no fato de que a conjuntura econômica internacional


favorecia o consumo da grande lavoura do algodão, principalmente, e do arroz, culturas que
encontravam na região do Alto Itapecuru condições favoráveis de cultivo, assim como o
porto navegável para o escoamento da produção dos lavradores até a Capital.

A historiadora Socorro Cabral (1992, p.79), ao descrever a prosperidade gerada pelo projeto
pombalino, entre o final do século XVIII e início do século XIX, acrescenta que “Na época,
consolidou-se a ocupação dos vales dos rios Mearim, Pindaré e, em especial, do Itapecuru,
por onde se espalharam as lavouras de algodão”.

Toda a produção de algodão, de arroz, carne e couro eram comercializadas diretamente


com Caxias por uma sôfrega via terrestre de cinquenta e três léguas e meia, sendo que, a
partir da criação, do Arraial do Príncipe Regente, em 1807, essa distância foi reduzida a
dezoito léguas via porto do Arraial, até Aldeias Altas (Caxias), tendo o Arraial como
entreposto natural entre os “sertões de dentro” e o litoral (MARQUES, 2008, p. 145).

Diante da possibilidade de puxar para si todo o comércio do sertão de Pastos Bons, gozando
de estratégico posicionamento, cumprindo favoravelmente às demandas dos habitantes do
sertão e do litoral o Arraial do Príncipe Regente foi
Responsabilizado pela queda do comércio de Caxias (uma vez que seu porto,
localizado na confluência3 dos rios Itapecuru e Alpercatas, servia de entreposto
entre a Freguesia de Pastos Bons, os ‘sertões de dentro’ e a Capital para a
importação e exportação de seus gêneros), a nova administração da província foi
gradativamente fomentando a diminuição de sua utilização. Caxias voltou a ser o
empório comercial como era antes da criação do Arraial do Príncipe Regente
(PACHECO FILHO, 2011, p. 39).

Coadunando com a tese de que a finalização do projeto do arraial contribuiu para o


reflorescimento econômico e político de Caxias, citamos o major Francisco de Paula Ribeiro
em seu “Roteiro” ao descrever Caxias num período imediatamente posterior à sua elevação
a vila, que ele assim a ilustra:
É a vila de Caxias uma continuada feira, onde de muito distante os povos dos
sertões confinantes trazem a venda os seus efeitos, que constam de algodões,
solas, couros de veado e cabra, tabacos de fumo, gados, escravaturas da Bahia,

3 Em verdade, pela leitura acurada do “Mapa Geográfico da Capitania do Maranhão” (1807-1819),


desenhado pelo militar português Francisco de Paula Ribeiro, desbravador dos sertões dos Pastos Bons,
fundador do Arraial, a sua localização é abaixo da confluência dos rios Itapecuru e Alpercatas, onde a
cartografia atual situa a cidade de Colinas.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

cavalarias e tropas de machos, a que chamam burradas, levando em troco toda a


qualidade de gêneros da Europa. [...], é nela considerável a concorrência de muita
gente e de muito comércio, em comparação da insignificante importância de seu local
(RIBEIRO, 2002, p. 75).

Como desbravador dos sertões de Pastos Bons, entusiasta e instituidor do Arraial do


Príncipe Regente, Paula Ribeiro reconheceu a “opulência” comercial da recém-criada vila de
Caxias, mas deixa evidenciada sua insatisfação de que substitua satisfatoriamente o ponto
estratégico e essencial por ele escolhido como entreposto comercial do sertão, o arraial
situado no Alto Itapecuru.

A manutenção do Arraial, no que pese sua função estratégica em promover o projeto


integrador, era tão compreensível do ponto de vista de seus principiadores que, alguns,
como que antevendo o jogo político e as manobras orquestradas pela elite caxiense
sugeriram em seus documentos oficiais que para o Arraial do Príncipe Regente fossem
transferidas as repartições públicas, a própria cabeça do Julgado de Pastos Bons, para sua
conservação e aumento, assim como “a mudança da matriz e da freguesia para o arraial,
onde também deve ser efetiva a assistência do juiz, escrivães e tabeliães do julgado”;
(BERFORD, 2008, p. 32).

De fato, fora um tentame frustrado querer manter o promissor porto, a capela e o quartel
do destacamento militar que com tanto custo ali se estabeleceu, em 1807, quando da
criação do Arraial. Inclusive, num momento em que uma promissora, mas simples povoação
como o era concebida numa gestão tumultuosa e cercada de desafetos, não possuía meios
de lutar com a segunda maior instância comercial da província, erigida em vila e gozando
ainda da prerrogativa de ser uma das três únicas comarcas instaladas de São Luís, premiada
que foi pelo Alvará de 31 de outubro de 1811 – a “opulenta Caxias”.

Apesar de toda a força política da “opulenta Caxias” ela não se constituía no único
empecilho para a manutenção do Arraial do Príncipe Regente. Com o mesmo sentido em
que fora fundado o referido arraial, nascia e florescia outra povoação, mesmo que ainda
tímida, com o intento de servir de porto, também na calha direita do rio Itapecuru, poucas
léguas abaixo do local do arraial, onde se fazia potente o peso das comunidades nativas.

Por muito tempo a tradição oral recorrente em Colinas, cidade situada no local do antigo
porto e Arraial do Príncipe Regente, deu conta de que a povoação de Almeida Del Rei (até
atualmente pertencente ao território deste município) foi fundada bem antes que o
município de Colinas. De fato, grande parcela da comunidade colinense não tem
conhecimento de que o Arraial do Príncipe Regente foi o primeiro núcleo de povoamento
oficial do Alto Itapecuru, e situou-se onde a cartografia atual indica a cidade de Colinas.

Em verdade, tanto o porto e núcleo oficial do Arraial do Príncipe Regente (1807), quanto a
fazenda Picos (com Carta de Sesmaria concedida, em 1822, no mesmo local do antigo arraial,
no atual território municipal de Colinas) quanto o porto-feitoria de Almeida Del Rei (fundado
em 1820, quatro léguas abaixo do Arraial, e pertencente a sua jurisdição territorial) surgem

28
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

com o intento de promover-se o “povoamento” da região do Alto Itapecuru, extirpando a


presença das numerosas comunidades nativas que tanto atemorizavam os sesmeiros e
moradores da ribeira direita do Itapecuru, sendo que também, segundo os militares
desbravadores, eram elas que mais “ameaçavam” a “paz” do Arraial e da região.

Essa seria a justificativa mais difundida para a fundação de Almeida Del Rei, posto que
naquela paragem habitassem secularmente duas numerosas e resistentes nações indígenas
Sacramecrãs: os Timbira da Mata (na margem direita), e os Canela Fina (na margem
esquerda) lutando bravamente contra as constantes investidas dos agentes colonizadores
que pleiteavam tomar-lhes à força suas terras e águas, o que fizeram após sangrentas lutas.

A feitoria e porto de Almeida Del Rei foi fundada pelo tenente coronel Germano Francisco
de Moraes, potentado fundiário e importante autoridade política e militar em Pastos Bons,
também responsável pelo controle da ribeira do Alto Itapecuru. Lê-se em César Marques no
seu verbete “Almeida” (transcrito do Alvará de 18.abr.1820) que o presidente interino da
província do Maranhão, Manuel Teles da Silva Lobo, em resposta a um aviso a ele remetido
da Corte, datado de 24.jan.1821, afirmava que o Tenente Coronel Germano Francisco de
Moraes, domiciliário de Pastos Bons, “além de ter sido o pacificador dos gentios Timbira e
Canela-Fina, foi o fundador da povoação de Almeida Del-Rei, pelo que merecia ser
condecorado com o hábito de Cristo” (MARQUES, 2008, p. 118).

Parece ser bem arquitetado o projeto de Germano Moraes em constituir oficialmente


Almeida Del Rei, não se limitando a exterminar os povos nativos, para além disso influindo
decisivamente para o estagno das atividades militares e, por seguinte, econômicas do tão
promissor Arraial do Príncipe Regente em favor do florescimento de uma nova feitoria-
porto, poucas léguas abaixo dele. Convém lembrar que a partir da fundação do Príncipe
Regente, em 1807, pelo que se promoveu a “pacificação” de muitas tribos nativas, tem lugar
um afã muito grande pela posse de sesmarias na Ribeira do Alto Itapecuru, sendo que
muitas delas eram requeridas no grande território do Arraial, estratégico por situar-se entre
as áreas mais povoadas e prósperas entre a barra do Alpercatas, a barra do Corrente, do
Balseiros - Inhumas e do rio Parnaíba.

É provável, nesse sentido, que o território posteriormente nomeado Almeida Del Rei, sito
apenas quatro léguas abaixo do Arraial, fosse uma sesmaria concedida a Germano Francisco
de Moraes, seu fundador e articulador político de sua constituição oficial. Há pelo menos
três referências históricas que evidenciam a proposição de um acordo entre potentados
políticos para o efetivo fim do arraial e o estabelecimento de Almeida Del Rei.

A primeira, trata-se do Aviso recebido da Corte pelo presidente da província do Maranhão e


datado de 24 de janeiro de 1821, supracitado, pelo qual se justificava ser condecorado o
Tenente Coronel Germano Francisco de Moraes com o “Hábito de Cristo”, em função da
“pacificação” dos indígenas Timbira da Mata e Canela Fina, que habitavam as paragens do
Alto Itapecuru.

29
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A condecoração assentava-se claramente ao contexto político-militar da época, pelo qual


os súditos que, fiel e satisfatoriamente, desempenhassem ações em favor do “real serviço”,
seriam recompensados por meio da outorga de títulos militares e de nobreza, como paga
aos relevantes préstimos oferecidos à administração colonial. A condecoração de Germano
Moraes pode não ter sido tão justa, pois conforme acrescenta César Marques em seu
“Dicionário [...]”, em 1870, no verbete “Almeida”, essa povoação “foi sempre ameaçada
pelos índios Timbiras da Mata cujas povoações lhes são fronteiras, os quais nunca
sinceramente se reconciliaram”. (MARQUES, 2008, p. 118).

No entanto, não se pode negar a importância desse feito, pois Almeida surge, por assim
dizer, com o mesmo objetivo do antigo Arraial. E contribui, mesmo que de forma tênue (de
1820-1835, enquanto freguesia), para o enquadramento dos territórios da ribeira do Alto
Itapecuru, nos sertões de Pastos Bons, à dinâmica litorânea.

A segunda é a transferência da guarnição militar do Arraial do Príncipe Regente para


Almeida. O major Francisco de Paula Ribeiro em seu “Roteiro”, relaciona a situação de
abandono do núcleo militar e populacional do Príncipe Regente, às manobras e intrigas
políticas do poderoso Germano Francisco de Moraes, responsabilizando-o pela retirada do
destacamento de guarnição do arraial para o território onde se fundaria oficialmente, em
1820, a freguesia de São Miguel de Almeida Del Rei, onde já ele mantinha lavoura e criação
sendo que
[...] ele (o Arraial) se foi evaporando ao ponto que nada custou a dar-se-lhe o último
golpe, que na mesma intriga lhe premeditava de muito tempo, motivo que ali já não
há mais povoadores; e se lhe tirou afinal o pequeno destacamento que ainda agora
em 1817 o guarnecia, e nele impedia a passagem dos gentios para as nossas
povoações do centro, mudando-o daí para baixo [...] para auxiliarem uma pequena
plantação pertencente a Francisco Germano de Moraes, (grifo nosso). [...] (RIBEIRO,
2002, p. 77).

E é mais peremptório ao indigitar a conduta abusiva do tenente coronel fundador da


povoação Almeida Del Rei, alegando a conflituosa relação entre o público e o privado,
[...] como se os interesses de um só homem devessem prevalecer aos de um
público interior, ou como se os serviços das tropas pagas e sustentadas à custa Del
Rei nosso senhor devessem privadamente empregar-se em suster o capricho dum
só vassalo em particular, com prejuízos de todos os outros seus vassalos em geral
(grifo nosso) (RIBEIRO, 2002, p. 77).

A terceira evidência é a orquestração da instituição oficial do território de Almeida Del Rei.


O tenente-coronel Germano Moraes demonstra sua representatividade diante das
autoridades capitais maranhenses, conquistando dilatado poder político nos sertões dos
Pastos Bons. Fora ele muito habilidoso também ao reservar o topônimo da nascente
povoação. Pela época da fundação da feitoria-porto de Almeida Del Rei, era Ouvidor Geral e
Provedor Intruso do Julgado de Pastos Bons o nobre Bernardo Malafaia Freire Teles de
Almeida, o mais alto posto da administração colonial nos sertões, e residente em Pastos

30
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Bons, onde era também autoridade o dito tenente-coronel Germano, o qual se tornara o
chefe político mais notável daqueles rincões, até às margens do rio Parnaíba.

Disto se pode aferir o motivo da fundação da Almeida e sua relação direta com a finalização
do projeto do arraial. A homenagem prestada ao Ouvidor Bernardo Almeida dá os indícios
de sua interferência direta e decisiva nas providências de constituição da nova povoação,
no âmbito da burocracia estatal.

Almeida Del Rei guardou até a primeira metade do século XIX sua importante função de
porto-feitoria a servir o sertão de Pastos Bons, na ribeira do Alto Itapecuru, notadamente
aos agricultores e pecuaristas das ribeiras do Balseiros, Corrente e Inhumas, importantes
centros produtores do território entre as ribeiras do Itapecuru e o Parnaíba.

No que pese sua função de porto fluvial e ponto de resistência e apresamento dos povos
nativos, a demonstrar as manobras políticas que cercaram o projeto do tenente-coronel
Germano Moraes, a povoação de Almeida Del Rei é elevada à Freguesia. Essa resolução se
dá, especificamente, a partir da divisão eclesiástica da Freguesia de São Bento das Balsas
dos Pastos Bons em três: a Freguesia de São Bento dos Pastos Bons, a Freguesia de São
Félix de Balsas e a Freguesia (de São Miguel) de Almeida Del Rei.

A efetivação se dá em virtude da Provisão Régia, de 18 de abril de 1820, a qual determinou


a criação de novas freguesias pelo repartimento das duas quase centenárias: a de Pastos
Bons (dividida em três) e a de São Bernardo do Brejo (dividida em duas) em função das
distâncias muito grandes das duas matrizes o que obstava o controle político do território,
assim como os “socorros espirituais” dos fregueses (MARQUES, 2008, p. 118).

Em seu teor, a Provisão de sua majestade Dom João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves
apresenta dados relevantes sobre esse território e como ficou configurado a partir da
fundação de Almeida. Em Marques (2008, p. 119), encontra-se sua escrita na íntegra, do qual
apresento o recorte textual que diz respeito a esse estudo:
Sendo informado da grande falta de socorros espirituais que experimentam os
povos residentes nos territórios da vila de Pastos Bons e São Bernardo da Parnaíba
da Província do Maranhão, por se acharem dispersos por uma vasta extensão e
separados por uma desmedida distância de muitas léguas das igrejas matrizes,
criadas em tempo de menor população; Hei por bem que os territórios que formam
os termos das sobreditas vilas sejam divididos em cinco freguesias, tendo cada
uma o seu pároco para administrar os sacramentos e mais pasto espiritual aos
povos que habitarem os respectivos distritos, que serão:

2º O de Pastos Bons – limitado pela fazenda Maravilha e Serra Vermelha, [...] em


rumo direito a procurar a extrema da fazenda Inhuma de Francisco Pereira Franco,
e na mesma direção seguirá ao rio Itapecuru até acima da nova povoação
denominada Almeida d`El-Rei [...];

3º - O de Almeida d´El-Rei, que principiará desde a fazenda Boa Esperança, na beira


do rio Parnaíba, correndo para o centro pelo mesmo rumo divisório, que por este
lado serve para o de Pastos Bons, e correndo o rio Parnaíba abaixo até a fazenda
denominada Várzea de Ana Páscoa exclusivamente e daí cortando o centro em

31
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

direção à serra do Valentim, pela qual deve seguir e no fim dela procurará o rio
Itapecuru que será atravessado onde finda a demarcação da sesmaria São Zacarias
pela parte de cima.

A citação acima nos conduz a refletir a necessidade de tal divisão eclesiástica proposta a
partir da Provisão Régia, de 1820, pela qual se criam as cinco freguesias. O tamanho do
território antes confiado a apenas duas paróquias era imenso, continental; sobretudo se
forem consideradas a quase inexistência de estradas, carência de comunicação, além dos
“perigos” das matas que se deitavam pelo território, prenhas de feras e sujeitas a ataques
de tribos nativas.

Também se faz necessário pensar como se forma o território da jurisdição eclesiástica de


Almeida a partir desse documento, o que se poderia convencionar nos domínios paroquiais
dos atuais municípios de Colinas, Passagem Franca, Buriti Bravo, Mirador, Paraibano, São
João dos Patos, Barão de Grajaú, São Francisco do Maranhão, Sucupira do Riachão e
Fortuna, além dos mais recentes Parnarama, Lagoa do Mato e Jatobá (SANTOS NETO, 2006,
p. 67).

Figura 02 – Mapa da Dimensão Geográfica da Freguesia de Almeida Del Rei em 1820.


Fonte: Pereira (2016).
Nesses termos, pode-se compreender a importância regional que a nascente povoação
desfruta no sertão de Pastos Bons, juntamente com seu mentor-fundador, o tenente-
coronel Germano Francisco de Moraes. Outro aspecto deve ser levado em consideração
com relação ao documento citado, Almeida Del Rei, não era mais uma simples povoação-
porto, mas sim uma “cabeça” de Freguesia.

No âmbito do padroado régio português, a Freguesia representava, para além do poder


eclesiástico tido na pessoa de seu cura, também o poder temporal do Estado português,
haja vista que esta instituição permitia ao monarca exercer total domínio sobre a
administração da Igreja Católica em suas colônias, no caso o Brasil.

32
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Fato é que Almeida Del Rei toma a si todo o antigo território que estava sob a jurisdição
militar do Arraial do Príncipe Regente, avançando a conquista para a calha esquerda do rio
Itapecuru. De uma coisa parece não haver dúvidas: o florescimento da povoação e freguesia
de Almeida, a elevação de Caxias a vila e comarca estão por demais associadas ao malogro
do projeto do ex-governador Francisco de Melo Manuel Câmara, no contexto de rixas,
disputas e estratagemas pelo domínio político e econômico de um sertão que aos poucos
se reconfigurava, distanciando-se de um paraíso natural e aproximando-se mais da chamada
“fronteira da civilidade”.

Ao referir-se à destituição militar do Arraial, é em tom de denúncia que Paula Ribeiro


descreve a situação dos sertões de Pastos Bons, notadamente da ribeira do Médio e Alto
Itapecuru, no ano de 1818, quando tornava à região após ser graduado como sargento-mor,
adido ao Estado Maior do Exército, no posto de comandante do Destacamento de Pastos
Bons.

O desbravador então transparece sua indignação ante ao que considera corrupto e


inescrupuloso, posto que uma autoridade que deveria zelar pelo bem comum usa-se das
investiduras do cargo para beneficiar seus empreendimentos pessoais, prejudicando um
projeto tão auspicioso como o do Arraial do Príncipe Regente.

Ao descrever o sertão de Pastos Bons, em 1819, Paula Ribeiro ao se referir à administração


pública e à segurança, manifesta claramente seu repúdio e desalinho à conduta do tenente
coronel Germano Moraes:
Não tem, assim como todo o distrito em geral, espécie alguma de séria
administração civil policiada ou militar, nem ali presentemente há mais que um
Francisco Germano de Moraes, natural do mesmo distrito, homem pardo
disfarçado, o qual está encarregado de olhar para esta ribeira e pela do Itapicuru
(grifo nosso). Este mesmo sujeito, quando comandamos algumas vezes todo o
território em geral por ordens dos ex-governadores e capitães-generais desta
capitania, foi algumas vezes por nós ocupado em algumas comissões desta
natureza, para que tinha suficiente atividade, e de que deu boa conta; (RIBEIRO,
2002, p. 128).

No trecho seguinte afiança a inabilidade e irresponsabilidade de Germano Moraes na


garantia de segurança do Julgado de Pastos Bons sendo ele a maior autoridade política e
militar como Comandante Geral do Julgado e do Distrito,
[...] hoje, porém, longe de vistas superiores, e encarregado de governar em chefe
estas exorbitadíssimas distâncias, que compreendem o circunferencial de mais de
150 léguas, que não pode correr sem abandonar sua casa, consta haver-se
descuidado daquele objeto, e conduzido de um modo tal que não satisfaz os
moradores; havendo disso sobejas provas na secretaria deste governo da
Capitania (RIBEIRO, 2002, p. 128).

Parece ter ficado evidente que foi mesmo um conjunto de estratégias precisas, num campo
de forças e disputas, que trouxe a termo tão importante projeto do Arraial do Príncipe

33
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Regente. Isso parece ter se configurado satisfatoriamente pelas discussões aqui


empreendidas no decurso da presente dissertação.

No entanto, questiono-me se realmente o Arraial, não enquanto empreendimento físico


(formado por quartel, capela, casas e ruas alinhadas, igarités e lanchas, “almas” e “fogos”),
mas enquanto “ideal integrador” do sertão ao litoral, movido pela dinâmica da “fronteira
civilizatória”, foi de fato finalizado.

Isto encontra respaldo se observada como uma fronteira mesmo, uma área indistinta entre
a frente de colonização vinda do litoral (onde predominava a agroexportação, atividade
econômica principal) e a frente de colonização sertaneja (onde predominava a pecuária,
atividade econômica secundária na economia da capitania). O Arraial do Príncipe Regente
não fora em si um empreendimento nem agronômico nem pecuarista, mas sim um projeto
oficial de contato e enquadramento das distintas regiões do território maranhense, até
aquele início do século XIX, ainda desarticuladas. Portanto, foi mais um projeto político-
ideológico oficial de integração do que um projeto meramente econômico.

Essa versão aqui proposta é concebível a partir das ideias do próprio Paula Ribeiro, homem
que conheceu melhor que qualquer outro de seu tempo o território dos “Pastos Bons”. Bem
no início de sua descrição do território, enuncia que a capitania do Maranhão encontrava-se
dividida “em duas quase partes”, as quais, por suas distâncias e peculiaridades, poderiam
mesmo formar duas comarcas, uma no Norte e outra no Sul. Logo em seguida, melhor se
explica, afirmando que justamente por ter características tão diversas, mas
economicamente complementares, “é por isso mesmo que melhor entre si deveriam dar-se
as mãos e sustentar combinadas a sua florescência comercial e agronômica” (RIBEIRO,
2002, p.107).

Essa afirmativa está estritamente relacionada com o “ideal de integração” e de


movimentação da “fronteira civilizatória”. E quanto a isso é importante analisar quando
Paula Ribeiro afirma que o território da capitania se encontrava dividido em duas “quase
partes”. Como se tem “duas quase partes”? Considerando que só se tem partes a partir de
um inteiro, de um todo, o Maranhão territorialmente, economicamente, culturalmente não
constituía um todo, pois suas distintas regiões encontravam-se desintegradas, portanto,
“quase partes” (Figura 03).

34
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 03 – Mapa das Regiões Geoeconômicas da Capitania do Maranhão – 1809.


Fonte: Pereira (2016).

5 Considerações finais

Nesse sentido, a zona territorial indistinta que se materializa pela fundação do Arraial do
Príncipe Regente representa o ideal de integração, a presença oficial do Estado no sentido
de permitir e promover o avanço da fronteira da colonização, garantindo a interconexão
necessária para o efetivo avanço e incremento econômico da capitania, no âmbito dos
interesses da coroa portuguesa de “ocupar” economicamente o território de Pastos Bons
mais com a grande lavoura de exportação e menos com o gado.

Considerando que esse processo de integração não deixa de acontecer mesmo com o
declínio do Arraial enquanto núcleo militar oficial, compreendemos que ele permanece
presente e persevera com os outros empreendimentos que vão surgindo ao seu derredor e
com as finalidades semelhantes em função das mesmas necessidades que o fizeram emergir
em 1807. Caso mesmo da fundação da Almeida Del Rei (1820), da Fazenda Maravilha (1822),

35
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

da Freguesia de São Sebastião da Passagem Franca (1835) e o porto-povoação dos Picos


(1860) que deu impulso à formação oficial do atual território de Colinas e de outros
municípios que de sua célula territorial tiveram formação.

6 Referências

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AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, v. 8, n. 15, p. 145-52, 1995.
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ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Livro Nº 37 (1814-1824). Registro de data e
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ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Correspondências das câmaras com o presidente
da província do Maranhão. (Diversas do Século XIX).
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MEIRELES, Mário M. História do Maranhão. 2. ed. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão
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PACHECO FILHO, Alan Kardec Gomes. Varando mundos: navegação no Vale do rio Grajaú. (Tese de
Doutorado). Rio de Janeiro: Instituto Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
2011.
PEREIRA, Paulo Eduardo de Sousa. O campanário da oadroeira: subsídios para a história de Colinas.
São Luís: Café & Lápis, 2012.
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do Alto Itapecuru no século XIX. Dissertação (Mestrado em História, Ensino e Narrativas) -
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Social brasileiro. In: Textos de História, v. 4, n. 2, 1996, p. 94-129.
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VOLVELLE, Michel. O homem do iluminismo. Lisboa, Editora Presença, 1997.

36
ENTRE EMBATES E
CONCHAVOS: AS RELAÇÕES DE
PODER ENTRE MILITARES,
COLONOS E INDÍGENAS NOS
SERTÕES DOS PASTOS BONS
NA SEGUNDA DÉCADA DO
SÉCULO XIX

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

ENTRE EMBATES E CONCHAVOS: AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE MILITARES,


COLONOS E INDÍGENAS NOS SERTÕES DOS PASTOS BONS NA SEGUNDA
DÉCADA DO SÉCULO XIX

Elivaldo Conceição Pereira1

1 Introdução

Quando estudamos o processo colonial do sertão do Maranhão, nos deparamos com


trabalhos que apontam e acordam que esse processo se deu pela chamada “Frente pastoril
de colonização”. Essa corrente colonizadora iniciou o seu pioneirismo a partir do Recôncavo
baiano. Desse local, a expansão pastoril chegou até o vale do Rio São Francisco,
posteriormente, ocupou o rio Gurgueia e o rio Piauí e, buscando expandir seus rebanhos de
gado vacum por outros campos, os pecuaristas ocuparam o rio Parnaíba e gradativamente
o chamado “Sertão dos Pastos Bons” no Maranhão (CABRAL, 1990).

Assim, a criação do gado vacum, teria sido o principal fator responsável pela colonização do
Sul do Maranhão. Decerto, por tudo que vários autores já apresentaram, a criação do gado
vacum e as iniciativas dos pecuaristas foram essenciais para a colonização dessa região. O
projeto colonial português, em qualquer região do Brasil, com efeito, sempre foi marcado
por inúmeras atividades paralelas que se somavam para atender aos mais diferentes
interesses do Estado português. Embora em certas situações os colonos priorizassem
alguma atividade que representassem lucros mais vultosos, outras atividades econômica,
política, religiosa e militar se integravam à atividade principal para seu melhor
desenvolvimento. Esse emaranhado de atividades, juntamente com os desdobramentos
dos grupos sociais que formavam a sociedade colonial, devem sempre ser ressaltados
quando se analisa a colonização português para que seja evidenciado o quanto foi complexa
esse processo na América portuguesa. Dessa forma, evitaremos cair em simplificações,
generalizações e esvaziar de sentidos o longo processo colonial português desenvolvido
aqui no Brasil.

Nesse sentido, ao analisarmos a colonização de uma região do Brasil, não devemos


entender uma atividade como exclusiva e nem a ver como um único fator que determinou
o processo. É necessário destacarmos outras ações para melhor compreendermos os
diferentes “sentidos da colonização” planejados por Portugal para a América portuguesa.

1
Mestrando pelo programa PROFHISTÓRIA – UFMA (Bolsista da CAPES). Especialista em História do
Maranhão pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Licenciado em História pela Universidade
Estadual do Maranhão – UEMA. Professor de História do Ensino Médio vinculado à Secretaria de Educação
do Estado do Maranhão – SEDUC -MA. Professor de História do Ensino Fundamental – anos finais vinculado à
Secretaria de Educação do Município de São Luís – SEMED – São Luís.

38
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Assim, devemos repensar o processo colonial da região denominada de sertões de Pastos


Bons, refletindo e evidenciando os aspectos que, somando-se à atividade pecuarista, foram
essenciais para caracterizar o modelo colonial que prevaleceu nesta região. Mas aqui nos
surgem alguns problemas: o que sabemos sobre a colonização dessa região além da
consagrada versão que destaca a frente pastoril como principal ação? Quais outros grupos
sociais foram os desbravadores dos sertões de Pastos Bons em nome da Coroa Portuguesa?
Como foram as relações entre os conquistadores e os povos nativos dessa região? Quais
tipos de embates tiveram que travar?

De fato, a colonização dessa região ainda continua emblemática. A notoriedade que alguns
autores deram à atividade pecuarista acabou por minimizar as outras ações que
estimularam a colonização do alto sertão do Maranhão. Não podemos negar que a partir da
última década, a historiografia maranhense tem dado mais atenção para essa região,
inclusive reescrevendo a sua história a partir de novas pesquisas que possibilitam outros
olhares e interpretações sobre o processo de colonização que se desenvolveu nesse local.
Nessa perspectiva revisionista, da historiografia local, destacamos alguns estudiosos como
(PEREIRA, 2011; PACHECO FILHO, 2011; EVERTON, 2016).

Através desses estudiosos, percebemos que o processo de colonização dessa região é


muito mais complexo do que se imagina, pois o trabalho desses autores, baseados em
pesquisas a partir de documentações ainda pouco explorada pela historiografia
maranhense, apresentam várias informações novas sobre os sertões dos Pastos Bons. As
informações e versão sobre fatos que a historiografia local ainda não havia evidenciada ou,
se a fez, não deu a devida atenção e profundidade. Somando-se a essas pesquisas, este
trabalho apresenta algumas situações que consideramos fundamentais para repensarmos
a colonização dos sertões de Pastos Bons apontando as ações do Estado português que
viabilizaram a fixação de fazendas e povoados nessa região.

Essas ações apontam para um processo de colonização complexo, que nos mostra que a
ocupação do Sul do Maranhão foi marcada por um emaranhado de atividades que se
somaram à atividade pecuarista. Essa atividade se consolidou a partir do apoio
imprescindível das autoridades políticas e militares que representam o poder de Portugal
nesta capitania. As estratégias de apoio dadas aos colonos eram para que estes pudessem
melhor “conviver” com as inúmeras nações indígenas que habitavam os sertões de Pastos
Bons. O projeto colonial português se concretizou nessa região, mas não sem antes
enfrentar a resistência dos nativos, não sem antes as autoridades colonialistas dialogarem
com as autoridades dos nativos, não sem antes, ambos os lados, selarem acordos
permeados por conchavos e barganhas os quais colonos e nativos buscavam garantir seus
privilégios de acordo com seus interesses.

Nessa perspectiva, inicialmente vamos refletir sobre o forte embate que houve entre os
colonos e os nativos que habitavam o Sul do Maranhão, sendo que os primeiros tinham o
apoio das tropas de milícias enviadas pelas autoridades portuguesas em São Luís. Outro

39
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

aspecto que consideramos, aqui, são as atividades desempenhadas pelos militares que
exerciam diferentes funções como fazer a segurança da região e ao mesmo tempo
implantavam fazendas e fundavam povoações nessa localidade. E ainda, em alguns casos,
faziam o aldeamento de nações indígenas sob seu comando realizando acordos com líderes
tribais no sentido de pacificá-los e assisti-los com os mais variados mantimentos. Também
analisaremos, neste trabalho, as estratégias de resistência dos indígenas que por meio de
ataques, alianças e barganhas tentaram manter o domínio das terras do alto sertão do
Maranhão.

Assim, apresentamos como objetivo analisar as especificidades das ações que marcaram a
colonização dessa região, trazendo para o centro do debate as relações de poder que
envolveram os colonos civis e militares com os nativos que formavam diferentes nações nos
Sertões dos Pastos Bons. As informações que fundamentam este trabalho foram coletadas
por meio de pesquisas que desenvolvemos no Arquivo Público do Maranhão. Os principais
documentos pesquisados foram as comunicações realizadas entre alguns governadores da
capitania do Maranhão e diversas autoridades através de ofícios e portarias escritos durante
a segunda década do século XIX.

2 As categorias conceituais em torno da conquista dos sertões de Pastos Bons:


colonização, colono, região, civilidade e as relações de poder no espaço
colonial

“Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã”, assim escreveu Alfredo Bosi, (1992, p. 11).
Neste trabalho, é oportuno começarmos por algumas palavras que compreendemos serem
essenciais enquanto categorias de análises da colonização dos sertões de Pastos Bons. A
análise desses termos se justifica em função deles estarem relacionados às ações que
marcaram o complexo processo de colonização dessa região e, aqui, essas palavras são
empregadas carregadas de sentidos que não sejam, talvez, os mesmos empregados em
outros trabalhos. O emprego dessas palavras baseia-se no sentido que alguns autores
deram a elas e que consideramos os mais pertinentes para este trabalho de acordo com o
propósito que ele tem por objetivo.

Assim, para começo, devemos pensar sobre a ideia de região na perspectiva de um espaço
que vai além dos aspectos simplesmente naturais. Para Circe Bittencourt, esse conceito
ultrapassa,
O entendimento de ‘região natural’, composta por um conjunto de elementos
naturais homogêneos na hidrografia, vegetação, clima, relevo, para chegar a uma
concepção mais voltada para a forma pela quais os homens organizam o espaço,
tornando-o particular dentro de uma organização econômica e social mais ampla.
Esse conceito de região permite o trabalho do historiador, ao dedicar-se à
constituição histórica regional em um processo de mudança e transformação. É
possível entender região como construção histórica, e não apenas como divisões
regionais administrativas (BITTENCOURT, 2008, p. 162).

40
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Ao analisarmos os sertões de Pastos Bons, devemos considerar a relação entre os fatores


naturais que caracterizam essa região e as atividades econômicas e sociais que
possibilitaram a sua colonização e, consequentemente, um conjunto de mudanças e
transformação que aconteceram com a chegada dos portugueses. Os desdobramentos
dessas ações possibilitaram a reorganização do uso desse espaço pelos conquistadores,
pois estes criaram estratégias de ocupação que pudessem facilitar a sua adaptação aos
aspectos geográficos e, às vezes, aos costumes dos nativos que habitavam essa região.
Essas estratégias eram de características econômicas, políticas e militares e marcadas pelas
relações de poder entre colonos e nativos. A sua dinamicidade fez com que as fronteiras da
colonização hora se alargasse, hora se minimizasse. Assim, embora hoje a historiografia local
apresente mapas, que delimitam a chamada região dos Pastos Bons e indique o sentido das
correntes pastoris, como destacamos na Figura 1, essa delimitação e indicação, no contexto
da colonização, não eram algo tão fáceis de serem fixadas, devido à instabilidade dos
projetos de ocupação colonial nessa região.

Figura 1- Mapa dos sertões dos Pastos Bons2

2
Mapa adaptado pelo próprio autor do mapa feito por Francisco de Paula Ribeiro em 1819, que assim foi por
ele denominado “Mappa geographico da Capitania do Maranham, que pode servir de Memória sobre a
População, Cultura e Couzas mais notáveis da mesma Capitania, por Francisco de Paula Ribeiro, concluído em
1819”. Digitalizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a partir de original em seu acervo, o mapa serve
de complemento aos três trabalhos do mesmo autor publicados na RIHGB, todos disponíveis na Biblioteca
Digital Curt Nimuendaju: Memoria sobre as nações gentias que presentemente habitam o Continente do
Maranhão (1841), Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras da Capitania
do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815 (1848) e Descrição do território dos Pastos Bons, nos sertões

41
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

O próprio espaço que inicialmente foi ocupado pelos pecuaristas oriundos das capitanias da
Bahia, Pernambuco e Piauí, e que, se convencionou chamá-lo de Pastos Bons, atualmente,
as suas delimitações devem ser analisadas com muito cuidado. Isso porque, ao longo dos
anos, ela se maximizou muito e tem sido desenhada em mapas, baseadas em interpretação
dos autores que estudaram essa região. Para esses autores, a exemplo de Cabral (2008) e
Pachêco Filho (2011), a partir da região intermediária do mapa deste Estado, como
destacamos na Figura 1, se faz o limite Norte do alto sertão do Maranhão, que também
chamamos sertões de Pastos Bons3 e, mais recentemente, alguns preferem chamar essa
região de Centro-Sul maranhense.

Convém lembrar, que não conhecemos nenhum trabalho em que os primeiros exploradores
da região, no século XVIII, e mesmo nas duas décadas iniciais do século seguinte, tenham
fixado algum limite ao Norte para o alto sertão do Maranhão. Apenas a delimitaram a Leste
e a Oeste usando como referenciais os rios Parnaíba e Tocantins, respectivamente. O militar
português, Francisco de Paula Ribeiro, é enfático nesse ponto, “Domingos Afonso Sertão e
outros seus companheiros que do rio São Francisco, nos sertões da Bahia, vieram
atravessando e povoando todo o Piauí, [...] foram os primeiros que passando aquém do
Parnaíba, estabeleceram as primeiras povoações de Pastos Bons”. A região a que ele se
referia era a faixa de terra localizada entre os rios Tocantins e Parnaíba, conforme ele
observou “A dilatadíssima extensão do distrito que pertence a esta freguesia” de Pastos
Bons. Devido os criadores terem encontrado um vasto território com boas pastagens, daí
terem o chamado de “Pastos Bons” (RIBEIRO, 2002, p. 110).

A partir dessa descrição territorial, considerando os aspectos naturais e baseado nos


estudos de algumas autoras, com destaque para Cabral (1992) e Carvalho (2000), que
descrevem as características socioeconômicas que prevaleceram nas fazendas de gado
instaladas nessa região, a historiografia local tem utilizado essas informações para definir o
limite Norte dos sertões de Pastos Bons. Recentemente, Pachêco Filho (2011) fez uma
excelente revisão bibliográfica sobre os autores(as) que escreveram sobre a colonização
dos sertões de Pastos Bons, e apontou as interpretações de cada um(a) destacando os
pontos em comuns e os olhares divergentes que esses estudiosos(as) apresentam sobre a
conquista dessa região pelos colonos. Assim, a criação de gado, as características
socioeconômicas, aspectos culturais, os embates entre colonos e indígenas e a dizimação
destes são pontos bem comuns que aparecem nas interpretações dos autores analisados
por Pachêco Filho.

do Maranhão (1849). Disponível em <http://www.etnolinguistica.org/autor:francisco-de-paula-ribeiro>.


Acesso em 09, jul., 2021.
3
Não devemos confundir a região chamada Distrito de Pastos Bons, muito denominada durante a
colonização, com sertões dos Pastos Bons. O Distrito de Pastos Bons era uma área administrativa que tinha
como sede a freguesia do mesmo nome, hoje cidade de Pastos Bons. Esse distrito, assim como outros do sul
do Maranhão, formavam o chamado sertões dos Pastos Bons (RIBEIRO, 2002).

42
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Essas ações são sempre destacadas nesses estudos, inclusive no trabalho de Pachêco Filho,
e assim, elas parecem ser as que mais marcaram a colonização do alto sertão do Maranhão.
Mas é necessário irmos além desses aspectos buscando compreender outros elementos
que deram sentido à colonização dos sertões de Pastos Bons, inclusive incluindo nesse
processo as ações oriundas do Estado português a partir das medidas adotadas pelas
autoridades portuguesas presentes em São Luís. Compreendemos que nenhum projeto de
colonização portuguesa foi uma ação marcada somente por interesses particulares, mas
havia sempre um entrelaçamento de interesses entre o poder público e grupos privados. No
alto sertão maranhense isso não foi diferente, contrariando o que muitos cronistas
escreveram, a partir de olhares dos sertanejos, reclamando que o sertão maranhense vivia
abandonado aos olhos das autoridades portuguesas.

O Centro-Sul e o Norte deste Estado nunca “foram apartados”, nem mesmo quando ainda
éramos uma capitania sob o jugo português, como era comum afirmar os moradores
sertanejos no século XIX e mesmo no começo do século XX. Muitas ações que contribuíram
para a consolidação da colonização do alto sertão maranhense foram empreitadas que
começaram, gradativamente, a partir de São Luís. Mas o que era considerado como sertão
pelos colonos e por outros estudiosos? Para alguns, qualquer terra ignota do continente,
fosse ela próximo do litoral ou não, era considerada sertão. Geralmente se configurava
como um espaço infestado de índios, sem civilização e onde podiam ser encontradas terras
férteis e riquezas naturais. Essa foi a visão de muitos cronistas europeus que escreveram
sobre o Brasil, durante o período colonial (AMADO, 1995).

Para outros autores, o significado da terminologia sertão ganha sentidos aproximados com
a descrição da autora anterior. Euclides da Cunha (1984), por exemplo, caracteriza
geograficamente o sertão como terra imprópria para a agricultura, de vegetação
predominantemente em forma de caatinga, espaço marcado pela seca e de poucas chuvas.
Mas essas condições naturais não representam bem as características do sertão
maranhense denominado de Pastos Bons, pois Pachêco Filho assim compreende essa
região:
Já o sertão por nós enfocado [...] é o oposto do sertão euclidiano. Abordamos
uma região muito provavelmente só designada pelo termo sertão por ser uma
terra inculta, ignota e longe do litoral e, portanto, para alguns longe da civilização.
O sertão ao qual nos referimos é um rico manancial (PACHECO FILHO, 2011).

Esse rico manancial, ao qual se refere o autor, é devido ao alto sertão maranhense ser o local
em que nascem alguns rios que desaguam no litoral maranhense como o Itapecuru, o
Mearim, o Pindaré e o Munim. E ainda ser delimitada ao Leste pelo rio Parnaíba e a Oeste
pelo rio Tocantins. Mas no século XVIII, quando essa região começou a ser desbravada pelos
colonizadores, qualquer espaço ainda desconhecido, por eles, era considerado sertão fosse
terra próxima ou distante do litoral. Lentamente, os portugueses foram conhecendo os
sertões do Maranhão, pois partindo de São Luís, inúmeras expedições exploratórias

43
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

penetravam pelos “certoens4 por onde se não havia ainda entrado``, como dizia, através de
carta, o governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, ao rei de Portugal (AHU -
MARANHÃO, cx.: 7, doc. 00781).

Os objetivos dessas expedições eram os mais variados, porém era a Coroa portuguesa que
autorizava essas entradas. Elas foram muito presentes no alto sertão do Maranhão, a partir
do final do século XVIII e no começo do século seguinte. Foi por meio dessas expedições
que a região denominada de sertões de Pastos Bons começou a ser conhecida pelos
colonizadores e, consequentemente, colonizada.

Consideramos, aqui, o termo “colonização” como uma derivação do termo “colônia”,


compreendendo esse último como um “espaço que se está ocupando, terra ou povo que
se pode trabalhar e sujeitar” seguindo Alfredo Bosi (1992, p. 11). O começo da colonização
do Maranhão está associado a uma série de atividades diferenciadas e complexas que se
ajustaram aos aspectos naturais de cada região, às necessidades dos agentes colonizadores
e de acordo com as reações das populações nativas. Os colonos utilizaram-se, ao longo do
tempo, de diferentes projetos, pois, da “descoberta” de uma região à implantação de um
engenho “há um plus estrutural de domínio, há um acréscimo de forças que se investem no
desígnio do conquistador emprestando-lhe, às vezes, um tônus épico de risco e aventura”,
como observa Bosi (1992, p. 12). Assim, podemos perceber que em torno desse processo
“épico de risco e aventura”, na região por nós estudada, houve uma relação de poder
intensa entre os colonizadores e as populações nativas.

Com o avanço da colonização, os empreendimentos se multiplicaram e aconteceram


mudanças e transformações no território, na vida das populações nativas e das recém-
chegadas. Bosi (1992, p. 12) ainda nos diz que “a produção dos meios de vida e as relações
de poder, a esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e potencializam-se toda
vez que se põe em marcha um ciclo de colonização”. Tais transformações exigem novas
estruturas sociais para continuar sua expansão. Essas novas estruturas envolviam uma certa
cumplicidade entre os “conquistadores” e os povos “conquistados”. Sérgio Buarque de
Holanda ressalta que a “natureza exuberante, regada por inúmeros rios”, assustava os
conquistadores em algumas situações. Em muitas oportunidades, estes tiveram de imitar os
hábitos dos nativos “para resistir à hostilidade do meio”. Alguns povos índios eram aliados
dos conquistadores nessas entradas: “era inevitável, em todo esse processo, que o índio se
tornasse seu principal iniciador e guia”, (HOLANDA, 1986, p. 29).

Nas primeiras expedições, “em paragens ásperas, desertas e de pouco mantimento, os


exploradores que o contato prolongado da terra e dos usos da terra não tivesse
familiarizado com os artifícios de que se socorre o gentio [...], dificilmente poderiam
prescindir do auxílio constante do índio amigo”, afirma Holanda, (1994, p. 25). A exploração

4
Neste trabalho, optamos por conservar a escrita original conforme aparece na documentação oficial de
época.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

dos sertões de Pastos Bons se fez de muitos embates entre colonos e os nativos, porém,
foram feitos vários acordos entre eles. Carlos Eduardo Everton nos faz lembrar “que existe
uma complexidade característica às relações entre índios e não índios que estará sempre
muito além de um simples jogo de antagonismos de adversários pretensamente naturais”
(2016, p. 43). Mas nessas relações sempre predominou o poder dos colonos sobre as
populações nativas, porém estas, apesar dos prejuízos imensos que tiveram, conseguiram
tirar proveito diante das situações adversas que os conquistadores encontraram,
principalmente com relação à natureza desconhecida para eles.

A estrutura militar, econômica e política dos conquistadores fez com que estes
implantassem, nesse processo de colonização, uma ideia de hierarquia em que eles se
sobrepunham aos nativos. O poder instituído pelos colonos se fez de várias maneiras e por
meio de diferentes estratégias. De acordo com o dicionário de filosofia, a palavra poder, na
esfera social, seja pelo indivíduo ou instituição, se define como “a capacidade de este
conseguir algo, quer seja por direito, por controle ou por influência. O poder é a capacidade
de se mobilizar forças econômicas, sociais ou políticas para obter certo resultado [...]”
(BLACKBURN, 1997, p. 301). Outra definição de poder é apresentada em um dicionário da
língua portuguesa onde aparecem as seguintes afirmações: “ter a faculdade, ou o direito de
[...] autorização”; “dispor de força ou autoridade”; “direito de deliberar, agir ou mandar”;
“Autoridade constituída” (FERREIRA, 2008, p. 637).

Foucault analisa que as relações de poder impostas pelas autoridades constituídas, através
das suas instituições, foram marcadas pela disciplina, “mas a disciplina traz consigo uma
maneira específica de punir, que é apenas um modelo reduzido do tribunal” (FOUCAULT,
2008, p. 149). É pela disciplina que as relações de poder se tornam mais facilmente
observáveis, pois é por meio da disciplina que são estabelecidas as relações entre opressor-
oprimido, mandante-mandatário, colonizador-colonizado e tantas quantas forem as
relações que podem ser associadas ao dominador e dominado. Em um processo de
colonização compreendemos que a “disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos
indivíduos no espaço” (FOUCAULT, 2008, p. 121).

Na colonização dos sertões de Pastos Bons, os conquistadores usaram de várias estratégias


para impor seu poder sobre os nativos. Por meio da força física, representado por poder
econômico, aparato militar e a estrutura política, eles foram impondo seu poder para
controlar os nativos através da guerra e do disciplinamento destes em espaços
denominados de aldeamentos. Nesses espaços, os colonos militares colocavam os
indígenas sob a custódia do Estado português para melhor vigiá-los, impondo o poder de
forma sutil a partir dos diferentes elementos simbólicos, sejam os ideológicos ou por meio
dos materiais que representam o poder simbólico. Para Bourdieu (1989, p. 14)
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer crer,
de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o
mundo, portanto o mundo, poder quase mágico que permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico

45
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

da mobilização, só se exerce se for reconhecido, que dizer, ignorado como


arbitrário.

O poder simbólico se concretiza a partir do momento em que os sujeitos dominados não


percebem nenhum tipo de força coercitiva relacionada à sua sujeição aos dominadores.
Nessa situação, a sujeição acontece quando os dominados aceitam voluntariamente as
ideologias e alguns padrões culturais dos dominadores, pois esses lhes parecem mais
vantajosos. Poder simbólico só faz sentido quando os sujeitos dominados aceitam, de forma
espontânea, os elementos simbólicos que constituem a visão de mundo dos
conquistadores, desconhecendo nessas simbologias qualquer forma de poder arbitrário. As
alianças feitas entre os portugueses e os “gentios” eram caracterizadas pelo poder
simbólico impregnado das ideologias que os colonos traziam consigo.

Uma das ideológicas que mais se fez presente, no discurso dos colonos, era a de civilidade
em oposição ao modelo cultural dos nativos considerados como hostis, selvagens e
bárbaros. Entretanto, os elementos que caracterizam os modelos culturais associados aos
sujeitos chamados de “civilizados” ganham sentidos diferenciados de sociedade para
sociedade, no tempo e no espaço. Civilizado, palavra de definição difícil, porém aqui, ela será
empregada a partir de Norbert Elias que destaca o seguinte:
Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais
antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a
sociedade ocidental procura descrever a que lhe constitui a caráter especial e
aquela de que se orgulha: a nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras,
o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais
(ELIAS, 1994, p. 23).

As visões de mundo dos europeus marcaram o modelo de colonização na América


portuguesa a partir de seu modelo cultural, com destaque para a ideia de civilidade que
estava impregnada neles. Assim, carregados dessas ideologias, os colonos portugueses
viam como incivilizados todas as sociedades que não comungavam com os seus padrões
culturais. Na colonização dos sertões do Maranhão, a tônica das ações pensadas, e muitas
delas implantadas, era no sentido de impor um modelo de civilidade que pudesse prevalecer
sobre os costumes dos povos nativos.

Nesse jogo de visões díspares sobre o mundo, apesar dos acordos de paz e das estratégias
de dominação simbólica impostas pelos portugueses sobre os nativos, o choque entre
ambos foi inevitável. A iniciativa das injúrias vinha dos dois lados. Quando a presença dos
colonos ameaçava a permanência dos indígenas nas suas aldeias estes reagiam, mas
quando os nativos eram “os obstáculos” para a expansão portuguesa, era a vez dos
“conquistadores” usarem da força para garantir seus objetivos. Isso foi corriqueiro na
segunda década do século XIX, nos sertões de Pastos Bons (PEREIRA, 2011). Assim, o Estado
português, através dos militares e dos colonos civis, passou a coordenar o projeto colonial
nos sertões de Pastos Bons para que este fosse menos violento, mas isso foi inevitável em
alguns momentos, conforme veremos a seguir.

46
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

3 Militares como segurança da região: ao mesmo tempo implantavam


fazendas nessa localidade e fundavam povoações

A colonização do Sul do Maranhão, já ressaltamos, foi um projeto de ocupação violento e


complexo. O projeto de colonização, dessa região, atendeu aos interesses expansionista e
econômico do Estado português nesta capitania. Para que esse projeto se concretizasse,
duas ações foram essenciais, fixar os colonos nessa região e torná-la segura para que as
estruturas produtivas que visavam lucros frutificassem. Mas para que isso acontecesse o
“empecilho” humano que dificultava a prosperidade dos negócios, nessa região, ou seja, os
“gentios”, como os portugueses denominavam os nativos, deveria logo ser removido ou ser
“civilizado”.

Esse discurso perdurou por muitos anos entre os colonizadores do Maranhão, pois para
eles, era necessário “higienizar” o território, repelindo dessas terras os indígenas ou mesmo
os exterminando por meio de guerras. As nações indígenas eram vistas pelos
“conquistadores” como os principais entraves para os projetos de colonização dos
portugueses. Assim, no sentido de garantir a concretização da ocupação do alto sertão
maranhense, o Estado português usou de seu aparato militar. Os comandantes das tropas
e os integrantes delas deveriam combater os nativos que dificultavam o avanço da
colonização e, ao mesmo tempo, eles deveriam criar povoações e fazendas nos territórios
ocupados pelos nativos.

Muitos militares se destacaram nessa empreitada ao longo do processo de colonização dos


sertões de Pastos Bons. Neste trabalho, devido ao recorte temporal, apresentaremos três
militares, que mais se destacaram na segunda década do século XIX, cujos nomes são
Capitão Francisco Alves dos Santos, o alferes Antônio Francisco dos Reis, e o capitão
Francisco José Pinto de Magalhães. Inclusive, esse primeiro militar foi de muita importância
para a colonização do sertão de Pastos Bons e consolidação de povoação importante nessa
região, mas que tem sido, até agora, praticamente ignorado pela historiografia local.

Ao longo da segunda década do século XIX, foram muitas as ações que marcaram a
presença do Estado português no alto sertão do Maranhão. Muitas delas para viabilizar com
mais facilidade a fixação dos colonos nessa região e para garantir que as nações indígenas,
locais, não atacassem as povoações e fazendas ali presentes. Convém lembrar, que antes
dessa década as autoridades portuguesas em São Luís, e até mesmo em vilas no interior do
Maranhão, já vinha realizando alguns acordos de paz com várias nações indígenas, porém
esses acordos nem sempre eram duradouros. Quando essas alianças pacifistas falhavam, a
guerra ao gentio era uma das soluções encontradas pelos conquistadores. Assim, através
de ofício, em 1812, o governador e capitão general do Maranhão, Paulo José da Silva Gama,
louvava a entrada que o alferes Francisco dos Reis havia feito contra o gentio
Recebi a Sua participação de 15 de agosto passado e louvo a V. Mª. a entrada que
fez no Gentio, e dará da minha parte o merecido louvor ao Comandante subalterno
Manoel d´Assumpção. Espero de V. Mª. a continuação deste mui útil serviço na

47
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

certeza de que hei de remunerar no que me for possível as pessoas que se


distinguirem. Com tudo não posso conceder a repartição dos Índios maiores
porque quando nesse território era administrar-lhes a mais pronta ocasião de
tornarem a reunir-se às suas Nações; no que toca porem ás crianças de um ou
outro sexo não lhe proíbo que se repartam pelos indivíduos principais das
Bandeiras mas com obrigação de os tratarem com todo amor e vigilância assim
para que se familiarizem pela civilização e prefiram a viver no povoado. A maldade
com que têm sido tratados é certamente uma das principais causas do seu ódio
para conosco. V. Mª. continuará a dar-me informações para [deteriorado] se obrar
neste respeito. Deus guarde V. Mª. São Luís do Maranhão [deteriorado] de outubro
de 1812 – Paulo José da Silva Gama – Sr. Alferes Antônio Francisco dos Reis (APEM.
Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades da Corte. (1812-1819, Nº 291, Ofício Nº. 230 p. 87 V.).

O governador aproveitava, o mesmo ofício, para orientar o referido alferes sobre como ele
devia proceder com os indígenas que foram aprisionados nessa entrada. Os adultos
deveriam ficar sob a vigilância dos militares para que futuramente fossem reunidos à sua
nação e quanto às crianças, essas poderiam ser repartidas entre os integrantes que
participaram da entrada. É possível perceber uma certa cautela do governador com relação
aos cuidados que o alferes devia ter com os gentios aprisionados. Primeiramente,
percebemos que há uma tentativa de “pacificar” os adultos, fazer com que eles tivessem
confiança no convívio com os conquistadores para depois serem devolvidos às suas tribos.
Depois, com relação às crianças, estas poderiam ser divididas entre os colonos, desde que
eles cuidassem muito bem delas, evitando maus tratos, pois esse era considerado, pelo
governador, um dos motivos que mais gerava ódio nos nativos contra os colonos. Aqui, o
Estado português utiliza-se do poder coercitivo, mas tenta utilizar o poder simbólico para
“ganhar” a confiança dos gentios por meio da amizade.

As ações iniciais, por parte das autoridades, eram repelir os gentios para longe das áreas
pretendidas pelos colonos, mas de forma paralela as tropas deveriam povoar a região. Essa
dupla ação fica visível no seguinte ofício:
Estando por mim incumbido o Desembargador Juiz de Fora da Villa de Caxias da
organização, sustentação, e direção da tropa que deve proximamente ir contra o
Gentio [...] § Para este florescimento [...] que nos terrenos mais férteis, e próprios
demarcasse hum de três lagoas de terra quadrada para nela se criar povoações e
ser este terreno para cultura dos seus habitantes: o que igualmente deve fazer
nesse Alto Grajaú sendo do seu Distrito; a cuja fruição devem todo o direito e
preferência os indivíduos da tropa; logo que depois de seu recolhimento se
quiserem estabelecer com sua família. § Estas recentes povoações serão criadas
com todo o desvelo por todas as [deteriorado] territoriais ficando-me
asperamente responsáveis pelo mais [deteriorado] que lhe fizerem, como também
ficam obrigados de lhe darem imediatamente socorro para reunidos repulsarem
toda qualquer incursão dos gentios, que vier. [...] Deus guarde a V. Mª. São Luís do
Maranhão Palácio do Governo 19 de Abril de 1815 - Paulo José da Silva Gama –
Senhor Joaquim José da Costa Portugal, Juiz Ordinário do Julgado do Mearim
(APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades. 1814-1816, Nº 59, Ofício nº. 798, p. 48 R, 48 V e 49 R.).

A segurança dos sertões de Pastos Bons sempre foi algo complexo devido às dificuldades
que se tinha de enviar tropas da Capital para o alto sertão. Devemos compreender que as

48
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

comunicações entre São Luís e essa região eram espaçadas. A vila de Caxias era o ponto
intermediário entre ambas. Assim, nessa vila, ficava a principal autoridade que representava
o poder do Estado português no alto sertão desta capitania. Essa dificuldade de
comunicação, devido aos meios precários para se chegar até os sertões de Pastos Bons, e o
baixo número de militares na região, dificultavam muito o Projeto colonial português nessas
paragens. As estratégias das autoridades locais, para colonizar a região, se basearam
principalmente no tripé: guerra contra o gentio, manter a segurança local por meio de
diferentes estratégias e fixar povoações e fazendas. Foi para contemplar as ações desse
tripé que o governador do Maranhão, como visto no documento anterior, que autorizou o
juiz de Caxias, Joaquim José da Costa Portugal, para combater o gentio e depois distribuir
terras para os integrantes da tropa. Dessa forma, os militares povoavam a região e ainda
estariam presentes para dar segurança aos outros colonos.

Essa alternativa parece ter surtido certos efeitos positivos, pois alguns militares tiveram
muita autonomia para criar povoações e fazendas nessa região. A missão dada, pelo
governador Paulo José da Silva Gama, ao Sargento do Regimento de Linha José Raimundo
de Moraes nos mostra essa evidência
Sendo V. Mª. no Regimento de Linha desta Capital o único que se acha pela
experiência por ter ainda a pouco transitado em diligência do Real Serviço por
aquele sítio com a suficiência necessária para poder conduzir debaixo do seu
Comando o Corpo de Tropa que deve ir conforme as minhas Ordens embarcado
pelo Rio Grajaú acima até ao Porto da Chapada, Fazenda do Falecido Valentin
Lopes; o tenho nomeado para este fim, e lhe determino que regule a sua comissão
debaixo das instruções seguintes: [...] O que V. Mª. há de receber na Intendência
dos Armazéns Reais desta Cidade, e a carne seca que deve receber no Mearim do
Tenente Sérgio Justiniano da Silva Comandante daquele Distrito. [...] Quando
chegar no Sítio da Chapada a Fazenda que ali tem o Capitão Francisco Alves dos Santos
e aonde aí está seu Genro, o Alferes Antônio Rebello Bandeira; V. Mª. se lhe
apresentará ao primeiro e na sua ausência ao segundo, entregando-lhe tudo que
levar, de que deve cobrar recibo e ficando as suas Ordens na inteligência de que o
dito Alferes é subordinado ao da mesma sorte que V. Mª. fica a ambos quando o
referido Capitão lhe não dê ordem em contrário: pois que é o primeiro Comandante
da Comissão a que V. Mª. com sua Tropa vai destinado. [...] Deus guarde a v. Mª.
São Luís do Maranhão, Palácio do governo, 5 de junho de 1816 – Paulo José da Silva
Gama. – Sr. José Raimundo de Moraes, Sargento do Regimento de Linha da Capital
(APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades. 1814-1816. Nº 59, ofício Nº. 1003, p. 153 R, 155 V, 156 R e 156 V.) (grifo
nosso).

A referida fazenda, no porto da Chapada, pertenceu a Valentin Lopes, e esta foi destruída
por índios da região. Em 1812, um novo povoado surgiu nessa localidade, era um entreposto
comercial, criado pelo alferes Antônio Francisco dos Reis. Essa embrionária povoação
também foi dizimada pelos índios da nação Timbira chamados de Pyscobies. Agora, o
capitão citado no ofício era o proprietário da fazenda que havia ali. Provavelmente, foi
contemplado com essa fazenda devido aos seus préstimos ao Real Serviço. Pelo que
podemos perceber através de vários documentos a consolidação da ocupação da Chapada
se dá através do capitão Francisco Alves dos Santos e seu genro, o alferes Antônio Rebello

49
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Bandeira. Esse mesmo capitão, através de grande prestígio que tinha com as autoridades
presentes em São Luís, fez consolidar o embrião da povoação que passou a ser denominada
de Grajaú, hoje cidade de grande destaque no Centro Sul Maranhense.

Embora na historiografia local alguns autores como Abranches (1950), Marques (1970) e
Carvalho (2000) atribuem a fundação definitiva do povoado da Chapada a outro
comandante de tropas de milícias de nome Manoel Valentin Fernandes, não encontramos
nenhum documento oficial entre 1800 e 1830 que faça qualquer referência a Fernandes
como responsável por alguma propriedade no porto da Chapada. A única pessoa de nome
Valentin que aparece nos documentos por nós pesquisados é Valentin Lopes. Depois da
destruição da povoação em 1814, a única referência ao porto da Chapada é a fazenda do
capitão Francisco Alves dos Santos e, depois desta, nenhuma outra. A partir de 1816, todas
as vezes que os documentos oficiais se referem a essa localidade sempre citam esse capitão
ou seu genro Antônio Rebello Bandeira. Ao nosso olhar, é por aí que surge a atual cidade de
Grajaú, mas essa afirmação está ainda no nível de uma hipótese.

Porém, o que podemos afirmar, com efeito, é que as margens do rio Grajaú era um ponto
estratégico para a consolidação da expansão colonial nos sertões de Pastos Bons. Isso, em
função dessa região ter bons campos para a instalação de fazendas de gado e, em um
cenário onde os rios navegáveis eram as principais vias de comunicação dessa região com a
Capital, povoar as margens desse rio era fundamental. O grande problema era a presença
de várias nações de nativos que disputavam esse espaço com os colonos. Assim, a criação
de povoações nas margens desse rio foi projetada por vários militares e apoiada pelos
governadores do Maranhão. Nesse sentido, em ofício ao Alferes Antônio Francisco dos Reis
o governador e capitão General do Maranhão respondia o seguinte
Recebi a sua carta de 8 de julho do corrente ano e fico ciente de tudo que nela me
representa sobre a precisão e utilidade de criar-se no território das margens do Rio
Grajaú uma Povoação fortificada para progressão do Comércio entre esta Cidade e
o extenso distrito de Pastos Bons por aí confinante. Estou pronto pois para prestar
o auxílio necessário para a criação do dito Povoado, fazendo ali assistir como me
pede um compatível Destacamento. De Tropa de Linha e criar um Pároco para
administração dos Sacramentos e instruir no Sagrado Evangelho os Batizados.
Porém primeiramente é necessário que Vós Mercês com os mais que pretender
ali povoar-se como requerer me enviem um Mapa do local com todas as
designações precisas: obrigando-se igualmente a sustentação da tropa e a
construção do seu Quartel como também a edificação de uma Ermida decente
para a celebração do Santo Sacrifício da Missa e dos mais Ministérios Paroquiais
posto a Côngrua do Pároco vai ser a custa da real Fazenda. Portanto, logo que V.
Mces me remeta bem claro e especificado o que lhe recomendo passarei as
providências necessárias. Deus guarde a V. Mces. São Luís do Maranhão Palácio do
Governo, 21 de Agosto de 1817 – Paulo José da Silva Gama – Sr. Alferes Antônio
Francisco dos Reis. (APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-
General com diversas Autoridades, 1817 – 1819. Nº 60, Ofício nº. 1387, p. 63 R e V).

Os militares, devido seus préstimos ao Real Serviço, recebiam em contrapartida o direito de


fundar povoações, criar fazendas e desenvolver o comércio nos sertões de Pastos Bons. As
ações dos militares era algo que atendia aos seus próprios interesses e aos interesses do

50
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Projeto colonial português. A estrutura das povoações eram algo básico, mas não podiam
faltar uma ermida para a realização do culto católico e um quartel para o destacamento
militar que devia fazer a segurança da localidade. Esses alferes já tinham experiência que
uma povoação, nessa região, sem uma tropa militar para a devida proteção, poderia
sucumbir como sucumbiu, em 1814, a primeira povoação que ele criou no porto da Chapada.

Outro militar que recebeu apoio para a criação de uma povoação foi o capitão de milícias
Francisco José Pinto de Magalhães. O governador Paulo José da Silva Gama, através de
ofício ao então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios dos Reinos do Conselho do
Rei D. João VI, assim o comunicava sobre a criação de uma nova povoação no alto sertão
desta capitania:
[...] estando igualmente informado de que as margens do Grajaú o terreno adentro
era tão férteis como infestado do Gentio, procurei criar uma Povoação no local
mais apropriado deste terreno para que p. este intermédio se comunicasse com
comodidade a navegação, tanto pl°. Rio Tocantins abaixo para o Pará, como acima
para a Capitania de Goiás, e abrindo-se por aqueles Centros a estrada necessária
para estas diversas comunicações. Acha-se, pois esta Povoação principiada a
estabelecer-se e regular-se a sua área e formação de modo como mostra o Plano
que tenho a honra de remeter a V. Exc.ª. Para organizador desta construção, e
angariar os índios Selvagens daqueles contornos para ali se estabelecerem, escolhi
e nomeei ao Capitão de Milícias Francisco José Pinto de Magalhães, que andou nas
demarcações pela parte de Goiás, e que achando-se familiarizado com muitas
Nações dos índios Selvagens, se veio oferecer para esta mesma Comissão, aonde
se acha fornecido de um Corpo de Tropa Militar, construindo a organização da dita
Povoação, que tem por nome – Povoação da Princesa Leopoldina. Como já se
acham vários começos adiantados, e aberto em lavoura algum do seu terreno; não
posso por ora segurar mais a V. Exc.ª. do que até ao presente não tem sido
infrutíferos os trabalhos principiados, pois que representam por ora uma
expectação lisonjeira. Deus guarde a V. Exc.ª. São Luís do Maranhão, 28 de maio de
1818 – Ilm.º. e Exmo. Sr. Thomaz Antônio de Villanova Portugal – Paulo José da Silva
Gama (APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com
Diversas Autoridades da Corte - 1812-1819, Nº 291, ofício nº, 10, p. 26 V e 27 R.).

A fundação da referida povoação tinha alguns objetivos como facilitar a comunicação entre
o Maranhão e as capitanias de Goiás e do Pará. Para isso, se navegaria através do rio Grajaú
e depois, o percurso seria terrestre, por meio das estradas que deveriam ser abertas até o
rio Tocantins e, por fim, através deste rio, se navegaria acima para o Goiás e abaixo para o
Pará. Outro objetivo a ser atingido pela fundação dessa povoação era que, nessa localidade,
iam ser instaladas as nações indígenas que estavam em paz com o capitão que organizava
a tal povoação. Esses nativos seriam a principal mão de obra na construção do povoado e
ainda seriam explorados nos trabalhos agrícolas. A povoação ainda contaria com um
aparato militar para a segurança dos seus moradores e das propriedades adjacentes.

O sucesso dessas povoações, às vezes, era instável, a exemplo da dita Princesa Leopoldina,
cujo nome era uma homenagem à princesa austríaca que foi a primeira esposa do primeiro
imperador do Brasil, D. Pedro I. Essa povoação, apesar do ilustre nome e dos sucessos
iniciais, veio a sucumbir posteriormente. A povoação planejada pelo alferes Antônio
Francisco dos Reis, que mencionamos no ofício de 1817, também não encontramos

51
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

evidências de que tenha se consolidado. Das três tentativas citadas, apenas a povoação do
porto da Chapada, que era uma extensão da fazenda do capitão Francisco Alves dos Santos,
prosperou. Isso mostra o quanto difícil foi a consolidação do Projeto colonial português
naquela região. Porém, foi a partir de povoações como essas que surgiram muitas outras
que futuramente se concretizaram como grandes vilas e que atualmente são cidades de
muita visibilidade no Sul do Maranhão.

Mas diante do fracasso de algumas povoações, outras medidas de característica militar,


eram pensadas para dar segurança aos colonos da região, pois muitas fazendas e
povoações estavam expostas às chamadas “hostilidades dos gentios”. Se os portugueses
quisessem conquistar definitivamente essa região, era necessário frear essas resistências
dos nativos. Foi com esse propósito que o governador do Maranhão, Bernardo da Silveira
Pinto, em 1819, apresentou às autoridades portuguesas na Corte, um audacioso projeto de
criação de oito companhias de caçadores independentes. Essas companhias seriam
comandadas por um militar e os seus integrantes deveriam ser recrutados entre os filhos
dos colonos, pois estes tinham suas propriedades constantemente atacadas pelos gentios,
conforme justifica o governador
Entre objectos que me parecem mais dignos d´atenção nesta Capitania tem hum
dos primeiros a falta de segurança, e de Polícia do interior dos Sertoens. § Esta
Capitania he cortada no seu centro por grandes Matas a que chamão Geraes desde
as margens do Turi limite da Capitania do Pará athe Codó confluente do Itapecuru
as quaes servem de abrigo, e de morada a numerozas tribus de Índios Selvagens
que cheios d´animozidades, e ódios inveterado inquietas os cultivadores, e
embarcação nova lavouras cometendo contínuas depredaçoens nas fazendas [...]
(APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades da Corte. 1811-1821, N°. 290. Ofício Nº. 2, p. 66 V., 67 R. e V.; 68 R. e V.;
e 69 R. e V.).

O governador alegava que eram poucos os destacamentos militares presentes no


extensíssimo sertão, onde as habitações eram distantes umas das outras e não havia tropa
suficiente para conter as constantes “correrias” que os gentios faziam contra os colonos.
Para a região do Alto sertão, no mesmo documento, eram solicitadas cinco companhias
Huma Ditta na confluência do Mearim com o Grajahú

Huma Ditta na Povoação projectada Princeza Leopoldina que não tem prosperada
por falta de segurança estando rodeada de Índios Selvagens;

Huma Ditta na Tapera da Chapada entre o Alto Mearim, e Grajahú;

Huma Ditta na Ribeira da Lapa ou das Neves;

Huma Ditta na Povoação Almeida de El Rey ou na confluência da Ribeira de


Alprecatas com o Itapecuru para proteger as Fazendas de Gado que se vão
estabelecer por conta da Real Fazenda; (Ibid)

Essa região, como algumas autoridades citavam em alguns documentos, era “infestada” de
gentios e a presença de militares era diminuta, devido a esses fatores o governador

52
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

solicitava a maior parte das companhias para o Alto sertão. Quanto à criação das ditas
companhias não temos informações sobre as suas respectivas criações, mas as informações
apresentadas nesse documento evidenciam o quanto as autoridades portuguesas, em São
Luís, tinham ciência dos embates que eram travados entre colonos e nativos nos sertões
dos Pastos Bons e, estando ciente disso, procurava tomar medidas que favoreciam a
colonização dessa localidade.

Porém, quando a estrutura de segurança, por meio das guerras falhava, buscava-se
alternativas pacifistas, pois a dominação não se faz somente pelo poder físico e pela força,
faz-se também de forma sútil, pelo poder simbólico. Os Aldeamentos dos nativos, através
dos militares, foi uma delas, pois era preciso discipliná-los e controlá-los e, para isso, nada
melhor que fazer alianças com eles. Dessa forma, os conquistadores os mantinham em
amizade e sob a sua vigilância.

4 Os aldeamentos de nações indígenas sob o comando dos militares: projetos


de pacificação dos nativos por meio de conchavos

Manter relações amistosas com os índios foi o objetivo de vários representantes da Coroa
portuguesa durante a colonização dos sertões desta Capitania, pois era interesse do Estado
português expandir seus domínios por todo o Maranhão. As ações pacificadoras vieram
nesse sentido. Na parte mais norte do sertão desta capitania, essa pacificação se deu, na
maioria, em forma de missões religiosas, que confinavam os índios em um local no sistema
de aldeamento sobre a custódia dos padres. O sonho de muitos padres era “ir converter
almas em terras distantes”, como enfatizam Cardoso e Chambouleyron (2003, p. 37).
Porém, enquanto essa parecia ser a regra na maior parte da América Portuguesa, inclusive
no Norte do Maranhão, na região Sul desta Capitania, o aldeamento dos nativos ficou sob
os encargos dos militares com o apoio das autoridades políticas na Capital.

Através de ofício, o governador do Maranhão comunicou ao ministro Fernando José de


Portugal e Castro, o Marquês de Aguiar, sobre o aldeamento de indígenas, cuja incumbência
era de um alferes
Ilm.º. e Exmo. Sr. – Tendo acontecido vários, e continuadas incursões de diversas
Nações de Gentio, que povoam e errão pelo extensíssimos Sertões de Pastos Bons.
[...] Julguei ser do meu dever dar as mais prontas providências para evitar a
destruição das Fazendas ali estabelecidas e morte da Escravatura, que aqueles
Bárbaros nelas já faziam; para este fim escrevi ao Juiz de Fora da Vila de Caxias [...]
este ministro em consequência das minhas Ordens aprontou um Corpo composto
de Tropa de Linha, Milicianos, e alguns moradores daquelas Vizinhanças, dando o
Comando desta Partida ao Alferes do Regimento de Linha Joaquim Alves de Abreu,
que procurando a Nação Canela Fina na sua rancharia lhe ofereceu a paz que
acertaram, sendo alguns destes Bárbaros conduzidos a Villa de Caxias onde foram
presenteados; estas dádivas, e bom acolhimento Convidou a que toda a rancharia
se apresentasse na Villa de Caxias mostrando estarem satisfeitos com a nossa
amizade, e a exemplo desta Nação tem concorrido outras muitos indivíduos das

53
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Nações gavião e Pedra na Boca, excedendo o número de mil Almas que se acham
Aldeando perto da Povoação de Pastos Bons. [...] São Luís do Maranhão, 15 de
julho de 1815 – Ilm.º. e Exmo. Sr. e Marquês de Aguiar – Paulo José da Silva Gama.
(APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades da Corte, 1812-1819, Nº 291, Ofício Nº. 13.)

O Estado português, por meio de diferentes estratégias, tentava se impor sobre as nações
indígenas que viviam nos sertões de Pastos Bons. A guerra nem sempre era uma boa
alternativa. As formas de aldeamentos eram acordos entre os militares responsáveis pelos
aldeamentos e os líderes dessas nações. O disciplinamento e controle dos nativos também
se fazia por meio do confinamento destes em espaços sob a vigilância dos conquistadores.
À medida em que eles colocavam esses nativos sob seu controle, iam também controlando
o vasto território em que eles viviam. Tê-los sob os olhares dos militares era melhor do que
permitir que eles vivessem dispersos pelo vasto sertão fazendo as suas “correrias” e
atacando fazendas e povoações. Esse jogo de poder, marcado pela sutileza da força
simbólica, exigia uma relação de confiança de ambos os lados. Porém, esse jogo de poder
simbólico, era marcado pela ideia de civilidade e pelos padrões culturais dos quais as
autoridades políticas e militares do Estado português estavam impregnadas.

Outras medidas com essa finalidade aconteceram na segunda década do século XIX. Em
ofício ao Desembargador Luís d´Oliveira Aguinaldo e Almeida, juiz de Fora da Vila de Caxias,
o governador e capitão general desta capitania, Paulo José da Silva Gama, dessa forma se
pronunciou:
Recebi o seu ofício de 29 de Março do corrente ano em que remetendo-me por
Publica forma o Ofício ou representação que lhe fez o Capitão Francisco Alves dos
Santos Comandante das Ribeiras do Grajaú, Lapa e Farinha sobre o dever-se entrar
agora por aquele sítio para se ir buscar aquele Gentio que tinha prometido o vir
aldeasse debaixo da nossa amizade e Aliança, me representa, conforme aquela
mesma representação expõem que seria muito mais adequado mandar pelo Rio
Grajaú acima, a tropa que me pede, aí desembarcar no Porto da Chapada, e
apresentasse na Fazenda que tem naquele distrito o dito Capitão Comandante, e
onde assente seu Genro o Alferes Antônio Rebello Bandeira nomeado para
comandante desta expedição. § Parecendo-me, pois, acertado o que V. Mª. me
representa faço presentemente marchar com esta direção hum Corpo de tropa de
30 soldados do Regimento de Linha desta Cidade, hum Cabo e Comandada pelo
Sargento da 3ª. Companhia “José Raimundo de Moraes” que a poucos anos por aí
transitou em outra Diligência do real Serviço. [...]. São Luís do Maranhão Palácio do
governo, 8 de Junho de 1816 – Paulo José da Silva Gama. – Sr. desembargador Luís
de Oliveira Figueredo e Almeida, Juiz de fora da Villa Nova de Caxias (APEM. Liv. de
Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas Autoridades,
1814-1816. Nº 59, Ofício Nº. 1005, p. 156 V. e 157 R.).

O projeto de consolidação da fazenda da Chapada, sob o comando do capitão Francisco


Alves dos Santos e seu genro, o alferes Antônio Rabello Bandeira, consolidava-se e ele ia se
notabilizando diante das autoridades políticas nesta Capitania. Nesse momento, o referido
capitão, na condição de Comandantes das Ribeiras do Grajaú, Lapa e Farinha, solicitava das
autoridades locais a autorização para ir buscar os gentios de algumas nações para aldeá-los
nas terras da sua fazenda na Chapada. Para a segurança dessa localidade, ele solicitava ainda

54
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

um corpo de tropa de soldados. As alianças entre os conquistadores e os “gentios”


representava sempre alguns riscos para os envolvidos, e era devido a isso, que os
responsáveis por esses tipos de aldeamentos sempre solicitavam segurança para a sua
propriedade.

O capitão José pinto de Magalhães também reunião sob seu comando nações indígenas
para aldeamento
O Senhor Chefe de Divisão Intendente da Marinha mande dar os gêneros
constantes da relação inclusa assignada pelo secretário deste Governo, que são
para vestir os Índios Selvagens que descerão com o Capitão Francisco José Pinto
de Magalhães Comandante da Povoação Leopoldina para aldearem-se com a sua
Nação, [...] Relação dos Gêneros que V. Exª. manda dar para vestuário dos Índios
Selvagens, que descerão em companhia do Capitão Francisco José Pinto de
Magalhães, Comandante da Povoação Leopoldina. [...], 12 Chapéus de Braga, 21
Barretes de Pano Azul, 19 Côvados de Pano Azul, 2 Ditos de Droguete Amarelo, 13
de Casimira encarnada, 30 Varas de Pano de Linho, 4 Peças de Cadarço encarnado,
2 Dúzia de Botões Amarelos, 1 Côvado de pano para falta, 67 Maços de Missangas
[...] Maranhão Secretaria do Governo 30 de Agosto de 1819 – Joaquim José Sabino
(APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas
Autoridades da Corte. 1812-1819, Nº 291, Portaria 32, p. 70 V. e 71 R.).

Temos ainda a proposta que o governador do Maranhão, Bernardo da Silveira Pinto, fez ao
comandante geral do Distrito de Pastos Bons, o sargento Mor Francisco de Paula Ribeiro,
para que ele abandonasse o projeto de abrir comunicação com a Capitania de Goiás e
tratasse, primeiro, de vários temas com relação aos nativos da região, conforme o ofício
abaixo:
Recebi as suas três cartas de 9, e 28 de dezembro do ano passado, e de 8 de janeiro
do corrente, e ciente do seu conteúdo lhe posso responder. § Não trato por ora de
abrir comunicação com a Capitania de Goiás, pois que presentemente tenho
outros muitos objetos a que atender, de mais urgente necessidade. § Promova
quanto lhe seja possível as boas disposições dos Índios Timbiras evitando que
sejam maltratados pelos nossos povoadores ou por outras quaisquer Nações de
Índios. § Tenha todo o cuidado, e vigilância para que a Povoação de Almeida esteja
sempre prevenida contra qualquer insulto, ou invasão repentina da Tribo
Cacramecrá, sem contudo lhe mostrar receio, ou desconfiança, enquanto ela se
conservar pacífica. § Enquanto ao pequeno resto dos Canelas Finas convém muito
o promover a boa disposição, em que existem de se aldearem igualmente me
parece muito bem ter V. Mces encarregado a direção deles a Antônio Martins
Jorge, a quem deve seriamente recomendar que lhes promova, e assume o seu
estabelecimento rural, para cujo adjutório lhe remeto 32 Machados, e 32 Enxadas.
Para evitar os insultos que repentinamente por aí fazem nas Fazendas o Gentio
Xavante, espero em breve tempo poder fornecer-lhe os meios necessários para
que os possa castigar, reprimi-los, e afugentá-los das vizinhanças de todo esse
Distrito. [...] Deus guarde a V. Mcês. Maranhão Palácio do Governo 24 de Fevereiro
de 1820 – Bernardo da Silveira Pinto – Sr. Francisco de Paula Ribeiro, Sargento Mor,
e Comandante Geral de Pastos Bons (APEM. Livro de Registro da Correspondência
do Governador e Capitão-General com diversas Autoridades, 1819 - 1820. Nº 61,
ofício Nº. 286, p. 118 R e V). (grifo nosso).

As orientações eram para, inicialmente, ele consolidar as alianças de paz já estabelecidas


com os timbiras, evitando que estes fossem maltratados, inclusive pelos colonos. Depois,

55
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

era fundamental proteger os moradores do Povoado Almeida (atualmente bairro da cidade


de Colinas) contra o ataque dos índios Cacramecrá. O referido major foi instruído também a
entregar os poucos Canelas Finas que restavam ao colono Antônio Martins Jorge para que
este pudesse usá-los na construção de um estabelecimento rural. E, finalmente, o
governador prometia organizar uma entrada contra os índios da nação Xavante que,
segundo ele, frequentemente atacavam as fazendas da região dos Pastos Bons.

Nesse ofício, dois aspectos nos chamam a atenção. Primeiramente, o governador solicitava
do major que ele não devia mostrar desconfiança e nem temor com relação aos índios
Cacramecrá. Depois, o governador propõe futuramente castigar, reprimir e afugentar os
índios Xavantes para longe daquele Distrito. A primeira medida nos mostra o quanto o jogo
de poder entre dominadores e dominados era de muita instabilidade. Os dois lados estavam
sempre atentos ao que lhes podia acontecer, ou seja, que a paz selada podia ser quebrada
a qualquer momento e ações violentas surgissem repentinamente. A segunda situação nos
mostra que a guerra contra o gentio era marcada por duas estratégias, ambas violentas,
pois visava sempre o extermínio dos nativos e a expropriação de suas terras, nesse último
caso, afugentando-os para longe daquela região.

Essas medidas nos fazem compreender que o Projeto colonial contra os nativos foi de uma
dimensão agressiva enorme. Os conquistadores, quando percebiam que suas estratégias de
dominação simbólicas falhavam, eles a impuseram pela força, pois não admitiam dividir o
espaço colonizado com os antigos moradores que resistiam ao seu modelo cultural e aos
seus padrões de “civilidade”. Mas os nativos não se submetiam facilmente a esse poder dos
portugueses, eles resistiam quando tinham seu território sob ameaça ou invadidos e, às
vezes, percebendo que estavam em desvantagens bélicas, tentavam conservar o território
fazendo alianças com os conquistadores. Nesses acordos de paz, os nativos sempre
visavam barganhar algo que pudesse lhes beneficiar.

4.1 As resistências e barganhas indígenas

O Projeto de colonização portuguesa, na América portuguesa, foi de uma nocividade


imensurável para as nações indígenas que habitavam esse território. As consequências
negativas desse processo são incalculáveis, do ponto de vista das perdas que os nativos
sofreram, pois estes foram expulsos de suas terras, sofreram dizimações e tiveram seus
referenciais culturais mutilados, entre tantas outras consequências nefastas. Na
colonização, os conquistadores tentaram, a todo custo, impor sua visão de mundo marcada
por um processo civilizador que, na maior parte das vezes, ignorou os costumes dos povos
nativos. Além disso, os portugueses alicerçaram a sua colonização, por estas paragens,
utilizando-se de um processo de aculturação sobre os nativos em nome de ideologias
consideradas por eles como superiores. Nessa perspectiva, eles justificavam todas as formas

56
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

de violências que usaram contra os povos indígenas, sob a argumentação de que os


referenciais culturais desses povos eram bárbaros e incivilizados.

Mas nos embates que colocavam em lados opostos os conquistadores e os nativos, estes
tentaram de todas as formas dificultar a consolidação do Projeto colonial português.
Durante a implantação desse projeto, e mesmo após a separação definitiva entre Brasil e
Portugal, as diferentes nações indígenas reagiram de acordo com as circunstâncias que os
envolviam, utilizando-se “desde pequenos levantes até a resistência armada, mas
recentemente tem havido a consolidação de uma nova etapa nesse enfrentamento que são
as diferentes formas de luta política, viabilizadas pelas organizações indígenas”
(BITENCOURT, 2000, p. 2). As alianças, como analisamos no item anterior, também
marcaram as formas de resistência que os nativos usaram para tentar frear o avanço das
ocupações de suas terras e destruição de suas aldeias. Essas alianças, seladas em nome da
paz entre os conquistadores e os indígenas, possibilitaram a estes a possibilidade para
negociar barganhas e usufruir de algumas vantagens que lhes garantiam uma relativa
blindagem diante dos colonos e das outras nações indígenas inimigas.

Não queremos afirmar, aqui, que os indígenas dependiam dos portugueses para se proteger
dos inimigos internos, mas esses acordos, com efeito, fortalecem-nos nas guerras intestinais
que travavam contra outros índios. Porém, essas alianças eram bastante instáveis, isso
porque era muito comum que os indígenas fossem aliados dos portugueses ao amanhecer
e ao anoitecer eram inimigos declarados. A quebra dessas alianças, acontecia muito em
função dos colonos maltratarem os nativos, mesmo aqueles que estavam sob sua custódia,
inclusive algumas autoridades portuguesas começaram a perceber “que a insubordinação
e rebeldia indígena estavam intrinsecamente ligadas às provocações europeias, na medida
em que a exploração desenfreada da mão-de-obra indígena aparentemente levava tanto à
resistência armada quanto ao declínio demográfico”, conforme observou John Monteiro
(1994, p. 35).

Nos sertões de Pastos Bons, as autoridades portuguesas tentaram de todas as formas frear
as resistências indígenas. Diante do violento processo de colonização portuguesa, os
nativos respondiam também com violência às provocações e ataques do invasor. Em 1815,
por meio de um ofício, o governador do Maranhão orientou o Juiz ordinário do Julgado do
Mearim a tomar algumas providências sobre as resistências dos indígenas ao expansionismo
colonialista
Estando por mim incumbido o Desembargador Juiz de Fora da Villa de Caxias da
Organização, sustentação, e direção da tropa que deve proximamente ir contra o
Gentio a fim de o meter em paz ou quando não queira repulsa-lo para longe dos
contornos de Pastos Bons e Grajaú onde tem feito grandes destruição e
mortandade lhe dei também ordem e o autorizei para em meu nome exigir as
jurisdições confiantes lhe administrasse alguma gente da que está nesta
circunstância. § E porque no alto Grajaú distrito desse julgado foi mais próxima
mortandade feita pelo Gentio, e por isso há um dos lugares que deve ser explorado
pela referida Tropa por ser um dos mais infestados cumpre a V. Mª. administrar-lhe
a gente que lhe for compatível, em cujo número deve entrar a gente armada que

57
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

anda com José Pereira Souza por se achar pronto e muito hábil para este fim. [...].
São Luís do Maranhão Palácio do Governo 19 de Abril de 1815 - Paulo José da Silva
Gama – Senhor Joaquim José da Costa Portugal, Juiz Ordinário do Julgado do
Mearim (APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-General com
Diversas Autoridades, 1814-1816, Nº 59, Ofício nº. 798, p. 48 R, 48 V e 49 R).

Diante das inúmeras reações dos nativos ao Projeto de colonização portuguesa, o


governador orientava, inicialmente, para a realização de um acordo de paz com os nativos,
mas se isso não fosse possível a guerra seria a alternativa recomendada, inclusive a expulsão
dos nativos de suas terras para que esta se tornasse propriedades dos colonos. Era
necessário, de alguma forma, tornar os sertões de Pastos Bons um espaço favorável para a
expansão da colonização portuguesa.

Quando o acordo de paz foi selado houve contrapartida de ambos os lados, ou seja, os
nativos se submeteram aos poderes dos conquistadores, mas também usufruíram de
algumas vantagens como está claro no ofício abaixo, do governador do Maranhão ao
Capitão Francisco Alves dos Santos
Por via do Comandante, e do Vigário do Mearim lhe mando remeter à Sua Ordem
e da Posição quatrocentas arrobas de carne seca e outros tantos alqueires de
farinha para sustento das Nações de Índios que vieram aí ter na sua Fazenda da
Chapada para os Aldear em amizade dentro de nós mesmos. § V. Mª. despendesse
e economizará este alimento conforme for necessário tendo sempre em atenção
o quanto deve poupar despesas e Real fazenda. § Como nesta ocasião Ofício ao
Desembargador da Villa Nova de Caxias e o ponho de advertência ao quanto
perigoso, e pesado é pô-los em Povoações dentro das nossas ou a elas contíguas,
lembro tão bem a V. Mª. que seria muito mais conveniente e acertado o deixá-los
nas suas mesmas Aldeas em aliança, e comissão conosco debaixo de artigos, que
fossem por nós mesmos fielmente executados, obrigando-os tão bem a que da
sua parte os cumprirem. Dando por este modo tempo a que pela continuação
correspondência e familiaridade de não domesticando para ser então mais fácil e
segura o aldeá-los no nosso grêmio dentro das nossas mesmas Povoações. [...]
Deus guarde a V. Mª. São Luís do Maranhão Palácio do Governo, 16 de Setembro
de 1816 – Paulo José da Silva Gama. – Sr. Capitão Francisco Alves dos Santos,
ausente a seu Genro o Sr. Alferes Antônio Ribeiro Bandeira (APEM. Liv. de Reg. da
Correspondência do Gov. e Capitão-General com Diversas Autoridades, 1814-1816.
Nº 59, Ofício Nº. 1101, p. 198 V e 199 R).

O governador atendeu ao pedido do capitão quanto ao envio de suprimentos para que ele
pudesse alimentar os indígenas, mas o orientava quanto ao perigo de mantê-los dentro ou
mesmo próximos das povoações portuguesas. Para o governador, seria mais viável manter
os nativos em suas próprias aldeias, porém em aliança de paz, em que prevalecesse artigos
com medidas que os colonos pudessem cumprir fielmente. Essas autoridades apostavam
que tendo os nativos sob seu controle era uma garantia relativa de que eles não
representavam desassossego para os conquistadores na região.

Em outro ofício o governador do Maranhão orientou o capitão Francisco José Pinto de


Magalhães sobre a distribuição de terras nas margens do rio Grajaú
Recebi o seu Ofício de 12 de fevereiro passado e em consequência dele lhe remeto
pelo Anspeçada Daniel José Alves constante da cópia inclusa da relação que foi

58
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

aviada pelo Intendente da Marinha a custa da Real fazenda. Enquanto ao


estabelecimento de diversos futuros colonos, que V. Mces me fala para lhe
conceder Datas e Sesmarias só me parece necessário dar-lhe p. ora a resposta
seguinte. Em primeiro lugar deve V. Mces reparar terrenos suficientes para cada
uma das Nações Selvagens que aí se forem estabelecer tendo com aquela
comodidade possível terra proporcionada para a sua respectiva lavoura. [...]. São
Luís do Maranhão, Palácio do governo 14 de março de 1818 – Paulo José da Silva
Gama – Sr. Capitão Francisco José Pinto de Magalhães, Comandante da Nova
Povoação de Grajaú (APEM. Liv. de Reg. da Correspondência do Gov. e Capitão-
General com diversas Autoridades, 1817 – 1819, Nº. 60, ofício Nº 1547, p. 109 R).

Com a expansão, cada vez mais intensa dos portugueses, nos sertões de Pastos Bons,
muitas mudanças e transformações aconteceram no cotidiano dos indígenas dessa região.
Os acordos de paz, realizados entre os conquistadores e os nativos, possibilitavam a estes
usufruírem da terra mesmo que sob uma nova condição, ou seja, subordinados ao poder
dos invasores. Porém, nessas relações os nativos não eram totalmente passivos, eles sabiam
que podiam usufruir de algumas vantagens com relação aos conquistadores, pois eram a
maioria e conheciam bem a região. Essas vantagens que os nativos tinham faziam com que
as autoridades portuguesas agissem com cautela ao ocupar o Sul do Maranhão. Isso fica
claro nesse ofício, pois o governador orienta o capitão sobre a distribuição de terras,
primeiramente, para os nativos e somente depois para os colonos.

Além dos suprimentos alimentares e da distribuição de terras, os nativos se submeteram a


essas alianças devido a outras barganhas como o recebimento de presentes que os militares
lhes ofereciam em troca de fidelidade. Entre esses presentes estavam ferramentas
agrícolas, armas, munições, tecidos, miçangas, entre outros. Lentamente, os portugueses
iam aculturando e impondo seu poder sobre os nativos através desses elementos. Assim,
nessas relações há uma clara evidência do poder simbólico que permeavam as relações
entre os colonos e os nativos. A ideia de civilidade instituída pelos conquistadores
perpassava pela aculturação dos nativos. Estes deveriam tornar-se dóceis diante dos
portugueses e, ao mesmo tempo, deviam abandonar seus antigos costumes, suas
ferramentas e modo de vida. Os portugueses se consolidavam, na região, na medida em que
souberam dosar suas ações contra os nativos, hora se impondo pelo poder físico e hora pelo
poder simbólico.

5 Considerações finais
O longo processo de colonização dos sertões de Pastos Bons foi algo muito complexo, pois
aconteceu a partir de um emaranhado de atividades de interesses do Estado português e
dos interesses particulares dos colonos militares e civis. Podemos dizer que a corrente
pastoril, muito evidenciada pela historiografia local, é apenas um dos elementos que está
agregado ao projeto colonial português nessa região. Mas a linha mestra do projeto colonial,
que caracteriza o sentido expansão portuguesa no alto sertão do Maranhão, apresenta uma
complexidade de ações, coordenadas pelas autoridades políticas e militares que

59
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

representavam o poder da Coroa portuguesa nesta capitania. Logicamente que essas ações
coadunavam com os interesses de colonos que integravam a corrente pastoril que ocupou
o Sul do Maranhão e implantaram as fazendas de gado vacum. Entretanto, sem o apoio da
estrutura do poder político e militar do Império português a esses criadores, sua empreitada
pelos sertões de Pastos Bons poderia ser apenas uma aventura desastrosa, diante de tantos
embates que eles teriam que travar com as diferentes nações de indígenas que habitavam
essa região.

Analisamos, aqui, o quanto a ocupação dessa região foi intensa na segunda década do
século XIX. Essa década foi escolhida em função de ter sido um período marcado pela
implantação de vários projetos que culminaram com povoações, fazendas e aldeamentos
nos sertões de Pastos Bons. Sabemos que muitos desses projetos ruíram, mas essas
experiências serviram para aperfeiçoar novos projetos similares que tiveram mais sucesso,
inclusive alguns se tornaram grandes povoações que viraram cidades importantes no Sul do
Maranhão. Inclusive, é nessa década que, definitivamente, foram oficializadas as raias
divisórias entre as capitanias do Maranhão, Goiás e Pará, pelo major Francisco de Paula
Ribeiro, sob determinação da Coroa Portuguesa (APEM, Liv. Nº 291. Ofício Nº. 4, p. 52 V e 53
R).

Consideramos, neste trabalho, que na região dos Pastos Bons, a criação do gado vacum,
não deve ser vista como um fator exclusivo pela colonização desse território. Somando-se
a ela, há outras, como as três que mencionamos anteriormente, cujo papel dos militares foi
de grande importância para a segurança da região e a criação de fazendas e povoados.
Porém, essa ocupação não se fez sem a reação dos nativos que nessa localidade habitavam.
Estes defenderam o território da forma que melhor lhes convinha, hora atacando de
surpresas os empreendimentos dos conquistadores, hora aliando-se a eles por meio de
acordos de paz e aldeamentos. Em todas essas estratégias, os nativos tentaram frear o
avanço dos colonizadores e garantir a terra como espaço de moradia, onde pudessem
manter a sua integridade cultural como povos autônomos.

O poder dos invasores prevaleceu, os embates não aconteceram somente por meios
belicistas, mas no campo das simbologias, das negociações de paz, na aculturação e
assimilação de ambos os lados, pois em uma região tão desconhecida para os invasores era
impossível eles não utilizarem as práticas dos povos nativos para melhor desenvolver seus
projetos. Como desdobramentos desse processo, ambos os lados tentaram se impor com
as ferramentas das quais dispunham como fazendo conchavos, barganhando e defendendo
os privilégios que pudessem lhes garantir a posse da terra. Os indígenas, mesmo sofrendo a
maior parte dos prejuízos, conseguiram permanecer (ou estão permanecendo) na região.
Diante de todas as formas de violências que os nativos enfrentaram (ou vem enfrentando),
ao longo de todos esses anos, eles continuam dividindo as terras dos sertões de Pastos Bons
como os descendentes dos conquistadores. Essa luta continua, pois, hoje, os nativos têm
usado outras armas para continuar morando na região, frear o extermínio das suas
populações e conservar suas identidades culturais. Que assim seja!

60
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Referências

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61
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

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RIBEIRO, Francisco de Paula. Memórias dos sertões maranhenses. São Paulo: Siciliano, 2002.

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MULHERES E SEUS ESCRITOS
SOBRE O SERTÃO SUL
MARANHENSE: POR UMA
COMPREENSÃO COMPÓSITA A
PARTIR DAS OBRAS DE
CARLOTA CARVALHO,
SOCORRO CABRAL E PAULA
ANDRADE

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

MULHERES E SEUS ESCRITOS SOBRE O SERTÃO SUL MARANHENSE: POR


UMA COMPREENSÃO COMPÓSITA A PARTIR DAS OBRAS DE CARLOTA
CARVALHO, SOCORRO CABRAL E PAULA ANDRADE

Benedita de Cássia Ferreira Costa1


Érika Aparecida Silva Navas2

1 Do sertão do tamanho do mundo ao sertão sul maranhense

Sertão, Mulheres e seus escritos, é desta relação que o presente artigo emerge. O exercício
de reflexão sobre tal relação nasceu de inquietações durante (e após) a disciplina Sociologia
e Desenvolvimento Rural, ministrada para turmas dos cursos superiores de Agronomia e
Zootecnia do Instituto Federal do Maranhão campus São Raimundo das Mangabeiras,
quando abordávamos, na condição de professora e aluna, a questão agrária do Maranhão,
principalmente no Sul do Estado, onde se localiza a instituição, bem como o universo
privilegiado de pesquisa e escrita das autoras que iremos nos debruçar.

O sertão, de Carlota Carvalho, publicado em 1924, Os gaúchos descobrem o Brasil, de


Maristela de Paula Andrade, lançado em 1982 e Caminhos do gado, de Maria do Socorro
Coelho Cabral, de 1992, são as três obras escritas por mulheres que nos instigaram a
compreender um pouco mais sobre o chamado sertão (Sul maranhense).

O movimento metodológico utilizado para a elaboração deste ensaio foi o de realizar uma
leitura específica e conjunta dessas obras refletindo sobre um tema comum pelas autoras:
a conformação territorial do sertão Sul maranhense, forjada através de processos de
colonização e povoamento dos finais do XIX e ao longo do século XX.

1
Doutoranda em Ciências Sociais (PPGSoc/UFMA). Graduada e mestra em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Maranhão (PPGSoc/UFMA). Pesquisadora e integrante do Grupo de Estudos Rurais e Urbanos, da
Universidade Federal do Maranhão (GERUR/UFMA), com pesquisas nas áreas de Antropologia/Sociologia
rural e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, do Instituto Federal de Educação Ciência e
Tecnologia do Maranhão, campus São Raimundo das Mangabeiras (NEABI-IFMA/SRM), com pesquisas sobre
visualidades negras e feminismos negros. Docente na rede federal de ensino, vinculada ao Instituto Federal
de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA). Link para o Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6442904236104393
2
Graduanda em Zootecnia pelo Instituto Federal de Educação Ciências e Tecnologias do Maranhão – IFMA.
Técnica em Informática pelo Instituto Federal de Educação Ciências e Tecnologias do Maranhão – IFMA.
Produção de artigos relacionados a temáticas como feminismo/feminismo negro. Bolsista no projeto de
pesquisa “Framework de diagnóstico em consultoria empresarial para micro e pequenas empresas e
agricultura familiar: contribuições para empresas juniores e fábrica de inovação”; voluntária nos projetos de
extensão “IF Mais Empreendedor” e “Extensão rural – gestão, sanidade e produção”, voltados às
comunidades e assentamentos de São Raimundo das Mangabeiras - MA. Link para o Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4392254906253930.

64
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Termo polissêmico – e como bem disse Guimarães Rosa (2006) na magistral Grande sertão:
veredas, “o sertão é do tamanho do mundo” (p. 65) –, remete-nos a uma primeira
necessidade epistemológica: compreender categorias e conceitos, já que eles nos são
instrumentos de análise do mundo social. Nessa perspectiva, uma das lições de Gaston
Bachelard (1996) é ultrapassar os obstáculos verbais e das imagens usuais, “em que uma
única imagem, ou até uma única palavra, constitui toda a explicação” (p. 91).

Guimarães Rosa (2006) enfatizou que “o sertão está em toda a parte” (p. 1), entretanto, é
preciso adentrar à palavra sertão e estabelecê-la como “uma explicação verbal com
referência a um substantivo, carregado de adjetivos, substituto de uma substância com
ricos poderes” (BACHELARD, 1996, p. 91). Sertão, portanto, trata-se de uma palavra que nos
permite expressar fenômenos variados, mesmo que reconhecido, e ainda que expresso
necessita ser explicado.

Albuquerque Júnior (2019) aponta que:


Na primeira metade do século XIX, o conceito de sertão ainda guarda os sentidos
ligados à sua origem etimológica, pois sertão viria do latim sertãnu ou sertu,
significando “bosque, do bosque”, ou da palavra latina desertãnu, significando
“região deserta”. Há ainda quem a derive de uma palavra de origem angolana,
mulcetão, que significava “terra entre terras”, “local distante do mar”, “lugar
interior” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p.21).

Silva (2003)3 indica que a palavra sertão:


parece ser um termo oriundo de desertão, de deserto: Não o deserto físico, mas o
espaço onde há um vazio de súditos da Coroa portuguesa. Palavra talvez originada
no século XV, sua etimologia é obscura, sendo seu primeiro significado talvez
interior, ou seja, o espaço longe da costa. Um conceito que já aparece na carta de
doação de Duarte Coelho (SILVA, 2003, p. 214, grifo nosso).

Diante disso, a palavra sertão nos remete para alguns fenômenos interessantes que vão
caracterizando-o: a ideia de distanciamento do litoral, onde ocorreu inicialmente a nossa
colonização, e a ideia de vazio populacional. Ideias recorrentes na literatura nacional, como
por exemplo, em certo trecho do romance de Rosa (2006, p. 26), o autor escreve “Sertão:
estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra”, ou na obra de Euclides da
Cunha (2016, p. 49): “a ilusão de encontrar-se, de repente, naqueles ermos vazios”.

É preciso indicar, pois, que as ideias e representações espaciais do/sobre sertão de


distanciamento do litoral e de vazio se coadunam ao processo de expansão das elites
açucareiras para além da zona litorânea, adentrando cada vez mais nas regiões interioranas

3
Tese que analisa a constituição de uma nova sociedade colonial no sertão a partir da expansão da zona
canavieira pernambucana nos séculos XVII e XVIII, privilegiando a atuação dos pobres livres urbanos na
construção de imagens e representações do sertão enquanto espaço oposto ao litoral civilizado.

65
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

com rotas comerciais e currais de gado, e assim, paulatinamente entre os séculos XVII e
XVIII, criando uma nova sociedade colonial baseada na ideia de sertão (SILVA, 2003).

Manoel Correia de Andrade (1998) aponta que o sertão nordestino foi integrado no projeto
de colonização portuguesa devido aos movimentos populacionais de Salvador e Olinda, já
que essas cidades se constituíram como centro de áreas férteis, bem como centros
açucareiros que: “comandaram a arremetida para os sertões à cata de terra onde se fizesse
a criação de gado, indispensável ao fornecimento de animais de trabalho – bois e cavalos –
aos engenhos e ao abastecimento dos centros urbanos em desenvolvimento” (ANDRADE,
1998, p. 167).

Além disso, Manoel Correia de Andrade (1988) indica que o processo de penetração para o
sertão tinha um duplo objetivo: a produção de animais e de alimentos para o contingente
populacional do mundo açucareiro empreendido por “portugueses e mamelucos que não
dispunham de recursos econômicos e poder político para se estabelecerem como senhores
de engenho” (ANDRADE, 1998, p. 31).

Para além disso, Albuquerque Júnior (2019), no campo das representações, pontua que há
uma espécie de “rapto” da categoria sertão pelo discurso regionalista nordestino, que a
partir de um conjunto de obras literárias, produções artísticas e práticas institucionais,
antecederam a própria invenção do Nordeste – “objeto de saber e um espaço de poder”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 32) –, enquanto um recorte geográfico, mas também
como “um campo de estudos e produção cultural, baseado numa pseudounidade cultural,
geográfica e étnica” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 23).

Sertão é mesmo vasto, entretanto, para que sua imagem – que se tornou hegemônica – não
nos ofusque com seu “sol abrasador, e sua luz branca e intensa” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2019, p. 26), consideramos que estamos diante de um termo complexo, mas que pode ser
entendido como um conceito relacionado à construção e classificação de uma localização
geográfica, mas também simbólica que remete para uma natureza distinta e uma
conformação territorial específica.

Moraes (2003) nos ajuda a melhor definir o termo quando diz que “o sertão é uma figura do
imaginário da conquista territorial”, que se torna um conceito que:
ao classificar uma localização opera uma apropriação simbólica do lugar, densa de
juízos valorativos que apontam para sua transformação. Nesse sentido, a
designação acompanha-se sempre de um projeto (povoador, civilizador,
modernizador), o qual almeja – no limite – a superação da condição sertaneja.
Trata-se de um espaço a ser conquistado, submetido, incorporado à economia
nacional: uma área de expansão (MORAES, 2003, p. 6).

Dessa forma, compreendemos sertão não apenas como um espaço natural, mas também
como uma palavra-imagem de um espaço forjado na ordem das representações, construído
sob a marca de um projeto de expansão e conquista.

66
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Do vasto sertão, do “tamanho do mundo”, nosso recorte se delineia ao sertão sul


maranhense através das autoras Carlota Carvalho ([1924] 2011), Paula Andrade ([1989]
2008) e Socorro Cabral ([1992] 2008). Intitulado Sertão dos Pastos Bons4, remete-nos não
somente para outra imagem oposta àquela que se tornou hegemônica, mas também para
a região em que se iniciou a ocupação e colonização do centro Sul maranhense.

Considerado por Carlota Carvalho como um território “mesopotâmico” entre os rios


Parnaíba e Tocantins, devido à quantidade de recursos hídricos, estabeleceu assim uma
descrição e identificação da rede fluvial maranhense, constituindo importante
conhecimento geográfico. A designação de Pastos Bons, conta-nos Carlota, relaciona-se à
nomeação de campos abertos, de “esplendor e exuberância”, dada pelos ocupantes
advindos da Bahia, no processo de situar fazendas de criação de gado.

Nesse sentido, nosso objetivo central é compreender como as obras das autoras citadas
nos possibilitam compreender o longo processo de conformação territorial dessa região e
quais são suas análises sobre esse espaço.

Inegavelmente, estamos diante de um exercício denso, em que o presente ensaio é uma


primeira investida de reflexão. Dessa forma, dividimos o texto em três seções. Na primeira,
apresentaremos as autoras a partir de algumas informações de suas trajetórias. Na segunda,
dedicaremos às obras, indicando aspectos centrais e específicos construídos pelas autoras.
Na terceira seção, refletiremos sobre as possíveis confluências e relevâncias das obras para
um olhar compósito e amplo sobre o sertão Sul maranhense.

3 Três mulheres e seus escritos sobre o sertão5

3.1 Carlota Carvalho e seu “maço de papel escrito” sobre o sertão sul
maranhense

Carlota Carvalho, segundo ela mesma nos conta, escreveu Subsídios para a História e a
Geografia do Brasil com um objetivo muito especial: marcar com sua obra o centenário da
Independência do país. O ano 1922 foi emblemático aqui e mundo afora: tivemos a Semana
de Arte Moderna, a fundação do Partido Comunista do Brasil, a Revolta dos 18 do Forte de
Copacabana, a posse de Artur Bernardes como presidente e a crise do regime político
oligárquico, o avanço do fascismo italiano e a chegada de Mussolini ao poder.

4
Obra pioneira sobre os sertões maranhenses e indicação geográfica dos Pastos Bons, é o roteiro de viagem
no alto sertão maranhense, em 1815, de Francisco de Paula Ribeiro (2002), que é fonte inspiradora para
Carlota Carvalho.
5
Na presente sessão apresentaremos as autoras por ordem de publicação das obras.

67
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

O intento de Carlota, entretanto, não se concretizou porque sofreu um acidente em um


bonde no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, comprometendo-lhe a saúde, impossibilitando-
a de andar e se sentar durante um bom tempo. O tratamento penoso foi
Atuando sobre os nervos, o uso desses medicamentos causou tremuras nos
membros e ambliopia, quase amaurose completa. Mal divisava os corpos através
do nevoeiro. Mal via corpos grandes. Não podia ler nem escrever e continuei
impossibilitada de mover (CARVALHO, 2011, p. 81).

O demorado tratamento de meses impactou o projeto de ver sua obra publicada, de modo
que para ela “a oportunidade estava perdida e o maço de papel escrito ficou abandonado
(CARVALHO, 2011, p.82). Somente dois anos depois, é que sua obra, que recebe o título O
Sertão, é publicada no Rio de Janeiro, depois de muita insistência com integrantes da
Associação Brasileira de Imprensa e membros da Academia Brasileira de Letras, pela
Empresa Editora de Obras Científicas e Literárias6.

O sertão não marca somente o título de sua reconhecida obra, pois viveu boa parte de sua
vida, e muito provavelmente, tenha nascido nos sertões maranhenses, entre Grajaú e
Riachão, por volta de 1866. E foi lá, que seu avô, pais e tios se fixaram desde os idos do
século XIX.

A escrita de Carlota, uma mulher sertaneja que pensava a história de seu lugar na história do
país, em meados do século XX, pode ser entendida como resultado do capital cultural
possibilitado pela sua família. Seu avô, José Joaquim de Carvalho, natural da Bahia, quando
se refugiou na vila do Riachão, considerado um homem letrado, de espírito libertário,
instalou uma escola para ensinar às crianças e jovens do entorno, em especial seus filhos, a
ler e a escrever, com aulas de gramática, latim e matemática. Seu pai, Miguel Olímpio de
Carvalho, foi membro de famoso círculo literário e tinha proximidade com assuntos políticos
da época, em Porto da Chapada (atual Grajaú), quando a família para ali se transferiu,
instalando-se em uma fazenda, junto com os escravos, por volta de 1827. Seu irmão,
Parsondas de Carvalho7, foi um dos grandes intelectuais dos sertões maranhenses e
companheiro de andanças e estudos.

Pachêco Filho (2011), ao pesquisar a vida e obra de Carlota, diz que ela:
cresceu “entre livros”, num ambiente que “respirava cultura” e em que se
discutiam os principais acontecimentos do Brasil, do Maranhão e do mundo. O
grupo político ao qual seu pai pertenceu, liderado por Militão Bandeira, era liberal
e, no Maranhão, deu origem ao partido político Bem-te-vi, que apoiou e deu
guarida aos balaios e se constitui em vanguarda, na época. A familiaridade com os
livros, os “colóquios no recesso do lar” e a escola Normal, cursada provavelmente

6
Nomes como Manoel Nogueira da Silva, bibliotecário, Irineu Veloso, tesoureiro e Raul Pederneiras,
presidente da Associação Brasileira e Imprensa, Luiz Murat, membro da Academia Brasileira de Letras,
Senador Tobias Monteiro foram apoiadores no processo de publicação da obra de Carlota.
7
Há uma corrente de defensores de que Parsondas de Carvalho não só teria uma relação incestuosa com sua
irmã Carlota de Carvalho, mas também seria o “verdadeiro” autor da obra “O Sertão”. Sobre isso ver Dino
(2021).

68
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

em Belém, deram a Carlota Carvalho uma sólida formação intelectual e uma


inegável consciência crítica (PACHÊCO FILHO, 2011, p. 66).

Carlota teria realizado o curso Normal, em Belém, e tão logo foi nomeada, juntamente com
seu irmão Emídio, professora da ilha de Bailique (hoje território do Amapá). Tornou-se
professora de primeiras letras, lecionando Gramática, Geografia, História do Brasil e
Aritmética em um momento histórico de um “Brasil altamente preconceituoso e
discriminador para a mulher, o que não a intimidou quer como educadora, quer como
cidadã” (TEIXEIRA, 2011, p. 441).

Supõe-se que Carlota exerceu profissão durante mais de trinta anos, até o final do século
XIX, já que não se tem registro de sua presença em terras maranhenses nesse período
(FRANKLIN, 2011).

No começo do século XX, em 1907, Carlota segue para o Rio de Janeiro para fazer “estudos
especiais”, e depois retorna ao Maranhão, indo morar em Imperatriz, com o irmão
Parsondas, e juntos, teriam sido mestres-escolas (professores de instrução primária), onde
hoje se localiza o município de Amarante do Maranhão.

Em 1919, parte do Maranhão para o Rio de Janeiro “com seu maço de papel”, com
esperança de publicar Subsídios para a história e a geografia do Brasil, o que só ocorre em
1924. Na década seguinte, já no Maranhão, continua a lecionar na fazenda Campo Alegre,
pertencente a seus pais. Depois desse período, não constam mais notícias e informações de
Carlota.

3.2 Maristela de Paula Andrade, do “oco do mundo”, desbravando o sertão

Nascida em São Paulo, em 1956, anos dourados para o Brasil, sob o governo de Juscelino
Kubitschek, e da nova capital federal no centro geográfico do país. Vivia-se a promessa de
um sonho modernizador, em meio à Guerra Fria, ao som da emergente bossa-nova e do
estabelecido rock. Ano de lançamento de duas obras geniais sobre o sertão brasileiro: Morte
e vida severina, de João de Cabral Melo Neto, e de Grande Sertão: veredas, de Guimarães
Rosa.

Filha de pai militar e de mãe operária têxtil, cursou História na Universidade de São Paulo
(USP), em plena ditatura militar, formando-se em 1972. Nesse período, relata com tristeza
que muitos de seus colegas foram arrancados de sala de aula e nunca mais apareceram.
Muitos de seus colegas da Igreja Metodista foram presos e torturados, alguns chegaram a
morrer. Em relato emocionado, em 2019, relembrando esse momento trágico disse que

69
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

“uma ex-professora minha chamada escola dominical, de nome Eleni Guariba, desapareceu.
Seu corpo nunca foi encontrado”8.

Fez mestrado em Ciências Sociais, na área de Antropologia Social e Doutorado em Ciências


Humanas, também na área de Antropologia Social, ambos os cursos pela USP. É durante o
mestrado que emerge sua vontade em tornar-se “tão logo antropóloga”, e sob indicação
da professora Lux Boelitz Vidal (francesa que se tornou brasileira, antropóloga pioneira de
estudos na Amazônia, professora emérita da USP, ainda viva e em atividade) vem ao
Maranhão para estudar a implantação do ensino público pela televisão, em 1975, e decide
aqui permanecer.

Na década de 1980, se tornou professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA),


dedicando décadas ao ensino, pesquisa e extensão na Graduação e Pós-graduação em
Ciências Sociais. Orientou várias pesquisas e trabalhos, gerações de estudantes das Ciências
Sociais9. Em 1992, fundou junto com outros colegas de área, o Grupo de Estudos Rurais e
Urbanos (GERUR), que desde o início de 2000, vincula-se ao Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais da UFMA, e continua sob sua coordenação. Autora de inúmeros artigos
e várias obras sobre campesinato maranhense, entre elas “Terra de índio” (1999), “Fome
de Farinha” (2006), Fronteiras (2009), “Os gaúchos descobrem o Brasil (2008), “Os
herdeiros de Zeferino” (2013), “Gás, fumaça e zoada” (2017). Atualmente, é aposentada
pela UFMA.

Casou-se com o cineasta maranhense Murilo Santos, companheiro de trabalhos de pesquisa


antropológica sobre o modo de vida camponês no Maranhão, com quem teve dois filhos,
Camila e Danilo. Atualmente, é casada com o antropólogo maranhense Benedito de Souza
Filho, que também se dedica aos estudos de campesinato e comunidades tradicionais, a
partir de vários contextos emblemáticos no Maranhão, e com ele vem realizando uma série
de trabalhos antropológicos destacáveis. Desde 2020, está em Portugal, próximo à família.

Antropóloga atuante, desde a década de 1970, integrou e apoiou uma série de instituições
e projetos voltados à questão da terra, campesinato e das hoje chamadas comunidades
tradicionais no Maranhão, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Comissão de Direitos
Humanos, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), Movimento Interestadual de Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).

8
Disponível em <http://aprumasecaosindical.org/2019/04/08/saudades-de-mamae-professora-da-ufma-narra-
luta-contra-ditadura-ao-lado-de-sua-mae-durante-anos-de-chumbo/>. Acesso em 20 de julho de 2021.
9
Maristela de Paula Andrade foi minha professora em várias disciplinas nos cursos de graduação e de
mestrado em Ciências Sociais (UFMA), sendo minha orientadora nos dois trabalhos finais dos cursos, com a
temática da resistência camponesa nos contextos de expansão do Centro de Lançamento de Foguetes em
território quilombola, no povoado Baracatatiua, em Alcântara – MA, em 2010, e da implantação de
termelétricas a gás natural em território de comunidades tradicionais, na região do Médio Mearim, MA, em
Demanda, no município de Santo Antônio dos Lopes, em 2015.

70
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Foi no contexto da sua assessoria na CPT, como coordenadora de uma ampla pesquisa
sobre as transformações econômicas e sociais do campo maranhense, a convite do Padre
Victor Asselin, que emergiu sua pesquisa sobre “Projetos Agropecuários contra a Agricultura
camponesa”, fruto de seu trabalho de campo nos municípios de Riachão e Balsas, no sertão
sul do Estado, área de colonização antiga que estava sendo penetrada naquele momento
por projetos agrícolas em larga escala.

Quando ali chegou era “a mulher que saiu do oco do mundo” descobrindo o sertão Sul
maranhense, o “mesmo” sertão estudado por Carlota Carvalho, em fins do século XIX e
meados do XX, e por Maria do Socorro Coelho Cabral, décadas a seguir.

3.3 Maria do Socorro Coelho Cabral, indagando sobre o sertão

Em 1946, o mundo acabava de sair da II Guerra Mundial. Tivemos o primeiro computador, a


primeira edição do Festival de Cinema de Cannes. No Brasil, era o fim da ditadura do Estado
Novo, de Getúlio Vargas e início do governo de Gaspar Dutra, com promulgação de uma
Nova Constituição, com “ares democráticos”, mas marcado por uma política de
perseguição ao comunismo e às organizações sindicais. Entrávamos na chamada Guerra
Fria. Naquele ano, na cidade de Balsas, nasceu Maria do Socorro Coelho Cabral, em pleno
sertão Sul maranhense.

Formou-se, assim, como nossa última autora, em História, pela Universidade Federal de
Goiás, em Goiânia. Conhecida no meio acadêmico como Socorro Cabral foi professora do
Curso de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) durante 25 anos.

A historiadora Regina Helena Martins de Faria (2008) conta um pouco sobre a professora
Socorro Cabral, indicando que “sua atuação foi importante para sairmos de uma história
tipicamente rankeana10 para uma maneira mais crítica de trabalhar o conhecimento
histórico” (p.17).

Como amiga e colega de profissão, Faria (2008) continua:


Sou testemunha de como contribuiu para a formação de uma geração de
professores e pesquisadores de história que estão nas instituições de ensino
superior e médio, assim como em órgãos vinculados à cultura do Estado do
Maranhão. Com seu jeitinho manso, doce, mas severo, partilhou com alunos e
colegas conhecimentos (FARIA, 2008, p. 17).

Fez mestrado em História na Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo, e doutorado


pela Universidade de São Paulo. Autora de trabalhos sobre educação maranhense, mas sua
obra de referência é Caminhos do gado, fruto de sua tese de doutorado, em 1992.

10
Referente à historiografia tradicional, criada pelo historiador alemão Leopold Von Ranke, predominante no
século XIX e início do século XX, que privilegiava grandes eventos e personagens.

71
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Aposentou-se precocemente, devido a problemas de saúde, mas continuou a orientar


trabalhos e a participar de bancas. Em 2001, mesmo doente, dedicou-se ainda mais à sua
religiosidade, atuando fortemente no seio da Igreja Católica. Biografou a vida de Ângelo La
Salandra, padre comboniano que marcou a história de Balsas – MA, com quem tinha grande
proximidade, sendo sua fiel discípula. Toda a renda da venda do livro Pe. Ângelo La Salandra
– Uma Vida, Uma Missão foi doada para obras sociais.

Se “Sertão é quando menos se espera”, nas palavras de Guimarães Rosa, assim também é
a vida, é a morte, e precocemente, em um dia de Natal, no dia 25 de dezembro de 2002, aos
56 anos, Socorro Cabral encantou-se.

4 Três obras sobre os sertões maranhenses: breves incursões11

4.1 “O sertão: subsídios para a história e a geografia do Brasil”, de Carlota


Carvalho

“Transpondo o Parnaíba para situar fazendas de criação de gados, os ocupantes


extasiados, vendo o esplendor e a exuberância da plaga, nominaram-na os pastos
bons. Sobretudo, encantava-os a beleza dos campos, a suavidade do clima, a
superabundância de nascentes de água corrente e perenes, e a grande quantidade
de frutas naturais do país, saborosas como o bacuri nutritivas como o pequi e a
bacaba. Empreendedores audazes caminhariam para o poente até encontrá-lo”
(Carlota Carvalho, 2011, pp. 96-97).

O sertão, de Carlota Carvalho, é fundamental para o processo de compreensão do sertão


maranhense dos fins do século XIX e meados do XX.

A autora construiu em sua narrativa, ancorada em subsídios geográficos e históricos, uma


outra imagem de sertão que se opõe àquela cristalizada (principalmente) com a obra de
Euclides da Cunha, Os sertões, publicado em 1902, que pressupunha o sertão como uma
paisagem hostil, com sol inclemente, semiárido, com sub-raças sertanejas do Brasil,
confundido com o que se estabeleceu como imagem de Nordeste. Para Albuquerque
(2019), o livro Os sertões, dessa forma, “torna-se uma fonte permanente de imagens e
textos, sempre consultada quando se quiser dizer e fazer ver o sertão” (p. 25).

Diferentemente, Carlota, em meados do século XX, com sua obra, singulariza o


entendimento de “sertão”, constrói outras imagens inversas àquelas, desta feita, imagens
de fertilidade, de exuberância, de abundância de campos e águas, de pastos bons para
criação do gado e povoação para além do litoral.

11
Na presente sessão apresentaremos as obras por ordem temporal de debates do povoamento,
colonização e expansão no processo de conformação territorial do sertão sul maranhense.

72
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Nesse sentido, podemos localizar em Carlota, um pioneirismo e diferenciação do olhar sobre


o território brasileiro, em especial sobre o sertão, já que somente uma década depois (pelas
informações biográficas a obra já tinha sido finalizada em 1919, quando ela viaja para o Rio
de Janeiro), a literatura nordestina e o romance de 30 consolidarão “as imagens euclidianas
tanto em A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, quanto em O Quinze (1930), de
Rachel de Queiroz, obras que serão muito importantes nesse processo de captura do sertão
pelo regionalismo nordestino (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 25).

Carlota divide a obra em três grandes partes. A primeira trata, sobretudo, de questões
relativas ao processo de constituição do sertão de Pastos Bons. Inicialmente, realiza uma
caracterização geomorfológica e sócio-histórica, destacando recursos nativos marcantes
(fertilidade e amplidão dos campos, abundância de águas, flora etc.) da paisagem, descreve
o processo de conquista e colonização sobre o território, antes ocupado por autóctones,
que foram dizimados “nesse extermínio, degolavam e sangravam sem dó, sem piedade,
sem consideração a sexo ou idade” (CARVALHO, 2011, p. 107). Nesse sentido, argumenta
sobre o extermínio indígena brasileiro reproduzido em território do sertão maranhense,
indicando não apenas um sentido de continuidade, mas também de especificidade,
atentando para os processos locais inseridos em uma história mais ampla.

Historiciza, brevemente, sobre a fundação dos primeiros núcleos populacionais, de vilas


como Riachão, Porto da Chapada, Carolina, Boa Vista do Tocantins, identificando sua
constituição como um produto da colonização, marcada por “exploradores, apoiados pela
força militar de Pastos Bons, que colaborava na conquista, tomaram terras em todas as
direções (CARVALHO, 2011, p. 109). Destaca eventos políticos importantes na história do
Maranhão, como a “adesão” à Independência do Brasil (1823) e à Balaiada (1838-1841)12.

A segunda parte tem um teor mais descritivo, já sinalizado em seu título “Descrições locais
e História”, em que a autora perpassa por várias regiões, destacando características
geográficas, histórias locais, para além dos sertões maranhenses, como é o caso de Marabá,
no Estado do Pará.

A terceira e última parte trata de um relato pessoal de Carlota da viagem que fez no navio a
vapor “Acre”, do Maranhão ao Rio de Janeiro, em 1919, quando lá pretendia publicar sua
obra. Na viagem, como ela mesma nos conta, dilatava a vista contemplando a vastidão do
oceano. Na primeira parada em terra, no Ceará, a imagem do sertão do Maranhão a
acompanhava quando viu de longe aquelas “serras isoladas, ladeadas de campos”
(CARVALHO, 2011, p. 336). Atravessa os litorais do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Bahia até chegar ao Rio de Janeiro, e em que cada lugar vai
descrendo a atmosfera dessa experiência, costurando-a às memórias pessoais e aos
eventos históricos.

12
Trata-se de um evento de convulsão social no Maranhão Imperial, mas também de um debate que integra
várias versões sobre as causas e motivações da revolta popular. Sobre isso ver Assunção (2008).

73
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

4.2 “Caminhos do gado: conquista e ocupação do sul do Maranhão”, de


Socorro Cabral

“Queremos indagar sobre a corrente povoadora, não a que deu origem à


organização da grande propriedade agrícola e à construção do rico patrimônio
cultural que fez de São Luís a Atenas Brasileira, mas outra, muito menos conhecida,
que partiu do interior (do rio São Francisco) e se espalhou pelos sertões de Pastos
Bons, forjando uma sociedade inicialmente rústica e frugal” (CABRAL, 2008, p. 24)

Caminhos do gado, de autoria da historiadora maranhense Maria do Socorro Coelho Cabral


resulta de sua tese de doutoramento, em 1992, em que busca compreender o Sul do
Maranhão, através do debate sobre as frentes de povoamento do território maranhense (e
brasileiro).

Busca nesse sentido, visibilizar outro processo histórico de conformação territorial, marcado
por características próprias, diferente do processo de colonização e povoamento que
ocorreu no litoral maranhense, através da frente de expansão litorânea. Tal processo se
refere à frente de expansão que se espalha pelos sertões maranhenses.

A obra, portanto, é composta de três partes. A primeira analisa o desenvolvimento social e


político forjado na colonização maranhense, através de uma expansão empreendida pelo
Estado colonizador e pela Igreja Católica na porção litorânea do Estado. Discute sobre a
valorização e exploração da terra que servia a determinado projeto econômico. Sua análise
pontua criticamente duas questões importantes: a primeira é sobre o modo como a história
do Maranhão colonial é descrita pelos historiadores, pautada em uma “narrativa tradicional,
cronológica e homogeneizadora” (CABRAL, 2008, p. 47), que privilegia a visão do
colonizador. A segunda questão é sua crítica sobre um tratamento uniforme sobre o
processo de ocupação do vasto espaço geográfico maranhense.

A segunda parte centraliza esforços de análise sobre a frente de expansão que sai da faixa
litorânea e adentra o interior maranhense, por meio da corrente pastoril advinda da Bahia,
devassando e ocupando o sertão sul maranhense. Uma característica marcante da
irradiação dessa pecuária baiana, que ao alcançar o rio São Francisco direcionou-se via
interior do Piauí e Ceará, atingindo o Maranhão, é o impulso do empreendimento da
iniciativa particular, diferente da colonização e povoamento litorâneos.

Ao recuperar o processo de povoamento dos sertões maranhenses, em especial na região


dos Pastos Bons dialoga com vários autores, entre eles, Carlota Carvalho, destacando as
condições naturais dos “campos contíguos cobertos de exuberantes e perenes rios, com
clima ameno e saudável” (CABRAL, 2008, p. 81), que se mostraram a causa e o motivo da
escolha do lugar, impactando no desenvolvimento da pecuária extensiva e itinerante.
Socorro Cabral observa que o outro lado da paisagem exuberante dos Pastos Bons é
marcado por violência e por inúmeros conflitos com as populações indígenas.

74
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Destaca, na terceira parte, a formação econômica e social do sertão maranhense,


identificando a estrutura e organização conformada social, política e culturalmente em
torno das fazendas e da criação de gado. A fazenda de gado é entendida pela autora como
a unidade fundamental complexa de povoamento, por ser unidade econômica e social,
balizando os núcleos urbanos e a vida da população existente. Compara, nesse sentido, a
fase inicial da ocupação, por volta de 1750, e o período final do devassamento, em 1815,
observando o crescimento e a distribuição das fazendas pelas campinas sul-maranhenses
dentro de uma estrutura agrária com tendência latifundiarista. Enfatiza, portanto, que a
fazenda de gado foi responsável por definir o caráter do povoamento e determinar a forma
de ocupação do solo, constituindo, dessa forma, o modelo dominante de ocupação do
território.

4.3 “Os gaúchos descobrem o Brasil: projetos agropecuários contra a


agricultura camponesa”, de Paula Andrade

“Com relação ao Sul do Maranhão, nesta região, a partir de 1974, passam a se


instalar projetos agropecuários em larga escala, com bases empresariais, em áreas
tradicionalmente ocupadas. A entrada dos gaúchos na área passa pela compra de
terras, muito embora a ocupação dos Gerais de Balsas, primeiramente através da
grilagem, de depois com o aval do Estado, tenha sido sua mola mestra” (PAULA
ANDRADE, 2008, p. 100).

Esta obra avança na compreensão do processo de constituição do sertão sul maranhense,


pois analisa, a partir de uma perspectiva antropológica, uma nova conformação territorial
através da expansão do capital naquela região, a partir de 1970, momento em que os
conflitos territoriais no Maranhão se tornam agudos.

Por meio da implantação de projetos agropecuários, e de produção rizícola em larga escala,


empreendido por colonos oriundos do Sul do Brasil – genericamente chamados de gaúchos
–, esse movimento de penetração do capital sobre o território sul maranhense é
possibilitado pela intervenção do Estado, mediante seu ideário moderno de colonização,
incentivando oficialmente “para a mobilidade de um tipo de produtor que é visto como mais
“moderno”, em oposição ao “atrasado” homem do sertão e a sua agricultura de toco13”
(PAULA ANDRADE, 2008, p. 20).

Paula Andrade divide seu escrito em duas partes. A primeira apresenta as condições de
pesquisa de campo na região do sul maranhense, no período entre junho de 1979 e outubro
de 1980, no município de Riachão. Além disso, apresenta a colonização sul maranhense
através do recorte espacial dos povoados da área nomeada Lapa, buscando compreender

13
Também chamada de roça de coivara ou roça itinerante, trata-se do sistema de cultivo baseada em
maneiras tradicionais de preparo e plantio, em que há derrubada e a queima da área, e logo após o plantio e
posterior colheita da produção ocorre o pousio ou descanso da terra.

75
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

não só a diferenciação interna e a especificidade desse tipo de campesinato maranhense,


mas também os impactos e tensões criados com a implantação dos projetos agropecuários
dirigidos pelo Estado e por setores empresariais. A autora apresenta indicações, ancoradas
em seus dados de pesquisa, sobre os processos de apropriação privada de terras devolutas
e de expropriação camponesa que foram produzidos nesse novo contexto.

Paula Andrade destaca os sistemas de classificação dos recursos naturais e dos


ecossistemas informados e utilizados pelos trabalhadores rurais ao longo das estações e do
calendário agrícola – chapada, carrasco, barraria, brejaria –, organizando suas atividades de
forma combinada entre agricultura e criação. Além disso, indica as formas de apropriação
da terra e regimes de propriedade no complexo território forjado pelas populações
camponesas que naquele momento se confrontavam com as novas lógicas de uso e
propriedade do grande capital com a chegada dos chamados gaúchos.

A segunda parte se dedica à compreensão da modernização da agricultura no Sul


maranhense forjada com a chegada dos gaúchos, buscando entender os discursos,
representações e ideologias que sustentavam tal experiência. Coloca-nos, com isso, duas
questões sobre os programas de colonização e planos governamentais, desenvolvidos a
partir da década de 1970: uma diz respeito ao peso simbólico da introdução de maquinário
como forma de superar o “atraso” da agricultura; a segunda questão remete à visão sobre
a forma e ao modelo da pequena de exploração de base familiar, entendida como insegura
e imprecisa.

Ao discorrer sobre a chegada dos chamados gaúchos, analisa o processo de ocupação das
terras no sul maranhense, já conformada como uma área tradicional de pecuária tradicional
e com um campesinato enraizado ao longo de dois séculos. A autora chama atenção que o
termo gaúchos se estabeleceu como uma categoria genérica para classificar os produtores
agrícolas advindos de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e, sobretudo, do Rio
Grande do Sul. Tal “chegada” dos gaúchos foi intermediada por uma empresa particular de
colonização, com certa permissividade do Estado, para distribuir áreas devolutas (no
município de Balsas), o que resultou em implicações sociais relacionadas à obtenção do
título de propriedade das terras, apossamento ilegal e forjamento de títulos, produzindo
uma situação de conflito e violência por meio da grilagem de terras.

Se pensarmos atualmente o Sul maranhense, como região que se consolidou como grande
produtora/exportadora de soja, e todas as problemáticas socioambientais relacionadas, a
obra de Paula Andrade nos possibilita perceber as primeiras linhas desse desenvolvimento
com sua face devastadora.

5 Mulheres e seus escritos sobre o sertão sul maranhense: por uma


compreensão compósita

76
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

As três obras escritas pelas autoras apresentadas sobre o sertão sul maranhense nos levam
a um primeira questão inicial: a do artesanato intelectual. Essa noção, cunhada por Mills
(2009) nos possibilita pensar no processo da construção de agentes que pensam o social,
em especial, o cientista social, e na não separação de seu trabalho intelectual (acadêmico)
de suas vidas pessoais, na medida em que usam (mesmo sem o saber) uma coisa para
enriquecimento da outra.

Podemos inferir, nesse sentido, que Carlota tenha produzido a obra O sertão no seu
exercício professoral, na condição de pesquisadora e de professora, costurando sua história
particular, como mulher sertaneja e a história do seu lugar compreendida em um processo
mais amplo. Sobre isso, Teixeira (2011) aponta que:
Não foi cotejando obra dos eruditos passados ou documentos oficiais, mas no
exercício de sua atividade no magistério que a autora conseguiu levantar
informações contidas na sua obra, daí a originalidade e o sabor literário da mesma.
O Sertão sem perder os requisitos de obra informativa e polêmica, foge com
dignidade e pudor da bitola acadêmica, misturando vida vivida e história pessoal
com as informações essenciais do conteúdo no campo da história, da geografia e
mesmo da política (TEIXEIRA, 2011, p. 442).

Socorro Cabral, em Caminhos do gado, já no âmbito das exigências acadêmicas, elege um


objeto de estudo que se liga diretamente à sua própria condição existencial, como uma
mulher que nasce no sertão sul maranhense e com ele mantém fortes vínculos afetivos,
sociais e intelectuais ao longo de sua trajetória, mesmo que tenha saído para estudar em
centros importantes do país, e atuando profissionalmente na capital do Estado, São Luís.
Ou seja, na medida que pesquisa academicamente os processos de conformação territorial
do sertão sul maranhense, compreende o passado do seu lugar, da sua região, e com isso,
visibiliza a existência (do seu eu/do seu território) na historiografia maranhense.

Em Os gaúchos descobrem o Brasil, Paula Andrade, dá-nos mais pistas sobre seu artesanato
intelectual, haja vista, a publicização dos antecedentes e condições de pesquisa no trabalho
antropológico. A autora nos relata que vir ao Maranhão seria parte constitutiva do “seu
transformar-se em antropóloga”, e de forma específica, seu estudo na área do sertão sul
maranhense fornece não somente a compreensão de um novo contexto de conformação
territorial, decorrente de transformações na estrutura agrária maranhense, mas também as
bases inaugurais do seu ofício de antropóloga.

À luz da noção de artesanato intelectual, que é “o centro de você mesmo” (MILLS, 2008, p.
22), compreendemos os escritos dessas mulheres como produtos intelectuais sobre o sertão
sul maranhense, marcados significativamente pela experiência (intelectual/afetiva/histórica)
com o sertão sul maranhense. Nesse sentido, Mills (2008) nos ajuda a estabelecer essa
relação quando diz que “quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio
à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício” (p. 22).

Centralmente, as obras nos possibilitam uma compreensão compósita do processo


conformação territorial e dos projetos de colonização fundiária no sertão sul maranhense,

77
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

atravessados por conflitos e múltiplas violências, empreendidos por inúmeros atores e


agentes, sobretudo, pelo Estado, dos finais do século XIX e ao longo do século XX até a
década de 1980. Quando as lemos de forma conjunta conseguimos reconstituir duplamente
esse processo: tanto do ponto de vista histórico, mas também intelectual.

Demonstram – cada uma à sua maneira, em seu tempo, em seus limites e especificidades
de interesse – as formas em que a expansão e devassamento sobre o sertão sul maranhense
provocaram “choques territoriais, e com isso novas ondas de territorialização” (LITLLE,
2002), por partes dos diferentes grupos sociais ali presentes.

Ainda em sentido compósito, as obras podem nos levar à reflexão sobre a visibilidade de
subalternidades: o reconhecimento social da pesquisa/escrita feminina de mulheres, que
são professoras e pesquisadoras, como é o caso das nossas autoras pensadas em seus
respectivos momentos históricos.

Carlota, por exemplo, é alvo de duro preconceito por parte de defensores que defendem
que ela não teria sido capaz de escrever tal obra.
Não passa de uma pseudo literata que por si só demitologiza o mito de escritora.
Não existe, com ou sem riqueza de detalhes, em termos de biografia, dados
pessoais ou qualquer outra informação ao alcance de pesquisa, capazes de nos
levar às primeiras fraldas da solteirona que viveu anos e mais anos inteiramente
confinada à sombra do iluminado irmão, escritor festejado, autêntico guardião da
cultura de nossos sertões (DINO, p. 56).

Carlota, então, longe de ser reconhecida como autora de O Sertão, é destituída por Dino
(2021) de sua capacidade intelectual para escrever e, segundo sua visão, tal obra só teria
sido possível ser escrita por um homem, no caso, o irmão de Carlota, Parsondas de Carvalho.
Avança em sua feroz crítica e diz “O Sertão, tão polêmico, tão másculo, mas despido do
menor traço feminino” (DINO, 2021, p. 57), como se a escrita produzida por mulheres fosse,
de forma determinista, frágil, fraca, insignificante em oposição a uma escrita realizada por
homens.

Por outro lado, o mesmo autor, ainda tratando de Carlota Carvalho indica Socorro Cabral
“como respeitável escritora” a produzir informações com propriedade sobre a vida e obra
de Carlota, quando do seu estudo sobre a colonização e povoamento do sertão sul
maranhense, tema também explorado por Carlota.

Paula Andrade, no seu processo de pesquisa/escrita, no âmbito interno das relações


construídas com os seus pesquisados, nos relata uma série de representações negativas
sobre sua condição de mulher e pesquisadora, naquele espaço de interconhecimento.
Há uma identificação negativa, expressa pela representação da “mulher que saiu
do oco do mundo”. Neste caso, os trabalhadores identificam-na (a pesquisadora
Paula Andrade) pelo que falta, ou seja, pelo não reconhecimento de seu local de
moradia, de sua rede de parentes. O “oco do mundo” significaria o vazio em
termos sociais, um não-lugar e, portanto, o local de pessoas cujo papel social não
conseguem identificar. Ainda nesta linha de pensamento, os trabalhadores
procuram classificar a pesquisadora pelo seu oposto simétrico, ou seja, o de

78
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

“homem disfarçado de mulher”, colocando em questão até mesmo a condição


aparentemente inquestionável com que ela se apresenta ao grupo: a de mulher
(PAULA ANDRADE, 2008, p. 52).

Embora, a autora explique os sentidos de tais representações no contexto de seu estudo,


serve-nos para pensar sobre a problemática do reconhecimento e respeito social sobre
mulheres que pesquisam e escrevem.

A escrita dessas mulheres tem traço comum interessante – que aqui indicamos inicialmente,
e que poderá ser explorado em outros trabalhos – a utilização de imagens. Entre as palavras
e as ideias que vão preenchendo o papel de seus escritos, as autoras trazem para seus
textos, imagens fotográficas e cartográficas, que se mostram fundamentais para
fundamentar e enriquecer suas análises.

Carlota inseriu, por exemplo, além de cartas topográficas, mapas e fotografias sobre índios
(Apiacás do Pará e Anambés de Tocantins), sobre paisagem de povoados e habitações.
Socorro Cabral, não somente elegeu imagens cartográficas, como produziu de forma
autoral os mapas que são fundamentais para dar sentido visual aos caminhos e rotas das
frentes de expansão pelo sertão sul maranhense. Paula Andrade, apresenta fotografias dos
trabalhadores rurais da localidade pesquisada, região do Capão Solteiro, em Riachão, além
de mapas por ela produzidos através de croquis elaborados durante a pesquisa.

As obras dessas mulheres ganham visibilidade acadêmica somente a partir dos anos 200014,
indicando não somente um reconhecimento acadêmico tardio, mas, através de suas obras,
importância da temática do sertão sul maranhense na história do Maranhão. Sobre este
último aspecto, é importante pontuar que coincide com a efervescência do debate sobre a
proposta de criação do Estado do Maranhão do Sul. Em 2007, foi aprovado plebiscito para
a sua criação (PDL 2/07), pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Quando a escrita dessas mulheres se torna reconhecida social e academicamente produz o


efeito da representatividade em nós, impulsionando-nos a realizar uma primeira incursão em
suas obras, pensadas de forma compósita, e a escrever este artigo, permitindo-nos,
enquanto mulheres, pesquisadoras e atuantes, seja como aluna ou como professora,
conhecer um pouco mais do sertão sul maranhense. O sertão, parece-nos, vai tornando-se
cada vez mais vasto crescendo dentro da gente.

14
No ano de 2000 é lançada a 2ª edição da obra de Carlota, em 2011, a 3ª edição, a qual nos baseamos. Em
2008, Socorro Cabral e Paula Andrade são publicadas através de coleções de obras acadêmicas, fruto de
esforços coletivos de pesquisadores maranhenses da Universidade Federal do Maranhão, possibilitados por
apoio financeiro de órgãos de fomento de pesquisa. O livro de Socorro Cabral, em sua 2º edição (a 1º foi em
1992, ano de publicação de sua tese de doutorado), saiu como 5º volume da Coleção Humanidades. A
pesquisa de mestrado de Paula Andrade transformou-se em livro pela Coleção Antropologia e Campesinato no
Maranhão, em seu 3º volume.

79
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Referências

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de Adalberto Franklin e João Renôr F. de Carvalho). 3. ed. rev. e ampl. Teresina: EDUFPI, 2011.
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Caminhos do gado: conquista e ocupação do sul do Maranhão. São Luís: Edufma, 2008.
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para a História e a Geografia do Brasil. Organização e notas de Adalberto Franklin e João Renôr F. de
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Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de
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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

OS TENETEHARA-GUAJAJARA
E O SERTÃO: CONFLITOS E
FRONTEIRAS

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

OS TENETEHARA-GUAJAJARA E O SERTÃO: CONFLITOS E FRONTEIRAS

Carlos Eduardo Penha Everton1


Aretusa Brito Ribeiro Penha Everton2

1 Introdução

O presente momento é bastante simbólico, no conjunto das lutas dos povos indígenas por
todo o território brasileiro, por seus direitos em geral, mas – dramaticamente – pela própria
possibilidade de existirem no mundo. O site de notícias G13 assim noticiava, recentemente
(Junho de 2021) que:
Indígenas de ao menos 7 estados do Brasil protestam nesta quarta-feira (30)
contra o projeto de lei 490, que dificulta a demarcação de terras. Além disso,
também está previsto o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a
ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o
povo Xokleng, referente à TI Ibirama-La Klãnõ. A decisão pode ser usada como
referência para outros casos no Brasil.

Após aprovação da legislação presente na Constituição Brasileira de 1988, no que se refere


aos povos indígenas do Brasil, talvez nunca se tenha observado de forma tão clara um
ataque tão poderoso a essas populações. Há uma confluência de forças econômicas
(sobretudo ligadas ao agronegócio e à mineração), políticas (com o Estado assumindo, tal
como parte interessada, desejo de livre disposição sobre os territórios indígenas) e sociais
que avança sobre seus direitos, sua cultura e modo de vida. Resta a esses povos a grande
luta pela existência.

Não é algo novo o que se observa no trecho da notícia que foi destacado. Na República,
para que se tenha um melhor parâmetro, para nenhum governo, de quaisquer orientações
ou espectros políticos, as pautas relacionadas aos povos indígenas estiveram na ordem do
dia, nunca foram tratadas como prioritárias. Fazendo-se um (necessário) recuo temporal,
também se percebe que a problemática das disputas de terra/território entre outros
agentes sociais e/ou políticos e os povos indígenas que já habitavam os espaços do território
brasileiro se estendeu pelas fases colonial e imperial.

De maneiras diversas, mas por razões semelhantes, foram inúmeros os episódios em que os
indígenas precisaram encontrar formas de resistir à presença de sujeitos, estranhos ao seu

1 Doutorando em História pelo Programa PPGHIST, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).


Professor do IFMA Campus Barra do Corda. Email: eduardo.everton@ifma.edu.br
2 Mestra em História pelo Programa PPGHIST, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Professora
do IFMA Campus Grajaú. Email: aretusa.penha@ifma.edu.br
3 Disponível em https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/06/30/indigenas-protestam-em-ao-menos-7-
estados-contra-projeto-que-dificulta-demarcacao-de-terras.ghtml. Acesso em 18/08/2020.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

lugar, que adentravam seus territórios. Essa resistência se estabelecia, não raro, com atos
de violência, linguagem que traduzia uma clara mensagem de que aquela presença era
indesejada e inconveniente e o seu perigo deveria ser repelido.

No entanto, o avanço nos estudos acerca da temática indígena na historiografia, sobretudo


com os autores ligados à chamada Nova História Indígena, tem demonstrado outras formas
de agência dessas populações, através das quais procuravam resistir. Além de atos de
violência, a negociação, em vários níveis, das relações cotidianas nos contatos entre
indígenas e não indígenas, emerge como um dado interessante.

Este tipo de visão é interessante – e importante – porque desloca o olhar mais tradicional
de que os indígenas são sujeitos cuja passividade e incapacidade os impedem de agir de
formas diversas e assertivas, diante de sua realidade, e

O Brasil, quando este texto foi redigido, ano 2021, continua a ser, como se costuma alardear
(até com um orgulhoso senso comum) “um caldeirão” de muitos ingredientes étnicos,
culturais, e formações sócio-históricas, além de paisagens (naturais ou erigidas pela mão
humana) com imensa diversidade. A heterogeneidade vista em quase tudo que dialoga com
as características desse país é, em muitas oportunidades, evocada como uma espécie de
“providência” – “mais uma!” – desta terra “abençoada por Deus”.

Tomando-se, no entanto, esta questão por outros vieses que escapem à celebração dessa
dessemelhança entre lugares e tipos ao longo do território, a variabilidade de tudo o que se
mencionou, por vezes acabou se constituindo como um sério entrave à constituição de um
ideal de nacionalidade (e ainda subsiste essa problemática) ou de alguma generalidade, no
que tange aos elementos que se pretendem “brasileiros”, dos ditos símbolos nacionais aos
indivíduos que seriam os portadores ou representantes do que seria esse “ser nacional”.

As respostas a esse “dilema” foram, também, dadas em diversos campos, com várias ações
e níveis de aprofundamento/assimilação pela dita sociedade nacional. Neste artigo, será
abordado o trajeto existente entre a necessidade e estratégias de construção, para o Brasil,
de um elemento de nacionalidade, a partir das primeiras décadas do século XIX (o que se
verifica, neste particular, na produção literária do chamado Romantismo Indianista e de
obras ligadas ao IHGB), com o uso do indígena como expressão de pertença à terra,
heroísmo e virtude e o caso do cacique João Caburé ou Caiuré Imana4, do Povo Tenetehara-
Guajajara, através da obra do escritor Olímpio Cruz, “Caiuré Imana, o Cacique Rebelde”.

Embora haja um período de mais de um século entre essa obra de Cruz, que foi publicada
em 1982, e os escritos referentes aos Oitocentos, a análise da representação contida em
cada momento nos interessa como sumário de formas de representação dos povos

4 Principal liderança entre os Tenetehara-Guajajara, no contexto do Conflito de Alto Alegre, ocorrido em


Barra do Corda, em 1901.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

indígenas ao longo do processo de tentativas de sua incorporação e assimilação à dita


sociedade nacional brasileira.

Para esta tarefa, será realizada a análise de algumas obras e autores considerados mais
representativos do Romantismo Indianista5, bem como de analistas que se ocuparam de
estudar a produção do IHGB acerca da maneira como foram realizadas as construções e
representações acerca “do indígena” enquanto elemento genérico de seus escritos. Por
fim, essa produção será confrontada e comparada com o perfil traçado por Cruz sobre
Caiuré Imana.

2 Compreendendo o surgimento do “Brasil-Estado” e suas particularidades

Um exame rápido e superficial acerca das características dos países que se formaram na
América Latina e sobre os processos que conduziram às suas emancipações políticas, nos
mostrará, de maneira simples e definitiva, que há notável diferença entre as nações que
emergiram da colonização hispânica e o Brasil, antes América Portuguesa.

Apesar de lhes serem pontos de intersecção o passado indígena, o subdesenvolvimento, a


dependência externa e um conjunto de problemas de ordem política posteriores à
emancipação, há que se reconhecer que, a começar pelo processo de independência
política, passando pela fragmentação político-territorial e características dos arranjos que se
formaram no pós-independência, as diferenças entre o Brasil e os demais Estados latino-
americanos são fato inconteste.

Este artigo não tem a finalidade central de fazer qualquer tipo de aprofundamento teórico
na confrontação/comparação entre essas duas realidades, mas a referência a tal diversidade
de estruturas ganha relevância se compreendemos que o Brasil monárquico (não
fragmentado territorialmente e com um arcabouço latifundiário, escravista, agroexportador
e ainda vinculado a Portugal), pelo próprio trajeto emancipatório e o que dele derivou, surge
como um país diferente dos demais. Isso, entre outras coisas, impacta, de forma clara e
decisiva, questões como a da busca por uma identidade nacional, uma das raízes da
temática sob a qual trata este texto.

Costa (1999) traçou em sua obra um perfil de todo o trajeto que resultou na emancipação
política do Brasil e, mesmo antes de adentrar o caso específico desse país, já apontava para
a conjuntura em que se desenrolaram os movimentos de independência na América a partir

5 Duas obras serão aqui utilizadas como referência desse pensamento: O poema lírico I-Juca Pirama (1851),
de autoria de Gonçalves Dias, e o romance O Guarani (1857), escrito por José de Alencar.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

da segunda metade do século XVIII, destacando-se o esvaziamento do Antigo Sistema


Colonial6, que passava a ser alvo de duras críticas.

As críticas à continuidade das estruturas montadas para a manutenção daquele regime


partiam de elementos e lugares diversos. O advento, no século das luzes, de uma nova
dinâmica das relações capitalistas de produção – com a Revolução Industrial – e a
propagação de ideias liberais acabaram por ter ecos variados e que contribuíram para que
aquele Sistema se tornasse objeto de vários opositores.

Primeiramente, como parte integrante do próprio “Ancien Régime”, como Hobsbamw


(2000) afirma terem os intelectuais, pós século XVIII, definido o conjunto de características
políticas, econômicas, sociais e ideológicas que dava suporte ao Absolutismo, o Antigo
Sistema Colonial sofria críticas de filósofos, economistas e da intelectualidade “ilustrada”
por estar presente naquela estrutura.

Na Europa, advogava-se (para embasar as críticas), segundo Costa (1999, p.22), o


anacronismo do Sistema e o quanto se configurava, àquela altura, como de altíssimo custo
de manutenção e sem um retorno plenamente vantajoso ao empresariado – parceiro de
primeira hora dos Estados colonialistas naquela empreitada – e aos próprios Estados, já que
a preservação do controle dessas áreas demandava investimentos vultosos. A historiadora
afirma que:
A crise do sistema colonial coincidiu com a crise das formas absolutistas de
governo. A crítica das instituições políticas e religiosas, as novas doutrinas sobre o
contrato social, a crença na existência de direitos naturais do homem, as novas
teses sobre as vantagens das formas representativas de governo, as ideias sobre a
soberania da nação e a supremacia das leis, os princípios da igualdade de todos
perante a lei, a valorização da liberdade em todas as suas manifestações –
característicos do novo ideário burguês – faziam parte de um amplo movimento
que contestava as formas tradicionais de poder e de organização social. O novo
instrumental crítico elaborado na Europa na fase que culminou na Revolução
Francesa iria fornecer os argumentos teóricos de que necessitavam as populações
coloniais para justificar sua rebeldia.

Como se pode depreender, a partir do que afirma Costa (1999), no caso da América, talvez
haja uma complexidade maior quanto às possibilidades de compreensão desse processo.
Isso decorre da coexistência de algumas aspirações mais genéricas, ou seja, verificáveis em
quase todo o continente (como o desejo de liberdade econômica e da autonomia política
estimulados pelo ideário liberal burguês que aportava nos centros mais importantes e
bafejados pelo próprio movimento em marcha no Velho Mundo), com outras mais
subjetivas dos contextos das relações entre determinadas sociedades (e territórios) e suas
metrópoles. Neste sentido, ambas devem ser situadas como forças fundamentais no

6“Antigo” faz referência e diferencia esse colonialismo do outro, resultante da II Revolução Industrial e do
Imperialismo da segunda metade do século XIX.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

concurso dos fatos dos quais a emancipação política foi resultante. Ela ainda acrescenta,
acerca disso, que:
Os fundamentos do sistema colonial tradicional estavam, portanto, abalados por
vários tipos de pressão. No âmbito internacional, as bases da aliança burguesia
comercial-Coroa, que havia dado origem ao sistema colonial tradicional, estavam
minadas: de um lado, pela emergência de novos grupos burgueses relacionados
com o advento do capitalismo industrial e, de outro, pela perda da funcionalidade
do Estado absolutista e pelo desenvolvimento de um instrumental crítico que
procurava destruir suas bases teóricas. No âmbito das colônias, o aumento da
população, o incremento da produção, a ampliação do mercado interno tinham
tornado cada vez mais penosas as restrições impostas pela metrópole, tanto mais
que cresciam as possibilidades de participação no mercado internacional.

Particularizando a discussão para o caso do Brasil, as peculiaridades de seu processo de


emancipação política, direta ou indiretamente, levaram – a posteriori – à busca incessante
por uma identidade nacional que torna importante a compreensão desse seu trajeto rumo
à independência. A existência de um território unificado semelhante ao colonial, bem como
a manutenção de demais estruturas econômicas e até a Monarquia – diferentemente das
repúblicas que se formaram ao seu redor –, não se fez ao acaso, tampouco se construiu sem
a existência de fraturas em um caráter (ou ideia) de nacionalidade.

O modelo de administração na colonização da América Portuguesa, desde seu princípio, em


parte, explica essas fraturas. Nos séculos que se seguiram à decisão/necessidade de
colonizar esse território, várias estruturas administrativas foram implantadas, ora com maior
tendência à descentralização e, em outros momentos, com tentativas de centralizar as
ações estatais.

Caracteristicamente, como no mais das áreas coloniais de exploração (também de outras


metrópoles), formava-se uma relação de interesses entre elites locais, que exploravam
atividades econômicas muito rentáveis (como a agromanufatura do açúcar ou a mineração,
no caso do Brasil) e um complexo formado, simultaneamente, por uma burguesia localizada
no país colonizador (ou onde houvesse aquiescência de participação nos negócios coloniais
de outrem, como aconteceu com a parceria autorizada pela coroa lusa em relação aos
burgueses flamengos) e o próprio aparelho estatal.

O desenvolvimento colonial estruturado sobre esse pilar econômico, de forma geral,


resultava em particularismos de interesse, divergências nas formas de pensar e se relacionar
com cada território e seus habitantes e, não raramente, choques, por razões muito
distantes, umas das outras, em cada lugar da colônia. Ainda assim, mesmo considerando
que a fase colonial tenha sido marcada por inúmeros movimentos contrários a aspectos do
domínio e exploração lusos (de maior ou menor proporção, que são conhecidos de forma
local ou considerados – nos manuais didáticos – “habilitados” como movimentos maiores),
contestando ações ou a própria continuidade dos laços, em si, as relações de algumas
regiões com Portugal eram, verdadeiramente, viscerais.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Questões de ordem geográfica, econômica, administrativa – como mencionado – explicam


a vinculação próxima entre algumas regiões da Colônia, como o Maranhão7 a Portugal e,
como pano de fundo a esses elementos de força para o desejo de uma continuidade desses
laços, a vontade de grupos da elite local, ainda fortemente formada por lusos de nascimento
ou descendência direta, de manutenção de privilégios econômicos, políticos e sociais.

Assim, mesmo nos locais da colônia onde floresceu algum ideário antilusitano, de
proposição de ruptura da ordem colonial, geralmente não se pugnava pela formação de
uma estrutura territorialmente mais alargada, tampouco se tinha em mente – até porque a
ideia de Estado Nacional não era clara em qualquer lugar no mundo – da formação de uma
nação, no que se refere ao sentimento de inclusão e pertença de todos os que habitavam
este território e seriam partícipes daquele novo país. Quanto a esse cenário, segundo Costa
(1999, p.32):
Assim como o liberalismo, o nacionalismo, frequentemente associado na Europa
aos movimentos liberais, não teria condições de assumir seu significado pleno num
país cuja economia baseava-se essencialmente na exportação, onde o mercado
interno era extremamente limitado, as vias de comunicação escassas e, por isso
mesmo, difíceis os contatos entre as várias regiões. Ainda às vésperas da
Independência eram mais fortes os laços das várias províncias com a Europa do
que entre si. Faltavam as condições que na Europa levavam a uma maior integração
nacional. Eis por que todos os movimentos revolucionários anteriores à
Independência sempre tiveram caráter local, irradiando-se, quando muito, às
regiões mais próximas, jamais assumindo um caráter mais amplo. Por ocasião da
Inconfidência Mineira falava-se vagamente na possibilidade de Minas e de São
Paulo aderirem ao movimento. A Conjura do Rio de Janeiro e, mais tarde, a Conjura
Baiana não ultrapassaram os limites dos respectivos centros urbanos.

Observando a conjuntura, a elite da época (preocupada em manter o controle até então


exercido), construiu um processo de emancipação que pudesse gerar poucos
convulsionamentos em seu trajeto e provocar as (limitadas) mudanças esperadas, dentro
de toda a previsibilidade possível. Isto significava, na prática, preservar a unidade territorial,
a monarquia e a estrutura econômica sobretudo calcada no braço escravo e na
agroexportação. A esse propósito, de acordo com Costa (1999, p.33):
Alguns anos mais tarde, em 1821, os deputados brasileiros às Cortes portuguesas
fizeram questão de se apresentar como representantes das várias províncias.
Explicam-se assim os receios de um dos principais líderes da Independência, José
Bonifácio, de que, à semelhança do que sucedera em outras regiões da América, a
colônia portuguesa viesse a se fragmentar em várias províncias. De fato, todos os
planos recolonizadores apresentados em Portugal depois da proclamação da
Independência tinham como ponto de partida a ideia de que era possível explorar
a falta de unidade das várias áreas. A unidade territorial seria, no entanto, mantida
depois da Independência, menos em virtude de um forte ideal nacionalista e mais
pela necessidade de manter o território íntegro, a fim de assegurar a sobrevivência
e a consolidação da Independência.

7Do ponto de vista territorial, foi Estado Colonial do Maranhão e Grão-Pará e, depois, do Grão-Pará e
Maranhão.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

À falta de unidade a que Costa (1999) fez alusão, procurou-se dar algumas respostas, dentre
as quais a da construção de uma ideia, ainda no século XIX, de uma ideia de pertencimento
que “cimentasse” a população (completamente heterogênea em sua composição étnica,
social, regiões de povoamento etc.) como “súditos brasileiros”, segundo uma perspectiva
de nacionalidade, daquela “nova” ordem monárquica que emergia a partir de setembro de
1822.

Neste caminho, foram sendo eleitos símbolos, narrativas e ritos que formaram o (complexo)
quadro do mito fundacional da “sociedade e da nação brasileiras”. A importância e a
utilidade deste conjunto, na produção de sentidos que orientaram esse processo foi (e
continua a sê-lo) enorme. Chauí (2000, p. 7), acerca dessa temática, afirma que:
O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e,
em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados
tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal
que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos
elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que
necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimenta-se
das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à
nova quadra histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito
pode repetir-se indefinidamente.

A existência desse mito, necessariamente, pressupõe a existência de elementos que o


sustentem. Não é incomum que sejam amparados em lugares de memória, em narrativas
e/ou ritos que sejam repetidos à exaustão, com a finalidade de fazer triunfar uma
determinada maneira de estruturar um Estado, uma sociedade, de como estes se veem e
concebem de si. Novamente Chauí (1999, p.8), é bastante pedagógica acerca deste tema.
A autora sustenta que:
Existem alguns objetos, animais, acontecimentos, pessoas e instituições que
podemos designar com o termo semióforo. São desse tipo as relíquias e oferendas,
os espólios de guerra, as aparições celestes, os meteoros, certos acidentes
geográficos, certos animais, os objetos de arte, os objetos antigos, os documentos
raros, os heróis e a nação.

Seria possível ampliar bastante a discussão sobre o conceito de “semióforo8”, bem como,
através de um convite a outras ciências, discutir as várias dimensões a partir das quais o

8Com o objetivo de não deslocar a análise realizada no presente artigo e, simultaneamente, compreendendo
a necessidade de trazer o entendimento da autora acerca do significado e importância do termo, de acordo
com Chauí (2000, p. 10), um semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou
uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são
coisas providas de significação ou de valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no
espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um espaço além de todo espaço) ou o passado
ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos à visibilidade, pois é nessa
exposição que realizam sua significação e sua existência. É um objeto de celebração por meio de cultos
religiosos, peregrinações a lugares santos, representações teatrais de feitos heróicos, comícios e passeatas
em datas públicas festivas, monumentos; e seu lugar deve ser público: lugares santos (montanhas, rios,
lagos, cidades), templos, museus, bibliotecas, teatros, cinemas, campos esportivos, praças e jardins, enfim,

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

mesmo pode ser problematizado, bem como às suas “utilidades”, o que não é, para este
momento, o propósito que se tem. Entretanto, importa lembrar que, inclusa dentre os
diversos signos que podem ser (ou “servir”) como semióforos está a ideia de nação, que
dialoga com a necessidade de consolidação de um poder e de exercício de coerção por parte
desse poder, sobretudo quanto à tentativa de uma espécie de superação de
heterogeneidades e estabelecimento de uma sociedade orientada, o quanto possível, para
o mesmo sentido. Chauí (1999, p. 11), afirma que:
Para realizar essa tarefa, o poder político precisa construir um semióforo
fundamental, aquele que será o lugar e o guardião dos semióforos públicos. Esse
semióforo-matriz é a nação. Por meio da inteligentsia (ou de seus intelectuais
orgânicos), da escola, da biblioteca, do museu, do arquivo de documentos raros,
do patrimônio histórico e geográfico e dos monumentos celebratórios, o poder
político faz da nação o sujeito produtor dos semióforos nacionais e, ao mesmo
tempo, o objeto do culto integrador da sociedade una e indivisa.

Considerando que a autora considera a nação como “semióforo-matriz” e que aponta as


vias de difusão e assimilação desse semióforo; tendo em vista a problemática que envolvia
o jovem país Brasil, temos que essa significação simbólica profunda foi sendo levada adiante
através de meios, na escola – de acordo com o que menciona Chauí (2000).

A construção de uma espécie de tipologia ou valores que sintetizassem ideais que se queria
presentes na sociedade brasileira se materializou, por exemplo, através de produções de
intelectuais, inicialmente ligados ao IHGB, e representantes da Literatura produzida no
Brasil, com obras que iam de genealogias a poemas líricos e romances, retratando
personagens (reais ou ficcionais) que encerravam em si as virtudes que se pretendia para os
brasileiros – que, segundo a visão da época, deveriam superar uma espécie de estado de
barbárie (toda a sociedade!) – e, mais que isso, pudesse solidificar neles uma coesão, com o
interesse de superar as particularidades regionais verificadas ainda no contexto da
independência, superação sem a qual uma “nação” não seria plenamente possível.

Desde o período colonial, a maneira de se construir um entendimento acerca do que eram


os povos nativos obedeceu a uma lógica de generalização. Algumas evidências demonstram
essa tendência com clareza, como a ideia de que existia uma “língua geral” dos indígenas
ou, quando muito, a concepção de que a única diferença perceptível seria no suposto nível
de “docilidade” para os contatos, da qual veio a divisão entre “tupis” e “tapuias”.

Transpostos alguns séculos e já nas primeiras décadas da Monarquia, a maneira como


apareciam os povos indígenas ou, ainda genericamente, “o indígena” nas obras redigidas
por intelectuais ligados ao IHGB, nas primeiras décadas do século XIX e na produção literária
do Romantismo Indianista, na mesma centúria, serviram como parâmetro para a breve

locais onde toda a sociedade possa comunicar-se celebrando algo comum a todos e que conserva e
assegura o sentimento de comunhão e de unidade.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

discussão que se faz nesta produção, confrontada, posteriormente, com outra forma de
construção de uma figura indígena, o Caiuré Imana, da obra de Olímpio Cruz.

3 O indígena sob o olhar do IHGB

O “nascimento” do Brasil, como país, no pós 1822, pressupunha a constituição de um


conjunto de elementos que o habilitassem à essa dimensão, de estrutura soberana,
autônoma e com uma população sob um rótulo de “povo”, segundo a concepção liberal-
burguesa, do século XVIII, que este último termo assume. Evidentemente, além das
condições básicas que caracterizam um Estado (como território, população, idioma, sistema
jurídico etc.), Chauí (2000) chama à reflexão aos elementos simbólicos que permeiam o
surgimento de uma estrutura dessa grandeza.

Os já referidos semióforos são tão variados quanto poderosos, sobretudo no sentido de


promover a assimilação de como um povo compreende seu país e a si próprio. Neste
sentido, a história assume um papel preponderante, pois sua produção (ou mesmo de
memórias...) funciona como construtora de “mitos de origens”, sustentáculo de ideias,
modelos sociais, dentre outros “usos”.

Chauí (2000), considerado esse lugar de Clio, reserva um espaço de importância ímpar aos
intelectuais que passaram a fazer parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado
em outubro de 1838. É conveniente ressaltar que os denominados historiadores dessa
plêiade, via de regra, não o foram por formação específica, mas, em grande medida, pelo
acesso aos meios para esse exercício (como Educação e formação profissional, além de
documentos que, como políticos, funcionários do Estado e representantes de funções
públicas, tiveram vários de seus membros). Eram oriundos de formações variadas –
engenheiros, médicos e bacharéis em Direito, por exemplo – e tinham um importante papel,
na produção de um novo Brasil, a partir de sua escrita.

Neste sentido, intelectuais que pertenciam ao IHGB personificavam o mesmo sentido


destacado por Schwarcz (1993, p.141) ao referir-se à criação das faculdades de Direito no
Brasil:
Profundamente vinculados à lógica e dinâmica que marcaram a independência
política brasileira em 1822, já em seu momento de nascimento esses
estabelecimentos pareciam responder à necessidade de conformar quadros
autônomos de atuação e de criar uma intelligentsia local apta a enfrentar os
problemas específicos da nação. Nas mãos desses juristas estaria, portanto, parte
da responsabilidade de fundar uma nova imagem para o país se mirar, inventar
novos modelos para essa nação que acabava de se desvincular do estatuto
colonial, com todas as singularidades de um país que se libertava da metrópole,
mas mantinha no comando um monarca português. Era necessário provar "para
fora e para dentro" que o Brasil imperial era de fato independente, faltando para
tanto "não apenas novas leis, mas também uma nova consciência".

90
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Além de buscar a afirmação de “um Brasil” enquanto elemento autônomo – o que deveria
ser feito, inclusive, negando o passado lusitano de várias formas9, essa intelectualidade
tinha a missão de lidar com o “problema” já anteriormente destacado, das particularidades
regionais, assim como outro, o da diversidade étnica existente no país em função do
processo de constituição de sua sociedade. Construir sobre essas premissas era algo
complexo e essas questões – todas! – compunham os “problemas específicos da nação”
aos quais Schwarcz (1993) se refere.

Assim, fazendo-se uma espécie de “arqueologia” da produção historiográfica ligada ao IHGB


nos seus primeiros trabalhos, houve grande recorrência de produções ligadas a essa
“necessidade”. Um dos grandes estudiosos da história da historiografia brasileira, Iglesias
(2000) tratou de esquadrinhar a produção que parte dos primeiros “escritos-fonte”, ainda
na época colonial e, na sua forma didática de redigir – periodizando toda a produção dos
“Historiadores do Brasil” (homônimo de sua obra póstuma), trata com atenção o
surgimento desse meio produtor de conhecimento. Iglesias (2000, p.60-61) traça o seguinte
panorama:
É na Regência que se assiste ao primeiro esforço ou interesse pela historiografia,
de real eficácia, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
1838, de papel importante na vida intelectual, então e depois. Daí o alto significado
dessa data, que a impõe como um marco de nossa periodização na história da
historiografia que modestamente intentamos – o fim de uma fase e o início de
outra, embora reconhecendo a precariedade e a relatividade de todo esquema de
gênero. A proposta da entidade deveu-se ao Cônego Januário da Cunha Barbosa e
ao brigadeiro Raimundo da Cunha Matos, que à apresentaram à Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional – o organismo criado em 1828 [...]. A proposta é
aprovada e o Instituto teve instalação no dia 2 de outubro. A ideia é bem
respaldada pelo clima intelectual da época no Brasil e mesmo nos centros
internacionais aos quais o país é ligado, sob o signo do romantismo. Há no instituto,
no início, uma linha nativista. Seu primeiro secretário perpétuo, Januário da Cunha
Barbosa, é nativista exaltado, como se compreende pela proximidade da
independência, quando se busca toda e qualquer afirmação. Em palavras daquele
fundador há vivas reminiscências de Rocha Pita, com seu ufanismo ingênuo e até
delirante: à maneira da História da América Portuguesa, Januário fala na “grandeza
de seus rios e baías, variedades e pompa de seus vegetais, abundância e
preciosidade de seus frutos [...], constante benignidade de um clima, que faz
fecundos os engenhos de nossos patrícios como o solo abençoado que habitam”.
Exalta não só a natureza, mas também os homens. Os traços mais notáveis do
órgão, no entanto, são o pragmatismo da história e o gosto da pesquisa. Pretende-
se fazer uma história que tenha a função pedagógica, orientadora dos novos para
o patriotismo [...].

9Como revoltas antilusitanas, leis e novas construções simbólicas. À guisa de exemplo, a historiadora Maria
de Lourdes Lauande LaCroix, a propósito desta questão, faz uma discussão muito pertinente em sua obra “A
Fundação Francesa de São Luís e seus mitos”, exatamente tratando o século XIX como um momento de
negação desse passado luso, o que – no Maranhão – erigiu a construção do imaginário de que São Luís fora,
efetivamente, uma cidade estruturada pelos franceses, apesar da curta permanência daqueles em Upaon-
Açu, de cerca de três anos. Rejeitava-se a ligação com Portugal e, simultaneamente, vinculava-se a capital
maranhense ao país que, nos oitocentos, tranformara-se em paradigma civilizacional, para o Ocidente: a
França.

91
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

É incontestável, a partir da visão do papel do IHGB expressa por Iglesias (2000), a


importância que teve essa “entidade” para a construção – ou pelo menos para empreender
tentativas nesse sentido – de uma nacionalidade. O referido historiador, inclusive, destaca o
papel “pragmático” do Instituto e, infere-se por extensão, da produção intelectual dos
sujeitos ligados a ele.

Assim, lançaram-se à construção de um tipo de história nacional brasileira com a função de


transformá-la em algo como os “semióforos” apontados por Chauí (2000). Considerando o
pensamento predominante à época e o próprio lugar social dos membros do IHGB, não se
pode imaginar que a produção intelectual daquele Instituto buscaria um passado que
promovesse algum tipo de “revolução” nas estruturas socioeconômicas, culturais ou
políticas da época.

Na realidade, muito distante de qualquer pensamento “revolucionário” sob o aspecto das


estruturas então vigentes, aquela produção se ocupava da construção de biografias de
“vultos exemplares” que, geralmente, tinham em comum serem de origem europeia,
homens, brancos e ligados ao poder constituído. Segundo Iglesias (2000, p. 62), o conteúdo
produzido pela revista criada pelo IHGB, que decorreu de intenso trabalho dos intelectuais
dessa entidade em suas primeiras décadas, foi, também, caracterizado por seu
conservadorismo e pela “história oficial” que produziu, ainda de acordo com o autor, em
função da simpatia nutrida por D. Pedro II acerca da entidade.

Dado esse caráter conservador e, como mencionado, pragmático do IHGB, a revista que era
produzida por ele deveria se constituir como importante fonte de resposta a algumas
problemáticas sensíveis, como a da afirmação da nacionalidade (e esta com todos os seus
elementos de complexidade, que iam da necessidade de conformidade de um país de
enorme pluralidade de características de regionalidade até, a do desenvolvimento de um
elemento “brasileiro”).

Não obstante se tenha outras importâncias nesse ponto do trajeto, dos objetos de trabalho
possíveis, evoca-se um questionamento pertinente no âmbito dessa multitarefa que o
pragmático Instituto possuía: como erigir um elemento nacional que resumisse as
características do “brasileiro” em um país com tamanha diversidade étnica presente na
formação de sua população?

Não resta dúvidas que a resposta a essa questão foi dada de maneira natural, segundo o
pensamento que regia a maior parcela da intelectualidade brasileira oitocentista e dado o
caráter conservador e – aduzo – elitista da produção intelectual daquele Instituto: o Brasil
seria, através daquele olhar, branco, centrado no homem, de tradição agrária e se
desenhava com o centro fundamental de importância entre o Sudeste e o Sul.

Como resultado disso, vários outros elementos acabaram por ser deslocados de qualquer
centralidade, no que tange à ocupação de papéis preponderantes. Não eram os sujeitos que
tinham suas trajetórias reconstruídas pelas biografias que – segundo a perspectiva da

92
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

história “magistra vitae” – serviriam, pedagogicamente, como o aponta Iglesias (2000),


como paradigma para a construção do “brasileiro”. Estariam, assim, retirados dessa
possibilidade de serem personagens centrais, com peso determinante nos rumos do novo
país os povos indígenas e os africanos, por exemplo, mesmo com toda a importância que
tiveram na formação da sociedade brasileira em diversos aspectos.

Esses últimos sujeitos sociais, na realidade, acabaram se transformando, por vezes, em


“questões” sobre as quais a intelectualidade do IHGB deveria se debruçar e, seguindo seu
caráter de pragmatismo, apontar, através de seus estudos, periodicamente divulgados
através da revista do Instituto, “soluções”. Na prática, isso parecia significar a busca de
respostas simultâneas para questões como a necessidade de espaço para a expansão da
fronteira agrícola (em marcha desde o período colonial) e antecipar discussões sobre
questões ligadas às “raças” que compunham aquela sociedade.

É como detentor do poder de ditar o “discurso competente” e produzir uma história


nacional que o IHGB passa a lidar com a temática dos povos indígenas. Nesse sentido, é
importante salientar que essa matéria era tratada segundo os interesses da dita “sociedade
envolvente” e não com o intuito fundamental de solucionar – pela ótica indígena – os
inúmeros transtornos causados a eles nas regiões em que eram alargadas as fronteiras da
colonização. De acordo com Mota (1997, p. 3), “a integração das comunidades indígenas
nos recém-criados Estados latino-americanos passava pela incorporação de seus territórios,
e a apropriação de suas terras estava no centro da questão nacional”.

O IHGB, neste particular, acabara funcionando como espécie de entidade consultiva às


ações do Estado brasileiro para com a “questão indígena” e com o destino de “encontrar
uma solução” para tal, Mota (1997) destacava que foram variados os caminhos sugeridos
pela intelectualidade da época por meio da Revista do IHGB. A proposição de medidas e a
tentativa da composição de uma legislação indigenista estiveram entre os intentos desses
sujeitos.

Ainda de acordo com Mota (1997), havia um empecilho à existência de uma legislação
indigenista abrangendo todo o Império, pela ausência de um ordenamento específico para
a temática indígena na Constituição de 1824, o que provocava a subdivisão em “várias
instâncias legisladoras” acerca daquela matéria. Apenas, em 1845, via Decreto,
regulamentava-se as Missões de Catequese dos Índios que, ainda para Mota (1997, p. 4),
dialogando com Eunice Paiva e Carmem Junqueira:

foi a viga mestra da política indigenista brasileira até os dias de hoje. Esse decreto
estabeleceu a “fixação das populações indígenas em determinados territórios”;
impôs a “limitação da capacidade jurídica dos índios e consequente instituição da
tutela governamental”; e instituiu a “tutela governamental, paternalismo
administrativo e burocratização da questão indígena.

93
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Considerando a finalidade que tinha o Estado em sua relação com os indígenas e a legislação
presente à época, reforça-se o caráter das publicações veiculadas na revista do IHGB como
responsáveis por apontar caminhos a serem seguidos pela oficialidade no trato da referida
matéria. Alguns dos artigos ali presentes reproduziam ideias e ações que já haviam sido
objeto de outras tentativas que ainda remontavam à colônia, outros, eram fruto da
concepção dos intelectuais da entidade de como a “questão indígena” poderia ser
solucionada.

Mota (1997) nos mostra que “vultos” como José Bonifácio de Andrada e Silva, José Arouche
de Toledo Rendon10, o próprio cônego Januário da Cunha Barbosa (propositor da criação do
IHGB), o também cônego, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Francisco Adolfo
Varnhagen e Domingos José Gonçalves de Magalhães – dentre outros – escreveram e
defenderam proposições de integração indígena através de sua “civilização” empregando
meios que transitavam entre a compreensão “do idioma”, catequese (ideia mais forte no
sentido da incorporação dos povos indígenas), miscigenação e o “uso moderado” da
violência (até pelos religiosos, em suas incursões missionárias).

A partir desse ponto, percebe-se que se reveste, assim, de uma dupla jornada – no que se
refere aos povos indígenas – a missão do IHGB. Embora complementares, exigiram uma
dobra de “esforços” da intelectualidade circunscrita sob a insígnia daquela entidade, posto
que ela deveria ser o elemento pensante que apontaria caminhos para que se ultrapassasse
os “inconvenientes” causados ao jovem Estado brasileiro pela presença dos povos
indígenas e, paralelamente, deveria trabalhar pela construção da nacionalidade – como
função de pertencimento, no seio da população desse país.

Tratava-se de, além de pensar as “soluções dos problemas” brasileiros, de toda ordem (e
da “questão indígena”, em particular), constituir uma história nacional brasileira, de caráter
homogeneizante. Esse modelo seguia o padrão do pensamento vigente no ocidente
influenciado pela Europa, mas, como já mencionado, se mostrava como tarefa bastante
complexa, considerando a multietnicidade encontrada no povo brasileiro. Como o Brasil
“branco” pretendido pelo IHGB iria alocar, em sua história, os africanos (e
afrodescendentes) e indígenas?

Nas primeiras publicações da revista do IHGB, diferentemente dos africanos que pouco ou
nada eram mencionados enquanto categoria que não fosse mão-de-obra, os indígenas eram
temática recorrente, pelo próprio status em que se encontravam na legislação (ainda que
precária, como já se fez alusão) e pelos destinos que precisavam ter, na lógica da
estruturação do Estado. Era necessário situar-lhes em algum lugar, no passado, no presente
e – dentro daquela função (pragmática) do Instituto – do futuro.

10 Diretor geral das aldeias indígenas na província de São Paulo em 1798.

94
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Monteiro (2001) assegura que se procurava uma “identidade” para o país, mestiço e,
simultaneamente, se reivindicava a memória de um passado também “mestiço”, mas, ainda
assim, o Estado, em nome da expansão das suas fronteiras de colonização, permitia
violentas ofensivas contra os indígenas em várias plagas.

O visível embate no seio dessa dicotômica relação de forças, trazendo em um extremo a


violência dessas incursões e, na outro, uma necessidade de “culto” a um passado com
presença obrigatória do indígena e certa urgência da constituição de um imaginário de “país
civilizado” repercutiu em diversos campos do conhecimento, reforçando – na literatura e
historiografia – o “problema” do lugar (ou lugares) dos povos indígenas.

Esses sujeitos históricos, os indígenas, os invisibilizados adquiriram a tendência a ser


reconhecidos quase sempre somente como parte do universo da América Portuguesa.
Monteiro (2001, p.131) afirma que o diálogo resultante entre ciência e política, em torno da
problemática indigenista – o que trazia reflexos diretos à historiografia e literatura –
produziu “imagens e opiniões conflitantes, ora promovendo a inclusão das populações
indígenas no projeto de nação, ora sancionando sua exclusão”.

Eram sujeitos construídos na documentação e obras analisadas por Monteiro (2001) como
incapazes de serem “civilizados”. Via de regra, suas especificidades recebiam a pecha de
barbárie. Assinalava-se, inclusive, com alta dose de certeza, aparente tendência ao
desaparecimento dos povos indígenas, presente nas publicações assinadas por Karl Von
Marthius e Francisco Aldolpho Varnhagen e devidamente chanceladas pelo IHGB. Tal
situação/previsão resultaria em uma negação da continuidade (em um futuro) desse
elemento étnico e de sua relegação ao passado ou à margem do processo histórico.

4 O romantismo indianista: o indígena como “herói nacional”

A maneira inconstante de o projeto de país – como representação da sociedade que se


construía – se relacionava com o indígena, como bem o apontou Monteiro (2001), ora
invisibilizando, ora trazendo à luz, esteve presente na maneira como as “ciências humanas”
– a história, a geografia e outras ligadas ao IHGB – enxergavam esta questão. No entanto,
não apenas esses campos de conhecimento, visto que a produção de uma literatura no
Brasil do século XIX também esteve profundamente marcada pela abordagem dessa
temática.

Precedendo em quase um século o Movimento Modernista que teve o mérito de demarcar


a inserção de elementos de brasilidade em várias dimensões da cultura do país
(expressando-se nas artes plásticas, música, literatura...), o Romantismo, como Escola
Literária, também imprimiu uma marca interessante no Brasil, não por trazer consigo uma
profunda renovação estilística, tal qual a Semana de 1922, mas por estabelecer, naquele

95
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

jovem Estado, ainda nos oitocentos, um padrão de construção de nacionalidade a partir de


uma figura comum a toda a história do território: a dos povos indígenas.

O Romantismo produz, no Brasil, a marca importante de ser uma expressão literária


nacional, ainda que não tenha, naquele momento, um corpus ou, pelo menos um verniz, de
traços culturais “autóctones”, no sentido de elementos sociais, culturais ou cotidianos
como os que foram incorporados a partir do século XX pelo Modernismo brasileiro. Assim,
embora não caracterizado por uma estética própria ou algo “inovador”, legou obras como
as da “Primeira Geração”11 (Indianista), de autores como Gonçalves Dias e José de Alencar.

Essa geração foi caracterizada – considerando o momento histórico vigente – pela


abordagem de temas nacionais, de forma análoga ao que já se mencionou acerca das obras
do IHGB, subjacentes à realidade de um Brasil recém-emancipado. A ampla afirmação das
singularidades, riquezas e potencialidades do país eram, para aquela corrente literária,
elementos tão fundamentais pela necessidade de construir uma nova “nação” e negar o
passado luso.

No seio dessa diversidade de riquezas – de toda ordem – estava uma que teria um papel
especial naquela nova construção: o elemento humano, quais sejam os povos indígenas,
como signo mais próprio da terra e que, sendo autóctones, evidentemente se diferenciavam
de qualquer possibilidade de uma ligação com um passado luso. Seria, naquela visão e para
o propósito da construção de uma literatura nacional, de um novo país – sobretudo se
tratado a partir de características genéricas – a figura mais adequada para dar vazão aos
sentidos mais “nativistas” presentes naquele tipo de construção. A esse respeito, Barbosa
(2008, p.98) afirma que:
A primeira geração do Romantismo brasileiro notabilizou-se pela tentativa de
adaptar, de maneira nacionalista, o medievalismo heroico do Romantismo europeu
à natureza exótica e exuberante do Brasil. A nação que surgia com a independência
buscava seus heróis formadores, os mitos que a distinguissem das origens
europeias. Utópicos, os primeiros românticos brasileiros buscam no nativismo da
literatura anterior à independência, no elogio da terra e do homem primitivo
brasileiro, os pilares sobre os quais se haveria de criar a identidade de uma nova
nação. Inspirados em Montaigne e Rousseau , idealizavam os índios brasileiros
como bons selvagens, cujos valores heroicos tomam como paradigmas da
formação do povo brasileiro.

Nessa nascente vertente literária nacional, os ideais da Cavalaria Medieval, presença


constante nas obras do Romantismo à europeia, seriam traduzidos, por estas plagas, entre
outras formas de expressão de nobreza e caráter, consubstanciados na figura do indígena.

11 A título de informação, o Romantismo, no Brasil, produziu três gerações de obras/autores. A Primeira,


Indianista (que será explanada neste trabalho para a finalidade específica a que ele se propõe); a segunda,
Ultrarromântica (com representantes como Álvares de Azevedo), e a terceira, chamada de Condoreira, na
qual já surgia a temática da escravidão (e que teve em Castro Alves seu principal representante).

96
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A referência de Barbosa (2008) à influência exercida pelas obras de Michel de Montaigne e


Jean Jacques Rousseau que, respectivamente, nos séculos XVI e XVIII, construíram ideias
genericamente denominadas de “o mito do bom selvagem” evidencia a tônica a partir da
qual eram compostos os protagonistas das criações dos romancistas e poetas brasileiros da
geração Indianista.

Nessa perspectiva, deveria “o nosso indígena”, devidamente inserido na literatura


produzida naquele período como a expressão da idealização de Montaigne e Rousseau, ser
como os “homens da idade de ouro” ou aquele que “ainda não foi corrompidos pela
sociedade” e, portanto, dotado de valores e virtudes que deveriam pautar as características
da sociedade brasileira em formação.

Barbosa (2008, p.98), em função das características alegadas e pela análise do conteúdo da
produção dos literatos daquela Escola, atribui a ímpar importância dessa corrente literária
ao Romantismo brasileiro e ao seu “fundador”, afirmando que “embora Gonçalves de
Magalhães e Manuel de Araújo Porto Alegre tenham sido os introdutores do Romantismo
no Brasil, foi Antônio Gonçalves Dias o primeiro poeta de real valor a surgir na primeira
geração romântica da poesia brasileira.”.

Embora haja mais autores e obras, serviram de escopo para esta produção, como já
mencionado, apenas dois literatos, Gonçalves Dias e José de Alencar, assim como apenas
duas obras, que podem ser adjetivadas como as mais conhecidas desses escritores,
respectivamente, o poema I-Juca Pirama, do poeta maranhense e o livro O Guarani, do
escritor cearense12. Acrescenta-se que, propositalmente, escolheu-se uma obra em versos –
a poesia lírica – e a outra em prosa, com o intuito de demonstrar que as características dos
conteúdos (e sentidos) que se queria imprimir excediam a forma através da qual os literatos
se expressavam.

Convém, a princípio desta explanação, salientar que as obras de Dias e Alencar


representaram o Indianismo, assim como os sentidos e as características então produzidas
por essa corrente, porém, com particularidades que demarcam a trajetória de cada um,
condicionadas – paralelamente à literatura e conhecimentos que consumiram – pelos
contextos em que nasceram e pelas experiências que acumularam ao longo de suas vidas.

De acordo com a biografia disponibilizada pela Academia Brasileira de Letras13, filho de um


comerciante português (falecido quando o escritor ainda era adolescente) e uma mestiça
(embora tenha seu pai – com quem fora criado – vivido com outra mulher), Gonçalves Dias
nasceu em Caxias, no Maranhão, em agosto de 1823, ainda no calor da pós emancipação

12 Em razão do próprio caráter desta produção, esta análise não será realizada, “dissecando-se”, autores e
esses seus escritos “quadro a quadro” em cada minúcia, mas incidirá sobre os significados gerais produzidos
com o advento dessa corrente literária, representados nas duas
13 Consulta em https://www.academia.org.br/academicos/goncalves-dias/biografia. Acesso em 01/06/2021.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

(este aprofundado, ainda, pela especificidade da demora da aceitação da Independência


política pela elite maranhense).

Foi para Portugal (1838), estudou Direito em Coimbra até 1845 e, retornando ao Brasil,
exerceu várias ocupações (inúmeras ligadas às suas atividades literárias), foi professor do
Colégio Pedro II, bem como teve outras funções públicas. Ainda segundo o sítio da ABL, “A
[sua] obra indianista está contida nas “Poesias americanas” dos Primeiros cantos, nos
Segundos cantos e Últimos cantos, sobretudo nos poemas “Marabá”, “Leito de folhas
verdes”, “Canto do piaga”, “Canto do tamoio”, “Canto do guerreiro” e “I-juca-pirama”.

Após consulta ao mesmo sítio14, pode-se afirmar que José de Alencar nasceu em Messejana,
Ceará, em maio de 1829. Oriundo de família de personagens tradicionais (políticos) do
Nordeste, advogado, de formação, jornalista, filiado ao Partido Conservador (de tendência
regressista e preservando vinculação ao passado luso), foi eleito deputado, em diversas
legislaturas, pelo Ceará, e chegou a ser Ministro da Justiça. Forma, com Gonçalves Dias, “a
dupla que conferiu caráter nacional à literatura brasileira”.

Não se pode perder de vista a relação existente entre a produção literária e a conjuntura em
que esse patrimônio é construído e, nesta perspectiva, tanto Dias quanto Alencar fizeram
parte de um corte espaço-temporal em que as mudanças em curso, na América Latina e
Brasil sobretudo, eram marcantes. Ainda que guardassem – pelo próprio histórico familiar e
relações que constituíram em suas trajetórias de vida – vinculações com o passado luso,
viveram a fase de necessidade de afirmação do Brasil, nas primeiras décadas do século XIX
como, imaginava-se, nação autônoma.

Era, portanto, mister que se construísse uma identidade que denegasse – pelo menos até
certa medida – as raízes lusas, em nome da afirmação do novo país e, desta forma, havia
necessidade de eleger novos signos que funcionassem como engrenagens nessa
construção. O indígena, no conjunto dessas possibilidades, emerge de forma potente.
Segundo Bosi (1992, p.176):
O primeiro quartel do século XIX foi, em toda a América Latina, um tempo de
ruptura. O corte nação/colônia, novo/antigo exigia, na moldagem das identidades,
a articulação de um eixo: de um lado, o polo brasileiro, que enfim levantava a
cabeça e dizia o seu nome; de outro, o polo português, que resistia a perda do seu
melhor quinhão. Segundo esse desenho de contrastes, o esperável seria que o
índio ocupasse, no imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de
rebelde. Era, afinal, o nativo por excelência em face do invasor; o americano, como
se chamava, metonimicamente, versus o europeu. Mas não foi precisamente o que
se passou em nossa ficção romântica mais significativa. O índio de Alencar entra
em íntima comunhão com o colonizador.

Interessante, por outro lado, notar que, para Bosi (1992), ainda que obedecesse a uma
estrutura mental conjuntural que exigia uma determinada linha comportamental em seus
personagens, a construção dos protagonistas indígenas personificava valores de

14 Consulta em https://www.academia.org.br/academicos/jose-de-alencar/biografia. Acesso em 01/06/2021.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

conformidade, ao invés de resistência ou afirmação, sobretudo na obra Alencarina,


profundamente influenciada pela posição política de sua família e dele próprio.

Assim, vê-se que o caráter representativo dessas obras e autores, dado pertencimento ao
Romantismo Indianista e dispostas características gerais dessa vertente literária, não deve
obscurecer o fato de que guardavam, entre si, algumas diferenças e, no que se refere ao
objetivo fundamental desse artigo, a representação dos indígenas, mesmo, aparecia de
formas distintas. Para Bosi (1992, p. 184), a trajetória de vida de cada um, com experiências
de maior ou menor proximidade aos indígenas, assim como outras peculiaridades de seus
lugares sociais e políticos condicionou essa variedade de construções.
O jovem Goncalves Dias ainda estava próximo, no tempo e no espaço, do
nativismo exaltado latino-americano. Talvez a familiaridade do maranhense com a
luta entre brasileiros e marinheiros que marcou nas províncias do Norte os anos da
Independência explique a aura violenta e aterrada que rodeia aqueles versos de
primeira mocidade. Em Alencar, ao contrário, a imagem do conflito retrocederia
para épocas remotas passando por um decidido processo de atenuação e
sublimação. Goncalves Dias nasceu sob o signo de tensões locais antilusitanas, que
vão de 1822 aos Balaios. Alencar formou-se no período que vai da maioridade
precoce de Pedro II (de que seu pai fora um hábil articulador) a conciliação
partidária dos anos 50. O nacionalismo de ambos, aparentemente comum, merece
uma análise diferencial, pois forjou-se em cadinhos políticos diversos. Sondar uma
possível gênese dos modos que assumiu entre nós o nativismo romântico decerto
concorre para entender as formas opostas de tratar o destino das populações
conquistadas.

Numa complementação dessa afirmação, sutil, Bosi (1992, p.184) pontua que “O poético
supera (conservando) o ideológico, não o suprime.”. Essa máxima vale para ambas as
produções. Dias, em sua produção, aborda, em geral, o choque entre colonizadores e a
população vencida a partir de uma perspectiva qualificada por Bosi (1992) como
“apocalíptica”, prevendo o iminente fim das populações nativas e, em sua forma de
construir seus personagens, exalta sua bravura, como no poema I-Juca Pirama. Neste
sentido, é bastante conhecida a primeira estrofe e seus versos: “Não chores, meu filho / Não
chores, que a vida / É luta renhida / Viver é lutar / A vida é combate / Que os fracos abate /
Que os fortes, os bravos, só pode exaltar”.

Gonçalves Dias se expressou em seus personagens valores “medievalescos”, como


representante do Romantismo, certamente o fez com os valores da bravura, enaltecida na
conhecida narrativa em que o filho entrega em sacrifício (guerreando sozinho), a própria
vida para provar seu valor e coragem, questionados pelo próprio pai (que cego, até então
perdido na mata, soube que seu filho chorara ao ser capturado, contudo, ignorando que o
rebento desejava proteger e honrar sua condição de filho – por isso o choro, pelo qual fora
considerado covarde e indigno da morte e antropofagia por seus inimigos).

As características evidenciadas nos personagens de Gonçalves Dias afastam os indígenas de


sua obra da imagem de passividade, antes, estabelecendo-os como agentes e, nas
entrelinhas, exercitando algum grau de compreensão dos sentidos rituais de hábitos dos

99
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

nativos, como a própria antropofagia, demonstrada como parte de uma cultura em que se
desejava adquirir as qualidades do guerreiro sacrificado.

É possível perceber que, ressalvadas as questões subjacentes à corrente literária da qual


fazia parte sua obra, uma percepção dos povos indígenas mais próximos ao “real” aparece
com mais ênfase em Gonçalves Dias que, cumulativamente a outras atividades, também foi
etnógrafo, fato que – por certo – influenciou fortemente sua produção. Marcolin (2011, p.
8), acerca de mais esse papel do poeta caxiense, aponta que:
O poeta escreveu um ensaio, coletou material e produziu notas e diários que se
perderam no mesmo naufrágio em que ele morreu, no litoral do Maranhão. O autor
de um dos mais conhecidos poemas da língua portuguesa, a Canção do exílio, foi
também etnógrafo e participou da Comissão Científica do Império, a primeira a
contar apenas com especialistas brasileiros.

Na obra de José de Alencar, diferentemente, a representação do indígena é construída a


partir de outro referencial de comportamento. Se o “bom selvagem” de Gonçalves Dias
assim o era por seus valores de bravura, o escritor cearense edifica seu protagonista de
forma que ele emerge como um elemento de contiguidade de processos muito mais ligados
à visão europeia do que à afirmação de uma nacionalidade.

Primeiramente, porque, segundo Bosi (1992), há várias passagens em que se percebe o


transplante a dos elementos medievalescos ao romance “O Guarani”, não apenas como
valores em Peri, seu protagonista, mas na própria relação de servidão existente entre os
elementos que se relacionam naquela obra. Desta forma, assim como houve historiadores
que enxergaram uma estruturação feudal na colonização do Brasil, Alencar, quando
ambientou sua obra O guarani na América Portuguesa, o fez com uma visão de quem
enxergava o Brasil Colônia como reconstrução de uma espécie de sociedade estruturada
segundo o feudalismo. Naquele universo, observa-se sempre presente uma hierarquização
em que os nativos se situam abaixo dos colonizadores.

Outro ponto significativo sobre o qual se pode refletir é, especificamente, como se


desenrolaram as relações de colonizadores e nativos, no âmbito dos efeitos da conquista.
Gonçalves Dias ressaltava a coragem dos povos indígenas e refletia uma visão acerca dos
efeitos catastróficos – apocalípticos! – da colonização a eles. O nativismo de sua obra
emergia nas ações de resistência. Por sua vez, Alencar via outra perspectiva. De acordo com
Bosi (1992, p. 185-186):
o romance histórico de Alencar voltou-se não para a destruição das tribos tupis,
mas para a construção ideal de uma nova nacionalidade: o Brasil que emerge do
contexto colonial. Daí, a atenção que merecem os modos pelos quais o narrador
trabalhou a assimetria das forças em presença na sua primeira síntese romanesca.
E minha hipótese que o mito sacrificial, latente na visão alencariana dos vencidos,
se tenha casado com o seu esquema feudalizante de interpretação da nossa
história [...]. Dentro de um contexto marcado pelas relações de senhor e servo, no
qual o domínio do primeiro e a dedicação do segundo parecem conaturais,
assumem uma lógica própria as personagens de O guarani e a doce escravidão que
Machado de Assis viu em Iracema.

100
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Não obstante, Peri fosse um índio corajoso, fiel e honrado – valores representativos, que se
desejava cultuar e consolidar para aquele novo corpus de nacionalidade – seu amor por Ceci
e sua amizade com D. Antônio são indícios muito significativos de submissão ao elemento
colonizador, bem como aos valores europeus. A esse respeito, Bosi (1992, p.189) afirma que
“Peri é, ao mesmo tempo: tão nobre quanto os mais ilustres barões portugueses que
haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Aviz, o rei cavalheiro, e servo
espontâneo de Cecília, a quem chama Uiara, isto é, senhora”.

Evocando os excertos e reflexões mencionados acerca de Gonçalves Dias e José de Alencar


em suas obras mais representativas (mas que não são as únicas que versam sobre a
temática em questão neste artigo), nota-se cristalinamente que suas formas de construir
seus protagonistas se assemelham em pontos importantes, de virtudes, como bravura,
fidelidade, amor – às pessoas e à terra –, honradez... são traços típicos dos heróis que uma
nação quer que estejam em sua raiz.

Pode-se sublinhar que esses valores eram, em muito, tomados à matriz cultural da civilização
ocidental – consubstanciada sobretudo do Cristianismo – e emergem de maneira constante
nas obras desses escritores. Segundo Bosi (1992), em Dias, o apego à visão cataclísmica
presente em vários de seus escritos, sintetiza essa influência. Em O guarani, de forma ainda
mais explícita, Alencar narra o batismo de Peri – como desejo deste – como espécie de
complemento às suas qualidades de devoção à Ceci e Dom Antônio.

Uma breve análise das ações e das características de seus personagens permite observar
que eram forjadas “personalidades indígenas” como heróis à feição “judaico-cristã-
ocidental” na mesma proporção que se queria consolidar esses valores – evidentemente
tidos como “naturais” do elemento colonizador – na sociedade que se montava no Brasil,
agora como Estado independente. Por essas lentes, o povo brasileiro deveria ser uma
espécie de síntese entre a exuberância da natureza (que se fazia representar nos
protagonistas, como se fossem um só sujeito), sua originalidade de “bons selvagens” e a
“luz” das características dos reinóis.

Não obstante seja óbvio que várias características atribuídas aos “bons selvagens” que
construíam a partir de referenciais culturais transplantados também estivessem presentes
em suas culturas originais, deixava-se, em muito, de fora outras peculiaridades
provavelmente existentes, sobretudo se consideradas as incontáveis diferenças entre os
milhares de troncos existentes no Brasil, superando-se a ideia de generalização, do
“indígena uno”, muitas vezes evidenciada nessas obras.

A idealização dos povos indígenas – ou “do indígena”, genérico – presente nas obras do
Romantismo Indigenista, ainda que com a devida ressalva a uma preocupação maior em
aproximações com o dito “real” por Gonçalves Dias, diferenciava-os de outras construções,

101
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

como a realizada por Olímpio Cruz, na descrição de João Manuel Pereira da Silva ou, como
é mais conhecido, o Cacique Caboré, nomeado Caiuré Imana15, nas obras de Cruz.

5 Caiuré imana nas páginas de Olímpio Cruz: (anti)herói?

Antes de se tratar das figuras eleitas para esta seção (Caiuré Imana e Olímpio Cruz), faz-se
necessária referência a um importante capítulo sobre a história do sertão maranhense, mais
precisamente o Conflito de Alto Alegre, ocorrido em 13 de março de 1901, na cidade de Barra
do Corda, distante cerca de 450 km de São Luís.

Esse enfrentamento inscreveu-se no imaginário regional como “Massacre de Alto Alegre”,


configurando-se, segundo a imprensa da época16 e autoridades – temporais e eclesiásticas
– da época como o maior massacre de brancos por indígenas da história do Brasil.
Adensando as tensões já presentes nas relações entre indígenas e sociedade envolvente –
onde quer que haja essa interface – o confronto, protagonizado pelo Povo Tenetehara-
Guajajara, ainda na contemporaneidade é um tema sensível na região, bem como os
personagens nele envolvidos. É uma nota necessária, para esta produção, um breve
“historiar” desse conflito.

Em 1870, antes mesmo de se estabelecer, de forma oficial, como Missão, a presença dos
Padres Capuchinhos na região, houve sua primeira tentativa mais substancial de organizar e
arregimentar os indígenas Tenetehara-Guajajara da região, na Terra Indígena Cana Brava,
sob a coordenação do Frade José de Loro. Monza (2016, p. 43-44), autor de “Massacre de
Alto Alegre: notas históricas”17, assim descreve essa primeira tentativa:
Foi naquele ano que um padre capuchinho, o reverendo padre Giuseppe Maria da
Loro, foi nomeado diretor das tribos selvagens. Eis o que desse padre diz um dos
mais encarniçados inimigos das nossas missões capuchinhas, o senhor Francisco
de Melo Albuquerque: “Este missionário pensava em organizar a colônia chamada
Dois Braços, perto das aldeias. Para tanto, reuniu naquela localidade todas as
famílias dos selvagens que já se haviam separado do núcleo. Esse capuchinho
governou os selvagens com rara inteligência e sagacidade: obrigou todos a
trabalhar e a fazer grandes roças, com grande sucesso; proibiu que entrassem
estranhos na colônia; e vigiava tudo por intermédio de guardas que ele mesmo
escolhia entre os selvagens de sua confiança.” E eu posso aduzir, por informações
obtidas no lugar, que ele distribuía as horas do dia entre trabalho e instrução
religiosa e civil, e que, depois de pouco tempo no meio deles, acabaram a
libertinagem, a crápula, e outros desregramentos; a antiga preguiça e indolência
foi substituída pela diligência e atividade, de modo que, em mais de uma ocasião,
foram os selvagens dirigidos pelo zeloso missionário capuchinho que salvaram a
cidade de Barra do Corda dos efeitos da carestia causada por uma terrível seca.
Acompanhado dos selvagens, o padre missionário descia em canoas carregadas de

15 Por escolha e necessidade de padronização para facilitar o entendimento do leitor, será assim
referenciado nos demais momentos em que aparecer nesta produção.
16 O debate sobre a visão da imprensa maranhense acerca desse conflito encontra-se em Zannoni (1998).
17 De reedição recente, foi publicado, pela primeira vez, em Milão/Itália em 1909.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

cereais e legumes, frutas etc., e atendia às necessidades de todos. Mas também


para aquele zeloso padre chegou o tempo da terrível prova. Para nada lhe valeram
sua ilimitada paciência, sua intrépida coragem e suas severas e veementes
exortações. O inimigo já havia penetrado no campo e semeado a cizânia. Quando
as colônias se tornam suficientemente estáveis, aproveitadores infiltram-se em
surdina entre os selvagens, prometendo-lhes mundos e fundos, representando o
missionário como um tirano de sua liberdade e de sua consciência, alguém de lhes
querer impor obrigações que não existem, que os priva do que há de mais lícito
sobre a Terra, e que, se parece ajudá-los sob o aspecto material, é somente para
reduzi-los à escravidão moral, e, portanto, é necessário que se revoltem. O menor
motivo serve para atear-se o fogo devastador, que reduzirá tudo a cinzas. Assim se
deu com o padre Giuseppe da Loro. Passados apenas cinco anos, os selvagens,
instigados por chefões interesseiros, se rebelaram, e o padre Giuseppe, avisado,
mal teve tempo de subtrair-se ao perigo da morte iminente, cruel e bárbara.

A maneira descrita pelo Frade revela, simultaneamente, a ultra valorização (segundo a visão
dos religiosos e a mentalidade da época) da tenacidade do oficial dessa missão, pela
extrema convicção de seus ideais religiosos e “dever” para com os “selvagens”; o olhar
pouco simpático e superficial acerca das populações locais e suas peculiaridades e as forças
locais contrárias ao estabelecimento e continuidade daquela Colônia.

Mais do que isso, deixa entrever a continuidade de tensões nas relações que se
estabeleciam entre os sujeitos envolvidos naquele arranjo: religiosos, indígenas e a
sociedade envolvente. Neste particular, a permanência necessita ser lembrada porque em
incontáveis outras ocasiões – nesta região e em outras – ações estatais e religiosas também
resultaram, do ponto de vista daquelas Instituições, em retumbantes fracassos.

Fosse pelo uso de meios inadequados ao mínimo de amistosidade com os indígenas por
parte dos religiosos, pelo caráter refratário destes povos às mudanças pretendidas ou
mesmo pelos “ardis” – como sempre descrevem os religiosos – dos proprietários da região,
as experiências de sucesso que faziam questão de enaltecer nos princípios de suas jornadas,
acabavam se transformando em malfadadas tentativas.

Ainda assim, manteve-se e fortaleceu-se a presença Capuchinha na região. O desenrolar


dessa Rebelião Guajajara está associado à essa presença. Italianos, provenientes da região
da Lombardia, Itália, chegados ao Brasil no início da década de 1890, para a Ordem daqueles
franciscanos, a missão que os levou ao Maranhão18 era estabelecer um processo “cristão-
civilizatório” no sertão maranhense. Continuavam, neste propósito – assim como em 1870
–, estando alinhados com o interesse (e necessidade) estatal para a região, sobretudo na
ausência de legislação específica para esse tipo de ação, em que servia como parâmetro,
ainda, o Decreto, já citado, de 1845, que estabelecia a ação de incorporação dos indígenas
ao Estado como atribuição de missões religiosas.

18 O ingresso no Brasil foi por Recife (1892), segundo publicação da Ordem Capuchinha que faz referência ao
centenário da fundação da missão desses religiosos no Brasil (1893 – 1993). No entanto, as ações de
catequese e auxílio à colonização acabaram se deslocando de Pernambuco e dirigindo-se para o interior dos
estados do Maranhão, Pará e Amapá.

103
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Nesse propósito, iniciam suas atividades oficiais em Barra do Corda, em 1895. Os lombardos
fundaram escolas para meninos e para meninas (indígenas e não indígenas), adquiriram
terras – por compra e concessões do governador do Maranhão – e passaram a arregimentar
moradores locais para a missão, onde viviam e trabalhavam. Em 1896, a Colônia de Alto
Alegre, São José da Providência, foi inaugurada. Monza (2016, p. 48-49), assim narra os
primeiros “frutos” dessa jornada:
Terminada a cerimônia inaugural, o m. reverendo padre Carlo elevou a superior da
colônia o reverendo padre Rinaldo da Paullo, jovem inteligente, de grandes
realizações, disposto a tudo fazer pela glória de Deus e conversão dos selvagens.
Como colega, deu-lhe o reverendo padre Celso da Uboldo, homem de grandes
virtudes e não segundo em face ao primeiro no desejo de propagar entre os
selvagens aquela fé que, unida às boas obras, salva. A esses dois, acrescentou o
virtuoso frei Salvatore d’Albino, que deveria dirigir os trabalhos agrícolas. Difícil é
dizer com quanto desprendimento, zelo e abnegação, lançaram-se aqueles
missionários à missão entregue a seus cuidados, pelo amor do próximo e do Deus
que tudo anima e a tudo dá vida. Eles eram possuídos de forte físico, habituados a
suportar e resistir às mais pesadas canseiras. Decididos no propósito de civilizar os
selvagens, habituá-los ao trabalho e formá-los cristãos exemplares, seguidores de
Jesus Cristo, começaram por convidá-los a morar na nova colônia, facilitando-lhes
tudo e também prometendo-lhes vantagens materiais. Muitos aceitaram o
convite. Tratados os selvagens como homens razoáveis, como iguais, e não como
bestas de carga, era bonito ver como, em sua grande maioria, correspondiam aos
cuidados e solicitudes que os missionários tinham por eles. Submissos e
obedientes, concentravam-se no trabalho que lhes era designado. A maneira
amável e afetuosa como eram tratados logo se espalhou de aldeia a aldeia, e
muitos vieram estabelecer-se na colônia, para grande contentamento e satisfação
dos missionários. Muitos que, por motivos particulares, não podiam permanecer
na colônia, vinham trabalhar nela, e os missionários lhes retribuíam com a maior
liberalidade. Não é, pois, de admirar que, em apenas quatro anos, os missionários
tenham transformado Alto Alegre – que depois foi denominado Colônia de São
José da Providência – num verdadeiro canteiro de obras agrícolas. À sombria e
triste majestade da mata virgem haviam sucedido roças e campos abertos,
cultivados com todos os melhoramentos da agricultura moderna. Mandioca,
milho, arroz davam colheitas abundantes. Onde antes não se viam mais que
espinheiros, contemplavam-se plantações de cana-de-açúcar, bananeiras, e
variadas espécies de plantas frutíferas. A espaços, podiam-se ver largos tratos,
cheios de brancos capuchos de algodão. Em lugares mais reservados, canteiros
bem protegidos mostravam as qualidades de todo gênero de hortaliças e legumes.
Pequenas casas cobertas de telha tomaram o lugar das antigas palhoças, únicas
habitações conhecidas pelos selvagens. Isso, quanto ao plano material, pois,
quanto ao espiritual, aqui na colônia não mais se ouviam os roucos instrumentos
dos pajés ou feiticeiros a chamarem os selvagens às matas para oferecer sacrifícios
ao deus Tupã e depois abandonarem-se aos mais torpes desregramentos. Então
era o som do sino que a todos convidava para a igreja, onde um sacerdote do
verdadeiro Deus oferecia todos os dias o santo sacrifício da missa, onde, com hinos
e cânticos, louvava-se ao Criador, à Virgem Santa, aos anjos e a todos os santos,
onde a palavra de Deus a todos exortava a abandonar o vício e a praticar a virtude.
Alto Alegre ou, melhor dizendo, a Colônia de São José da Providência, era ainda
denominada São Bernardo das Selvas. Lá encontrava abrigo o cansado viajeiro, que
recuperava as forças alquebradas. Alto Alegre era o oásis das selvas. Lá todos
encontravam corações abertos, todos, sem nenhuma distinção, eram recebidos
com o máximo amor, todos eram socorridos, todos eram tratados como irmãos,
porque lá reinava a verdadeira caridade de Jesus Cristo.

104
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

O lugar de onde o escritor – também Frade capuchinho – tem um peso decisivo na forma
como descreve aquele cenário. Não obstante tenham existido casos considerados pela
Ordem como muito bem-sucedidos de indígenas (sobretudo, pela localização, os
Tenetehara-Guajajara) que se adaptaram à missão e métodos dos lombardos, permanecia o
constante estado de tensão e dificuldades de arregimentação de mais sujeitos que deveriam
ser objetos daquela ação cristã-civilizatória.

Eram, de fato, exemplos de experiências de negociação das relações de sobrevivência no


campo do real, ou seja, aquelas relações não seriam sempre de conflitos, assim, havia
indígenas convertidos ao catolicismo, que aprendiam ofícios na Colônia, que se tornaram
camponeses, casaram-se e somaram aos seus hábitos originais alguns outros apreendidos
com as ações dos Capuchinhos, como, em parte, descritas por Monza (2016). Por outro
lado, a força das raízes culturais (sobretudo dos Tenetehara-Guajajara, mais numerosos na
Missão) os “métodos” de obtenção de crianças indígenas para transmissão dos
ensinamentos e a dificuldade dos religiosos em extirparem aquele enraizamento
permanecia como problemática constante e ponto de atrito.

Um dos casos que personificam esse tipo de descrição é o de Caiuré Imana, que era uma
importante liderança entre os Tenetehara-Guajajara e, no contexto da rebelião que se voltou
contra a Missão de São José da Providência, tornou-se uma figura de obrigatória menção,
povoando o imaginário da sociedade envolvente e a dos Tenetehara-Guajajara, a partir de
construções bastante diferentes.

Em nota pré-textual, no livro de Bartolomeo da Monza, o pesquisador Carlos de Lima afirma


que “Caboré fora criado por famílias de Barra do Corda, sabia ler e escrever, era batizado e
se impunha como líder”. Afirma-se na região que teria nascido na Aldeia Jacaré e vivido parte
de seus primeiros anos com uma família não indígena de Barra do Corda, retornando ao
convívio dos Tenetehara-Guajajara ainda no princípio de sua adolescência.

A partir desse ponto, não são claras, tampouco definitivas as informações acerca da
trajetória de vida deste personagem. Descreve-se, no imaginário da região, apenas o seu
surgimento como uma liderança importante no seio do povo de maior contingente da
região, como já citado, sendo ele, ainda segundo Carlos de Lima, cacique da Aldeia do Coco,
a mais numerosa.

Caiuré era considerado uma referência do sucesso da missão porque converteu-se ao


catolicismo, sendo batizado, recebendo outros sacramentos daquela religião, inclusive
chegando a casar-se em cerimônia religiosa que – diz-se na região – dada a simbologia de
sucesso da ação missionária dos Capuchinhos na região e a importância de sua liderança,
atraiu algumas figuras tradicionais dos municípios de Barra do Corda e Grajaú.

Muito provavelmente, o passado em uma família pertencente à sociedade envolvente e os


traços de aprendizado de outro padrão de cultura, facilitaram a aparente assimilação inicial
dos ensinamentos capuchinhos por Caiuré. Por outro lado, a manutenção de antigos hábitos

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

que desagradavam os chefes daquela Missão Religiosa e, de certo modo, escandalizavam


os costumes pregados, deslocando Caiuré do lugar de bom para o de mau exemplo, o
fizeram cair em desgraça com os Franciscanos.

Everton (2016), ao tratar dos embates de memória existentes em torno do Conflito de Alto
Alegre, cita entrevista com um cacique da Aldeia Crioli, em que esse líder faz referência ao
rompimento da monogamia por Caiuré como fato desencadeador de uma violenta
repressão por parte dos Frades, auxiliados por uma espécie de milícia indígena. Ao saberem
que Caiuré tinha uma segunda esposa – fato que o próprio assumiu, ao ser inquirido sobre
isso – ordenaram sua captura e prisão por alguns dias, acorrentado, algumas vezes pelas
mãos, outras pelos pés.

Na região, conta-se que, ao ser posto em liberdade, Caiuré procurou fazer alianças com
várias lideranças da região19, inclusive aproveitando-se dos casos em que essas tivessem
algum histórico de conflito com os religiosos. Documentos também dão conta de uma ida
sua à presença do então governador do Maranhão, João Gualberto Torreão da Costa, de
quem teria recebido armas, munições, roupas e uma patente – com efeito mais simbólico
que prático, sob o olhar não indígena – de capitão.

No início do ano de 1901, uma epidemia de sarampo acabou vitimando muitos meninos e
meninas que estudavam e habitavam a Missão de São José da Providência. É alegado pelos
indígenas que, não bastasse o método dos frades (que, à época, às vezes chegavam a,
praticamente, sequestrar algumas crianças, causando problemas de toda ordem, à saúde
das mães e à própria sociedade Tenetehara-Guajajara), a não devolução dos corpos das
crianças falecidas, para os ritos fúnebres e de despedida, causou intensa revolta no seio
desse povo.

Estavam lançadas as bases necessárias para o desfecho dramático de 13 de março de 1901,


quando, liderados por Caiuré, os indígenas adentram a Missão e executam cerca de
duzentas pessoas, das quais, treze religiosos. A imprensa da época noticiou o fato como
Massacre ou “Hecatombe do Alto Alegre”. Este último título aparece nomeando um
capítulo da obra de Brandes (1994), memorialística importante na região.

A repressão que se seguiu foi forte e violenta, com envio de tropas, prisões, perseguições
dos indígenas nas matas e assassinatos. Caiuré acabou sendo preso e conduzido para a
Cadeia de Barra do Corda, juntamente com alguns outros acusados. Ao fim do ano de 1901,
morreria na prisão (segundo a memória indígena da região, após ser submetido a várias
formas de maus tratos). Os demais acusados, julgados, foram considerados inimputáveis.

Sem ter a intenção de biografar, profundamente, Caiuré Imana, tampouco de traçar uma
história mais longa a respeito do Conflito de Alto Alegre, é sobre este personagem que

19 A maioria Tenetehara-Guajajara, mas é provável, segundo Gomes (2002) que houvesse participação de
alguns Timbira também.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Olímpio Cruz construiu algumas de suas obras. O autor teve, em sua trajetória intelectual e
profissional, um conjunto de elementos que o impulsionaram a escrever sobre a temática
indígena.

Nascido em Barra do Corda, em outubro de 1909, Olímpio Cruz foi escritor, poeta, político,
colaborou com matérias para alguns jornais da imprensa maranhense, fundou, em Barra do
Corda, o Jornal O Limiar,20 funcionário público federal e aposentado como Inspetor de
Índios. Essas atividades, sobretudo a última, marcaram profundamente a produção do
autor, que redigiu poemas, obras ficcionais em prosa, estudos sobre linguística e deu
importante contribuição para os que lhe sucederam, a respeito da temática indígena. Das
várias obras que dialogam com esse tema, para efeito deste artigo, utilizar-se-á a obra
“Caiuré Imana: o cacique rebelde”. Cruz é considerado um dos mais importantes literatos
barra-cordenses, tendo em vista o quanto e o quê produziu em sua trajetória.

Olímpio Cruz materializou a construção de Caiuré Imana a partir, evidentemente, de algum


grau de idealização, mas, com doses generosas de influência de sua vivência, sobretudo,
segundo sua biografia, dos quase quarenta anos em que viveu entre vários povos indígenas,
dentre os quais os Tenetehara-Guajajara, de onde seu personagem era oriundo, e do
ambiente de sua cidade natal, Barra do Corda. Considerando a potência do imaginário sobre
esse fato em pleno século XXI, infere-se que seu nascimento (1909), menos de uma década
depois do acontecimento (1901), fez com que Cruz tenha vivido em um ambiente no qual
essa temática e as formas de representação da figura de Caiuré fossem ainda muito mais
presentes. Cruz (1982, p.17) apresenta sua obra afirmando:
Possuindo, em parte, material e documentos adquiridos no correr dos anos, em
exaustivas pesquisas realizadas por algumas cidades do interior maranhense, em
diversas aldeias da tribo guajajara, (algumas delas, hoje inexistentes) e também
através de conversas com pessoas daquela época e alguns índios sobreviventes
dos acontecimentos, apresentamos ao leitor o nosso trabalho que pretendemos
se constitua, apenas, em esclarecimentos dos fatos e forneça subsídios aos
estudiosos da causa do índio brasileiro. CAUIRÉ IMANA, uma reportagem-
documento sem pretensão alguma de amoldar-se às características de romance,
além das crenças, usos e costumes dos guajajaras, relata as causas que, para os
índios, justificaram aquele massacre em Alto Alegre, município de Barra do Corda,
no Maranhão, consequência de um violento choque entre duas civilizações
culturalmente distanciadas vários séculos.

Mais do que a biografia com uma representação do personagem homônimo à obra, Olímpio
Cruz realiza uma reconstrução do conflito, na perspectiva de experiências e conhecimentos
já mencionados e do imaginário regional, na perspectiva do peso da ideia de “Massacre”.
Na sua narrativa, procura enfocar alguns detalhes que, geralmente, não são encontrados
em outros textos acerca dessa matéria e transita entre a impressão de sua visão, a tentativa
de evidenciar a compreensão das motivações dos indígenas e a maneira como a população

20 De acordo com informações do site OLIMPIO CRUZ – Brasil – Poesia dos Brasis – Maranhão – Distrito
Federal www.antoniomiranda.com.br. Consulta em 02/06/2021.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

regional tem, construída no seu imaginário, a memória sobre a rebelião, bastante


influenciada pelo olhar dos religiosos.

A obra Caiuré Imana tem uma abordagem um tanto mais ampla das questões em torno do
“Massacre de Alto Alegre” (como nela denominado), se diferindo de outras produções do
século XX, especialmente aquelas que não são oriundas da historiografia e foram escritas na
região. Não obstante apresente, ao final da obra, uma visão dos religiosos capuchinhos
acerca da rebelião, essa não parece ter caráter definidor do que o autor pensava sobre sua
ocorrência.

Muitas, dentre as versões mais cristalizadas no imaginário regional sobre o Conflito e da


atuação de seus personagens, são reeditadas na obra de Cruz. Contudo, ainda que não se
desconsidere a poderosa influência dessa memória regional na sua escrita, a maneira como
interpreta o fato difere um pouco das visões mais tradicionais porque ele procurou
evidenciar, em alguns pontos de seu livro, que havia razões, dentro daquele contexto, para
que os Tenetehara-Guajajara tenham tido comportamentos variados ao longo do histórico
das relações com os Capuchinhos e, sobretudo, para que tenham se levantado contra a
Missão, de aceitação e colaboração com a missão, de contestação, de resistência e de
violência que – segundo uma possibilidade de interpretação a partir da construção do
personagem Caiuré Imana – aparece como uma espécie de linguagem que traduz o
inconformismo desse povo com a situação anterior ao fato de 13 de março de 1901.

Ainda assim, percebe-se na obra de Cruz um tom sempre preocupado em estabelecer certa
conciliação de visões e interesses. O fato de ser barra-cordense e estar em lugares sociais
que – naquele corpus – lhe possibilitavam acesso e contatos diretos (até mesmo em função
de, àquela época, tratar-se de uma cidade com poucos milhares de habitantes) com
algumas das instituições que estiveram frontalmente envolvidas no Conflito de Alto Alegre
(assim como contatos com seus representantes), provavelmente, pesou para que o autor
fizesse a escolha dessa linha de escrita.

É nesse bojo que, como parte dessa construção, além do Caiuré, outros tradicionais
personagens constantemente presentes no imaginário regional também surgem na obra,
como Jauarauhu, cacique de uma aldeia da região, e Perpetinha Moreira, filha de
fazendeiros do município de Grajaú (cujo desfecho no livro usa como recurso sua
transformação em lenda, a de que ela haveria se transformado e uma garça), são parte das
páginas escritas por Olímpio Cruz. O imaginário regional dá conta de que o destino dos dois
entrecruzou-se quando ele, também, liderança no Conflito de Alto Alegre, resolve
descumprir a ordem de Caiuré, de assassinar todos os moradores da Missão, sequestrando
Perpétua Moreira, então adolescente para tomá-la por sua mulher.

É em meio a essa caracterização, de espaço, da sociedade regional, da presença dos


religiosos, da situação do Povo Tenetehara-Guajajara (condição essa que o autor conhecia
muito bem) que emerge o protagonista, Caiuré Imana. O indígena construído por Olímpio
Cruz, representado na figura desse “tuxaua rebelde”, como também o alcunha o autor, tem

108
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

características que o distanciam, significativamente, dos indígenas “heróis nacionais” que


se queria construir no século XIX, pelas lentes do Romantismo Indianista.

A construção de um personagem real, com todas as motivações que aparecem na descrição


do ambiente em que se desenrolou o conflito, provavelmente, impactou a forma como
Caiuré é tratado pela pena de Olímpio Cruz. Nas ações desse cacique, ao longo da obra, vê-
se que Cruz o construiu destemido, defensor de seu povo, honrado – sobretudo dentro do
universo de valores da cosmovisão Tenetehara-Guajajara –, inteligente, estrategista,
articulado, dotado de grande poder de persuasão e liderança, dentre outras características
que, para a sociedade ocidental, se considera virtudes.

No entanto, esse conjunto de virtudes também reside no mesmo sujeito que devota um
imenso ódio à sociedade regional, representada nas ações dos religiosos – artífices da
violência que ele sofrera, tem atitudes de vingança, intolerância, soberba e violência, o que
chama bastante atenção na trajetória de Caiuré ao longo dos seus movimentos no livro, pois
essa forma de representação o aproxima do personagem real, de sentimentos e atitudes
reais, diferentemente daqueles que apenas resumiam, em si, virtudes com o propósito da
construção de uma noção de nacionalidade, no século XIX.

A violência, que se traduz nos diálogos e ações de Caiuré, inclusive em suas interlocuções
com outras lideranças, como Jauarahu, parece ser uma linguagem atribuída ao personagem,
através da qual ele tenta expressar uma simetria ao violento processo (tanto física quanto
simbolicamente) de domínio ao qual o Povo Tenetehara-Guajajara foi exposto e, em
particular, o próprio cacique, que tem nessa forma de expressão e na vingança maneiras de
exprimir a efetiva revolta de seu povo.

Certamente, se não passa por herói – seria, nesse sentido, um “anti-herói”, pelas ações e
características representadas na obra de Olímpio Cruz – para a dita sociedade envolvente
que, pelos próprios embates de memória e silenciamentos construídos pelas Instituições
“proprietárias” dos discursos mais potentes, como bem apontado em Everton (2016), o
Caiuré Imana dessa obra cumpre um importante papel, também de heroísmo, junto ao Povo
Tenetehara-Guajajara.

Diferentemente da perspectiva, inclusive apontada em alguns trabalhos acadêmicos do


século XX, como o de Wagley e Galvão, que dava conta de uma depressão na demografia
do Povo Tenetehara-Guajajara, Gomes (2002) e Coelho (2002), apontam que o Conflito de
Alto Alegre trouxe como repercussão o afastamento entre a sociedade envolvente e o povo
de Caiuré Imana, atribuindo à ocorrência daquela rebelião, também, a importância de ter
contribuído para a reversão daquela tendência apontada outrora, com a população desse
povo indígena passando a crescer.

109
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

6 Considerações finais

A representação dos povos indígenas em obras literárias ou históricas, de certo modo,


obedeceu (e obedece) às mentalidades dominantes e os projetos que elas encamparam (e
encampam) quanto ao que o Estado ou instituições que exercem poder (muitas vezes a
serviço em nome dos “Governos”). Contudo, há de se apontar que é possível a existência
de outros escritos que, se não caminham em sentido oposto, propõem outras formas de
construção.

Revisitando o que foi mencionado nesta produção, com o pretexto de reunir embaixo de
um mesmo manto toda a população sob um signo de nacionalidade, a partir das primeiras
décadas que se seguiram à emancipação política do Brasil, essa busca utilizava a
representação do indígena como mote, em vários níveis.

A produção dos intelectuais ligados ao IHGB, majoritariamente, pensando “o indígena” a


partir da necessidade de “resolver o problema” que esse sujeito representava para a nação
que se formava pós 1838 (ano de criação desse Instituto) ou tendo uma posição que, de
certo modo, pode ser considerada ambígua em relação aos povos indígenas, ora tratados
como os legítimos brasileiros, ora como obstáculos à civilização e, por muitos momentos,
omitidos dessa produção.

Ainda no século XIX, a Literatura Romântica da I Geração no Brasil, a do Romantismo


Indianista, cujos representantes eleitos para este artigo foram Gonçalves Dias e José de
Alencar e suas obras, estruturou uma narrativa – em verso ou prosa – em que “o indígena”
era o bom selvagem e encerrava em si toda a virtude necessária para a formação dos heróis
que deveriam se tornar a própria personificação do povo daquela jovem nação.

Essa produção intelectual dos oitocentos, importante e, sobretudo, completamente


inteligível pelos analistas que lhes são posteriores, considerado o devido contexto de sua
produção, seja na historiografia brasileira ou nas obras dos literatos a que se fez alusão,
mostra diferenças perceptíveis entre elas na forma como representara os povos indígenas.
Contudo, no geral, eram ligeiras diversidades, quanto à forma como era vista a questão por
cada sujeito que produzia aquele conhecimento, estando, por outro lado, presente uma
generalização que, na maioria das vezes, fazia com que houvesse referências ao “indígena”
de identidade única.

Esse tipo de representação, embora algumas vezes denominados povos, objeto de


trabalhos historiográficos ou que faziam parte das tramas literárias, não escapava das
generalizações e, na maioria das vezes, quando muito, seguia a norma de pensamento
vigente, à época, de “opor” os comportamentos de “tupis e tapuias” como uma espécie de
divisão em que dois grandes grupos determinassem as características daquelas sociedades
com milhares de particularidades. Aquela produção, de fato, buscava a superação dessas
particularidades em nome da homogeneização do sujeito nacional, erigindo (sobretudo na
Literatura) personagens – indígenas – como heróis para os brasileiros.

110
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Olímpio Cruz, no século XX e em contexto diferente, à vista da representação construída na


obra Caiuré Imana e tudo que faz parte do universo dessa obra, caminha em uma direção
que não se pode afirmar completamente oposta, mas, pelo menos, com um distanciamento
mais significativo. Construindo uma obra que é, simultaneamente, literária e tem base nos
fatos e personagens ligados ao Conflito de Alto Alegre, conseguiu mostrar um povo, os
Tenetehara-Guajajara, em aspectos específicos de sua história, sua espacialidade e cultura.

Com essa forma de representação, se distingue das obras literárias citadas, anteriores no
tempo à sua, por quebrar o padrão da generalização que caracterizava aquela produção.
Sua maneira de construir o personagem Caiuré, em várias passagens, faz referência à etnia
“Guajajara”, aparentemente, sem a ambição de que esta funcione como uma lente de
aumento através da qual se poderia estabelecer um sumário daquilo que são os outros
povos originários do território brasileiro.

Por fim, como é tradicional nas obras literárias, o Caiuré também é um herói como também
um anti-herói. A simultaneidade dessas identidades depende muito do olhar e lugar social
do leitor e da leitora que tiverem acesso à sua obra. Uma leitura sem a compreensão dos
significados e sentimentos representados por aquele “tuxaua”, de forma mais apressada,
pode provocar a impressão de que a representação construída por Cruz tinha uma intenção
pejorativa acerca daquele indígena, porém, aquela figura do Caiuré, foi uma representação
de um “mito” (por todas as narrativas que se construiu no imaginário regional a respeito
dessa figura), agente, humanizado.

Referências

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111
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

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112
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

ENTRE TRANÇADOS E LAÇOS:


A CESTARIA DO POVO KRIKATI
E SUA INFLUÊNCIA NA
IDENTIDADE CULTURAL
SERTANEJA SUL-MARANHENSE

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

ENTRE TRANÇADOS E LAÇOS: A CESTARIA DO POVO KRIKATI E SUA


INFLUÊNCIA NA IDENTIDADE CULTURAL SERTANEJA SUL-MARANHENSE

Ana Karina Almeida Teotonho1


Ana Karolyne Santos Araújo2
Wanderson Sousa Costa3

1 Conhecendo o “Paiz Timbira”

Paiz Timbira como denominado pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú (1994) refere-se aos
povos tradicionais habitantes do cerrado maranhense, e também parte do Tocantins e Pará.
De acordo com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a população Timbira (até o ano de
2016) era de 9 mil pessoas, estando subdividida em 63 aldeias e 7 terras indígenas, dividida
entre as etnias: Apinajé, Gavião Parkatejê, Gavião Pykopjê, Krahô, Kanela Apanyekrá, Kanela
Ramkokamekrá e, por fim, o povo Krikati, que será o principal objeto de estudo deste
artigo4.

De acordo com Nimuendajú (1944, p. 123), além de compartilharem a mesma família


linguística, o tronco Jê, esta etnia divide também outras características sociais e culturais
sobre as quais este autor escreve:
Os Timbiras têm consciência de que são tribos de uma grande unidade étnica, cujas
características mais importantes são, além da língua mais ou menos igual,
sobretudo o sulco horizontal no cabelo, as rodelas auriculares, a aldeia circular e a
corrida de toras (NIMUENDAJÚ, 1944, p. 123).

Outra forte característica cultural dos Timbiras são suas aldeias circulares, Nimuendajú
(1944, p. 76) afirma que os próprios indígenas reconhecem tal forma geométrica como uma
de suas muitas expressões culturais. O autor destaca que a aldeia deve ter um chão plano,
o solo não pode ser arenoso nem distante de água e nas proximidades deve haver bastante

1 Graduanda em História Licenciatura pela Universidade Estadual da Região Tocantina do


Maranhão.Experiência na área de História, atuando principalmente em: Patrimônio Cultural, História Social e
Etno História. Colaboradora do Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira (CPAHT). Atualmente é
bolsista do Programa de Iniciação Científica (2020/2021) cota UEMASUL com o projeto: territorialidades e
sustentabilidade: povos indígenas e populações tradicionais na Amazônia Oriental.
2 Graduanda em História pela Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL).
Colaboradora do Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira (CPAHT). Experiência na área de
História, atuando principalmente em: Cultura Popular, Patrimônio, Literatura e Arte.
3 Atualmente cursa Licenciatura em História pela Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão -
UEMASUL, tem experiência na área de História, com ênfase em História Indígena , desenvolve pesquisas
também em Museologia, Expografia e Fotografia. Atualmente é bolsista do Programa de Iniciação Científica
(2020/2021) cota UEMASUL com o projeto: Gestão Territorial e Ambiental de Terras Timbiras, no Maranhão. É
também colaborador do Núcleo de Estudos Africanos e Indígenas (NEAI-UEMASUL).
4 Estamos considerando neste estudo apenas os seis grupos que estão associados à Wyty-Catë (Krahô,
Apinajé, Canela Apãnjekra e Ramkokamekra, Krikati e Gavião Pukobjê

114
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

mata ciliar, as casas ficam ao redor do círculo, e no centro fica o espaço chamado de “Pátio”
onde ocorrem as reuniões e as festividades.
Os próprios Timbiras consideram como um dos mais característicos elementos da
sua cultura a forma circular das suas aldeias. Enquanto os Timbiras ainda possuírem
a sua consciência étnica não se deixarão persuadir a abandonar esta forma de
habitar em conjunto, intimamente ligada à sua organização social e cerimonial
(NIMUENDAJÚ, 1944, p.76).

Entre os diversos traços da cultural Timbira, é importante destacar a dualidade de suas


organizações social, que é como se organizam em muitas atividades do cotidiano. Ávila
(2006, p. 02) salienta que “Esta organização dual reflete em diversos aspectos da sua
estrutura social”, estes pares podem estar relacionados às estações do ano como o inverno
e o verão, organiza também a produção econômica e ritual, como a corrida de toras que é
disputada por dois partidos, chamados de partido de baixo (harãcatêjê) que fica para a
direção do pôr do sol, e partido de cima (Kỳjcatêjê) que fica em direção do nascer do sol.
A condução da política da aldeia é responsabilidade masculina, cuja expressão
espacial é o pátio central (kä), onde se discutem diariamente as conduções das
atividades cotidianas da aldeia, como trabalhos agrícolas, caçadas, coletas e
condução da política da aldeia com os cupẽ (brancos). Este espaço político é
também o espaço das danças, cantorias e realização dos vários rituais que marcam
o calendário dos Timbiras (ÁVILA, 2006, p.02).

No que concerne a questão territorial indígena (questão essa que deve ser debatida mesmo
após tantos anos fazendo parte da realidade dos indígenas), iniciou-se a partir da década de
1970 uma mobilização indígena de cunho político, visando o diálogo com o Estado a respeito
da demarcação de terras indígenas, situação que sempre foi tensa, Nascimento (2014)
observa que:
Esse movimento aproximou os laços de alianças entre vários povos indígenas.
Considero essa situação relevante para a unidade de luta entre os povos indígenas,
principalmente aqueles que têm afinidades socioculturais comuns como é o caso
dos Timbiras. A partir das lutas comuns pela garantia dos territórios indígenas, os
Timbiras passaram a articular visitas frequentes entre eles, uma espécie de
intercâmbio; começaram a participar com mais frequência das grandes festas
tradicionais, consolidando as alianças, que foram fragmentadas em períodos
anteriores e abrindo-se novas, principalmente entre aqueles grupos Timbira dos
quais se tem registros como protagonistas de guerras intertribais (NASCIMENTO,
2014, p.04).

A forma como se organizam atualmente preserva muito das raízes indígenas, mesmo após
mais de 200 anos de contato, resistindo mesmo com a intersecção da cultura do Homem
branco com o Indígena. A cultura Timbira é complexa, rica e multifacetada, portanto, a visão
deste trabalho se debruça especificamente na cultura da etnia Krikati ou Krikateyê, que
segundo Nimuendaju (1944, p.12) significa “os da aldeia” e está ligado ao mito da Aldeia
Grande, já de acordo com Corrêa (2014) o contato com o cupẽ (a forma como os indígenas
chamam o branco), passou a fazer parte dos fatores que influenciam a dispersão das aldeias
Krikatis por vários pontos do Maranhão.

115
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Corrêa (2014), baseada na obra de Ladeira (1989), discorre sobre o "êxodo" do povo Krikati
a partir de sua saída da Serra do Cocalinho, posteriormente a este evento, formaram uma
aldeia na cabeceira do Pindaré, desceram as águas do São Gregório e formaram a aldeia
Hõcrécaixô, ainda segundo esta autora, houve nesta aldeia um episódio em que crianças
Krikati foram roubadas por brancos; exigindo suas crianças de volta eles invadiram uma
fazenda e imediatamente após o ataque se refugiaram na Serra da Desordem, onde
formaram uma nova aldeia próxima à Colônia de Santa Tereza (atual Imperatriz - MA).

Quanto ao processo de demarcação de terras, após diversas circunstâncias difíceis e um


clima nada amistoso entre fazendeiros e indígenas Krikati, que estavam, evidentemente, de
lados opostos da demarcação, este finalmente chegou ao fim após muitas lutas e
resistências, com a vitória do povo Krikati e, em 1992, a Funai encaminha para o Ministério
da Justiça a proposta de 146.000 hectares para seguir com a demarcação da terra indígena
Krikati (CORREA, 2014, p.10).

Figura 1- Área preservada de Cerrado na TI KRIKATI


Fonte: Arquivo do Acervo Pessoal, Wanderson Sousa Costa (2020).

2 O cerrado no cotidiano do povo Krikati

O emaranhamento cultural existente e sua influência na identidade cultural sertaneja Sul


maranhense a partir das práticas religiosas, econômicas, sociais e culturais exercidas pelo
povo Krikati, habitantes do Sul do Maranhão, se materializa em seus trançados e laços. A
rica biodiversidade do Cerrado unida aos modos de vida desenvolvidos pelos indígenas,
proporciona uma ligação direta com a terra, e uma consciência quanto à preservação da
natureza (Figura 1).

116
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Em suas festividades e ritos, é notória a representação da fauna e da flora, os ciclos


comemorativos seguem o ritmo das estações do ano. A cultura material se revela através
de pacarás, bastões cerimoniais, cocais das mais diversas cores, todos feitos a partir do que
o Cerrado proporciona como matéria prima. O mito é uma forma de se reviver a história e os
mitos cosmológicos Krikati, são por excelência um exemplo vivo de como são suas relações
com o Cerrado, suas ligações com o mundo espiritual se fazem com a conexão que se cria
com a natureza.

Uma das suas festividades mais conhecidas é o Ritual do Ceveiro. O ritual faz parte da
tradição dos povos Timbira. No período de 3 meses ou mais, moças e rapazes selecionados
por suas famílias, vivem a experiência de ficarem reclusos em ocas (Figura 2), feitas
tipicamente da palha da piaçava e do buriti. Logo após esse período, os jovens que
vivenciaram a experiência estarão prontos para a vida em sociedade e a saída é um motivo
de comemoração para toda a aldeia. Todos se ornamentam com grafismos, plumagens e
adornos.

Figura 2: Oca confeccionada a partir das folhas de palmeira


Fonte: Arquivo do Acervo Pessoal, Wanderson Sousa Costa (2020).

117
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Desta forma, buscamos destacar as formas de expressão que reforçam a identidade Timbira
presente na cultura popular Sul maranhense, registrados no cotidiano rural a partir dos
saberes e fazeres ancestrais indígenas, presentes e vivenciados até hoje. Entre elas a
confecção de cestarias e objetos utilitários, todos extraídos das palmeiras abundantes em
seu território, como o Buriti, a Piaçava, o Babaçu e o Patis.

A exemplo da palmeira Buriti, na mitologia Timbira, ela se encontra entre os mundos visível
e invisível. O buriti é ligado a vários momentos da vida de um indivíduo Timbira, tanto os
cotidianos quanto os cerimoniais e liminares: “as esteiras são associadas entre os
momentos cruciais da formação do indivíduo e da construção da pessoa Timbira”
(MELATTI,1978).

Em relação à bibliografia sobre os Ramkokamekrá e os Krahó, destaca-se a grande


quantidade de objetos elaborados de palmeiras para fins utilitários e rituais, ressaltando a
importância simbólica dessa vegetação. Francisco Paes confirma que o buriti é a mais
imprescindível entre as variadas espécies vegetais usadas pelos Timbiras e confirma que, se
a palavra “timbira” for de origem tupi, pode significar “os amarrados” – em que tin =
amarrar, pi'ra = passivo –, referindo-se aos variados adornos de palha (e também de
algodão) que utilizam sobre o corpo. Os Timbiras, por sua vez, se autodenominam Mehím,
que significa da minha carne ou do meu sangue (PAES, 2004, p. 276).

O povo Krikati tem acesso há uma grande quantidade de frutas selváticas variadas,
presentes no Bioma Cerrado, como a mangaba (Hancorníaspeciosa), murici (Byrsonima), caju
(Anacardium occidentalis), pequi (Caryocar brasiliense), bacaba (Oenocarpus circumtextus),
buriti (Mauritiavinifera), juçara (Euterpe edulis), cajá (Spondiaslutea) e também o babaçu
(Orbigniamartiana) (BARROS, 1999, p.122).

A culinária é uma grande herança Timbira, sendo comum o manuseio e consumo entre a
população da Amazônia Oriental. Quando os frutos do buritizeiro e o pequi acabam, por
exemplo, milho, abóbora e melancia ficam maduros. O uso do jirau usado nos ritos de
iniciação Timbira, também é um costume reproduzido pelos sertanejos, que ao sofrer
processos de adaptação e ressignificação, por exemplo, assume a função de lavabo.

Maria Mirtes dos Santos Barros (1999) comenta que “Os homens fazem a coleta da
matéria-prima importante para produzir esses utensílios, eles extraem taliscas do pecíolo da
folha do Buriti e a partir daí, produzem cestos. Tem grande variedade os padrões
geométricos: sarjado, losango com diamante, listas inclinadas, listras em ziguezague,
transversais e verticais” (BARROS, 1999, p.123). E para tais práticas e modo de sobrevivência
biodiverso seja preservado e tenha continuidade, é necessário a defesa do Cerrado.

Atualmente, assistimos a números alarmantes dos altos índices de desmatamento e


destruição do Cerrado, o bioma que é considerado um dos mais ricos em biodiversidade do
mundo e responsável por ser o berço das maiores bacias hidrográficas do Brasil,
popularmente conhecido como a “caixa d'água do país”, infelizmente, vem padecendo

118
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

frente ao avanço do agronegócio e de grandes empreendimentos que visam a abundância


de seus recursos.

Segundo dados divulgados, em 2018, pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF), a análise,
feita por 50 pesquisadores em todo o mundo com base em pesquisas de 19 organizações,
apontou para um desmatamento intenso, que reduziu, desde 1970, 50% do Cerrado (VEIGA,
2018). Analisando o cenário especificamente do Cerrado Sul maranhense, temos nos últimos
anos o Maranhão como um dos Estados que lideram o ranking de ocupação do bioma por
atividades agrícolas. Como comenta Jaime Garcia Siqueira Junior:
A região onde se localizam as terras Timbiras é caracterizada por um processo de
expansão da fronteira agrícola, levando a ocupações irregulares, à implantação de
monoculturas, principalmente soja, à criação de gado nas fazendas vizinhas e a um
desenvolvimento regional intenso, acarretando forte pressão nas terras indígenas,
que contam ainda com grande parte de seus recursos naturais relativamente
preservados. Há, em virtude disto, uma preocupação constante dos Timbiras com
a fiscalização de suas terras (SIQUEIRA JUNIOR, 2007, p. 230).

Tais empreendimentos cada vez mais presentes, próximos a TI Krikati, ameaçam a


continuidade e sobrevivência do modo de vida e de organização diferenciada por esse povo.
O discurso do desenvolvimento cada vez mais financiado pelos próprios órgãos do Estado
vai contra os ideais de preservação, de vivência em harmonia e trocas benéficas entre o
homem e a natureza. Nega-se o direito originário ao território, ao passo que o ambiente que
é habitado há tempos pelo povo krikati é destruído e comercializado.

Hoje, o povo Krikati sobrevive e resiste em seu território, justamente por defender seu
próprio ser, sua identidade ancestral. Como pontua Maria Mirtes dos Santos Barros “a arte
Krikati, a cultura, os saberes e afazeres, [...]expressões socioculturais evidenciam as
relações sociais e políticas desse povo, e que reforçam a identidade étnica e garante a
possibilidade de existir como cultura diferenciada” (BARROS, 2002, p. 1), sendo parte
integrante da identidade cultural Sul maranhense.

Por isso, a importância de ressaltarmos os costumes, cantigas e gestos, a reprodução


cultural à “forma Timbira”, para preservação ambiental, equilíbrio dos ecossistemas, a
manutenção da fauna e da flora como garantia de vida em plenitude na Amazônia Oriental.
Seus conhecimentos de gestão e manejo do Cerrado que vem sendo colocado em prática
há tempos, exemplificam como é possível viver em harmonia com o meio, sem prejudicá-lo.
Tendo a educação patrimonial como “alfabetizadora” cultural, destacamos que é
imprescindível se discutir sobre o conhecimento e a conservação da identidade Krikati,
garantindo assim sua perpetuação e agindo como agentes de salvaguarda e preservação.

Dessa forma, não podemos negar que, desde seu pioneirismo de ocupação do Cerrado
maranhense, o povo Krikati faz notória suas práticas de preservação, de convívio
harmonioso e de luta para manutenção do seu território, são verdadeiros guardiões do
Cerrado e com caras pintadas colocam suas vidas em risco para cuidar da mãe terra.

119
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

3 Entre trançados e laços

Para entender como se origina a criação da cultura material de um determinado povo


precisamos entender como ele se relaciona com o espaço em que vive, conforme explanado
por Feitosa e Menendez (2020):
Da relação do indígena com o espaço da aldeia emerge a criação dos seus objetos
de uso doméstico, aquilo que usam na vida cotidiana e que está impregnado dos
símbolos de sua cultura. Abordamos a aldeia enquanto espaço vivido, formando a
noção de lugar, expressa por grande variedade de sentimentos emersos da
evolução do processo de reconhecimento de sua dependência dos recursos
disponibilizados e de sua vinculação ao espírito do lugar que se manifesta a partir
da experiência e por meio de longa vivência (FEITOSA; MENENDEZ, 2020, p. 08).

Podemos compreender assim como cada povo desenvolve sua cultura material, fruto do
local em que vivem, tal fato pode ser observado a partir de outros povos e suas artes como
as famosas cerâmicas marajoaras produzidas por indígenas da ilha de Marajó (Pará) que
continham em suas obras características ligadas ao ambiente em que as produziam, como
as conchas marítimas e os desenhos com animais típicos da fauna amazônica. Há também
em Mato Grosso do Sul a técnica da tecelagem, desenvolvida pelos indígenas Guarani, que
utilizam em sua composição as fibras de caraguatá (Bromelia antiacantha) planta típica da
Mata Atlântica, portanto, veremos também a influência da natura local não só na arte Krikati
mas em todas as etnias do tronco Jê-Timbira.

O Cerrado maranhense, entre tantas espécies de árvores, possui principalmente três plantas
típicas: o Bacuri (Platonia insignis), Buriti (Mauritia flexuosa) e o Babaçu (Attalea speciosa),
desta maneira, é possível afirmar que principalmente destas árvores se origina a maior parte
da produção cultural Timbira, já que segundo o Centro de Trabalho indigenista (CTI) os
povos Timbiras não produzem artefatos em cerâmica, sua cultura é composta por
aproximadamente 65% de itens utilizando como principal matéria-prima as árvores típicas
do Cerrado. Segundo Feitosa e Menendez (2020):
A palmeira “buriti” é a mesma fonte do material utilizado na elaboração da cestaria
objeto deste estudo, como expressão da cultura material do povo. O uso do buriti
para a confecção de artefatos por estes povos é de grande variedade e extensão,
abrangendo testeiras e cestos, e está inserida em um contexto ambiental onde a
matéria-prima é a retirada de árvores nativas próprias de segmentos do espaço da
Aldeia o qual constitui um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas
de ação, marcados pelos sentimentos dos lugares que o formam (FEITOSA;
MENENDEZ, 2020, p.07)

Em grande parte da produção Timbira, e, consequentemente, Krikati, o material vegetal será


encontrado como principal matéria-prima na composição de seus objetos, tanto em suas
indumentárias ritualísticas, quanto em adereços do dia a dia, como objetos de utilização
caseira, tais quais o abano utilizado para atiçar o fogo e cestos para o armazenamento de
cereais, peixes e outros alimentos.

120
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Há uma enorme variedade de cestos, com processos mais simples a mais complexos, com
diversas cores, formatos, durabilidade e complexidade, os cestos são confeccionados com
folhas, fios e talos de buriti, tucum, guarumã, piaçava, marajá, buritirana, bacaba e babaçu,
do qual ainda se pode usar o olho e as raízes. Entre outros objetos de palha podemos
encontrar também o Tapiti, tipoias e peneiras, que são orgânicas, fáceis de serem
carregadas e refeitas.

Quanto à produção das cestarias e outras artes Krikati, a forma como estes se organizam
socialmente reflete em suas produções artísticas. De acordo com Barros (1999), entre os
Krikati, a habilidade de produzir os artefatos está ligada a qualquer indivíduo da aldeia,
todavia, como citado anteriormente, os trabalhos da comunidade estão sujeitos a divisão
sexual do trabalho e à capacidade com a qual, segundo os indígenas, cada pessoa da aldeia
já nasce predisposta.

Segundo os Timbiras, ao longo do seu crescimento a criança sente dentro de si a vontade


de produzir os artefatos e procura um chefe que os ensine. Segundo Barros (1999), caso a
criança decida seguir se aperfeiçoando, deverá recorrer a alguém mais velho para o guiar, a
cestaria é em geral uma produção masculina, salvo exceções como na produção de
artesanatos com fins comerciais. Esta mesma autora afirma que:
A arte nessa sociedade está inserida em dois grandes campos que se
interpenetram: um vinculado ao cotidiano e outro aos rituais. A cestaria, em
princípio, é a técnica utilizada para a produção de utensílios de uso doméstico
feminino, para a colheita de frutos silvestres e cultiváveis. Esse trabalho é
executado por homens, que também coletam a matéria-prima necessária para
fazer esses utensílios. A produção artística, assim como as demais atividades, acha-
se disciplinada pela divisão do trabalho. Os objetos de uso feminino, como o cesto
e as esteiras para se sentar, são confeccionados pelo homem (pai, irmão ou
marido) (BARROS, 1999, p.124).

Através de um estudo profundo de Barros (1999) sobre a produção das cestarias e outros
artefatos, a partir das palhas das árvores, pode-se notar a complexidade por trás de tais
produções, há um universo de detalhes que compõem o fazer Krikati, as músicas cantadas,
as cores que são pintadas e as formas geométricas utilizadas.

Diferente do consenso que existe, em que se valoriza principalmente produções de povos


ceramistas, há uma genuína e complexa beleza na produção das cestarias, não apenas
beleza como também funcionalidade, já que diversos objetos indígenas foram trazidos para
facilitar o cotidiano do branco, há numerosos produtos que estão até hoje inseridos na vida
do sertanejo.

4 Entre trançados e memórias

Como comentado anteriormente, ao contrário de muitos povos indígenas do Brasil, a


maioria dos povos originários habitantes do Cerrado não têm em sua cultura material

121
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

objetos produzidos majoritariamente de cerâmica. Silva (1995) explica que, por estarem
presentes no contexto do Cerrado, a ausência de objetos cerâmicos entre esses povos se
deve, provavelmente, por conta da frequente transição entre territórios, determinada por
uma economia sazonal, que obrigaram, no passado, a mobilização desses grupos –
caçadores e coletores – a percorrerem longos percursos a pé pelo Cerrado durante a
estação da seca. Desse modo, potes e panelas de barro, que são pesados e quebradiços,
dificultariam os deslocamentos a serem realizados. Por conta disso, o uso de matérias-
primas encontradas no seu meio, que se mostraram leves e de fácil descarte, tornaram-se
mais atrativas, iniciando no que se configuraria como cultura material do povo Timbira,
caracterizada, sobretudo, por cestarias.

É preciso levar em consideração alguns fatores importantes na produção da cestaria Krikati,


tais como: os recursos naturais que estão disponíveis para serem utilizados como matérias-
primas, o desenvolvimento de técnicas adequadas nos modos de fazer os trançados, as
atividades que envolvem a exploração do ambiente ao redor e, por fim, a utilidade e
finalidade prática dos objetos materiais desenvolvidos, que podem ser de cunho simbólico,
religioso, estético e/ou utilitário. Ou seja, a tecnologia e as matérias-primas utilizadas; a
adaptação ecológica realizada e a utilização desses objetos cotidianamente, bem como
fatores que envolvem a estética, os significados e suas simbologias artísticas, uma vez que,
ao contrário dos ocidentais, as culturas indígenas não distinguem aquilo que é útil daquilo
que é belo (SILVA, 1995, p. 369).
Assim também um cesto só é bonito quando for bom, ou seja, útil. Para começar,
ele precisa ser feito dentro dos moldes estabelecidos pela sociedade, tanto em
termos técnicos quanto estéticos. Ele tem que seguir o estilo usado pelos
antepassados para este tipo de objeto. Isto indica que a tradição é referência
importante na avaliação da beleza de um objeto. Se ele estiver perfeitamente
adaptado à sua técnica e elaborado de maneira fina e precisa, ele será considerado
bonito, pois foi feito por alguém que sabe o que faz (SILVA, 1995, p.375).

Na imagem a seguir, há a disposição de utensílios feitos a partir da técnica de trançados


utilizada pelos Timbiras. É possível notar, mesmo que superficialmente, os padrões estéticos
presentes nas mesmas. São utensílios utilizados cotidianamente por esses povos, servindo,
sobretudo, para armazenamento de alimentos.

122
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 3- Cestaria Timbira na exposição do Acervo Etnográfico do Centro de Pesquisa em


Arqueologia e História Timbira – CPAHT “ASCOM/UEMASUL”
Fonte: ASCOM/UEMASUL

Reflete-se que o conjunto de objetos que configuram o sistema da cultura material desses
povos apresentam um lado sensível e visual, configurando-se como um recurso para se
compreender os contextos socioculturais desses povos frente a uma lacuna de informações
existentes. Desse modo, os objetos presentes na cultura material Krikati apresenta-se como
um meio de se obter mais informações, demonstrando os seus modos de viver, fazer e
reproduzir em sua produção material e artística.

Esses objetos – as cestarias – são formas expressivas da cultura do povo Krikati, sendo,
inclusive, um elemento de comunicação que remete a uma longa tradição de saberes e
fazeres desse povo, bem como uma marca específica de sua identidade (assim como para
os demais Timbiras), pois falam das experiências compartilhadas no momento de confecção
das cestarias, passados de geração para geração, conectando passado e presente, que
indicam as relações entre o indivíduo e o patrimônio cultural ao grupo em que ele pertence.
Silva (1995), em seus estudos sobre os objetos presentes nas sociedades indígenas, pontua
que há diferentes formas de se entender a cultura e a forma que ela se expressa, podendo
ser por meio de objetos criados e incorporados em sua vivência:
Se entendemos cultura como um código simbólico compartilhado pelos membros
de um grupo social específico que, através dela, atribuem significados ao mundo e
expressam o seu modo de entender a vida e suas concepções quanto à maneira
como ela deva ser vivida, percebemos que a cultura permeia toda a experiência
humana, intermediando as relações dos seres humanos entre si, e deles com a
natureza e com o mundo sobrenatural. Com esta definição em mente, é fácil
compreender que cultura se compõe de ideias, concepções, significados, sempre
reelaborados, ao longo do tempo e através do espaço e que seu dinamismo

123
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

acompanha o da própria vida. Compreendemos também que esses significados e


concepções se expressam: seja através das práticas sociais, seja através do
discurso, da fala, das manifestações artísticas de um povo ou, ainda, através da
criação dos objetos incorporados à sua vivência (SILVA, 1995, p. 369).

Segundo Ribeiro (1986), é por meio dos objetos que os grupos humanos conseguem
assimilar o seu meio, utilizando-se dele e imprimindo nele a sua marca. Não obstante, tal
qual ocorre com os Krikati, em que, por meio das cestarias, conseguem traçar suas
simbologias mais íntimas. A cultura material desse povo é um importante patrimônio que
deve ser preservado em locais de memória. No caso dos Krikati/Timbiras, isso é ainda mais
pertinente, tendo em vista que as cestarias produzidas por esses povos influenciaram na
cultura material do homem sertanejo do Sul maranhense.

Figura 4- Representação da Casa de Taipa na exposição do Acervo Cultura Popular do Centro de


Pesquisa em Arqueologia e História Timbira – CPAHT.
Fonte: ASCOM/UEMASUL

Na imagem acima, há a representação de uma casa de taipa no acervo de Cultura Popular do


Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira. A casa de taipa, também conhecida
como casa de barro e casa de pau a pique, é uma técnica de construção que consiste em
madeiras verticais fixadas no solo com algumas vigas dispostas na horizontal, sendo
amarradas entre si por cipós, dando origem à um painel, cujos espaços vazios são
preenchidos por barro molhado e amassado, até se formarem colunas de paredes
resistentes. O telhado geralmente é coberto com palhas de coco babaçu ou palha de coco
najá. No interior das casas de taipa, no contexto da região Centro-Sul maranhense, é possível
notar objetos que fazem parte da cultura material sertaneja: pilão, bileira, fogareiro de
barro, ferro a brasa, panela de barro, cabaça, cofo de palha e quibano de palha (Figura 4).

124
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Em suma, a casa de taipa representa a mescla cultural dos saberes e fazeres dos povos
indígenas com elementos oriundos dos colonizadores europeus, resultando em um dos
fundamentos mais importantes da identidade social e cultural das comunidades sertanejas.
Atualmente, essas casas ainda fazem parte do cotidiano desses grupos no interior do
Maranhão, demonstrando a influência indígena na identidade cultural sertaneja a partir da
reprodução de objetos, com saberes e fazeres próprios, consolidando-se em sua cultura
material, como é o caso do cofo de palha e abano de palha.

Isso levanta algumas discussões sobre a relação entre cultura material, memória e
identidade. De modo geral, a cultura material é “tudo aquilo que é formado pela
materialidade, isto é, composta de objetos e coisas materiais presentes no mundo”
(AZULAI, 2017, p.3). Isso aponta que, de certo modo, os objetos materiais vêm a se
constituir presente na subjetividade individual e coletiva da sociedade, presentes naquilo
que há de mais profundo na mente humana: a memória, sendo a mesma a “única coisa que
resta quando a materialidade deixa de existir” (AZULAI, 2017, p. 2).

Os objetos materiais e a sociedade se relacionam entre si, uma vez que é possível acessar o
passado por meio desses objetos, contribuindo tanto para a formação do presente como
para a sua continuidade. Segundo Gonçalves (2007), as pessoas, enquanto socialmente
constituídas, não existiriam sem a presença de objetos materiais, pois estes estão presentes
na vida de cada indivíduo, seja em contextos sociais, simbólicos e ritualísticos, sejam eles
privados do meio cotidiano e direcionados para ambientes institucionais, a exemplo dos
museus. Azulai (2017) pontua que é importante notar que:
Os objetos não apenas dizem a respeito de funções identitárias, revelando de
forma simbólica nossas identidades individuais e sociais, mas também organizando
na medida em que os objetos são “categoriais materializadas”, a percepção que
temos de nós mesmos (AZULAI, 2017, p. 4).

Nesse sentido, os museus assumem um papel importante na sociedade, visto que, para
além de lugares que ajudam a nos direcionar ao passado, os museus exercem um papel de
suma importância ao exercer a conexão entre passado, presente e futuro, atuando como
um instrumento responsável por salvaguardar a memória cultural de um povo por meio do
seu patrimônio material e imaterial, sendo, inclusive, designado para ser a via de acesso para
difusão da informação e, consequentemente, educação desse patrimônio.

5 O sertão sul maranhense é indígena

É notório que a cultura brasileira, em um contexto geral, é resultado de uma rica mistura de
povos: brancos, negros e indígenas, mas nem sempre a sociedade discute ou observa quais
as contribuições de cada povo. Entre os muitos estigmas carregados pelos povos indígenas,
há o de não serem produtores de conhecimentos ou tecnologias, de acordo com Rocha
(2017, p.173):

125
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Um fator que nos chama a atenção é a crença segundo a qual o indígena não
produz nada, conforme o sertanejo, a terra não tem serventia nenhuma, pois a
função da terra para o sertanejo é que ela sirva para produzir. São simbologias
diferentes que respingam na constituição identitária e na forma de enxergar a si
mesmo e ao outro.

Considerando o cenário apresentado por este autor, é possível notar a dificuldade em


entender o outro e respeitar as diferenças de culturas, o que muitos não percebem é o
quanto há de cultura indígena na cultura que hoje é conhecida como “cultura sertaneja”.
Poucos são os sertanejos que têm consciência da quantidade de produções materiais de
origem indígena que fazem parte do seu dia a dia. O motivo do pouco conhecimento sobre
esses objetos advém principalmente da desinformação e dos estigmas que há anos vêm
sendo colocados sobre os povos nativos, reforçando um imaginário de incapacidade do
indígena em produzir adereços imprescindíveis.

Os sertanejos, assim como a sociedade quase que em sua totalidade, não têm a percepção
das contribuições dos povos indígenas para a cultura. No Sertão, grande parte dos fazeres
indígenas foram aprendidos por negros e mestiços, os conhecimentos acerca do Cerrado
são também de origem indígena. Corroborando este fato, Rocha (2012) elucida que:
Nesse sentido a tradicionalidade se configura enquanto elemento importante para
se entender a construção histórica e geográfica dessa região, em que os saberes e
conhecimentos indígenas foi, em sua maioria, apreendido pelos povos mestiços e
negros que habitam o Cerrado desde o período colonial, o que faz, com que o
patrimônio sertanejo de conhecimento sobre os Cerrados seja, majoritariamente,
de origem indígena (ROCHA, 2017, p.186).

São diversas as influências dos indígenas para a identidade cultural sertaneja, entre eles
estão um vasto conhecimento de plantas que podem servir como medicamento natural, a
produção de objetos como abano, balaio, pilão, esteiras e afins, além de serem os
responsáveis pela enorme diversidade de árvores frutíferas em nossa região. As árvores
cultivadas pelos indígenas, a princípio de maneira involuntária e posteriormente de forma
consciente, culminaram com o que se conhece como os frutos do Cerrado, como o bacuri,
a jussara, a bacaba, buriti e tantas outras, e são destas árvores que a maioria das palhas
usadas para produzir as cestarias são retiradas, dando múltiplos usos para a vegetação
característica da região.

Tais conhecimentos dominados pelos indígenas foram de suma importância para a


sobrevivência dos ocupantes desse território, e neste ponto há então uma troca de
conhecimentos e interação entre ambos. Segundo Carvalho (2006), os recém chegados
moradores conseguiram manter e talvez ampliar os conhecimentos indígenas do uso de
plantas e animais do Cerrado, conservando e, ao mesmo tempo, recriando as práticas
extrativistas oriundas dos povos indígenas. A cultura sertaneja maranhense como
conhecemos hoje é o resultado de uma história que tem como protagonistas além do
próprio sertanejo, também o indígena, que é um importante ator cultural e protagonista de
sua própria história.

126
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

6 Importância do CPAHT para a salvaguarda da memória sertaneja e indígena

Os museus enquanto lugar de memória, salvamento, guarda, conservação, preservação e


comunicação, deve pensar nas representações dos objetos que estão presentes no seu
acervo e de que modo eles irão influenciar no repasse de conhecimento para o público, por
meio da sua exposição guiada como reflexões de cunho educativo.

O Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira (CPAHT) é uma instituição de


guarda e pesquisa ligado à Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão
(UEMASUL), localizado na cidade de Imperatriz, no Oeste do Estado do Maranhão, na
região compreendida culturalmente como Sul do Maranhão. O CPAHT é o primeiro espaço
museológico da região Centro-Sul maranhense a resguardar os bens materiais do acervo
etnológico pertencente aos povos Timbiras, com materiais de uso cotidiano e ritualístico
que representam a cultura, tradição e cosmovisão desses povos, tais quais como toras,
cestarias, máscaras, colares instrumentos de sopro e percussão. Além disso, o CPAHT é a
terceira instituição de guarda de acervo arqueológico do Maranhão e a primeira a
salvaguardar o patrimônio material arqueológico oriundo de pesquisas desenvolvidas na
região.

Enquanto espaço museológico, o CPAHT tem uma exposição permanente com acervo
arqueológico, etnológico e cultura popular que auxiliam na divulgação de conhecimento
sobre os povos antigos e originários, bem como as suas permanências no modo de viver,
saber e fazer cotidiano, transpassando a temporalidade de passado e presente
evidenciados pela materialidade. Já enquanto instituição de guarda, o CPAHT tem a
responsabilidade de desenvolver ações que envolvem pesquisa, conservação e socialização
do Patrimônio Cultural em seus espaços, exaltando a história, memória e identidade regional
a partir da cultura material e imaterial que constituem a herança cultural da sociedade Sul
maranhense.

O CPAHT é aberto gratuitamente à comunidade acadêmica, regional e público em geral,


recebendo em seu interior visitas que podem ser individuais ou em grupo (sendo necessário
agendamento prévio em grupos acima de 20 pessoas), direcionadas e guiadas por
mentores. Além disso, desenvolve ações educativas e patrimoniais em seus espaços com
eventos e exposições temporárias, a exemplo da exposição fotográfica “PAIZ TIMBIRA”.

127
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 5- Exposição Permanente do CPAHT.


Fonte: ASCOM/UEMASUL

A exposição fotográfica “PAIZ TIMBIRA” foi realizada na 17ª Semana Nacional dos Museus,
representando os povos indígenas Apinayé, Canela Apanyekrá, Canela Memortumré, Gavião
Parkatejê, Krahô, Krikati, e Gavião Pykopjê. A programação do evento também contou com
mesa redonda, visitas guiadas, palestras, oficinas, rodas de conversa e exibição de filmes e
debates, tendo ao menos um representante indígena Timbira em cada atividade.

Figura 6- Exposição Fotográfica PAIZ TIMBIRA na 17° Semana Nacional dos Museus.
Fonte: ASCOM/ UEMASUL

O espaço destinado para representar a cultura popular sertaneja, já demonstrado


anteriormente, é o que mais gera conexão com os visitantes, pois os mesmos já tiveram, de
algum modo, contato com um ambiente real de uma casa de taipa, seja por meio de

128
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

vivências próprias ou testemunhos de seus antepassados. É um espaço significativo para a


relação entre museus e sociedade, pois consegue remeter a memória e atribui um
sentimento de pertencimento identitário com os objetos ali expostos. O abano de palha
(também conhecido como Quibano, Quimbundo, Kibandu ou peneira) por exemplo, é um
objeto arredondado criado originalmente pelos indígenas para auxiliar na separação de
grãos e veio a ser utilizado posteriormente pelas comunidades interioranas devido a sua
utilidade e eficácia. É uma demonstração clara da influência da cultura material indígena na
identidade cultural sertaneja.

Figura 7- Exposição de utensílios domésticos fabricados a partir da palha de palmeiras


Fonte: Arquivo do Acervo Pessoal, Wanderson Sousa Costa (2020).

Em suma, a partir dos estudos da cultura material Krikati e suas influências perante os
sertanejos, o Centro de Pesquisa em Arqueologia e História Timbira (CPAHT) surge como um
lugar para auxiliar na Pesquisa, Conservação e Socialização do patrimônio Cultural Timbira e
Sertanejo, sendo inclusive possível traçar um olhar desse espaço que vai além da
materialidade, contribuindo para as reflexões de história, memória e identidade cultural,
proporcionando conhecimento e divulgação social

129
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

7 Ameaças ao cerrado e as culturas sul-maranhense

Considerado o segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado hoje, conforme dados do
Ministério do Meio Ambiente (2021), ocupa uma área de 2.036.448 km2, o equivalente a 22%
do território nacional, sendo considerado Patrimônio Nacional pela constituição brasileira,
todavia, apresenta em grande parte de sua extensão um elevado processo de degradação
devido à ascensão das fronteiras agrícolas.

Muita se discute acerca do quanto a destruição dos biomas causa o desequilíbrio ambiental,
o que não é exclusivo do bioma do Cerrado e que pode levar o planeta a um estágio
irreversível, desta forma, ressalta-se que é de extrema necessidade que assuntos ligados à
conservação do meio ambiente continuem a serem debatidos. A destruição dos biomas, na
região Sul do Maranhão, especificamente o Cerrado, ocasionam também no
desaparecimento de aspectos culturais que são intrinsecamente ligados ao ambiente,
culturas que são geradas a partir do espaço em que se vive.

É indiscutível como nos últimos anos a exploração territorial do Cerrado no Maranhão tem
avançado, o que ameaça o estilo de vida dos sertanejos e indígenas, sendo este segundo
grupo duplamente afetado, uma vez que sofreram com o impacto cultural provocado pela
frente de expansão pastoril no século XIX (CABRAL, 1992), e permanecem continuamente
ameaçados, sendo gradativamente submergidos pelas crescentes investidas dos setores do
agronegócio. Vemos, neste estudo, como a maneira de fazer e ser do indígena do Cerrado
é inerente ao meio em que vivem, e a destruição deste bioma está intimamente ligado à
extinção também de sua cultura como a que temos hoje, no qual consoante a isto considera
Oliveira (2014):
Tendo em vista essa rápida expansão das fronteiras do agronegócio pelo Centro-
Sul maranhense, bem como as consequentes transformações econômicas, sociais
e ambientais da região, os impactos dessa ocupação predatória se fazem sentir
junto às populações indígenas, especialmente aquelas localizadas em áreas de
cerrado (OLIVEIRA, 2014, p.80).

A produção cultural desta localidade é um símbolo típico da cultura sertaneja, através dela
podemos notar a interação intercultural entre o sertanejo e o indígena, ao não se preservar
tais traços culturais tão fortes, a sociedade corre o risco de perder diversas de suas
características sul maranhenses e, consequentemente, nordestinas. A não preservação do
Cerrado maranhense implica na destruição desse bioma, não apenas do meio ambiente
como também de suas populações tradicionais, de saberes seculares, de modos de
subsistência e de um abandono e perda de identidade sertaneja:
Ao acelerar o processo de ocupação do Cerrado por empreendimentos vinculados
ao agronegócio, esses megaprojetos e programas induzem à transformação
ambiental e econômica, uma região de tradicional ocupação indígena e pastoril,
onde vigorava uma situação de contato intersocietário relativamente estabilizada
entre índios e sertanejos, com consequências devastadoras aos povos indígenas e
populações regionais (OLIVEIRA, 2014, p. 87).

130
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

8 Conclusão

O objetivo deste trabalho foi realizar um estudo abrangente sobre a cestaria do povo Krikati
e sua influência na identidade cultural sertaneja Sul maranhense. Destacando de início o
sentimento de coletividade que é compartilhado pelos povos Timbiras, sendo essa unidade
uma das responsáveis pela continuidade da sua cultura, e de seu modo de ser e de existir
no Cerrado maranhense. A resistência em seus territórios é a expressão máxima de defesa
do direito originário e de existir enquanto cultura diferenciada, a ocupação do Cerrado é a
prisma para sua perpetuação.

O emaranhamento cultural se faz presente por meio da cultura material, dos modos de ser
e de fazer, colocando as populações indígenas como protagonistas de parte da identidade
sertaneja, nunca sendo uma identidade estática, mas entrelaçada, isto é, sendo complexa e
sofisticada, tradicional, mas, mutável. A interação cultural está presente na alimentação, nos
hábitos do cotidiano, nas palavras. As contribuições culturais das mais diversas, são um
espelho de todo o acervo visível e invisível da riqueza cultural do povo Krikati, objeto do
nosso estudo.

Quando pensamos na dimensão territorial não devemos nos limitar a espaços físicos, o
existir Krikati vai além do que é visto pelos olhos, suas impressões e contribuições estão no
DNA do indivíduo sul maranhense. Mesmo que a história dita oficial ainda insista em negar
tais influências culturais, quando investigamos, elas afloram, assim como a buritizal que
continua verde durante o período de veraneio, graças ao seu complexo conjunto de raízes,
a história indígena está fincada na identidade do que se entende por brasileiro.

Cada artefato, objeto utilitário, adorno, cocar, cada pintura, confeccionados a partir de
técnicas minuciosas e com uma tecnologia milenar que é viva, é a expressão máxima da
existência do ser indígena. Precisamos incentivar e reconhecer as práticas de salvaguarda
do patrimônio da cultural material e imaterial, pois seu desenvolvimento ao mesmo tempo
em que proporciona autoidentificação de povos e comunidades tradicionais, se torna
também uma forma de garantir a perpetuação e existência deles, questão que está
intimamente ligada também à preservação da natureza, dos ecossistemas e da vida.

Mais uma vez façamos a reflexão sobre as condições atuais que as populações indígenas
enfrentam para sobreviver, a Constituição de 1988 foi apenas a ponta do iceberg que o
Movimento Indígena conquistou com muita luta e até com derramamento de sangue dos
seus irmãos. Acompanhamos retrocessos sem precedentes quanto às políticas e direitos
das populações indígenas, que cada dia mais ameaçam sua própria existência. A negação à
saúde, à educação, à segurança, à autonomia do direito de escolha, à destruição das suas
florestas, à necropolítica no Brasil tem um alvo, e ele tem a cara pintada e resiste desde 1500.

A história Krikati veio antes e é viva até hoje, desde o pioneirismo de ocupação do Cerrado
e de manejo desse bioma tão rico e diverso, tem em suas práticas culturais e sociais a matriz
de toda uma identidade denominada de maranhense. A arqueologia, a museologia, a

131
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

linguística, a história e a antropologia, todas são ciências que fornecem provas e subsídios
para constatação de toda riqueza material e imaterial que é produzida pelo povo Krikati, e
que é vivenciada por cada habitante das terras onde há muitas palmeiras e onde canta o
sabiá.

9 Referências

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132
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

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133
SERTÃO MARANHENSE:
ASPECTOS FÍSICOS DA REGIÃO
GUAJAJARAS

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

SERTÃO MARANHENSE: ASPECTOS FÍSICOS DA REGIÃO GUAJAJARAS

Carlos Eduardo Penha Everton1


Ithamar Vicente França Oliveira2
Luciana Helena da Silva3

1 Introdução

Muito além de um espaço geográfico, o Sertão é, antes de tudo, uma construção histórico-
social, que se consolidou através de consecutivos reforços imagéticos, simbólicos,
semióticos, metafóricos e metalinguísticos enraizados no imaginário coletivo brasileiro.

Área de predominância do clima semiárido, o sertão nordestino euclidiano, possui


vegetação endêmica chamada de caatinga. Ficou conhecida como região da seca e da fome,
mas, paradoxalmente, é uma região de muitas potencialidades reunindo importantes
complexos produtivos.

Sub-região do Nordeste brasileiro, é um espaço marcado secularmente pelo discurso da


tragédia hídrica. Esse discurso serviu de base ao mesmo tempo em que foi legitimado pelas
diversas representações literárias, impondo uma identidade e moldando as formas de ser
do sertanejo.

Tornou-se um espaço onde coabitam tempos modernos e tempos arcaicos, espaços


globalizados e espaços excluídos do processo globalizatório, reunindo lugares
modernizados pelos equipamentos tecnológicos e inserção nas redes com estruturas
sociais tradicionais como o compadrio e a política do cabresto.

O próprio termo Sertão é contraditório, pois significa o interior do país, sendo utilizado para
definir áreas como o Cerrado brasileiro e áreas do Planalto Central do país, agregando à

1
Doutorando em História pelo Programa PPGHIST, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Professor do IFMA Campus Barra do Corda. Email: eduardo.everton@ifma.edu.br.
2
Experiência na área de Geografia e História, tendo lecionado estas duas disciplinas no Ensino Fundamental e
Médio, No Colégio Decisão, além de atuar como professor do cursinho pré-vestibular mantido pelo Diretório
Central dos Estudantes da Universidade Estadual do Maranhão campus Imperatriz, há três anos.
3
Possui graduação em Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (2005)
Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (2008) e Doutorado em Geografia pela
mesma instituição (2016). Foi professora técnico - educacional em geografia pela Secretaria de Educação do
Estado de Pernambuco. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Política Educacional, voltada
principalmente para formação continuada de professores de Geografia. No campo acadêmico possui
trabalhos nos seguintes temas: urbanização, globalização, consumo, verticalização e Amazônia. Atualmente
ocupa o cargo de Professora EBTT de Geografia e exerce a função de Chefe do Departamento de Ensino no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA Campus Barra do Corda.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

identidade sertaneja áreas desassociadas geograficamente do emblemático Sertão


nordestino. Sertões como o de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Jorge Amado.

Assim, em meio a esses inúmeros sertões, destacamos o Sertão maranhense, espaço que
geograficamente está localizado incrustado em partes do Centro-Sul e Sudeste
maranhense. Espaço esse, com predominância de bioma cerrado e suas variações: cerradão,
campo limpo, etc., popularmente associado ao sertão da Caatinga semiárida.

Tamanha associação faz com que, porção substancial da população, relacione essas áreas
como parte indissociável do sertão tradicional, regiões díspares, fisiograficamente e
culturalmente. Ao mesmo tempo, esse imaginário aproxima esses espaços, unindo-os
através da construção narrativa e dos diversos discursos acumulados na história.

Assim, buscaremos caracterizar os aspectos naturais referentes ao bioma local, como forma
de dissociar o “Sertão Verde”, de Graciliano Ramos, do “Sertão Seco” de Euclides da Cunha.

Figura 01: Cachoeira Grande – Barra do Corda.


Fonte: barradocordanotícia.com

Conhecida popularmente como sub-região da Mata dos Cocais, o Maranhão é, mais


precisamente, uma área de transição que possui, por conseguinte, mescla de biomas
diversos como o do Cerrado, Caatinga, Manguezal, Restinga, Cocais e Floresta Amazônica.

Essa riqueza paisagística inspirou narrativas diversas, imprimindo nas formas físicas as
interpretações humanas sobre o espaço. Assim, as características morfoclimáticas são
elementos indissociáveis para a compreensão da formação das aglomerações humanas.

136
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A região dos Guajajaras, para ser compreendida, precisa ser lida em todos os seus aspectos.
Localizada dentro do Planalto, está entre as áreas mais elevadas do Centro-Sul maranhense,
com altitudes que variam entre 200 e 800 metros. Quanto às unidades de relevo, agrupa o
Pediplano Central, Planalto Oriental, Planalto Ocidental, Depressão do Balsas e o Planalto
Meridional.

Figura 02: Mapa da Região Guajajaras.


Fonte: Governo do Estado do Maranhão Secretaria de Estado do Planejamento e Orçamento –
SEPLAN.

Esse Pediplano abrange a área norte do Planalto maranhense. Possui feições com formas
dissecadas pela superimposição da rede de drenagem, formando topos tabulares com
vertentes abruptas que declinam para colinas de declividade média a alta. Nesta localidade,
destacam-se a Serra de Cinta, Serra Negra, Serra Branca, Alpercatas e Itapecuru. Nessa
região, a altitude máxima pode chegar a 686 m na serra Negra.

137
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 03:
Fonte: https://maranhaoprofundo.wordpress.com/2018/10/08/formosa-da-serra-negra-ma/

Figura 04:
Fonte: https://maranhaoprofundo.wordpress.com/2018/10/08/formosa-da-serra-negra-ma/

138
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

O chamado Planalto Oriental corresponde ao conjunto de morfoestruturas localizadas no


Leste maranhense, que se prolonga na direção Nordeste. Possui forma tabulares, com
altitudes atingindo o máximo de 460 m, com declives para os vales mais amplos das colinas,
onde encontramos a Serra do Valentim.

O Planalto Ocidental agrega o conjunto de morfoescultural do Oeste maranhense com


altitudes em torno de 350 m e direcionamento do Nordeste para o Sudoeste, onde estão
localizadas as serras do Gurupi, Tiracambu e Desordem.

Figura 05: Reserva biológica do Gurupi.


Fonte: http://www.klimanaturali.org/2010/12/reserva-biologica-do-gurupi-ma.html

Em se tratando da depressão do Balsas, esta compreende o conjunto morfoestrutural de


depósitos rebaixados, modelados pela drenagem do rio Balsas junto com seus afluentes, no
sentido Leste-Oeste. Predominam as formas amplas e baixas, com altitudes a Oeste, nas
cabeceiras dos rios, alcançando 350 m.

Seus principais rios são os Corda e Mearim, que se encontram dentro da cidade, formando
o médio curso do rio Mearim. Essa área é formada basicamente por rochas sedimentares do
cretáceo oriundos da Bacia Sedimentar do Parnaíba, por arenitos fluvioeólicos
ortoquartzíticos da Formação Corda, arenitos finos da Formação Grajaú e arenitos e argilitos
da Formação Itapecuru.

Essa disponibilidade de arenitos possibilitou à região a formação de importantes aquíferos.


Além do mais, os grandes corpos areníticos são extraídos para uso na construção civil, e
podem, também, constituir um importante reservatório de petróleo, assim como os

139
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

argilitos. O município possui ainda, derivadas do Grupo Itapecuru: reservas de caulim


(mineral utilizado na industrialização de plásticos, pesticidas, rações, produtos alimentícios,
farmacêuticos, fertilizantes etc.); reservas de calcário, oriundas da Formação Codó, e
decorrentes da Formação Sardinha, encontramos os basaltos e diabásios, rochas que ao se
decomporem originam solos extremamente férteis (terra roxa), propícios à agricultura.

O calcário e basalto também são amplamente utilizados na construção civil. Em decorrência


disso, desenvolveu-se um pequeno arranjo produtivo em Barra do Corda, em torno da
extração mineral para a construção civil, que vai desde a fabricação de insumos, como a
extração de gipsita e a mineração de areia e argila à comercialização de materiais de
construção e insumos.

Quanto aos tipos de solos, predominam os Latossolos Amarelos e Vermelho-Amarelos


distróficos, tipos característicos de áreas de relevos plano, suave ondulado ou ondulado.
Todos eles são solos propícios à agricultura. Quanto aos eutróficos, possuem fertilidade
moderada que pode ser corrigida com fertilizantes, quanto aos órticos, possuem alto teor
de matéria orgânica e textura arenosa, com alta potencialidade para reflorestamento.

Essas características pedológicas e edafológicas contribuíram para o desenvolvimento da


agricultura, que em Barra do Corda são predominantemente de manejo tradicional com
cultivos de hortifrútis como tomate, banana, cana-de-açúcar, laranja, soja, mandioca, feijão
e milho. Em 2010, Barra do Corda teve a segunda maior produção agropecuária do
Maranhão, perdendo apenas para São Raimundo das Mangabeiras. No município de Barra
do Corda, na região planáltica predominam florestas do tipo Cerrado.

Devido à predominância de uma vegetação propensa aos incêndios naturais, aliada à prática
de limpeza rápida ou renovação da pastagem, de determinadas áreas agrícolas, através do
fogo, uso comum para destocamento da área, é que o município sofre, periodicamente,
com os altos índices de queimadas e poluição do ar. Contribui ainda para esse triste cenário
a presença de atividades econômicas de silvicultura, exploração vegetal e serviços
relacionados a essa prática como a produção de carvão vegetal. Em função desse relevo e
a dinâmica hidrográfica é que o município detém potencial eco turístico.

Com dois rios principais entrecortando a cidade e belíssimas cachoeiras, Barra do Corda tem
atraído visitante amantes da natureza. Segundo Everton (2016), Barra do Corda pertence,
nos aspectos territorial e simbólico, à região que os cronistas e emissários oficiais já
denominavam, na fase colonial do Brasil, como “Sertão”.

Sem o intuito de discutir as várias noções e definições possíveis para essa categoria – Sertão
– pode-se afirmar, no entanto, que o maranhense tem especificidades que fogem ao
arquétipo do espaço estéril, seco e inóspito. Na verdade, mostra-se um lugar de natureza
exuberante, com uma hidrografia vasta e bastante atrativa às ocupações humanas.

De acordo com Cabral (1992), a colonização dos “Sertões maranhenses” foi tardia em
relação à presença oficial na porção Norte do território atual do Estado do Maranhão, por

140
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

várias razões dentre as quais cabe destacar a necessidade luso-espanhola de assegurar a


posse territorial no início do século XVII, frente às investidas de franceses e holandeses, por
exemplo.

Não dispondo de recursos econômicos suficientes para a promoção da colonização por igual
e em vista dos interesses econômicos mais voltados ao litoral e suas adjacências, todos os
esforços foram envidados para que ali se concretizasse o projeto colonial. O Sertão, não
obstante suas potencialidades econômicas, até o início do século XVIII, permanece
negligenciado desse processo, sendo alvo – por parte da oficialidade – apenas de presenças
sazonais e isoladas de algumas expedições.

Quanto a essa questão, Carlota Carvalho, que viveu no Maranhão no século XIX e teve sua
obra “O Sertão” publicado em 1924, traça um perfil sobre a situação maranhense entre o
século XVII e XIX, apontando para as áreas já ocupadas pela colonização, ao Norte (iniciativa
oficial), ao Sul (devida a iniciativas particulares de Entradas e criadores de gado da Bahia e
Pernambuco com ponto mais avançado para o Norte, no Porto da Chapada, atual Grajaú –
município vizinho à Barra do Corda) e a Leste algumas vilas no atual território piauiense.
Havia, contudo, especificidades em parte desse sertão, em sua área mais central (se
considerado o atual território do Maranhão).

Uma delas, na visão do colonizador, era sua “ausência”, por não haver ações concretas do
Estado naquele espaço. A outra é que, como movimento resultante das guerras travadas
entre as populações nativas (principalmente na região de Monção, que, hodiernamente é
genericamente conhecido como Vale do Pindaré) e dos conflitos, ainda mais violentos, com
os colonizadores, povos indígenas foram se estabelecendo na região, como os Tenetehara-
Guajajaras, de grande quantitativo naquela área até os dias atuais. Carvalho, em sua obra,
descreve essa região como a área da “Grande Desordem”.

Assim, a região necessitava, por um conjunto de razões, ser incorporada ao projeto de


colonização. Aproveitando-se o revelo planáltico propício à criação de animais soltos, seria
possível implantar, ali também, essa atividade. Era uma região com dois rios, dos quais,
sobretudo o Mearim poderia favorecer a ampliação do alcance das mercadorias vindas da
capital São Luís aos sertões e da própria presença oficial.

Além de tudo, era necessário efetivar uma ligação terrestre entre Porto da Chapada (ponto
mais ao Norte da colonização do Sul) e a região das proximidades de onde, hoje, se localiza
a cidade de Pedreiras (ponto mais ao Sul da colonização do Norte).

Há obras memorialísticas na região que dão conta da missão recebida no início dos anos
1830 pelo ex-combatente da Batalha do Jenipapo, Manoel Rodrigues de Melo Uchoa para
fundar uma povoação nessa região. De acordo com Brandes (1994, p. 56 e 57), ao chegar a
São Luís, o Cônego Machado reiterou para Melo Uchoa as informações que lhe foram
prestadas ainda no Piauí [sobre cuidados com sua família, apoio para entrar no Maranhão e
conhecimento de autoridades e chefes da Província – grifo nosso], quanto a que o governo

141
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

estava interessado em contratar, e até premiar, pessoas sérias e competentes que se


interessassem por descobrir e povoar o centro do Estado do Maranhão (Barra do Corda –
Arquivo Público)

[...] Melo Uchoa é recebido pelo presidente, com quem assume compromissos de
desempenho dos trabalhos de interesse do governo, mudando assim seus primeiros
objetivos, ao deixar sua terra natal, transformando-se num agente do governo da Província
do Maranhão, com credenciais para descobrir e povoar o Centro Geodésico da Província,
até então, sede de índios das tribos Canela e Guajajara, descendentes dos Tapuias e Tupis.
Em meio a esse Cerrado da Chapada de Barra do Corda encontramos várias aldeias indígenas
da etnia Guajajaras (Guajajaras-Tenetehara), povos de língua Tupi e Canelas (Kanelas
Ramkokamekrá), povos de língua Jê, que vivem hoje sob a tutela da FUNAI (Fundação
Nacional dos Índios).

Em 2010 (IBGE), estimava-se uma população de 3.432 indígenas em Barra do Corda, desse
total, 428 viviam nas áreas urbanas e 3004 residiam em áreas rurais. Acrescenta-se que,
devido à sede da Funai, ao comércio e oferta de serviços mais diversificado, é que Barra do
Corda atende aos povos indígenas dos municípios de Fernando Falcão (2.444 indígenas
residentes em 2010) e Jenipapo dos Vieiras (5.437 indígenas residentes em 2010), gerando
uma microrregião chamada de Região dos Guajajaras (IMESC, 2010).

Assim, Barra do Corda funciona como um nó ou polo na rede urbana Sul maranhense,
exercendo influência direta sobre os municípios Jenipapo dos Vieiras e Fernando Falcão, o
que explicaria o maior desempenho do município nos setores de serviços e comércio, que
atendem ao público interno e adjacente, impulsionada principalmente pela comercialização
de produtos agropecuários.

Os municípios de Barra do Corda, Jenipapo dos Vieiras e Fernando Falcão, que se localizam
na região Central do Maranhão, na microrregião do Alto Mearim e Grajaú maranhense, de
clima tropical sub-úmido seco com dois períodos distintos, um chuvoso, conhecido
empiricamente por ‘‘Inverno’’ que vai dos meses de novembro a abril com médias anuais de
1000 a 1300mm de chuva e outro seco que vai de maio a outubro apresentando baixo índice
pluviométrico com médias mensais de 14,1 a 65,9mm. Dados referentes ao período de 1961
a 1990 (JORNAL DO TEMPO, 2011). Estes municípios estão inseridos no Planalto Central
maranhense que possuem altitudes que variam de 100 a 400 metros de altitude, possuindo
grande diversidade de vegetação sendo composta por floresta estacional decidual,
encraves de floresta Ombrófila, floresta estacionais e encraves de cerrado (IMESC, 2008).
Destes o domínio mais presente na região, é o Cerrado que constitui o maior bioma do
Estado do Maranhão.

A floresta Ombrófila corresponde às formações arbóreas secundárias, de aspecto variado,


se apresentando mais densas, e também mais esparsas, apresentando árvores altas com
formações densas. A floresta Estacional Decidual se caracteriza pela presença de árvores de

142
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

médio porte com folhas que caem durante o período seco de estiagem, presentes em
regiões planálticas.

Estão inseridos nos domínios da bacia sedimentar do Parnaíba, que apresentam grande
diversidade de unidades geológicas em sua porção territorial, dentre as quais as formações
Itapecuru, Codó, Grajaú, Sardinha, Mosquito e Formação Sambaíba.

Situada na parte Central do Maranhão, na Chapada de Barra do Corda, encontramos


elevados de níveis de concreções ferruginosas, fazendo com que as águas subterrâneas,
muito consumida em poços artesianos, tenha alto teor de ferro. Esta unidade caracteriza-
se pela dominância dos relevos planos dissecados e com amplos interflúvios tabulares,
talhados em coberturas detríticas com níveis de laterização que originaram solos do tipo
Latossolos Amarelos.

Isso transformou a região numa área de baixa vulnerabilidade, garantindo níveis mais
resistentes do solo, o que mantêm o topo da chapada estável em cotas altimétricas de 80
a 300 m. Na porção Leste, encontramos exposição de arenitos friáveis em razão de
processos erosivos da Formação Grajaú com relevo dissecado em colinas e solos do tipo
Podzólicos Vermelho-Amarelos Concrecionários, com alta vulnerabilidade erosiva.

A bacia sedimentar do Maranhão corresponde à área maranhense do ambiente


deposicional associado ao rio Parnaíba, também denominada bacia do Parnaíba e bacia do
Meio-Norte. Possui cerca de 600.000 km² e ocupa a maior parte dos Estados do Maranhão
e Piauí, além de áreas dos Estados do Ceará, Pará e Tocantins. Está delimitada ao Norte pelas
bacias cretáceas de Barreirinhas e de São Luís, das quais é separada pelo Arco Ferrer-
Urbanos Santos, e, a Leste, Sul e Oeste, pelos ‘‘terrenos cristalinos e suas respectivas
coberturas sedimentares’’ do Escudo Brasileiro (FEITOSA, 1983, P. 41).

143
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 06:
Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-33-Dominios-geomorfologicos-propostos-para-
o-estado-do-Maranhao_fig2_303376012

No que tange à constituição litológica, a bacia do Parnaíba é ainda formada de arenitos


avermelhados, róseos, escuros e esbranquiçados, de granulação, predominantemente fina,
pintalgados de caulim, com grãos subangulares à subarredondados e foscos. Encontramos
ainda, nessa formação, na seção mais superior, depósitos de sílex. No topo da formação,
ocorrem intercalações de basalto, com arenitos bastante silicificados.

Outra importante formação geológica é a do grupo Itapecuru, que ocupa grande parte do
território do município de Barra do Corda se estendendo do Norte até sua porção Oeste,
onde se estende ao município de Jenipapo dos Vieiras, caracterizando parte da região Leste
do município, no extremo Sul do território municipal esta unidade também está presente no
território da cidade de Fernando Falcão. A esta unidade é atribuída a idade Cretácea,
posicionando-a com a discordância local, em relação à formação Codó que caracteriza os
leitos dos rios Mearim e seu afluente principal o rio Corda em toda a sua extensão, da
nascente a sua foz.

144
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Litologicamente, essa unidade consiste no flanco oeste e noroeste da bacia, de arenitos


avermelhados, médios e grosseiros, com faixas conglomeráticas muito argilosas e
intercalações de argilitos e siltitos de coloração variegada. Seguem-se arenitos
avermelhados e esbranquiçados, finos a médios, caulínicos, com estratificação cruzada de
grande porte. Nas demais regiões, os arenitos são em geral finos com faixas de arenitos
médios. Desta maneira, a formação tem a maior expressão geográfica e aflora praticamente
em todo território do município de Barra do Corda, bem como o município de Jenipapo dos
Vieiras na formação Itapecuru.

Figura 07: Formação Codó.


Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-32-Desenvolvimento-de-nivel-ferruginoso-
endurecido-ironstone-sobre-camadas-de_fig1_303376012

Fazendo parte do conjunto geológico da região, a formação Codó ocupa os vales dos rios
Mearim e Corda em toda a sua extensão, sendo formada por conglomerados basais,
sobrepostos por folhelhos cinza-esverdeados a pretos, localmente betuminosos e piritosos,
além de siltitos carbosos, com intercalações de calcário e níveis de gipsita e arenito fino. Essa
seção consiste essencialmente de arenitos, esbranquiçados a cremes, finos a
conglomeráticos, com estratificação cruzada e plano-paralela, com grãos
predominantemente limpos, brilhantes e avermelhados. Esses arenitos ocorrem tanto
friáveis como silificados.

145
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Localmente, é possível encontrar intercalações entre de argilitos vermelhos, arroxeados,


marrons e cremes, com aleitamento ondulado. Essa unidade constitui uma faixa
razoavelmente estreita e descontínua, com direção no sentido Leste para Oeste, mantendo
nas suas estruturas as mesmas direções das camadas mesozóicas. O posicionamento
litológico e estratigráfico das formações Grajaú e Codó indica uma relação cronológica e
estratigráfica entre essas duas unidades geológicas. Ela ocupa uma estreita área a Sudoeste
margeando o leito do Mearim estendendo-se sentido a nascente deste rio.

Figura 08:
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/Parna%C3%ADba_Longitudinal.png

Esta formação tem predominância na porção Sudeste do território, região que tem
confluência com o munícipio de Fernando Falcão, área de nascentes dos afluentes do rio
Corda, tais como rio Ourives, Riachos dos Bois e Santo Estevão, dentre outros.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 09:
Fonte: http://encgeo.blogspot.com/2017/02/bacia-do-grajau.html

147
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Três outras importantes formações estão presentes na região, a Sardinha, Mosquito e


Sambaíba. A Formação Sardinha insere-se dentro da área da Formação Grajaú, ocupando
pequenas porções dentro desta.

Figura 09: Formação Sardinha.


Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-336-Manto-de-intemperismo-derivado-da-
decomposicao-quimica-de-sills-de-diabasio_fig28_303376012

A Formação Mosquito tem forte presença na porção do extremo Sudoeste nas confluências
dos municípios de Grajaú, Barra do Corda, Fernando Falcão e Formosa da Serra Negra,
também inserida na bacia do rio Mearim.

Figura 10: Formação Mosquito.


Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-41-Diques-clasticos-observados-em-diabasio-da-
Formacao-Mosquito-AR-22_fig32_267567371

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A Formação Sambaíba se caracteriza pela sua presença no extremo Sul-Sudoeste do


município fazendo confluência com a Formação Mosquito, enquanto a Formação Sambaíba
se estende ao município de Fernando Falcão.

Figura 11: Formação Sambaíba.


Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-37-Arenitos-medios-com-estratificacao-cruzada-na-
Formacao-Sambaiba-PB-49_fig30_267567371

Nos aspectos fitogeográficos, a região se caracteriza enquanto área de transição entre o


bioma Caatinga e o bioma Floresta Equatorial. Assim, encontramos, predominantemente, o
bioma Cerrado, com manchas dos Cocais.

Considerando ser o Cerrado e a Caatinga da classe das savanas tropicais, algumas espécies
podem surgir aproximando essas duas paisagens que, aqui no Maranhão, ganham a alcunha
de Sertão.

149
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 12: Vereta.


Fonte: https://www.embrapa.br/busca-de-imagens/-/midia/1546001/vereda-com-buritis

Quanto à região Guajajaras, a vegetação presente é, majoritariamente, de Cerrado, com


presença, nas áreas alagadas de Veredas, vegetação caracterizada pela presença do Buriti
(Mauritia flexuosa). É um bioma rico em fauna e flora, com 774 espécies de árvores e
arbustos catalogadas, sendo 429 endêmicas. Caracteriza-se por ser uma floresta esparsa,
com alta incisão da luz (luminosidade), baixa densidade demográfica e intensa atividade
pastoril. Além disso, é um bioma muito ameaçado pelas constantes queimadas e pela
expansão agrícola, principalmente a soja, ocasionando a destruição da cobertura vegetal
que, atualmente, supera 70% da área original.

Figura 13:
Fonte: https://www.embrapa.br/cerrados/colecao-entomologica/bioma-cerrado

150
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

As diversas paisagens geradas pelo Cerrado deriva da sua grande diversidade florística, o
que faz da flora desse bioma uma das mais ricas entre as savanas do mundo. São 6.429
espécies florísticas catalogadas, com grande percentual de endemismo na flora e
possibilidade de descobertas de outras espécies, além de percentuais significativos de sua
fauna, sendo 1,4% para aves, 12% para mamíferos, 30% para anfíbios, 20% para répteis,
sugerindo uma longa e dinâmica evolução do Cerrado.

Figura 14: Flores do Cerrado.


Fonte: https://maranhaoprofundo.wordpress.com/2018/10/08/formosa-da-serra-negra-ma/#jp-
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As interfaces do Cerrado com outros biomas são particularmente importantes uma vez que
ele está incrustrado no Planalto Central, fazendo fronteira com todos os demais biomas
brasileiros, com destaque para as interfaces entre Cerrado e Caatinga e aquelas entre
Cerrado e Florestas Tropicais úmidas, mais precisamente a Floresta Amazônica.

É importante destacar, que a importância do Cerrado vai além das suas características de
fauna e flora. É o maior reservatório de nascentes do Brasil e contêm as três maiores bacias
hidrográficas sul-americanas.

Em se tratando de sua hidrologia, a região possui importantes e diversas nascentes de rios,


sendo uma das mais importantes áreas de recursos hídricos do Brasil, contribuindo para a
alimentação de grandes bacias hidrográficas brasileiras, como a do Parnaíba e a do Tocantins
– Araguaia. Isso situa o Cerrado como um espaço de grande potencial hidrelétrico.

Sua importância se evidencia quando constatamos que a presença de Seis das oito maiores
bacias hidrográficas brasileiras têm nascentes na região. São elas, a bacia Atlântico Leste ,

151
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

composta pelos rios Pardo e Jequitinhonha. A bacia dos rios Paraná/Paraguai, formada pelos
rios Paranaíba, Grande, Sucuriú, Verde, Pardo, Cuiabá, São Lourenço, Taquari, Aquidauana.
A bacia do Tocantins, constituída pelos rios Araguaia e Tocantins. A bacia Atlântico
Norte/Nordeste, com os rios principais Parnaíba e Itapecuru. A bacia do São Francisco e a
bacia Amazônica.

O Cerrado abrange 24% do território nacional. No Maranhão, localiza-se principalmente no


Centro-Sul do Estado, com rios perenes e reservas em aquíferos com significativa
importância hídrica para o Nordeste do Brasil, uma região frequentemente assolada por
estiagens prolongadas. Contudo, as áreas dos aquíferos e seu potencial de recarga estão
sendo desmatados e transformados em pastagens e cultivos agrícolas, além da expansão
urbana que acarreta a impermeabilização dos solos e uso indevido das águas subterrâneas,
fonte tanto para sistemas de irrigação quanto para abastecimento urbano.

Por estas razões, o Cerrado é hoje considerado como um dos mais ricos e ameaçados
ecossistemas mundiais, sendo classificado como “hot spot” da biodiversidade (Ponto
Quente).

Figura 15: Ararajuba


Fonte: http://www.klimanaturali.org/2010/12/reserva-biologica-do-gurupi-ma.html

152
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

2 Considerações finais

Assim, em se tratando da região Guajajaras (Barra do Corda, Jenipapo dos Vieras e Fernando
Falcão), das suas peculiaridades geológicas, geomorfológica e fitogeográficas, entendemos
a grande urgência em se pensar maneiras sustentáveis de coexistência entre as populações
locais e as demandas para o desenvolvimento econômico. O Cerrado é primordial para o
equilíbrio hídrico do Brasil e a sua destruição significará a destruição de outras estruturas e
conexões dentro do ecossistema brasileiro.

3 Referências

CPRM - SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL. Carta hidrogeológica do Brasil ao milionésimo: Folha SB.23
- Teresina: bloco Nordeste. Inédito.
FEITOSA, A. C.; TROVÃO, J. R. Atlas escolar do Maranhão: espaço geo-histórico cultural. João Pessoa:
Grafset, 2006.
INSTITUTO MARANHENSE DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS E CARTOGRÁFICOS. Regiões de
desenvolvimento do Estado do Maranhão proposta avançada: 2018. São Luís: IMESC, 2018.

153
FRONTEIRA AGRÍCOLA NO
SERTÃO SUL-MARANHENSE:
DA PECUÁRIA À SOJA EM
BALSAS/MA

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

FRONTEIRA AGRÍCOLA NO SERTÃO SUL MARANHENSE: DA PECUÁRIA À SOJA


EM BALSAS/MA.

Teresa Cristina Ferreira Santos Silva1

1 Fronteira e suas concepções

Considerando que o termo fronteira faz parte de importantes discussões, principalmente no


que se refere a significativas alterações no espaço rural, diferentes concepções passam a
existir com a finalidade de explicar fenômenos como a atração da população provocada pela
agricultura.

Waibel (1955, p. 391) apresenta conceitos de “frontier” e “pioner”, que significam a entrada
de caçadores, extrativistas e criadores de gado no Oeste dos Estados Unidos, em grandes
extensões da América Espanhola e no Brasil, e penetraram nas matas como verdadeiros
“frontiersmen”, criando um tipo de paisagem, que, por um longo tempo, não era nem terra
civilizada nem mata virgem, ao qual se denomina Sertão.

Ele diz que poderia denominar de pioneiros os habitantes do Sertão brasileiro e que o Sertão
poderia ser denominado de zona pioneira, mas isso causaria grande conflito. Pois, diz o
autor, Hehl Neiva (apud WAIBEL,1995), distingue-se dois tipos de fronteiras no Brasil:
fronteira demográfica e fronteira econômica. A primeira limita o Sertão com a mata virgem
para o Oeste e a segunda separa o Sertão a Leste da região economicamente mais
desenvolvida.

No Brasil, segundo Waibel, pela primeira vez ocorre uma zona pioneira com todas as
características, na segunda metade do século XVIII, com a cultura algodoeira. Até então, as
zonas agrícolas, só haviam conhecido o pastoreio ou a mineração. Quando o Maranhão
experimentou esse evento o povoamento penetrou rapidamente da costa para o interior e
promoveu um verdadeiro “boom”(Ibi dem, 1955).

Conforme Martins (1996), os antropólogos, especialmente, a partir dos anos cinquenta,


definiram essas frentes de deslocamento da população civilizada e das atividades
econômicas, de algum modo, reguladas pelo mercado como frente de expansão.

1
Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Maranhão (1982), graduação em
Agronomia pela Universidade Estadual do Maranhão (1985), mestrado em Engenharia de Produção pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2001) e doutorado em Ciências Ambientais pela Universidade
Federal de Goiás (2011). Experiência na área de Economia, com ênfase em Economia Regional, atuando
principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar, desenvolvimento sustentável, frente de expansão,
frente pioneira, fronteira agrícola. pol. de gov., estratégia competitiva e política de reforma agrária.
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão- IFMA.

155
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A definição acima apresenta uma forma de expansão do capital que não pode ser qualificada
como caracteristicamente capitalista. Segundo Martins (1996, p.30),
[...] trata-se da expansão de uma rede de trocas e de comércio, em que, quase
sempre, o dinheiro está ausente, sendo mera referência nominal arbitrada por
quem tem o poder pessoal e o controle dos recursos materiais, e, considerando-se
na sua relação, índios e camponeses. O mercado opera através dos comerciantes
dos povoados, com critérios monopolísticos e são mediados por violentas relações
de dominação pessoal, tanto na comercialização dos produtos quanto nas
relações de trabalho, portanto, longe do que Marx e Weber definiram como
relações capitalistas.

As relações sociais e de produção, que acontecem na frente de expansão, são do tipo não-
capitalistas de produção e podem ser entendidas como mediadoras da reprodução do
capital, pois, demonstram uma insuficiente constituição daquilo que formam os
mecanismos de reprodução capitalista. Essa insuficiência indica que essa expansão decorre
da distância de mercados, da precariedade das vias e meios de comunicação que
comprometem a taxa de lucro de eventuais empreendedores. Além disso, se infere, sob
essa conjuntura, que os diferentes componentes da produção capitalista como: salário,
capital e renda da terra, não configuram na relação de produção da frente de expansão
(MARTINS, 1996).

O referido autor aceita que na frente de expansão expandem-se as relações mercantis, e


nesse processo ocorre uma concepção inversa à da expansão da produção propriamente
capitalista. No modo capitalista, é necessária a retirada da renda capitalista da terra, ao
menos a renda absoluta quando novos terrenos são ocupados. Indicando,
consequentemente, que o preço deverá estar embutido nos produtos que são cultivados
na terra, além da renda territorial e da taxa média de lucro do capital (MARTINS, 1996).
Assim, tem que se retirar do lucro o custo de transporte, nenhum capitalista estará
interessado em investir, pois, trata-se de estar além do limite disposto. No caso tal limite,
serve como uma divisória para frente de expansão. Ou seja, essa se posiciona mais próxima
à economia mercantil simples do que à economia capitalista e à economia de subsistência.

Além disso, o autor revela que na frente de expansão envolvem consequências e


elaborações profundas, ou seja, esses personagens, além de procurar terra para trabalhar e
assegurar a sobrevivência buscam conservar territórios revestidos de certa sacralidade na
memória.

Entretanto, as discussões não encerram nesse plano, pois equivalente a estas concepções
existem as que buscam caracterizar o deslocamento da população e as transformações.
Tanto que

[...] geógrafos disseminaram, no Brasil, a expressão “frente pioneira”, mas, mal viam os
índios no cenário construído por seu olhar dirigido. A ênfase original de suas análises estava
no reconhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção das ferrovias, das

156
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão
(MARTINS, 1996, p. 28).

Pelo que versa esse autor, a concepção de frente pioneira compreende, de maneira
implícita, a ideia de que na fronteira inventa-se o novo, constituído por novas relações
comerciais e novas relações sociais no mercado. Ou seja, é mais do que atração da
população sobre territórios novos, trata-se de uma situação espacial e social que leva à
modernização, a formar novas concepções de vida e a mudança social.

Neste mesmo contexto,


[...] quando os geógrafos se referem à frente pioneira estão falando de uma das
faces da reprodução ampliada do capital: a sua reprodução extensiva e territorial,
mediante a conversão da terra em mercadoria e, portanto, em renda capitalizada,
como indicava e indica a proliferação de companhias de terras e negócios
imobiliários nas áreas de fronteira em que a expansão assume essa forma. Deste
modo, estavam falando de uma das dimensões da reprodução capitalista do
capital. Quando os antropólogos estavam falando originalmente da frente de
expansão, estavam falando de uma forma de expansão de capital que não pode
ser qualificada como caracteristicamente capitalista (MARTINS, 1996, p.30).

As ideias que estão subjacentes a essas duas compreensões referem-se a realidades sociais
substantivas, maneira particular de organização de vida social, de definir os valores e dizem
respeito às orientações sociais. Ainda que essas duas concepções apareçam como
divergentes (MARTINS, 1996).

O autor acima mencionado admite que, na frente pioneira, tanto a racionalidade econômica
quanto a constituição formal e institucional das mediações políticas estão claramente
presentes em todos os lugares e momentos.

No entanto, pelas características da frente de expansão que ocorre inicialmente, poderá


haver o avanço da frente pioneira sobre a frente de expansão. Pois, não há uma espécie de
sequência sistematizada para a ocorrência dos momentos de fronteira. Do modo como
acontece e se forma o avanço de fronteira nas regiões, é que se pode caracterizar o que
ocorre à luz dos parâmetros que caracterizam cada momento (MARTINS, 1996).

Convém ressaltar, que a discussão sobre fronteira é exaustiva, por isso torna-se importante
salientar que
[...] desenvolveu-se em torno de pequenos produtores e das consequências da
participação desses produtores e dos grandes empreendimentos capitalistas no
processo de ocupação de novas terras, duas vertentes de discussão: dos
economistas, expressa na tese da funcionalidade e dos sociólogos e antropólogos
na terra liberta. Em que ambas, a fronteira é inicialmente concebida como lócus da
reprodução camponesa, seja por submissão ao capital, seja, ao contrário, por uma
“lógica” camponesa anticapitalista (BECKER, 1988, p. 62).

No entendimento da autora acima aludida, fronteira não é sinônimo de terras devolutas, em


que apropriação econômica é acessível a pioneiros nem se reduz a um processo de

157
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

colonização agrícola. Também não se trata de um espaço físico, característico da situação


de fronteira, mas espaço social, político e valorativo que produz.

Nesse sentido, Miziara (2000; 2006) apresenta um modelo teórico, na busca de unificar os
três momentos de expansão de fronteiras: Frente de Expansão, Frente Pioneira e Fronteira
Agrícola.

Na discussão teórica dos autores mencionados neste trabalho, apresentam-se elementos


explicativos associados às variáveis: social e demográfica. Entretanto, Miziara (2000)
acrescenta outra variável para a explicação da expansão da Fronteira Agrícola: a econômica.
Esta variável adota uma perspectiva instrumental que privilegia o nível de investimento de
capital como forma de explicação para o processo de mudança na base tecnológica da
Fronteira Agrícola.

Também para este autor, quando se trabalha com as variáveis social e demográfica e ainda
a econômica, deve-se atentar para o conceito de “área potencial” de Figueiredo e Trigueiro
(apud Miziara, 2000): “Fronteira agrícola seria área potencial – um espaço que ofereceria
condições de expansão (e, em ocasiões, para retrair) de atividades econômicas do setor
primário especialmente agropecuária”.

Para Miziara (2006), a zona de fronteira é todo espaço onde o indivíduo tem a possibilidade
de alterar uma das variáveis – social, geográfica ou econômica, de acordo com seus
interesses e possibilidades. Nesse espaço, no momento histórico associado à Frente
Pioneira, por exemplo, agentes conhecidos como os “grileiros” consideram o local onde a
posse capitalista da terra não está consolidada e certamente podem atuar. Já na situação
identificada como Fronteira Agrícola, os empresários capitalistas avaliam como área
potencial espaços onde a terra está mais barata e o nível de inversão de capital é mais baixo
e este fato pode garantir maior retorno e maior lucro.

2 Sertão sul maranhense: momentos de ocupação

A economia açucareira trouxe no seu bojo a pecuária, que por sua vez, tinha diversas
finalidades. Embora as finalidades do gado na atividade econômica açucareira fossem
imperativas, percebeu-se na ocasião que a pecuária apresentava particularidades distintas e
que é conflitante seu consorciamento com a atividade açucareira. Desse modo, a criação
extensiva, que se dava na época, possibilitou a internalização do gado Sertão adentro, pela
necessidade do pasto. Então, adentrar o Sertão em busca de pasto foi a solução.

Neste sentido, o desenvolvimento da pecuária que se expandiu no Sertão maranhense está


associado à atividade açucareira, precisamente pelas diversas utilidades que acomodava.
Como Pernambuco e Bahia destacavam-se como centros açucareiros, foram focos de
irradiação das ocupações pela pecuária. Daí partiram as veredas do gado, sob o impulso, em

158
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

especial da iniciativa particular, um dos traços marcantes do povoamento dos Sertões


(CABRAL, 1992).

Para a autora, a dispersão inicial partiu da Bahia, alcançando o rio São Francisco, onde tomou
duas direções: a que subiu o rio, teve papel importante no abastecimento do mercado das
minas; a outra que se dirigiu ao Norte, ocupou o interior do Piauí e Ceará, vindo a atingir, no
início do século XVIII, as campinas do Sul maranhense (Figura 1).

Figura 1 - Expansão da Frente Pastoril baiana até o Maranhão.


Fonte: CABRAL (1992)

159
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Sendo que a frente de expansão pela pecuária no Sul maranhense foi determinada pela
devastação de áreas ribeirinhas e pela disputa conflitiva com os índios da região. Tanto que,
“[...] no século XVIII, a frente de vaqueiros penetrou na região e se expandiu pelas ribeiras
do Parnaíba, Alto Itapicuru, Alpercatas, Balsas e Neves, provocando confronto entre
criadores e tribos indígenas que viviam nessas ribeiras” (CABRAL, 1992, p. 121).

A frente de vaqueiros, por meio da frente de expansão ocasionada pela pecuária, limpou
das campinas Sul maranhense o habitante nativo, para ceder lugar ao gado e fazer surgir a
civilização do couro (CABRAL, 1992).

Neste caso, a civilização do couro extingue ou empurra o habitante nativo do seu habitat, e
nesse tipo de processo, de acordo com Martins (1996, p. 36).

[...] para o índio, o avanço da frente de expansão não repercute apenas por colocá-lo diante
de uma humanidade diferente de civilizados. Repercute nos rearranjos espaciais de seus
territórios e nas suas relações com outras tribos, sobretudo inimigas. Essas mudanças
resultam em muitas perdas, não só do território, mas também de vidas e de elementos
culturais.

O avanço da frente de expansão no Sul maranhense, após a extinção de grupos indígenas


nas terras situadas nas proximidades da ribeira do Parnaíba, se instalou nas primeiras
fazendas de gado. Nessa ribeira, foi fundada, na década de 1740, o povoado Pastos Bons
(Figura 2), em que a existência de campos naturais foi condição imprescindível para o
desenvolvimento da pecuária extensiva e itinerante e manteve a vinculação comercial com
os centros açucareiros nordestinos, especialmente o mercado baiano até o final do século
XVII (CABRAL, 1992).

O isolamento manteve-se ainda no início do século XIX, quando a navegação pelo Itapicuru
atingia Caxias, não chegando a Pastos Bons. Isso demonstra que a ação oficial dos governos
da época não atingiu a ligação do litoral a zona de Pastos Bons. O isolamento era de tal
monta admitida pelo oficialato, que em 1770, D. José, ao elevar Pastos Bons à categoria de
vila colocou-a sob a jurisdição da vila Oeira, devido à ligação com o Piauí e não com o
Maranhão (CABRAL,1992).

No entanto, foi a frente pastoril que levou os Sertões do Parnaíba ao Tocantins e levou
através do Grajaú, o litoral ao Sertão. No começo do século XIX, apresentava-se ainda muito
frágil a relação litoral e Sertão, apesar, desde os meados do século XVIII, já houvesse
ocorrido o rompimento da dicotomia litoral/Sertão, decorrente da inserção da economia
maranhense no mercado internacional (CABRAL, 1992).

160
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 2 - Colonização maranhense: Sertão de Pastos Bons


Fonte: CABRAL (1992)

Pelo que versa Cabral (1992), a pecuária instalou-se nos Sertões como atividade
predominante, com características próprias, fato que determinou não só a organização
produtiva, mas também o modo como se construiu o povoamento e a ocupação do
território. Nesse sentido, entende-se que a frente de expansão, nesse período, já
determinava o domínio de grandes extensões de territórios para o estabelecimento das
fazendas de gado.

Além disso, segundo a autora acima mencionada, o avanço da frente de expansão no Sul
maranhense contava com as rotas comerciais que se davam através das hidrovias.

161
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Entretanto, as vias do Tocantins, Grajaú e do Mearim, com o decorrer dos anos,


apresentaram obstruções nos períodos chuvosos e a escassez de água nas estações secas,
fatores que provocaram gradativos declínios dessas importantes rotas comerciais, que
estimularam a exploração através dos rios. Então, a partir do século XIX se explorou a
navegação a vapor pelo rio Balsas, inaugurada mais precisamente em 1911. Os vapores dos
rios Balsas e Parnaíba uniram a região a novos centros, como Timon, no Maranhão, Floriano,
no Piauí, e Teresina, capital deste Estado. Havia um pequeno comércio às margens do rio
Balsas, que servia de identificação para todos os viajantes que por ali passavam em
embarcações denominadas “balsas”, construídas de “buritis” (COELHO NETO, 1979).

Com o transcorrer do tempo, o rio Balsas apresentou sinais de assoreamento pela perda de
volume de água, só permitindo a navegação de pequena capacidade de carga. Esse fato foi
determinante para o isolamento da região, considerando que vias adequadas para a
comercialização não vieram substituir a navegação (COELHO NETO, 1979).

Contudo, foi às margens do rio Balsas que ocorreu a constituição de uma estrutura na
Passagem dos Caraíbas, composta por vaqueiros nordestinos os quais, provenientes de
regiões onde se instalara a seca, cruzaram o rio Parnaíba, descobriram as terras do
Maranhão e aí se fixaram. Sendo que, a Passagem dos Caraíbas passou a ser “arraial” e
depois “vila”, onde Antônio Ferreira Jacobina, um caboclo tostado de sol e mesclado de
diversas raças, foi conclamado líder do povoado Vila Nova. Posteriormente, em 1879, foi
edificada uma pequena igreja em homenagem a Santo Antônio e, em 1882, Vila Nova
recebeu um novo nome, “Santo Antônio de Balsas” (SANTOS apud CASTRO, 2005).

Segundo Cabral (1992, p. 165), Santo Antônio de Balsas transformou-se em novo entreposto
do sal,2 em que sertanejos do Sul do Maranhão e do Norte goiano afluíam para essa nova
praça, buscando comercializar a produção que traziam: couro, peles de animais selvagens,
coco babaçu e alguns gêneros agrícolas. E, de volta, transportavam sal e outras
mercadorias. Tempos depois, a vila Santo Antônio de Balsas, por meio do Decreto-Lei Nº.
820, de 30 de dezembro de 1943, foi nomeada “Balsas”.

O crescimento econômico do povoado, ocasionou o comparecimento de sírios e libaneses,


que ali se estabeleceram, desenvolvendo uma colônia, voltada à atividade comercial
(COELHO NETO, 1979).

Compreende-se, então, que a ocupação do Sul maranhense foi marcada por conflitos com
habitantes nativos, os índios, que foram dizimados ou migraram para outros ambientes, já
que as áreas se destinavam à instalação de fazendas de gado, cujo modo de produção era
rudimentar, ou seja, a criação era do tipo extensiva. Logo, demandava grandes extensões
de terras. Esse momento, analisado à luz da concepção de José de Souza Martins,

2
Centro onde eram também adquiridas as manufaturas e especialmente o sal, gêneros de primeira
necessidade no sertão. O sal, utilizado na alimentação do gado e no beneficiamento do couro,era insumo
essencial para a economia da região (cf. CABRAL, 1992).

162
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

característico pela especificidade da organização produtiva e social, pode ser designado


como Frente de Expansão.

Assim sendo, a ocupação de Balsas deu-se nesse contexto, sendo que, o impulso
econômico desse município de acordo com Eloy Coelho Neto, em História do Sul do
Maranhão, deu-se com a pecuária e a agricultura, sobretudo pelo estabelecimento de
pessoas vindas de outras localidades do país, conforme cita: “Gente de outras regiões
brasileiras tornaram Balsas sua nova terra e no solo da mesma se enraizaram, construindo o
presente e o futuro. São agora mineiros, paulistas, paranaenses e gaúchos descendentes de
europeus” (COELHO NETO, 1979, p.148).

De tal modo, a nível primário pode-se entender que a expansão da fronteira, que ocorreu na
região de Balsas/MA, deu-se em dois momentos: o primeiro momento, caracterizado como
aquele em que ocorre a ocupação do território, onde vivia ali amontoado, o peso enorme
do gentilismo emigrado da nossa beira-mar, e os primeiros ocupantes, vindos pelo Piauí, que
ocuparam a região a partir de 1930. Este primeiro momento é caracterizado pela economia
do excedente, vazio demográfico e a especificidade da organização social. As relações de
produção estão à margem da lógica capitalista e de acordo com José de Souza Martins
(1996), caracteriza-se como “Frente de Expansão”; o segundo momento, destinado aos
projetos agropecuários, entendidos basicamente como de criação de gado, para que
pudessem se desenvolver, o acesso ao recurso terra tornava-se fundamental. Aqui, o poder
público passa a proceder ao que se chama de ocupação racional das terras disponíveis.
Neste sentido, o segundo momento demonstra ser o que o autor José de Souza Martins
chama de Frente Pioneira.

2.1 Balsas/MA: fluxo migratório de 1970 a 2007

A partir 1970, tem início outro momento de ocupação do Sul maranhense com a chegada
de migrantes do Sul do Brasil ao município de Balsas/MA, e o fluxo migratório ascendente
desde esse período vem proporcionando mudanças na fisionomia da cidade.

Nesse contexto, observam-se alterações demográficas no município, tanto que, em 1970, a


população residente em Balsas/MA correspondia a um total de 19.385 habitantes (Tabela 1).
Em 2007, de acordo com os dados da Tabela 1, a população residente em Balsas tem um
total de 78.845 habitantes, representando um aumento demográfico para o período de
1970-2007, de 406.73%. A evolução demográfica está associada à monocultura da soja, que
projetou nacionalmente o município, e atraiu um fluxo migratório de diversas regiões do
Brasil, em particular da região Sul.

163
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Tabela 1 - População residente em Balsas/MA, no período de 1970 a 2007

Crescimento
Ano População residente (hab.)
populacional(%)
1970 19.385 -
1980 23.703 22,27
1991 41.648 75,71
2000 60.163 44,46
2007 78.845 31,05
Fonte: IBGE (2009)

O processo migratório causado pela Expansão da Fronteira agrícola gera no contexto


daquele município uma população originária de diversas regiões do país. O programa
tornou-se um indutor do fluxo migratório de produtores, visto que estes se instalaram na
região, e não apenas os colonos do Projeto de Colonização dos Gerais de Balsas-PC-GEBAL,
mas produtores independentes do programa, que migraram para o Sul do Maranhão em
busca de melhorar suas condições socioeconômicas.

O município de Balsas, nos dias atuais, é o centro de dinamismo dos Cerrados maranhenses
e o de maior população. Entre os Censos Demográficos de 1980 e 1991, ocorre um aumento
de 75,71% da população. Já entre 1991 e 2000, constata-se um acréscimo de 44,46%. O
aumento da população de Balsas/MA resulta, portanto, do processo migratório de
imigrantes do Sul do país, como foi citado anteriormente, inicia-se com a pecuária e,
posteriormente, com a agricultura. Nessa população, identifica-se o migrante, que contribui
para mudanças na fisionomia da região, uma vez que na formação da classe do
empresariado da soja concentram-se os migrantes do Sul do país, mais conhecidos na
localidade como “gaúchos”. E os efeitos dos fluxos migratórios sobre a região são nítidos.
Analisando o fato do ponto de vista de Martins (1973), ocorre que o sujeito que se vincula a
uma determinada sociedade não é somente uma unidade física, um número ou um objeto,
mas trata-se de alguém que se vincula pelas suas relações com os outros. Essa análise nos
remete ao entendimento das mudanças na fisionomia do município, não só nas dimensões
econômicas, ambientais, como nas socioculturais.

Além disso, o processo de expansão de fronteira ocasiona o fluxo migratório no próprio


município, isto é, a população rural migra para a área urbana da localidade.

No caso de Balsas, em 1970, 63,33% da população estava na área rural, enquanto 36,67%, na
área urbana. Em 2000, o processo apresenta-se de modo inverso, ou melhor, 16,65% da
população habitam na área rural e 83,35% da população encontra-se na zona urbana. No ano
2007, a situação continuou com a inversão de maior percentual no setor urbano, em relação
ao rural. Esse fato pode corroborar a situação de redução do número de estabelecimentos
com agricultores, em condição de ocupante, e também pelo relato do Presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Balsas/MA, que expõe: “Até 1992 e 1993 tinham 9
(nove) delegacias sindicais, com a expansão da fronteira agrícola os povoados foram

164
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

desaparecendo. Existem 3 (três) delegacias e praticamente 3 (três) estão desativadas. Não


pode ter delegacia com menos de 30 (trinta) sócios”.

Segundo Alves (2005), a concentração de população em Balsas, sobretudo na área urbana,


permite dizer que a cidade exerce um papel de centralização de atividades econômicas, em
virtude de atender as demandas do consumo produtivo do próprio município e dos demais
municípios da região. E que as políticas de governo intervieram, com vistas a redirecionar o
fluxo migratório.

Nas décadas de 50 e 60, no Brasil, o aumento da produção se deveu fundamentalmente à


expansão da área, em que o aumento da produtividade ocupava lugar secundário (SORJ,
1980). Pode-se observar essa ocorrência no Maranhão, até o final da década de 80 e início
dos anos 90.

A esse fato remete-se a Marx (SORJ, 1986), pois, havendo terras que podem ser integradas
ao processo produtivo, não existirão maiores investimentos tecnológicos, trata-se da renda
diferencial I, ou melhor, a localização e fertilidade das terras, limita a expansão da renda
diferencial II, que está associada às grandes tecnologias. E isto ocorre até o momento em
que o preço de integrar novas terras na produção seja maior que investir nas velhas.

O avanço é demonstrado pelo rendimento econômico crescente, isto é, pelo aumento da


produtividade e até mesmo pelo crescimento da produção da soja, que evoluiu de 4.176
toneladas em 1990 para 1.063.800 toneladas em 2005.

2.1.1 Alterações na estrutura fundiária

Para a analisar a Expansão de Fronteira, faz-se necessário avaliar o fator peculiar, isto é,
aquele que altera no decorrer do processo. Na região de Balsas/MA, de modo empírico e
pelos dados informados por órgãos oficiais, percebem-se modificações em consequência da
Expansão de Fronteira, as quais são explanadas a seguir.

A estrutura fundiária atual do Maranhão é fruto de uma lenta evolução que tem origem na
forma de colonização portuguesa, iniciada após a expulsão dos franceses em 1615
(CANEDO, 2008).

De acordo com esse autor, no Maranhão as sesmarias deixam marcas profundas na


estrutura fundiária, desde a data da sua concessão até os dias atuais. Enquanto em Portugal
a posse da terra era considerada símbolo de poder e prestígio, a cujas divisões de terras
vários concorrentes acorriam, obrigando os doadores a um fracionamento de lotes e sesmo;
no Maranhão acontecia o inverso: muita terra disponível e poucos candidatos, posto que os
próprios donos da terra (a população nativa) não tinham o senso de propriedade e só se
fixavam em uma área temporariamente. Os competentes dispositivos régios não instituíam

165
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

dimensões precisas a esse respeito, o que proporcionou conveniência da obtenção de


grandes latifúndios por dimensão.

Como versa Cabral (1992), no início do século XVII, a pecuária atingiu as campinas
maranhenses e, por muitos anos, o Sul do Maranhão dedicou-se à criação de gado, por ser
a área mais árida do Estado. Entretanto, após o desenvolvimento da ciência do solo e de
outras técnicas agrícolas, ampliou-se a fronteira agrícola no Cerrado maranhense (CANEDO,
2008). Esse avanço, por demandar grandes extensões de terras, vem modificando a
estrutura fundiária do Sul do Maranhão e pode ser constatado, pois, no grupo de área total
menor que 100 ha (Tabela 2) abrange o maior número de minifúndios, mesmo tendo
ocorrido aumento de superfície. No grupo de 100 a 500 hectares, tem aumentado a taxa de
participação em termos de áreas totais, porém variando a participação do número de
estabelecimentos.

Por sua vez, o grupo entre 500 e 1.000 hectares manteve relativamente inalterada a
participação em termos de superfície, apesar de reduzir a participação numérica dos
estabelecimentos.

Nos grupos que abrangem maiores superfícies, as áreas permanecem parcialmente


invariáveis, com exceção do estrato de 5.000 a 10.000 hectares que, segundo o Censo 1995,
sofreu uma redução de 668%, mas, em compensação, acontece a redução numérica dos
estabelecimentos, no percentual de 1.100%.

Como o Censo Agropecuário 2006 apresenta-se com outra divisão dos grupos de área total,
pode-se perceber que nos grupos com menos de 100 ha, nos de 100 a 500 ha e nos de 500
a 1.000 hectares, permanece quase constante a redução das áreas, assim como o número
de estabelecimentos que se encontram nesses grupos. Já para os grupos de áreas a partir
de 1.000 hectares, houve aumento de 290,74% e redução de 1.220% do número de
estabelecimentos.

Portanto, verifica-se que, em termos gerais, continua a persistir a tradicional dicotomia


latifúndio-minifúndio.

166
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Tabela 2- Área total dos estabelecimentos e número de estabelecimentos segundo grupos de área total - Balsas/MA

Grupos 1975 1980 1985 1995 2006


de área total Área Nº estab. Área Nº estab. Área Nº estab. Área Nº estab. Área Nº estab.
(ha) Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
Menos de 100 6480 1.55 1426 74.66 6750 1.82 105 17.30 8888 1.92 2900 84.82 20318 5.80 808 53.02 19736 3.14 959 59.42
100 a 500 58848 14.11 242 12.67 66252 17.85 304 50.08 62669 13.53 292 8.54 98650 28.15 557 36.55 93294 14.84 455 28.19
500 a 1000 93389 22.40 136 7.12 60844 16.40 94 15.49 71215 15.38 109 3.19 78072 22.28 98 6.43 69837 11.11 102 6.32
1000 a 2500 84647 13.46 61 3.78
1000 a 5000 164176 39.37 94 4.92 178705 48.16 96 15.82 201874 43.58 103 3.01 105697 30.16 58 3.81
5000 a 10000 51968 12.46 8 0.42 48515 13.07 7 1.15 74544 16.09 12 0.35 9700 2.77 1 0.07
Mais de 2500 361151 57.45 37 2.29
Mais de 10000 42143 10.11 4 0.21 10000 2.69 1 0.16 43992 9.50 3 0.09 38000 10.84 2 0.13
TOTAL 417004 100.0 1910 100.0 371066 100.0 607 100.0 463182 100.0 3419 100.0 350437 100.0 1524 100.0 628665 100.0 1614 100.0

Fonte: IBGE (Censos Agropecuários: 1975; 1980; 1985; 1995; 2006)

167
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Sob a perspectiva de Graziano Neto (1980, p. 41), “na história brasileira o processo de
ocupação de novas terras, inicialmente o minifúndio e o grande latifúndio inexplorado são
as formas que se multiplicam. Depois os minifúndios são ‘engolidos’ e os latifúndios por
dimensão se fracionam, cedendo lugar às empresas e aos latifúndios menores”. Para o
autor, o importante desse processo é que a colonização de novas áreas tende a se ajustar
ao mesmo padrão de concentração de posse da terra que se encontra nas regiões mais
antigas, onde a fronteira agrícola já se encontra consolidada.

Essa visão pode ser constatada no Sul maranhense, pois, como mostram os dados da
(Tabela 3), a frente pioneira e a fronteira agrícola ainda estão se consolidando. A série
histórica 1975 a 1995 evidencia que este período manteve estabilidade nas áreas situadas
no Sul do Estado do Maranhão. Ou seja, houve pouca alteração na ocupação do território
pela área dos estabelecimentos, embora alguns municípios tivessem um percentual maior
de alteração que outros. Nos municípios de Fortaleza dos Nogueiras, Loreto, Sambaíba e
São Raimundo, observa-se um percentual maior de ocupação que nos municípios de Alto
Parnaíba, Balsas, Riachão e Tasso Fragoso.
Tabela 3 – Área total de estabelecimentos em relação à área dos municípios do Sul do Maranhão
(por condição do produtor), segundo municípios
Área do
Municípios município Área do município 1975 1980 1985 1995
(km²) (ha) % % % %
Alto Parnaíba 11.132 1.113.200 32,26 40,28 39,88 32,35
Balsas 13.142 1.314.200 34,00 28,79 35,24 26,60
Fortaleza dos 1.664 103,4 105,4
Nogueiras 166.400 87,00 99,8 8 5
Loreto 3.597 359.700 21,68 43,91 40,66 45,27
Riachão 6.373 637.300 62,87 75,36 75,99 62,22
Sambaíba 2.479 247.900 52,41 49,93 38,86 75,36
São Rdº das 3.522
Mangabeiras 352.200 36,76 47,41 57,70 72,56
Tasso Fragoso 4.383 438.300 40,27 58,85 40,77 47,73
Fonte: IBGE (Censo Agropecuário: 1975; 1980; 1985; 1995)

Nesse período, continua a ocorrer o processo de ocupação da Frente Pioneira,


concomitante à expansão de Fronteira Agrícola. Esses dois momentos de ocupação podem
ocorrer simultaneamente, visto que, segundo Miziara (2000), não existe o pressuposto de
consolidação de uma etapa para o início de outra. Para ele, pode ocorrer a chegada da
Fronteira Agrícola antes do esgotamento da Frente Pioneira.

Ainda de acordo com Miziara (2000), o avanço da Frente Pioneira pode ser acompanhado
por meio do declínio da categoria de ocupantes que, segundo ele, refere-se a produtores
que não têm a posse capitalista da terra.

Com o avanço do capitalismo, esses produtores foram expulsos de suas terras. Assim, o
Censo de 1996 e 2006 (Tabela 4) mostra redução do número de ocupantes, em Balsas,

168
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

caracterizando dessa forma o que o autor acima denomina de Frente Pioneira, pelo declínio
da categoria dos ocupantes.

Pelos dados apresentados na (Tabela 4), observam-se avanços numéricos de


estabelecimentos referentes à condição de proprietário. Esse fato é decorrente da
necessidade de legalização da terra, para aquisição de crédito agrícola.

No que concerne à legalização da terra, remete-se a Martins (1975), quando reconhece que
o ponto chave da implantação da frente pioneira é a propriedade privada da terra. Para este
autor, nesse momento de expansão de fronteira, a terra não é ocupada, é comprada,
passando a ser equivalente de capital, pois é através da mercadoria que o sujeito estabelece
as suas relações sociais, que não ficam mais no âmbito do contato social, mas no
funcionamento do mercado, que passa a ser o regulador da riqueza e da pobreza.

Não obstante, a fronteira agrícola também apresenta características semelhantes às da


frente pioneira, por tratar da legalização da terra, imprescindível para o mecanismo de
crédito. Trazendo a visão de Andrade (1979) para esse fato, este admite que o crédito e a
assistência técnica agronômica chegam muito mais facilmente aos grandes e médios
agricultores que aos pequenos, visto ser mais fácil esses grupos terem acesso ao banco e
apresentarem garantias aos empréstimos que fazem, do que os pequenos que chegam a
ter desconfiança das transações bancárias.

Constata-se, desse modo, a redução significante dos estabelecimentos onde há


predominância de agricultores na condição de ocupantes, embora haja o aumento
significante da área. Este fato não significa dizer que ocorre resolução dos problemas
fundiários no município de Balsas/MA, mas que há um aumento de áreas devolutas e que
são demandadas por grandes grupos imobiliários. Os ocupantes, conscientes da situação
ilegal com relação à posse da terra, são obrigados a abandoná-las, deixando-as livres para
serem adquiridas pelos grandes produtores. A supressão dessa categoria está associada ao
processo de expansão de fronteira denominado frente pioneira e fronteira agrícola, em que
se vislumbra a possibilidade de maior desenvolvimento de relações capitalistas de produção

169
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Tabela 4 - Área e número de estabelecimentos segundo condição do produtor - Balsas/MA

1975 1980 1985 1995 2006


Condição
Nº Nº Nº Nº
do
Área (ha) Nº estab. Área (ha) estab. Área (ha) estab. Área (ha) estab. Área (ha) estab.
produtor
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
Proprietário 411202 98.61 608 31.24 326570 86.28 477 23.03 450159 97.19 636 29.08 271209 77.39 877 57.55 555014 90.24 947 62.51
Arrendatário 1127 0.27 626 32.17 1447 0.38 474 22.89 6539 1.41 390 17.83 3599 1.03 42 2.76 25878 4.21 71 4.686
Parceiro 676 0.18 111 5.36 165 0.04 80 3.66 2112 0.60 19 1.25 1034 0.17 9 0.594
Ocupante 4673 1.12 712 36.59 49794 13.16 1009 48.72 6324 1.37 1081 49.43 73518 20.98 586 38.45 33130 5.39 488 32.21
Total 417002 100.0 1946 100.0 378487 100.0 2071 100.0 463187 100.0 2187 100.0 350438 100.0 1524 100.0 615056 100.0 1515 100.0

Fonte: IBGE (Censos-Agropecuários: 1975; 1980; 1985; 1995;

170
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

[...] o grau de concentração da posse da terra é um importante indicador do grau


de concentração da renda e da riqueza. E é tão mais importante no caso dos países
menos desenvolvidos, uma vez que a propriedade da terra perpetua as
desigualdades no tempo, via herança. E nesse sentido, o grau de concentração da
propriedade da terra é um indicador tão mais importante quanto maior for a
importância da terra como fonte de poder econômico e político, de prestígio e de
acesso a outras formas de riqueza (GRAZIANO NETO, 1980, p. 64).

O autor entende ainda que a propriedade concentrada da terra exerce um papel de reserva
de valor no país. À medida que a terra se apresenta como reserva de valor, é baixa a inversão
de capital na produção, e o capital passa a ser investido na compra de terras mais com o fim
de especulações imobiliárias do que para a produção propriamente dita. Tal fato reflete a
concepção de Marx (1985), em que a existência de terras que podem ser integradas com
uma elevada renda diferencial I limita a expansão da renda diferencial II, podendo ocorrer a
inversão, quando o preço a integrar novas áreas for mais elevado que o investimento nas
velhas.

Além disso, a expansão da fronteira agrícola nesse processo se reproduz através das
grandes empresas, o que resulta em um saldo conflituoso e sempre favorável ao grande
proprietário (GRAZIANO NETO, 1980).

Ao averiguar os dados relacionados ao avanço da produção de soja na região de Balsas/MA,


pode-se inferir que o Estado exerce papel significante no processo, através dos seus
instrumentos de ação como: crédito rural orientado, incentivos fiscais, infraestrutura e
tecnologias adequadas. Pois, caso se compare a produção agrícola de 2002 com a de 2008,
pode-se concluir que a cultura da soja é uma atividade econômica em grande crescimento
no Maranhão e está associada à chegada do PRODECER III.3

Além dos incentivos dos atinentes aos programas de governo, a expansão da atividade
agrícola na região está relacionada ao preço da terra. O sojicultor que emigrou ou emigra do
Sul sai consciente da necessidade de adquirir grandes áreas para o sucesso da sua
empreitada, o que se tornou fácil em virtude dos baixos preços das terras em novas frentes
agrícolas (SIEBEN; MACHADO, 2006).

O estudo de Gasques, Bastos e Valdés (2008) fornece dados e mostra, em diferentes


períodos, a variação do preço da terra, nos Estados da região Sul, para os da região
Nordeste. Enquanto no Rio Grande do Sul, o preço de terras para a lavoura, em 2006 estava
em R$ 6.578,30/ha; em Balsas/MA, o preço era de R$ 165,20/ha (Tabela 5). Essa variação
decorre principalmente das políticas públicas existentes na localidade. Assim, o preço da
terra é considerado um dos principais fatores que impulsionam a migração dos gaúchos para
o Sul do Maranhão.

3
PRODECER III - Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cerrados

171
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Tabela 5 - Preços de venda de terras de lavouras R$/ha.

R$/há
Estados
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Maranhão 456,29 422,26 379,24 330,42 321,18 328,00 165,20
Paraná 5.721,43 6.113,94 6.707,63 8.505,34 9.475,72 9.254,47 9.665,93
Santa
4.222,96 4.751,07 4.911,52 5.838,16 7.156,11 7.905,95 9.115,33
Catarina
Rio Grande
4.068,20 4.542,20 5.074,83 6.155,53 6.678,51 6.392,29 6.578,30
do Sul
Fonte: Gasques; Bastos e Valdes (2008)

Então, pode-se assegurar que, de fato, o preço da terra é um dos fatores que tem
contribuído para atrair grandes investidores para o Sul do Maranhão. Essa hipótese foi
examinada, quando efetivada a pesquisa com os produtores migrantes, e o resultado revela
que a hipótese não foi refutada.

Por outro lado, a elevação dos preços da terra na fronteira prenuncia a luta pela terra na
fronteira (FOWERAKER, 1981, p. 84). O autor concebe ainda que a elevação do preço da
terra, ao mesmo tempo que reflete lucro, torna possível sua exploração econômica. E a
concorrência que ocorre nas fronteiras induz a disputas legais quando os interesses
econômicos individuais não coincidem, e há confrontos de classe com os trabalhadores
rurais quando a “grilagem” lhes retira o meio de subsistência. Essa confrontação ativa a luta
pela terra na fronteira, até que a marca da propriedade privada se estampe completamente
sobre a região (FOWERAKER, 1981, p. 84).

3 Considerações finais

Logo, o processo de Expansão da Fronteira agrícola na região de Balsas/MA reproduz-se nos


mesmos moldes daqueles de outras regiões do país. Como exemplo, cita--se a região
Centro-Oeste, onde, a partir da década de 70, o governo, além de propiciar infraestrutura e
tecnologia adaptadas, precisou fornecer outros atrativos, como créditos e acesso à terra a
custo baixo, para que se mudassem os cálculos dos investidores privados (MIZIARA, 2006,
p. 13).

É possível observar no ambiente onde ocorre o processo de Expansão de Fronteira não


apenas um lugar de alteridades, como afirma José de Sousa Martins, mas também o lugar
dependente de outros componentes da cadeia produtiva. Por exemplo, a elevação do
consumo de insumos4 agrícolas, considerando que estes representam a tecnificação da

4
INSUMOS AGRÍCOLAS-são compreendidos como todos os produtos necessários à produção vegetal e
animal: adubos, vacinas, tratores, sementes, entre outro (http://www.planetaorganico.com.br/insumos.htm)

172
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

agricultura, nos moldes da modernização. Os dados apresentados no quadro abaixo


revelam o dispêndio de tais produtos na produção agrícola da soja, pois, a classe
predominante dos solos na mesorregião Sul do Maranhão são os latossolos argilosos e
arenosos, quimicamente pobres (acidez elevada), necessitando de insumos que visam
corrigir a sua fertilidade e acidez dos mesmos.

4 Referências

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cidades para o agronegócio nos Cerrados Nordestinos. III Simpósio Nacional de Geografia Agrária –
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Prudente, – FFLCH-USP. 11 a 15 de novembro de 2005.
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CASTRO, J.D.B.; CASTRO, M.V.D. de. Análise da rentabilidade de financiamento e custeios agrícolas
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COELHO NETO, Eloy. História do sul do Maranhão: terra-vida-homens e acontecimentos. Belo
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GASQUES, José Garcia; BASTOS, Eliana Teles; VALDES, Constanza. Preços da terra no Brasil. Rio
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GRAZIANO NETO, F. Questão agrária e ecológica: crítica da moderna agricultura. São Paulo:
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173
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

SORJ, B. Estado e classes sociais na agricultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
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174
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

AS TRANSFORMAÇÕES
SOCIOECONÔMICAS E
AMBIENTAIS NO MUNICÍPIO
DE GRAJAÚ/MA

3
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOECONÔMICAS E AMBIENTAIS NO
MUNICÍPIO DE GRAJAÚ-MA

M.ª Layla Adriana Teixeira Vieira1

1 Introdução

O desenvolvimento do capital no território de Grajaú-MA tem se estruturado a partir


de uma economia que envolve setores tanto do gesso como da agropecuária, em um
modelo relacionado à industrialização do agronegócio. Portanto, o objetivo deste
estudo é analisar como esse município se insere na lógica global através do mercado
de commodities e suas transformações socioeconômicas e ambientais na
contemporaneidade. Essa estrutura ligada às exigências do mercado internacional
privilegia os interesses de um tipo de agente específico, o empresariado. Nesse
momento, a dinâmica ocorre por meio de uma relação direta também com os agentes
políticos, que detém partes desse território. Com isso, o papel do Estado tem sido
fundamental para o fortalecimento dessa lógica global, pois dá suporte fiscal e
ideológico, por meio de propagandas e incentivos fiscais, que facilitam a entrada
dessas empresas (e produtores) no município.

Esse entrosamento resulta em investimentos que dão auxílio para a sobrevivência de


um mecanismo hegemônico (neoliberal), haja vista que domina partes significativas
do território de estudo. Mas, para que isso ocorra é necessário, principalmente,
segundo Milton Santos (2007), a aplicação do dinheiro, que é o dinheiro da
globalização. Nesse sentido, “a lógica do dinheiro das empresas é a lógica da
competitividade, que faz com que cada empresa tornada global busque aumentar a
sua esfera de influência e de ação para poder crescer” (SANTOS, 2007, p.18). Esse
pensamento corrobora a realidade vivenciada em Grajaú, que nas últimas décadas,
recebeu um aumento substancial de empreendimentos no seu território, impondo
poder e causando transformações geográficas e socioeconômicas.

1 Layla Adriana Teixeira Vieira, Graduada em História/Licenciatura pela Universidade Estadual do


Maranhão (2015), graduada em Geografia/Licenciatura pelo Centro Universitário Internacional
(UNINTER - 2020) e mestra em Desenvolvimento Socioespacial e Regional (PPDSR/2018) pela
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Atualmente faz parte do quadro de professores da
Secretaria de Educação do Governo do Maranhão (SEDUC-MA). E-mail: layladriana@hotmail.com.

175
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
2 Transformações socioeconômicas

Empresas como Gusa Nordeste, Genesis Agro, Beneficiadora Vitória, GipsoMix, Gesso
Integral, Chorado LTDA, Companhia Agropecuária do Arame (Pontes Pecuária), Ipê
Amarelo, dentre outras, gerenciam a produção da pecuária, do milho, do eucalipto, do
gesso, do arroz e da soja, resultando, de acordo com Maria Laura Silveira, no uso
corporativo do território, “nas mãos de um punhado de agentes [...] concentrando
ainda mais a apropriação da mais-valia a partir da imposição de quantidades,
qualidades e preços” (SILVEIRA, 2011, p.7). São essas imposições regidas pelas
variações de mercado e de preço que faz com que tais corporações utilizem extensas
porções territoriais, compartimentando o território, como bem se verifica a seguir.

176
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 1: Mapa do reordenamento territorial do município de Grajaú-MA.


Fonte: Elaborado por Juscinaldo Goes Almeida, a partir de imagem do Google Maps, 2018.

177
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
O mapa evidencia de forma muito clara o “esfacelamento” geográfico que cada vez
mais se intensifica em Grajaú com o avanço das economias já destacadas. No final do
século XVIII e início do século XIX, esse território era controlado por famílias
tradicionais da região, que tinham a terra e o gado como símbolos de poder. Verificou-
se, ao longo do século XX, uma disputa intensa de políticos almejando o domínio
territorial; e no século XXI, presenciou-se outra dinâmica ligada a uma economia
capitalista, na qual quem manda é o agronegócio, gerenciado pelos médios e grandes
proprietários de terras e pelas empresas nacionais e/ou internacionais.

A partir dos pontos destacados na Figura 1, nota-se a configuração do uso corporativo


do território, representado pelo Distrito Industrial de Grajaú, pela Companhia
Agropecuária do Arame (Pontes Pecuária) e pelas áreas da agricultura mecanizada,
concentrada em sua maior parte nos campos da soja e do eucalipto. O distrito possui
cerca de 68 hectares e 92 lotes, e a empresa Pontes Pecuária possui
aproximadamente 20.743 hectares. Logo, nota-se a atuação desses agentes
expandindo suas produções e monopolizando o território, gerando contradições, pois
é notório a concentração da estrutura fundiária. Por exemplo, a área da reserva
indígena Morro Branco ficou apenas com aproximadamente 49 hectares e o perímetro
urbano cada vez mais sofrendo um processo de crescimento horizontal, aumentando
a periferização.

Então, observa-se, como os empreendimentos subtraem territórios e impedem o


avanço de outros. Para essa lógica de mercado é necessário expandir, “pois essa é a
sua lei: a lei da reprodução crescente e ampliada” (MARTINS, 1990, p.152). Tais
empresas procuram pontos estratégicos para a sua reprodução, e Grajaú se encaixa
nessa visão mercadológica, haja vista que possui terras relativamente baratas, férteis
e uma logística considerável, com uma rodovia federal (BR-226) e outra estadual (MA-
006) facilitando o escoamento dessa economia gerenciada pelos médios e grandes
grupos corporativos, como em entrevista destacou um empresário do ramo do arroz:
Grajaú é um município bem localizado, tem um bom escoamento da
produção, fica próximo a Porto Franco. A gente tem um ótimo fluxo de
transportes na rodovia, tem a GenesisAgro que é recebedor de grãos, que
tem parceria com os produtores da soja. O município possui várias opções
de mercado, então tanto na área do gesso, da soja, do milho, do eucalipto,
do arroz e da pecuária ela é positiva. Aqui é promissor, aumentou bastante
a produção agrícola. Tudo gira em torno do agronegócio (J.A.B – Entrevista
concedida em 21/04/2018).

Com essa fala, percebe-se como está estruturado o agronegócio em Grajaú e a


dinâmica existente entre as produções dos médios e grandes empreendimentos.
Existe uma forte articulação entre os grupos empresariais que se unem para fortalecer
esse arranjo produtivo no município. Por exemplo, àqueles que não possuem
transportes para a realização do deslocamento da produção ou não possuem locais

178
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
de armazenamento ou de secagem, solicitam serviços de outros produtores ou de
outras empresas que possuem estrutura técnica e maquinário para escoar a produção.

Um dos casos verificados foi na Beneficiadora Vitória, uma empresa instalada por uma
família de goianos, que migraram para Grajaú em 1981, com o objetivo de trabalhar na
agricultura do arroz, cultura que predominava na época. Atualmente, o entrevistado
e sua família possuem essa empresa, que realiza prestação de serviços para os
produtores do milho e do arroz2. No caso da última cultura, a empresa trabalha com a
secagem dos grãos, o armazenamento e o beneficiamento, realizando o processo de
industrialização e distribuição, tanto para o mercado interno como para os municípios
de Itaipava do Grajaú, Barra do Corda, Jenipapo dos Vieiras, dentre outros. Então, há
uma relação de negócios entre o produtor, a indústria e o comércio.

Figura 2: Parte da estrutura da empresa Beneficiadora Vitória e um dos tipos de arroz


comercializados pelo empreendimento
Fonte: Layla Adriana Teixeira Vieira, 2018.

Na Beneficiadora Vitória, são produzidos os tipos de arroz: Gabriela (Tipo I), Tradição
(Tipo II), Saborear (Tipo III) e Fartura (Fora de Tipo)3. Os consumidores variam entre
as classes sociais, e nessa dinâmica de produção e consumo é bastante notório
verificar que o pequeno produtor cada vez mais está fora desse processo econômico.
Em relato, um técnico agrícola, enfatizou: “Eu conheci muitos pequenos produtores
que plantavam arroz. Hoje, não é mais viável. É difícil competir com quem tem poder

2
No município de Grajaú cultivo predominante é o arroz de sequeiro, embora já existam áreas que
trabalham com o arroz irrigado.
3
No mercado o arroz Gabriela (tipo 1) custa em média R$ 13,00 (5Kg); O arroz Tradição (tipo II) custa
aproximadamente R$ 9,000 (5kg); o arroz Saborear (tipo III) custa por volta de R$ 6,00 (5kg) e o
arroz Fartura (fora do tipo) custa R$ 4,00 (5kg). (2018 – Ano da pesquisa)

179
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
econômico aqui em Grajaú. A soja está tomando espaços por conta do mercado. O
pequeno produtor planta duas ou três linhas4, tudo é só para o sustento da família. É
desanimador” (V.L.S – Entrevista concedida em 24/04/2018). Nessa lógica, a
concentração da riqueza e o poder da produção estão sobre o controle
agrícola/industrial, conforme podemos verificar no Gráfico 1 da área plantada em
Grajaú.
Gráfico 1: Área plantada em porcentagem – Grajaú/MA.

Fonte: SIDRA/IBGE. Organização: SOUSA, Givanilson, 2018.

Por meio desse Gráfico, pode-se compreender a dinâmica agrícola predominante no


município de Grajaú. É notório identificar um avanço da área plantada das culturas
relacionadas ao comércio internacional de commodities. A produção da soja e do
milho ocupam parcelas significativas do território (aproximadamente 25% da área
plantada de milho e 45% de soja), fato que prejudica e causa o decréscimo das culturas
relacionadas à agricultura familiar, como é o caso do cultivo do feijão e da mandioca,
que possuem bem menos de 5% da área plantada.

Até 2014, o arroz dominava a agricultura; foi o tipo inicial de modalidade agrícola que
incentivou os imigrantes à procura de terras em Grajaú, logo, vale destacar que no
início da década de 1980 partes da produção já era mecanizada, e de propriedade dos
médios e grandes produtores rurais. Assim, nota-se o processo de mudança no modo
de produzir, pois o que era de base econômica do pequeno produtor passa para o
controle dos que detêm renda, haja vista que a lógica do mercado não está ligada à
agricultura familiar, mas sim à dinâmica do agronegócio, que visa a mercantilização
generalizada, cada vez mais dependente do complexo industrial financeiro. Com a

4
No município 1 (uma) linha corresponde a 50m2 de terra.

180
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
área plantada (Gráfico1) e com a área colhida (Tabela 1), percebe-se o avanço da
produção de grãos, em relação à produção do pequeno produtor.
Tabela 1: Produção agrícola municipal em Grajaú- área colhida (ha)

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016


Soja
28.724 32.177 32.942 26.621 20.856 25.044 25.100
(Em grão)
Arroz
44.634 50.945 48.878 49.096 46.983 25.774 20.946
(Em casca)
Milho
24.813 34.410 34.292 31.457 34.051 28.868 28.910
(Em grão)
Feijão
5.385 6.715 7.021 6.850 6.891 6.829 5.802
(Em grão)
Mandioca 6.150 6.172 5.727 7.063 8.834 4938. 4.142
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Agência de Grajaú-MA). Org.: VIEIRA,
Layla.

Mais uma vez é perceptível a diminuição da produção da agricultura familiar. O feijão


e a mandioca são uma das culturas que representam a cadeia relacionada a essa
economia. Em conformidade com a Tabela 1, entre os anos de 2010 e 2016, a área
colhida foi reduzida significativamente. O arroz começou a perder espaço (a partir de
2014), quando o cultivo da soja e do milho se tornou intenso entre os sojicultores e
empresários do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, e,
principalmente, os agricultores do Paraná. Entre as safras5 de 2013/2014 e 2015/2016
houve uma queda da área plantada e da área colhida da soja, em razão ao longo
período de estiagem, o que resultou em perdas na lavoura.

De acordo com o relatório de perdas da Secretária Municipal de Agricultura 6, na safra


2015/2016, o arroz perdeu aproximadamente 90% da área plantada; a soja e o milho
tiveram uma perda de aproximadamente 60% também da área plantada, o que
corrobora os dados da Tabela 1, quando se trata da estagnação da soja e do milho
entre 2015 e 2016. No entanto, tal fato, não contribuiu para que a agricultura familiar
ganhasse espaços na produção agrícola do munícipio, pois não recebe incentivos
públicos e privados para desenvolver a produção, como destaca a entrevista de O.T:
Eu planto feijão, mandioca, alface, pepino, cheiro-verde, cebolinha, tomate
[...]. Eu planto para o consumo da minha família e vendo na feira aos
sábados. Mas não dá muita coisa não, dá um salário e pouco por mês. O que
a gente faz não dá lucro, não compensa, a gente faz porque gosta, mas não
tem incentivo nenhum. Muita coisa do que produz aqui os outros não
consomem, e o próprio setor público municipal não compra, preferem
comprar de outros municípios, aí não gera renda e a gente não ganha como
deveria. Como não temos dinheiro e não trabalhamos com a soja ou com o

5
No município o ano safra acontece de julho de um ano a junho do ano subsequente, e por conta da
característica climática existe a primeira safra.
6
Relatório de perdas da lavoura na safra 2015/2016. Secretária de Desenvolvimento Rural, aquicultura
de pesca do município de Grajaú (SEDRAP), 2016.

181
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
milho, a gente também não consegue bons créditos nos bancos, porque é
muito restrito às pessoas com poder aquisitivo. É muito burocrático. O
pobre não tem o acesso que deveria dentro do banco e quando a gente
consegue alguma coisa é só para devolver o que a gente pediu, porque não
sobra dinheiro para nada (O.T – Entrevista concedida em 26/10/2018).

O relato do entrevistado demonstra a realidade vivida por muitos pequenos


produtores em Grajaú, que sofrem de carência de políticas adequadas destinadas ao
desenvolvimento da agricultura familiar, além da dificuldade de conseguir crédito
bancário para aplicar na produção. Uma parte significativa produz para suprir as
necessidades básicas e, em alguns casos, também é comum a troca de mercadorias
entre eles. Essa realidade acaba levando a uma queda significativa da produção, pois
percebemos a falta de incentivo destinada a esse tipo de agricultura.

Figura 3: Plantio de hortaliças e de mandioca - agricultura familiar.


Fonte: Layla Adriana Teixeira Vieira, 2018.

Convém salientar que a péssima qualidade das vias de acesso é outro entrave para o
pequeno produtor. Segundo eles, não há uma infraestrutura adequada para o
escoamento da produção, pois, as estradas, em sua maior parte, não possuem
pavimentação asfáltica, apresentam poeiras, oscilação e lamas (no período chuvoso);
além de não possuírem caminhões e/ou câmaras de gelo para realizarem o
deslocamento e conservar os produtos até às feiras da cidade; o que é contraditório
quando comparamos com o escoamento da produção do agronegócio. Então, o
acesso ao crédito e a logística, infelizmente, é atendido somente para os interesses da
produção do médio e do grande produtor agrícola.

182
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE
O discurso bancário afirma que há parcerias com o pequeno produtor e que existem
linhas de crédito como o Pronaf7, que auxiliam nesse tipo de atividade agrícola. De
acordo com uma determinada agência bancária do município, houve, em 2017 (1º
semestre), um desembolso de R$ 7,5 milhões de reais para os pequenos produtores
que procuraram a agência de Grajaú8, porém, é notório que a realidade é
absolutamente contraditória. Quando se trata do crédito disponibilizado para o setor
empresarial, no primeiro semestre de 2017, o banco realizou um desembolso de R$
20,7 milhões, ou seja, uma diferença de R$ 13,2 milhões de reais. Logo, notamos que a
estrutura e a dinâmica da agricultura no município estão voltadas para o agronegócio
dos grãos, principalmente da soja, como é bem notório na Figura 4, a seguir:

7
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
8
Informações obtidas no “Café Rural”, encontro de produtores rurais, no município de Grajaú em
2017.

183
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 4: Mapa da dinâmica da área plantada (hectares) com soja (1990-2015) em Grajaú – MA.
Fonte: Organizado por Juscinaldo Goes Almeida a partir de dados do IBGE, 2018.

184
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Como já salientado, a introdução da soja em Grajaú teve início nos anos 2000, com a
chegada dos primeiros paranaenses. De acordo com o mapa, até o final da década de 1990
não existia esse tipo de produção no município. No entanto, a partir das transformações
ocorridas no campo, atreladas à mecanização e à macroeconomia, observa-se que a
sojicultora se intensifica a partir de 2010, adentrando com intensidade em 2015, mesmo com
a ocorrência da já mencionada estiagem.

Para Santos e Silveira, “a dinâmica globalizante não apaga restos do passado, mas modifica
seu significado e acrescenta, ao já existente, novos objetos e novas ações características do
novo tempo” (2001, p.253). Essa estrutura montada e influenciada pelo processo de
globalização modifica alguns arranjos agrícolas que estavam na base de sustentação
econômica do município de Grajaú, porém, não muda o grau de concentração da terra e o
valor econômico agregado a ela.

Nessa perspectiva, a soja atende as exigências do mercado externo, e enquanto esse


“cliente” exigir mais produção, mais territórios serão procurados pelos médios e grandes
produtores e pelas empresas do ramo agrícola/industrial. Nesse sentido, com o intuito de
obtermos informações sobre a estrutura e a dinâmica da safra 2017/2018, perguntamos a
um sojicultor paranaense se a soja era uma atividade rentável e se produtores expandiram
suas áreas em Grajaú, em resposta, disse:
Sim, é rentável. É uma cultura que com quatro meses ela já definiu. Depois de
quatro meses você já está livre dela, você já vai pensar no outro ano já. Na safra
2017/2018, eu plantei 1.000 hectares em uma das minhas fazendas. De 2015 para
cá, a produção da soja se expandiu muito no município, deve ter aumentado
aproximadamente entre 5.000 a 8.000 mil ha, isso para você ver.… sem cálculos
exatos, porque deve ter sido bem mais. Nós estamos contentes com a produção.
Não vamos perder, teve boa chuva. Eu vou colher o total que plantei. Vou fechar
em 55 sacas (60kg) por hectare. Hoje, o preço da saca no mercado é R$ 77,00. Essa
é a melhor safra de todos os anos aqui em Grajaú. Tem produtores colhendo 60 a
80 sacas por hectare. É uma produtividade que só tende a crescer (V.S. Entrevista
concedida em 7/5/2018).

Por meio da fala do produtor, verifica-se que esse aumento substancial das áreas plantadas
vem despertando o interesse de agentes econômicos por conta da lucratividade do
agronegócio no município. Segundo o agricultor, a empresa GenesisAgro produz
aproximadamente 100 variedades de sojas9, buscando melhorar a produção em Grajaú, o
que atrai novos produtores no interesse de ampliar seus negócios, como ocorreu com o
entrevistado. De acordo com a sua produção em 1.000 ha de área plantada de soja, V.S.
colhe aproximadamente 55.000 sacas10, resultando em uma produtividade de R$
4.235.000,000. Segundo o sojicultor, o investimento da lavoura é em torno de 23 sacas por
hectare, isto é, um custo de produção por volta de R$ 1.771.000,000 por 1.000 ha.

9
Infelizmente, não foi possível identificar os tipos de sojas produzidos na empresa, pois não fomos liberados
para realizar a entrevista com algum funcionário da mesma.
10
Segundo a cotação do dólar no dia 7/05/2018 a saca da soja (60 kg) estava cotada a R$ 77,00.

185
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Esses números revelam a concentração da propriedade da terra e o alto valor agregado


desse modo capitalista de produção da soja. Com tais vantagens de lucro, os envolvidos
nessa estrutura de mercado se apropriam de “novas” formas de aproveitamento dessa
terra, como forma de acúmulo do capital. Um exemplo desse processo é o arrendamento11,
que mesmo não sendo novo, tem passado a ganhar mais adeptos em Grajaú, por conta dos
resultados obtidos por quem já pratica esse tipo de agricultura. Em conversa obtida com um
arrendatário, questionamos: O arrendamento é algo lucrativo no município? Existem
empresas que arrendam terras?
Olha, eu já trabalhei com o arroz aqui na década de 1970 e 1980; depois passei para
a pecuária, e hoje sou arrendatário. Eu fui botar na ponta do lápis, e vi que é muito
mais negócio eu arrendar as minhas terras para plantar soja. Eu arrendo 200
hectares, eu ganho 5 sacos por hectare (1.000 sacas em 200 ha) e recebo R$ 80.00
no final da produção, sem eu ter dor de cabeça e despesa com nada. O meu solo
está melhorando e está mais valorizado. Então, com tudo isso, a preocupação que
eu vou ter é só de vender e gastar o dinheiro.
Tem produtor aqui que tem mais de 10.000 ha. Eu quero vender uma fazenda que
tem mil e poucos ha de terra, estou preparando uma outra área com 300 hectares.
Isso vai ser a minha aposentadoria. Para não vender meu patrimônio, eu quero
preparar campos e arrendar, como uma forma de garantia futura. O arrendamento
tem sido tão lucrativo que você encontra sim empresas arrendando terras. A
GenesisAgro e a Gusa Nordeste já são fortes arrendatários (A.B.M – Entrevista
concedida em 10/05/2018)

Esse relato demonstra com ênfase o contexto desse capitalismo rural, que visa sobretudo
as relações econômicas, e não sociais. Aqueles que estão nessa lógica vislumbram o capital
em forma de dinheiro como garantia futura. Nessa corrida pela dominação e ocupação do
território, observa-se também a atuação das empresas em uma lógica competitiva. No caso
da empresa Gusa Nordeste12, encontrou-se um noticiário (Jornal Cidades) divulgando o
arrendamento de algumas das suas propriedades. No referido jornal, estava destacado:
Gusa Nordeste, contribuindo com o crescimento dos agricultores da região, está
arrendando algumas áreas de sua propriedade que estão ociosas [...] Fazenda
Sibéria, com 7.500 ha. Sendo 4.000 destinadas à plantação de arroz com contrato
de um ano. Forma de pagamento: 5 sacos por hectare. E as outras 3.500 ha serão
destinados ao plantio de soja, com contrato de 6 anos. Forma de pagamento: no
primeiro e segundo ano será zero custo. Já no terceiro e quarto ano serão 2 sacas
por hectare. E no quinto e sexto ano serão 3 sacas por hectare (Jornal Cidades: Sul
do Maranhão & Capital – Sede Regional de Grajaú, 2018, p.2).

11
Na visão de Veronica Secreto o arrendamento é “uma forma contratual pela qual um proprietário cede o
uso da terra mediante um pagamento de uma renda ou aluguel.” Para a historiadora o arrendamento é uma
prática antiga, que adquire “rasgos peculiares no capitalismo.” (SECRETO, Veronica. Arrendamento
(verbete). In: Dicionário da Terra. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 40)
12
Em Grajaú a Gusa Nordeste trabalha com o plantio do eucalipto e com a produção do carvão, e distribui na
sua usina (Grupo Ferroeste) em Açailândia-Ma. A produção do eucalipto e do carvão não é vendida para
outras empresas. Em Grajaú, a Gusa Nordeste possui aproximadamente 60.000 ha de terras, distribuídos na
Fazenda Vida, Sibéria e Solta.

186
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A imposição dessas empresas no território é de uma complexidade que envolve agentes


ligados a essa escala geoeconômica. Nota-se que existe uma multiplicidade de práticas que
estão em relação direta também com as escalas locais. Com isso, “novas formas de
compartimentação do território ganham relevo e são capazes de impor distorções ao seu
comportamento: são as novas caras da fragmentação territorial” (SANTOS; SILVEIRA, 2001,
p. 254). Esse modelo usa um discurso de desenvolvimento que contribui apenas para os
médios e grandes produtores (agricultores da região), pois, como vimos, eles quem
possuem poder econômico e terras para produzir ou investir naquilo que é exigido pelo
mercado. Porém, essa dinâmica não é sociabilizada com quem está na margem do processo.

Um exemplo disso são os posseiros que ocupam um fragmento da terra, sem ter o título
legal da propriedade. Embora ele resida há anos naquele lugar e tenha um sentimento de
pertencimento, não consegue adquirir os documentos legais que o garanta como dono da
terra, pois não possui capital ou representatividade para o sistema capitalista, que exige
recompensa13. Nisso, as empresas e os grandes proprietários, que possuem poder aquisitivo
e uma certa relação com os órgãos públicos responsáveis pela aquisição das terras,
conseguem comprá-las, e expulsam àqueles que não possuem o título da propriedade.
Assim, nota-se como esse sistema capitalista é contraditório e desigual, onde o monopólio
é exercido tanto pelos grupos políticos como pelos grupos econômicos, como disse esse
entrevistado:
Você percebe que existia o monopólio das famílias tradicionais. Mas hoje você já
vê vereador pernambucano em Grajaú; você já vê os grandes grupos econômicos
se juntando com os políticos para eleger vereadores para ter influência. Tem a
bancada da madeira, tem a bancada do gesso, tem a bancada do agronegócio. Eles
se fragmentam e elegem um determinado vereador para não perder a influência
econômica e ganhar o poder na política, porque o legislativo tem o poder de decidir
para aprovar uma conta, para aprovar um projeto, e eles têm esse conhecimento
que existe essa prática, que tão cedo não mudará (A.B – Entrevista concedida em
25/05/2018).

Com essa fala, evidencia-se o jogo político e econômico que os agentes públicos e privados
fazem para comandar essa estrutura. No bojo dessa discussão, é evidente a partir dos
resultados obtidos nos lócus da realidade empírica, que impera a lógica da produção
capitalista14. Logo materializa uma sociedade marcada pela dualidade de classes. Assim, na

13
Cerca de 10 pessoas nos povoados Alto Brasil, Flores e Sabonete relataram a morosidade na assistência de
órgãos públicos como o Incra e o Iterma na regularização terras. O Estado promete que tal problema será
solucionado. Mas, até o presente momento, não foi. Existe uma omissão da esfera pública. Um deles afirmou
que não tem o título, apenas o mapa da terra, e por isso não consegue financiamento bancário. Segundo ele:
“Aquelas pessoas que possuem mais condições acabam comprando a sua propriedade, entram em acordo
com o Estado. O valor cobrado está em torno de R$ 8.000. Eu não tenho condição de comprar e não tenho
como contratar um advogado. O Estado, na verdade, não está dando o título da terra, está vendendo. ” (A.
M. – Entrevista concedida em 30/04/2018).
14
É interessante verificar a discussão da geógrafa Maria da Glória Ferreira, que analisa esse mesmo processo
de periferização na área urbana de Balsas. Cf. FERREIRA, Maria da Glória Rocha. Agricultura moderna e suas
repercussões socioespaciais urbanas. In: FERREIRA, Antonio José de Araújo; LIMA, Roberta Maria Batista de
Figueiredo Lima. (Org.) Estudos de Geografia do Maranhão. São Luís: EDUFMA, 2013.

187
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

cidade de Grajaú as desigualdades socioeconômicas são crescentes, refletindo a


contradição, através do dinâmico processo agrário-agrícola voltado principalmente para o
mercado internacional, e na contramão de tal modelo de produção se evidencia o paradoxo,
visto que há um crescente processo de êxodo rural, ocasionando diversos problemas para
a população que migra da área rural do município em direção à sede (área urbana). Pela falta
de infraestrutura e pela negligência por parte do Estado, esses indivíduos passam a ocupar
desordenadamente áreas do entorno da cidade, carente dos mais diversos serviços e
equipamentos públicos, o que resulta em um território cada vez mais segregado, como
observamos na Figura 5, a seguir:

Figura 5: Segregação urbana no município de Grajaú - MA.


Fonte: VIEIRA, Layla Adriana T. 2018.

188
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

A Figura 5 mostra contundentemente a contradição e “o retrato de dois mundos”


(BAUMAN, 2012, p.22) que se manifesta no território deste estudo, refletindo a divisão de
classes típica de um sistema supressor e segregado. Assim, pode-se ver a diferenciação das
áreas de acordo com a classe social. A população de baixa renda fica marginalizada em áreas
periféricas, tendo que morar em casas precárias, construídas de frágeis materiais, com falta
de pavimentação nas ruas, com crescentes índices de criminalidade, com insuficiência de
empregos na cidade. Portanto, vive-se em um mundo extremamente excludente e
fragmentado em níveis geográficos e sociais. Essa segregação “significa não apenas um
meio de privilégios para a classe dominante, mas também um meio de controle e de
reprodução social para o futuro” (CORRÊA, 1989, p.66). Nesse sentido, tal exclusão é
gerada pelos agentes que controlam a organização dessa cidade que também é capitalista.

Do lado esquerdo da Figura 5, estão os bairros da Vilinha e do Quem-Dera, e do outro lado


está o bairro da Extrema (são bairros que demonstram a expansão da área urbana em
Grajaú)15. Nos dois primeiros, encontra-se a periferização e no outro (apesar de também
existir segregação), verifica-se residências da população de alta renda do município, que são
moradias situadas no loteamento privado, denominado Frei Alberto Beretta. Dentro desse
loteamento, há o condomínio fechado Rosa dos Ventos e a Universidade Federal do
Maranhão. O loteamento e o condomínio são moradias carregadas de simbolismos, pois já
traz consigo uma imagem de poder social e econômico diante da sociedade grajauense.
Nessa realidade, essa clientela também se “auto segrega” que, na visão de Vasconcelos,
seria:
Resultado de uma decisão voluntária de reunir grupos socialmente homogêneos,
cujo melhor exemplo é o de loteamentos e condomínios fechados, com suas
entradas restritas, muros e sistemas de segurança. É uma forma radical de
agrupamento residencial defensivo que procura juntar os semelhantes e excluir os
diferentes e impedir o acesso aos indesejáveis (VASCONCELOS, 2004, p.263).

Tal análise é bastante interessante, porque retrata justamente o que ocorre nessas
residências, configurando-se entraves criados para separar as classes sociais. Os territórios
são muito bem selecionados, separando as áreas nobres das áreas populares, o acesso
também começa a ser restrito nos ambientes, e criam-se lojas de roupas, restaurantes,
bares, comércios, universidades, clubes etc., no intuito de atender as exigências das
camadas alta e média da população, excluindo assim, nessa concepção, “os diferentes”.

Partindo dessa lógica capitalista de desenvolvimento, que não só segrega classes sociais,
mas também expande territórios, expulsa o pequeno produtor do campo, desenvolve
agricultura tecnicificada (empregando baixa quantidade de mão de obra), produz alimentos

15
De acordo com dados do IBGE, a população urbana superou a população rural a partir de 2000. No ano
referido a população urbana era de 26.511 e a população rural apresentava 20.644; em 2010 observamos um
salto populacional; a população urbana estava contabilizada em aproximadamente 35.041, em
contrapartida, a segunda possuía 25.052. (IBGE – 2018).

189
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

voltados para a industrialização, que defende o “agro é pop, agro é tech, agro é tudo.”16,
obtêm-se resultados crescentes de depredação dos recursos naturais e ações contra as
comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. Ao longo da pesquisa, tais problemas
foram evidenciados, tanto pela população urbana, como pela população rural de Grajaú. Em
um dos casos relatados, perguntou-se a um morador do povoado Sabonete, quais eram os
principais desafios do povoado frente à expansão do agronegócio no município:
É bem complicado. O povoado acaba em uma cerca que é o eucalipto. O impacto
ambiental é gigantesco. De 2005 para cá, a mudança foi total. O impacto
aumentou... o nosso produtor foi parando na agricultura, as caças foram sumindo,
alguns riachos, rios e lagos foram secando, o desmatamento é frequente, aí tu vai
sentindo a quentura.... Formou um deserto verde do eucalipto e um deserto de
campos abertos da soja. Tudo isso é veneno puro.... Eles jogam de avião o veneno
bem ali... e vem até as casas; aqui já teve casos de as pessoas adoecerem. Uma vez
a gente denunciou e abriu um processo contra a G5, mas quando foi para
mostrarmos qual era o veneno, não tivemos nenhum companheiro que teve
coragem de pegar na empresa uma amostra do veneno para trazer, então a
empresa disse que era um veneno que não causava danos, e não tivemos como
comprovar. Hoje, a nossa comunidade está ilhada (R.C. – Entrevista concedida em
20/04/2018.)

3 Transformações ambientais

O avanço do agronegócio tem provocado alarmantes problemas ambientais no território


deste estudo, ocasionados pelo cultivo da soja, do eucalipto, do milho, do arroz (em larga
escala); pela produção do carvão vegetal, pela pecuária de corte e industrialização do gesso.
Nesse cenário, além do meio ambiente não ser preservado, “as vozes das comunidades
impactadas não têm o mesmo peso relativo no debate vis-à-vis dos atores empresariais ou
governamentais” (PITTA, 2017, p. 4). Além disso, surgem discursos de responsabilidade
social e ambiental, que na prática não são colocados como pautas principais das políticas
empresariais dos madeireiros, pecuaristas, agricultores e industriais gesseiros. Em virtude da
inexistência dessa ação, a degradação ambiental se amplia no município de Grajaú (Figura
6).

16
Campanha realizada pela Rede Globo.

190
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

Figura 6: Impactos ambientais no município de Grajaú -MA.


Fonte: Layla Adriana Teixeira Vieira, 2017 / 2018.

Como se observa na Figura 6, o cenário retrata a intervenção humana sobre o meio


ambiente, a começar pelo desmatamento desenfreado da floresta nativa para a
implantação de extensos campos de produção. O cultivo da soja e do eucalipto17, por
exemplo, provocam danos na fauna, na flora e no solo, deixando-o favorável para a invasão

17
Árvore conhecida no município como “floresta morta” e “deserto verde”.

191
OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

de pragas, fungos e bactérias prejudiciais para o desenvolvimento de outras culturas como


tomate, pimentão, alface, cheiro-verde, berinjela, dentre outras.

Para combater essa proliferação, os médios e grandes produtores utilizam inseticidas,


fertilizantes, herbicidas, fungicidas químicos, liberando-os quase que semanalmente pelos
aviões que transitam o céu do município. O resultado dessa prática acomete a saúde da
população que vive próxima às plantações; além de contaminar o solo, poluir os afluentes,
os lençóis freáticos, provocar a vasão dos rios Grajaú, Santana e dos riachos do Ouro, Cunhãs
e Sussuapara, e prejudica a plantação do pequeno produtor, com a propagação da mosca
branca, problema mais relatado durante a pesquisa de campo.

Outro fenômeno frequente são as queimadas, causadas na sua maioria por fazendeiros que
“culturalmente” queimam os pastos, no intuito de renová-los. As carvoarias são exemplos
que estão presentes de forma ilegal no território, queimando e destruindo as reservas
ambientais. Em conjunto está a expansão da fronteira agrícola que desfloresta e contribui
para a escassez das chuvas.

Como reflexo dessas ações antrópicas, é importante destacar que no ano de 2016, Grajaú
foi o 4º município que obteve maior incidência de queimadas (focos: 9.575); em 2017 esteve
em 1º lugar, com 31. 708 focos de calor18. Em 2017, presenciou-se grandes quantidades de
fumaças e cinzas cobrindo a cidade e uma ação intensiva do IBAMA em conjunto com a
Secretaria de Municipal de Meio Ambiente (SEMA) para o controle dos focos no perímetro
urbano e na zona rural, principalmente nas reservas indígenas de Bacurizinho, Morro Branco
e Três Porquinhos.

Do mesmo modo, a agricultura tecnificada, o desmatamento, as queimadas, a mineração


da gipsita também exercem interferência no meio ambiente e favorecem a deterioração das
reservas naturais de Grajaú, o que tem causado impacto também na sociedade. A indústria
gesseira do município quase sempre não respeita o plano de recuperação dessas áreas
afetadas pela mineração; destroem cada vez mais o solo e o subsolo com explosivos para
abrir grandes áreas, formando verdadeiras crateras a céu aberto. Quando não estão sendo
mais utilizadas ficam expostas e criam lagoas “verdes” com produtos químicos a base do
enxofre, utilizados para implodir as rochas. Já nas fábricas de calcinação verificou-se as
fumaças sendo liberadas pelas chaminés sem filtros para proteger a população e o meio
ambiente. Todos esses problemas causam altos índices de doenças respiratórias e afetam
principalmente os funcionários dessas empresas, as crianças e os idosos. A poluição
atmosférica causada pelas queimadas e pelas indústrias gesseiras deixa em estado de alerta
a população.

Portanto, observa-se que a ação do capital não é levar o bem-estar social, não é praticar
ações que favoreçam a qualidade do meio ambiente, é sobretudo obter lucros e dados

18
IMESC. Relatório de Queimadas Maranhenses. Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e
Cartográficos-IMESC. v.2, n.1, jan./dez. – São Luís: IMESC, 2017, p.9.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

econômicos estatísticos. Em março de 2018, o Governo do Estado divulgou que o Maranhão


é líder no Brasil com alta no PIB de quase 10%, sendo o agronegócio um fator de destaque
para tal cenário19. Porém, sabe-se que esse resultado não demonstra uma evolução dos
índices sociais e um crescimento econômico da produção do pequeno produtor, como
vimos no caso de Grajaú. Em vista disso, nota-se que a entrada do capital interno e externo
dentro do território trouxe um aperfeiçoamento do processo econômico
(tecnológico/globalizado), mas não a solução dos problemas sociais, ambientais e políticos
do município, tornando-o desigual e fragmentado por meio da concentração política e
econômica, estabelecidos durante o processo histórico ocorrido de longa duração.

4 Considerações finais

Após análise sobre “As transformações socioeconômicas e ambientais no município de


Grajaú-MA”, observa-se quão importante é compreender as dinâmicas que ocorrem nesse
território e a sua relação com o tempo presente. Tal discussão possibilitou identificar que o
processo histórico de formação desse território está inserido na atual configuração
socioeconômica do referido município, atrelado ao modo de reprodução do modelo de
concentração de terras. Logo, essa estrutura, que, a princípio, estava baseado na pecuária
extensiva, articulou-se com outras economias da região do setor agrícola e industrial, como
o caso da soja, do milho, do eucalipto e do gesso, baseadas em uma produção técnica e
incorporadas a médias e grandes extensões de terras, causando assim, uma fragmentação
territorial, com intensa atuação do poder político e do capital estatal e privado.

Nesse prisma, verifica-se e confirma-se que os atuais modos de produção da economia


grajauense estão alicerçados na base histórica, ligada aos potentados rurais, coronéis, de
famílias tradicionais e políticos que detinham o poder sobre o território. Atualmente, foram
incorporados agentes tanto da própria região, como fora dela, vindos de Goiás, São Paulo,
Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, dentre outras regiões, para atuarem
no mercado do agronegócio e na expansão da fronteira agrícola; alguns ligados à política,
outros não, mas que começaram o processo recebendo incentivos fiscais do governo
federal e estadual, o que deixa claro a forma desigual e contraditória, porém real do
capitalismo, pois garante o acesso e o poder nas mãos de uma minoria social.

Assim, teve-se a preocupação de explanar como que o agronegócio adentra o território de


Grajaú e avança sobre ele; causando assim a intensificação da concentração da terra, a
expropriação do pequeno produtor do campo, a burocratização bancária enfrentada por
quem não tem o título da propriedade, a valorização de uma política que fomenta o

19
GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO. Maranhão é líder no Brasil com alta no PIB de quase 10%.
Disponível em:
<http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/gestao/maranhao-e-lider-no-brasil-com-alta-no-pib-de-quase-10 > .
Acesso em: 2 de junho de 2018.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

capitalismo, a monocultura, o latifúndio, a obtenção e a multiplicação dos lucros; a


exploração do trabalhador que não teve (e não tem) acesso aos estudos, a periferização, a
segregação, o uso intensivo dos recursos naturais, dentre outros impactos socioambientais,
gerenciados por um modelo agroexportador que comanda o mercado capitalista de Grajaú.

Em virtude da realidade encontrada no município, preocupou-se não só em apontar as


consequências geradas por esse modo de produção, como também em indicar algumas
sugestões no intuito de conter e combater os problemas que afetam os indivíduos que
vivem à margem dessa sociedade. Portanto, sugere-se a atuação de políticas públicas
adequadas no âmbito social e educacional, distribuindo ações coletivas para que esses
indivíduos saibam dos seus direitos; a elaboração de projetos sociais para combater a
violência urbana e o conflito no campo; a aplicação de semanas educativas e palestras que
visem discutir também os impactos ambientais e a importância da agricultura familiar para
o desenvolvimento de uma economia solidária.

É relevante que os trabalhos acadêmicos sejam “vistos” pela esfera pública municipal, e que
esse órgão público dê espaço para a aplicação e discussão dos resultados fora do âmbito
acadêmico, e dentro da sociedade civil, pois é muito mais significativo ‘valorizar a educação
em vez da política’. Outra proposta é adequar as assistências técnicas e propiciar cursos de
capacitação para que esses profissionais atuem, não de modo a impor as técnicas para o
pequeno produtor, que às vezes cresceu em outra realidade e apresenta modos de fazer
adquiridos de geração em geração. É necessário também incentivar a venda da produção
do pequeno produtor de modo a contribuir para o escoamento dos produtos orgânicos
cultivados no campo. Além de procurar respostas dos setores responsáveis sobre a lentidão
dos direitos desses indivíduos de terem as suas propriedades devidamente garantidas, com
a aquisição do título legal da terra.

5 Referências

BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia a todos nós?. Tradução: Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 2013.
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989.
FERREIRA, Maria da Glória Rocha. Agricultura moderna e suas repercussões socioespaciais urbanas.
In: FERREIRA, Antonio José de Araújo; LIMA, Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima. (Org.)
Estudos de Geografia do Maranhão. São Luís: EDUFMA, 2013.
GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO. Maranhão é líder no Brasil com alta no PIB de quase 10%.
Disponível em: <http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/gestao/maranhao-e-lider-no-brasil-com-
alta-no-pib-de-quase-10 > . Acesso em: 2 de junho de 2018.
GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO. Maranhão é líder no Brasil com alta no PIB de quase 10%.
Disponível em: <http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/gestao/maranhao-e-lider-no-brasil-com-
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IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Grajaú. Disponível em: <
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/grajau/panorama.> Acesso em : 21 de maio. 2018.

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OLHARES SOBRE O SERTÃO MARANHENSE

IMESC. Relatório de Queimadas Maranhenses. Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos


e Cartográficos-IMESC. v.2, n.1, jan./dez. – São Luís: IMESC, 2017.
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MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. 4 ed., Petrópolis: Vozes. 1990.
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VIEIRA, Layla Adriana Teixeira. A formação sócio-histórica do latifúndio no sertão maranhense:
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Desenvolvimento Socioespacial e Regional – PPDSR). Universidade Estadual do Maranhão, São Luís,
2018.

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