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José de Estengo

Foi-nos dado observar a morte do justo num pobre homem,


José de Estengo, que habitava com os seus num oitavo andar perto
do Campo Santo de Roma. Os braços e pernas eram uma
gangrena, sofria imenso, sobretudo por causa do frio, quando os
nervos, na iminência da morte, todos se contorciam. Nunca se
queixava e oferecia todos estes sofrimentos ao Senhor pela
salvação das almas, pelos seus e pela conversão dos pecadores.
Foi atingido pela tuberculose e teve de ser transferido para o
hospital do Litorio, no outro extremo de Roma. Morreu lá cerca de
três semanas depois, no mais perfeito abandono. Ora,
precisamente no momento em que morria, o velho pai, muito bom
cristão, ouvia no outro extremo da cidade a voz do filho que lhe
dizia: “pai, vou para o céu.” E a mãe dele sonhava que o filho
subia ao céu, curado de pés e mãos, como acontecera após a
ressurreição dos mortos. Ter conhecido este pobre foi uma das
grandes graças que obtive na vida. Era, verdadeiramente, um
amigo de Deus. A morte só o veio confirmar.

Anónimo da Índia

Em 1972, tive uma parada cardíaca enquanto era operado por


um abscesso hepático. Estava muito doente, sem pressão arterial e
sem respiração, quando senti uma espécie de energia tentando sair
do meu corpo. Podia sentir minha cabeça girando a uma
velocidade inimaginável e senti que viajei milhões de quilómetros
de distância num espaço desconhecido em frações de segundo.
Viajei para um espaço repleto de luz brilhante onde fui amado
com um amor que nunca tinha experimentado antes, e nem
experimentei mais depois desse evento. Tive a sensação de que,
por horas seguidas, estive longe deste mundo, gostando de estar

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com a luz. Agora, olhando para trás, com essa idade de 63 anos,
depois de ler livros, sinto que estava além do tempo e do espaço.
Quando abri os olhos por volta das 16h, minhas primeiras palavras
foram: “Doutor, porque me trouxe de volta? Estava muito feliz
onde estava.”

Anónima

Em 1859, o Dr. Boismont descreveu uma mulher que estava


delirando e parecia ter morrido repentinamente. Ela foi revivida
pelos presentes. Em vez de agradecer às pessoas que tanto se
esforçaram para restaurá-la à vida, queixou-se de terem chamado
sua alma de uma condição de repouso e felicidade indescritíveis,
como não era permitido desfrutar nesta vida.

John A. Symonds

Depois que a sufocação e a asfixia haviam passado, tive a


impressão de encontrar-me, a princípio, num estado de vazio total;
vieram depois lampejos de luz intensa, que se alternavam com
negrumes e com uma visão aguda do que estava acontecendo no
quarto à minha volta, mas sem nenhuma sensação de tato. Supus
estar perto da morte, quando, a súbitas, minha alma teve
consciência de Deus, que manifestamente lidava comigo,
manejando-me, por assim dizer, numa intensa realidade pessoal
presente. Senti-o jorrando como luz sobre mim. Não posso
descrever o êxtase que experimentei. Depois, à medida que
despertei gradativamente da influência do anestésico, o velho
sentido da relação com o mundo começou a voltar, o novo sentido
da minha relação com Deus principiou a desvanecer. De repente,
ergui-me em pé da cadeira em que estava sentado, e pus-me a
gritar: “É horrível demais, é horrível demais, é horrível demais,”

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querendo dizer com isso que não poderia suportar aquela
desilusão. Depois atirei-me ao chão e, afinal, acordei coberto de
sangue, interpelando os dois cirurgiões (que estavam assustados):
“Por que não me mataram? Por que não me deixaram morrer?”
Pensem um pouco nisso. Ter sentido durante aquela indefinida
visão extática o próprio Deus, em toda a pureza, ternura, verdade e
amor absoluto, e depois descobrir que, afinal de contas, eu não
tivera nenhuma revelação, mas havia sido enganado pela excitação
anormal do meu cérebro. Sim, subsiste a pergunta: Será possível
que o sentido interior de realidade que se seguiu, quando minha
carne estava morta para as impressões do exterior, para o sentido
ordinário das relações físicas, não fosse uma ilusão, mas uma
experiência real? Será possível que, naquele momento, eu tenha
sentido o que alguns santos disseram ter sentido sempre, a
indemonstrável mas irrefragável certeza de Deus?

Tara da Austrália

Em 1977, quando tinha 7 anos, fui à praia com uma amiga.


Decidimos escalar um penhasco. Estávamos a cerca de 20 metros
de altura quando fiquei presa. Minha amiga, regressando,
apressou-se em chamar a mãe. Minhas mãos começaram a
escorregar e minhas pernas tremiam incontrolavelmente. Meus
dedos escorregaram das pedras e comecei a cair para trás. Quando
estava caíndo, abri os olhos e vi que estava de cabeça para baixo e
parecia estar olhando de um túnel. Não conseguia ouvir ou sentir
nada. Estava ciente de estar esbarrando no penhasco. Lembro-me
de ter pensado que estava demorando muito para chegar lá em
baixo. Tudo acontecia em câmera lenta, mas em nenhum momento
tive medo. Não estive ciente de aterrar, mas quando abri os olhos
descobri que estava deitada no chão com a cabeça inclinada para
trás. Ainda não conseguia sentir ou ouvir, mas vi uma senhora

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parada a alguns metros de mim. Esta senhora era branca. Ela tinha
um vestido longo branco transparente com longos cabelos
brancos. Ela parecia brilhar. Eu me perguntava por que ela não me
ajudava. Ela apenas ficou lá e sorriu para mim. Achei que devia
estar morta. É por isso que ela não quis me ajudar. Quando decidi
pedir-lhe ajuda, ela pareceu ler minha mente. Eu pedia, mas não
em voz alta; simplesmente pensava. Pedi-lhe para me ajudar, mas
ela apenas ficou lá. Continuei pedindo. Quanto mais eu pedia,
mais ela não ajudava, e mais eu ficava angustiada. Na última vez
que pedi, ela respondeu, “Tu estás bem,” e sorriu. Eu disse: “Não
estou,” enquanto ela sorria e ia embora. Meus sentidos começaram
então a voltar. Já podia sentir e ouvir. Comecei a gritar quando a
mãe da minha amiga chegou. Quando fui levantada, os únicos
ferimentos que tinha eram arranhões nas pernas. Ao olhar para a
face do penhasco, ficou claro para mim que deveria estar morta ou
gravemente ferida. Sei em meu coração que o que vi e
experimentei foi verdadeiro e isso é tudo o que importa.

Judith A. Boss

Uma voz fala comigo. Diz-me, “Larga o volante.” A voz soa


como uma voz masculina e vem de um local à minha esquerda e
ligeiramente para cima e para trás. A voz é distinta. É serena e traz
consigo uma sensação de total segurança e autoridade. Todas as
dúvidas, todo o pânico e medo desaparecem. Largo o volante. Não
estou mais cansada ou com medo. Afasto os braços, abro as mãos.
Sou puxada para cima – sugada – através de um funil largo para
uma luz branca. O funil não tem lados visíveis. É um funil apenas
em termos de fluxo e movimento. A luz é uma luz branca de pura
energia. A luz branca está viva. A luz não ilumina outros objetos,
mas é tanto a fonte como o objeto. Não há diferenciação entre a
luz e aquilo que ela ilumina. Não há sombras. É pura

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luminosidade. Estou agora absorvida na luz. Não sou adicionada
ao espaço ocupado pela luz. Em vez disso, sou da luz, não apenas
estou na luz. O espaço de luz não separa ou divide, mas apenas é.
Estou em união com a luz. Eu sou a unidade, mas permaneço eu
mesma. A experiência é familiar – já a conheci antes. A luz me
permeia. A luz me ama. Abraça-me, mas não me restringe. A luz
informa-me, sem palavras, e deixa-me totalmente em paz, sem
dúvidas, sem desejos não-realizados. Faço parte da alegria, do
amor, da paz e da sabedoria totais, infundidos com a luz,
afirmados pela luz. Eu apenas sou. Não há sensação de estar morta
nem de estar separada do meu corpo. Estou completamente
consciente. Minhas perceções sensoriais são intensificadas. Não
há véu entre o mundo exterior e eu. Não há mistérios aqui. A luz –
uma presença – diz-me, sem palavras, para amar a todos e buscar
sabedoria. Há mais. Existe música. A música é uma unidade, sem
notas distintas. É fluida – fluindo – viva. Parece fazer parte da luz.
No entanto, a música está fora de mim. Eu a escuto e percebo. É
familiar. Estou movendo-me para a minha esquerda e para cima.
Em direção à música – movendo-me rapidamente. No entanto, não
há nenhuma sensação de mover-me através da luz. A luz não tem
pontos de referência para medir o movimento. Não sei quanto
tempo se passou – pode ter sido um segundo – ou eras. Não é um
tempo linear no sentido de mover-se de um evento para o próximo
– nem há uma sensação de passado, presente e futuro separados.
Não sinto calor nem frio. Não existem contrastes. Existe apenas
um senso de unidade, bem-aventurança e harmonia. De repente,
estou de volta ao carro.

J. B. B.

Doutor em Medicina, nasceu em 1817. Aconteceu em 1855,


aos trinta e oito anos. Ele não era um homem refinado. É uma das

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coisas estranhas em tudo isso que a consecução da verdade parece
deixar um homem, neste particular, mais ou menos como o
encontra. O Dr. B. foi um exemplo. Ele parecia contente em viver
numa casa barata, pobre, e preferia cortejar a rudeza no trajar, no
conversar e no viver. Ao mesmo tempo, se era provocado com a
questão da visão interior, tornava-se vivo até o âmago de seu ser.
Ele fora um espírita mas, após a iluminação, embora parecesse
saber que muito do que o espiritismo ensinava era verdadeiro, sua
importância foi extremamente diminuída pelas verdades muito
maiores a que teve acesso. Certa vez ele me contou uma coisa
curiosa: disse que morreu, que seu espírito deixou o corpo durante
vinte minutos e que olhou para o corpo, pairou sobre ele e
finalmente voltou para o mesmo. E disse isto num tom grave e
convincente que causava no ouvinte um sentimento horripilante.
Ninguém que o tivesse ouvido contar isso poderia deixar de
acreditar.

Carl Jung

No início de 1944, fraturei um pé e logo depois tive um


enfarte cardíaco. Durante a inconsciência tive delírios e visões que
começaram quando, em perigo de morte, me administraram
oxigênio e cânfora. As imagens eram tão violentas que eu próprio
concluí que estava prestes a morrer. Me vi fora do corpo e
viajando pelo espaço, numa crescente subida. Parecia-me estar
então muito alto no espaço cósmico. Muito ao longe, abaixo de
mim, eu via o globo terrestre banhado por uma maravilhosa luz
azul. Meu campo visual não abarcava toda a Terra, mas sua forma
esférica era nitidamente percetível e os contornos brilhavam como
prata através da maravilhosa luz azul. Sabia que estava prestes a
deixar a Terra. O espetáculo da Terra visto dessa altura foi a
experiência mais maravilhosa da minha vida. Algo novamente

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surgiu no meu campo visual. A uma pequena distância percebi no
espaço um enorme bloco de pedra, escuro como um meteorito. A
pedra flutuava no espaço e eu também. Vi pedras semelhantes nas
costas do Golfo de Bengala. São blocos de granito marrom escuro,
nos quais às vezes se escavavam templos. Uma entrada dava
acesso ao pequeno vestíbulo. Dois degraus conduziam ao
vestíbulo: no interior à esquerda, abria-se o portal do templo.
Quando me aproximei dos degraus do rochedo, aconteceu-me algo
estranho: tudo o que tinha sido até então se afastava de mim. Tudo
o que acreditava, desejava ou pensava, toda a fantasmagoria da
existência terrestre se desligava de mim ou me era arrancada –
processo extremamente doloroso. No entanto, alguma coisa
subsistia, porque me parecia então ter ao meu lado tudo o que
vivera ou fizera, tudo o que se tinha desenrolado à minha volta. Eu
era feito de minha história e tinha a certeza de que era bem eu.
Esta experiência me deu a impressão de uma extrema pobreza,
mas ao mesmo tempo de uma extrema satisfação. Não tinha mais
nada a querer nem a desejar; poder-se-ia dizer que eu era objetivo;
era aquilo que tinha vivido. No princípio, dominava o sentimento
de aniquilamento, de ser despojado; depois, isso também
desapareceu. Tudo parecia ter passado, e o que restava era um
facto consumado sem nenhuma referência ao que tinha sido antes.
Tive ainda uma outra preocupação: enquanto me aproximava do
templo, estava certo de chegar a um lugar iluminado e de aí
encontrar o grupo de seres aos quais na realidade pertenço. Então
finalmente compreenderia – isso também era para mim uma
certeza – em que relação histórica me alinhava, eu ou minha vida.
Eu saberia o que houvera antes de mim, porque me tornara o que
sou e para o que minha vida tenderia. Minha vida parecia ter sido
cortada por uma tesoura numa longa corrente e na qual muitas
perguntas ficaram sem resposta. Eu tinha certeza de que receberia
uma resposta a todas essas perguntas, assim que penetrasse o

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templo de pedra. Aí compreenderia porque tudo fora assim e não
de outra maneira. Eu me aproximaria de pessoas que saberiam
responder à minha pergunta sobre o antes e o depois. Enquanto
pensava nessas coisas, ergueu-se uma imagem: era meu médico,
ou melhor, sua imagem, circundada por uma corrente de ouro ou
por uma coroa de louros dourada. Quando ele chegou diante de
mim, pairando como uma imagem nascida das profundezas,
produziu-se entre nós uma silenciosa transmissão de pensamentos.
Realmente meu médico fora delegado pela Terra para trazer-me
uma mensagem: protestavam contra a minha partida. Não tinha o
direito de deixar a Terra e devia retornar. No momento em que
percebi essa mensagem a visão desapareceu. Dececionei-me
profundamente; tudo parecia ter sido em vão. O doloroso processo
de “desfolhamento” tinha sido inútil: não me fora permitido entrar
no templo, nem encontrar as pessoas às quais pertenço. Na
realidade, passaram-se ainda três semanas antes que me decidisse
a viver; não podia alimentar-me, tinha aversão pelos alimentos. O
espetáculo da cidade e das montanhas que via do meu leito de
enfermo parecia uma cortina pintada com furos negros ou uma
folha de jornal rasgada com fotografias que nada me diziam.
Dececionado, pensei: “Agora é preciso voltar para dentro das
caixinhas!” Parecia que atrás do horizonte cósmico, haviam
construído artificialmente um mundo de três dimensões no qual
cada ser humano ocupava uma caixinha. E de agora em diante
deveria de novo convencer-me que viver nesse mundo tinha algum
valor! A vida e o mundo inteiro se me afiguravam uma prisão e era
imensamente irritante pensar que encontraria tudo na mesma
ordem. Sentia resistência contra meu médico porque ele me
conduzira à vida.

Albert Heim

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Heim, então candidato ao doutorado em geologia, liderava
um grupo num íngreme campo de neve nos alpes suíços quando
perdeu o equilíbrio e escorregou de um penhasco. Durante uma
queda de mais de dezoito metros, ele não sentiu dor – isso veio
depois –, mas todos os seus pensamentos permaneceram coerentes
e muito claros. E o tempo ficou lento: “O que senti em cinco a dez
segundos não poderia ser descrito em dez vezes mais tempo.”
Heim teve muito tempo para tomar decisões práticas durante a
queda. Decidiu ficar com o cajado da neve, pois ainda poderia ser
útil, e pensou em tirar os óculos, para o caso de eles se quebrarem.
Também decidiu chamar seus companheiros imediatamente, caso
sobrevivesse à queda, para que eles não se apressassem
indevidamente na sua própria descida pelo penhasco perigoso.
Mas isso não foi tudo. Ele prossegue: “Meu pensamento seguinte
foi que eu não seria capaz de dar minha palestra inaugural na
universidade que havia sido anunciada para cinco dias depois.
Pensei em como a notícia da minha morte chegaria a meus entes
queridos e consolei-os em meus pensamentos. Então vi toda a
minha vida passada acontecer em muitas imagens, como se
estivesse num palco a alguma distância de mim. Me vi como o
personagem principal da atuação. Tudo foi transfigurado como se
por uma luz celestial e tudo era belo, sem tristeza, sem ansiedade e
sem dor. A memória de experiências muito trágicas que tive era
clara, mas não triste. Não senti conflito ou contenda; o conflito foi
transmutado em amor. Pensamentos elevados e harmoniosos
dominavam e uniam as imagens individuais e, como música
magnífica, uma calma divina varreu minha alma. Fiquei cada vez
mais cercado por um esplêndido céu azul com delicadas nuvens
rosadas e violetas. Entrei nele sem dor e suavemente e vi que
agora eu estava caindo livremente pelo ar e que lá em baixo um
campo de neve me esperava. Observações objetivas, pensamentos
e sentimentos subjetivos eram simultâneos. Então ouvi um barulho

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e minha queda terminou.” Após o impacto, Heim ficou
inconsciente por meia hora. Seus companheiros tiveram de
carregá-lo até às cabanas mais próximas. No entanto, cinco dias
depois, ele deu sua palestra inaugural dentro do prazo e,
aparentemente, com bons resultados. Mais tarde, em 1892, Heim
publicou uma coleção de relatos de alpinistas que caíram nos
Alpes, de soldados feridos em guerra, de trabalhadores que caíram
de andaimes e de indivíduos que quase morreram em acidentes ou
por afogamento. Todos relataram experiências de vida após a
morte. Esse livro, chamado “Observações sobre Quedas Fatais”
foi traduzido para o inglês em 1972 e é o precursor das
investigações de experiências de quase-morte dos tempos
modernos.

Eben Alexander

Quando atravessei a abertura, me vi num mundo inteiramente


novo. O mundo mais belo e estranho que eu já tinha visto.
Brilhante, vibrante, arrebatador, maravilhoso. Eu poderia
amontoar adjetivos, um após outro, para tentar descrever esse
mundo, mas nada do que dissesse poderia traduzir o que eu via e
sentia. Havia uma campina. Ela era verde, exuberante e parecia
feita de terra. Era de terra, mas ao mesmo tempo não era. Minha
sensação era a mesma que se tem ao visitar algum lugar a que
costumávamos ir quando crianças. Nós não o reconhecemos, mas
ao olharmos em volta, alguma coisa nos atrai, e percebemos que
uma parte de nós – uma parte bem lá no fundo – se lembra do
lugar e se alegra por ter voltado ali. Alguém se encontrava bem
próximo a mim: uma bela menina com as maçãs do rosto salientes
e olhos de um azul profundo. Ela olhou para mim de um jeito
arrebatador. Não era um olhar romântico. Tampouco um olhar de
amizade. Era um olhar que estava muito além disso, além de

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qualquer tipo de amor que temos aqui na Terra. Era algo mais
elevado, que trazia em si todos esses amores, porém mais
verdadeiro e puro que qualquer um deles. Sem usar palavras, ela
falou comigo. Sua mensagem me atingiu como um vento, e
compreendi imediatamente que ela era verdadeira. A mensagem
tinha três partes, e se tivesse que traduzi-la em linguagem terrena,
eu diria que era mais ou menos isto: “Tu és amado e valorizado
imensamente, para sempre.” “Não há nada a temer.” “Não há nada
que possas fazer de errado.” A mensagem me proporcionou uma
imensa sensação de alívio. Era como se eu passasse a conhecer as
regras de um jogo que havia jogado a vida inteira sem nunca tê-lo
compreendido de todo. “Nós te mostraremos muitas coisas aqui,”
a menina me disse, de novo sem usar palavras, apenas projetando
a essência do significado delas em mim. “Mas, no fim, tu irás
voltar.” Em seguida me vi num lugar cheio de nuvens. Mais alto
que as nuvens – imensuravelmente mais alto –, num aglomerado
de esferas transparentes, seres deslumbrantes se deslocavam em
arco por todo o céu, deixando grandes rastros atrás de si. Eram
muito diferentes de qualquer coisa que eu tivesse conhecido neste
planeta. Eles eram mais evoluídos. Superiores. Um som forte e
majestoso, como uma música sacra, veio de cima, e me perguntei
se aqueles seres superiores estariam produzindo esse uníssono.
Refletindo sobre isso mais tarde, me ocorreu que a alegria dessas
criaturas era tão imensa que elas tinham que manifestar esse som –
como se fosse uma emoção impossível de conter. Era algo
palpável e quase material, assim como uma chuva que se sente na
pele, mas que não nos deixa molhados. Ver e ouvir não eram
coisas separadas naquele lugar. Eu podia ouvir a beleza dos corpos
daqueles seres cintilantes e, ao mesmo tempo, ver a perfeição do
que eles cantavam. Parecia que não era possível ver ou escutar
qualquer coisa ali sem se tornar parte dela – sem se fundir com
aquilo de alguma forma misteriosa. Lá tudo era diferente e, no

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entanto, fazia parte de algo maior, como os belos desenhos
entrelaçados nos tapetes persas, ou como nas asas de borboleta.
Continuei avançando e me vi entrando num imenso vazio, escuro,
infinito em tamanho, mas também infinitamente prazeroso. Ao
mesmo tempo que era negro, estava repleto de luz: uma luz que
parecia vir de uma esfera brilhante que agora eu sentia próxima a
mim. Mais tarde, quando já estava de volta a este mundo,
encontrei uma citação do poeta cristão do século XVII, Henri
Vaughan, que chega próximo da descrição desse lugar – esse
amplo centro escuro que era o lar do Divino: “Existe em Deus,
alguns dizem, uma profunda e ofuscante escuridão.” Era
exatamente isto: uma escuridão absoluta que também era repleta
de luz. Compreendi que sou parte do Divino e que nada,
absolutamente nada, pode tirar isso de mim.

Bispo Probo de Rieti

Sobre este assunto, devo dizer-lhe o que ouvi do servo de


Deus que agora preside o mosteiro de São Renato aqui em Roma.
Ele costumava contar-me sobre seu tio, o bispo Probo de Rieti,
que fora acometido de uma grave doença no fim da vida. Seu pai
Máximo, na tentativa de encontrar uma cura para ele, enviou seus
servos aos distritos vizinhos para chamar médicos. Eles vieram e
se reuniram em volta da cama do bispo doente. Depois de verem
seu pulso, eles concluíram que a morte era iminente. Visto que
estava ficando tarde e quase na hora da refeição da noite, o bispo
se preocupou com os médicos. Na verdade, ele era mais solícito
com o bem-estar deles do que com o seu. Assim, ele os fez
acompanhar seu pai idoso ao andar superior da residência
episcopal para se refrescarem após o trabalho. Eles o fizeram,
deixando apenas um menino para trás com o bispo. Este rapaz,
Probo me disse, ainda está vivo. Estando ele ao lado da cama do

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bispo doente, de repente viu alguns homens em túnicas brancas se
aproximando. O brilho de seu semblante ultrapassava em muito o
esplendor de suas vestes. Deslumbrado com o brilho da visão, o
menino começou a perguntar em voz alta e animada quem eram
esses homens. Despertado por sua voz, o bispo também ergueu os
olhos para ver os visitantes e, reconhecendo imediatamente quem
eram, tentou acalmar o menino, que a essa altura estava tremendo
de medo. “Não temas, meu rapaz,” disse ele. “Os dois mártires,
São Juvenal e São Eleutério, vieram visitar-me.” Mas o menino
saiu correndo da sala o mais rápido que pôde tomado de terror
com a visão incomum e contou ao pai e aos médicos o que tinha
visto. Imediatamente eles desceram para ver por si próprios e
encontraram o bispo já morto. Os santos mártires, diante dos quais
o menino ficou tão assustado, levaram sua alma com eles.

Sérvulo

Com relação a isso, devemos também saber que


frequentemente o som do canto celestial acompanha a morte dos
eleitos e, enquanto eles ouvem com grande deleite, são
preservados de sentir dor na separação da alma do corpo. Lembro-
me de ter tocado neste assunto antes, em minhas homilias sobre os
Evangelhos, onde falei de um homem chamado Sérvulo. Tenho
certeza de que te lembras de ter visto este homem santo no pórtico
que passa a caminho da Igreja de São Clemente. Ele era pobre em
posses, mas rico em méritos. Uma longa doença o incapacitou e,
tanto quanto me lembro, ele sofria de uma paralisia severa que
permaneceu com ele até à sua morte. Dizer que ele não conseguia
ficar de pé não descreve sua condição, pois ele não conseguia
levantar-se na cama nem mesmo para ficar sentado, nem poderia
colocar a mão no rosto, ou virar o corpo de um lado para o outro.
Sua mãe e seu irmão estavam lá para ajudá-lo, e tudo o que ele

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recebia na forma de esmolas, ele pedia que distribuíssem pelos
pobres. Ele não sabia ler nem escrever; ainda assim, ele comprou
para si os livros sagrados da Escritura e fez com que fossem lidos
para ele regularmente por pessoas religiosas que costumava
convidar para sua casa como hóspedes. Assim, à sua maneira, ele
adquiriu conhecimento de toda a Escritura, embora, como eu
disse, ele fosse bastante analfabeto. Em seus sofrimentos, ele se
dedicava dia e noite às orações de agradecimento e aos hinos de
louvor. Quando chegou a hora de receber a recompensa por sua
paciência, a dor em seus membros se concentrou em seus órgãos
vitais. Percebendo que a morte estava próxima, ele pediu aos
estranhos e convidados que se levantassem e recitassem com ele
os salmos para os moribundos. Enquanto ele cantava os salmos
com eles, esperando a morte, repentinamente interrompe sua
oração dizendo, “Escutem.” “Não ouvem os belos hinos ressoando
no céu?” Quando voltou sua mente para prestar atenção às
melodias que ressoavam dentro dele, sua alma foi libertada do
corpo. À sua partida, um odor perfumado se espalhou pela sala,
dando a todos uma sensação de deleite indescritível. Eles agora
estavam certos de que os coros do céu o haviam recebido em sua
companhia.

David Wheeler

A certa altura apercebi-me de que ia morrer. A perceção que


tinha do mundo em redor alterou-se. O quarto do hospital, de
paredes claras e cheio de sol, tornou-se escuro, parecendo apenas
ser iluminado pelas brasas mortiças de um fogão invisível. Os
objetos no quarto não passavam de meras sombras da sua matéria
inicial. A cama, os lençóis e a mesa de cabeceira a poucos
centímetros da minha cabeça, pareciam pintados de um tom
vermelho alaranjado. Ouvia apenas uns sussurros, mas não tinha a

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certeza se esses sons seriam fruto da minha imaginação ou o
murmúrio de espíritos que ali estivessem perto. A minha
consciência foi-se obscurecendo e o mundo ao meu redor
transformou-se num túnel quente e acolhedor de paredes que
refletiam uma luz vermelho-alaranjada. Sentia-me como se
estivesse a olhar para o brilho do fogão de um abrigo de montanha
numa estância de ski, depois de ter passado o dia inteiro lá fora, ao
frio. O fogo atrai-nos e faz-nos sentir seguros. De repente, senti
um grande bem-estar. Depois, percebi que algo se transformara
dentro de mim. Nunca me acontecera nada de semelhante até
então, nem voltou a acontecer. Mas lembro-me muito bem de
tudo. Senti que me afastava do meu corpo. Dei-me conta de uma
nítida separação em relação a ele. Nada daquilo se assemelhava a
um sonho, nem se tratava de uma alucinação. Sabia apenas
intuitivamente que uma parte do meu ser se afastava da outra. Não
estava assustado. Era uma sensação agradável. Comecei a flutuar
um pouco acima do meu corpo. Tudo à minha volta mudava de
perspectiva. Em vez de confiar nos meus sentidos para recolher as
informações do mundo circundante, passei eu a fazer parte do
mundo. Liberto de quaisquer perceções físicas, simplesmente
conhecia e percebia tudo o que se passava em redor. Sabia que
estava a morrer e não tinha medo. O abandono total do meu
espírito soltando-se do corpo físico deu-se sem qualquer surpresa.
Foi agradável — muito estranho, mas aceitei isso perfeitamente.
Era como se sempre tivesse sabido que este processo era possível
e que, quando isso aconteceu realmente, a vida e o depois
deixaram de ter segredos para mim. Tornei-me simultaneamente
uma parte integrante e um observador. Passei a ser uma forma sem
substância palpável. Sem olhar para baixo, dali onde me
encontrava, sabia que o meu corpo jazia na cama do hospital. Tive
um vislumbre transcendental de uma outra existência. E depois
voltei. A chama bruxuleante que parecia estar a conduzir-me,

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extinguiu-se subitamente.

Padre José Inácio Farah

Dia 9 de Novembro de 1961, entre dez e onze horas da


manhã, no momento em que se preparava meu enterro, três
médicos cardiologistas estavam em torno de mim e cuidavam de
meus últimos momentos. Minha enfermeira particular, Srta. Zeni
Mendonça, ajoelhada ao meu lado, recitava a Litania da Santa
Virgem. Enquanto assim recitava, senti-me sendo carregado e um
outro mundo todo feito de luz e de uma alegria indizível se abriu
diante de mim. Sentia-me feliz, tão feliz que não via mais nada do
que se passava em torno de mim. Não sentia mais as dores do meu
coração (tivera um enfarte). Chorava de alegria; sentia-me
realizado. De repente, um velho capuchinho se aproximou de
mim, barba longa, veio em minha direção e se curvou; senti sua
barba roçar meu rosto, um perfume desconhecido na terra exalava
de toda a sua pessoa; fitou-me, abraçou-me e disse: “Sou Frei
Leopoldo; venho trazer-te uma mensagem, meu irmão; teu exílio
ainda não acabou; viverás ainda o suficiente para continuar minha
obra na terra; mas sofrerás muito na terra; tem confiança e
coragem. Beijou-me e desapareceu como que evaporando-se.”
Nesse momento, abri os olhos e vi a triste cena, emocionante,
descrita acima. Senti-me triste, porque vi escapar a felicidade que
tanto desejei na minha vida; senti a presença de Cristo na luz
fulgurante que me contornava. Tinha a impressão de possuí-lo, e
que ele preenchia todo o meu ser. De volta à realidade terrestre,
senti de novo o vazio. À minha volta, a alegria era geral, mas em
mim, era a tristeza.

John Lilly

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A lancinante dor de cabeça, a náusea e os vômitos forçaram-
me a abandonar o meu corpo. Tornei-me um centro focal de
consciência, viajei para outros espaços e encontrei outros seres,
entidades ou consciências. Vou tentar traduzir em palavras o que
aconteceu: Estou num amplo espaço vazio sem nada em nenhuma
direção, exceto luz. Há uma luz dourada que permeia todo o
espaço, em toda parte e em todas as direções, para além do
infinito. Sou um só ponto de consciência, de sentimento, de
conhecimento. Sei que sou. Isso é tudo. O espaço onde estou é
pleno de paz, assombro e inspira reverência. Não tenho corpo.
Não necessito de um corpo. Não há corpo. Sou apenas eu. Pleno
de amor, calidez e resplendor. Subitamente, à distância, aparecem
dois pontos semelhantes de consciência, fontes de radiância, amor,
calor. Sinto sua presença, vejo sua presença, sem olhos, sem
corpo. Sei que estão lá, então estão lá. À medida que se movem
em minha direção, sinto-os cada vez mais interpenetrando meu
próprio ser. Eles transmitem pensamentos confortantes, reverentes,
assombrosos. Percebo que se trata de seres bem maiores que eu.
Eles começam a ensinar-me. Dizem-me que posso ficar neste
lugar, que deixei meu corpo, mas que posso voltar a ele se assim o
desejar. Então, mostram-me o que aconteceria se deixasse meu
corpo para trás – um caminho alternativo que posso decidir tomar.
Mostram-me também aonde posso ir se permanecer neste lugar.
Dizem-me que não é hora de abandonar meu corpo de modo
definitivo, que ainda tenho uma opção de voltar a ele. Estou
absolutamente seguro de que eles existem. Não tenho dúvida
alguma. À medida que se aproximam de mim, encontro cada vez
menos de mim mesmo e cada vez mais deles em meu ser. Eles se
detêm a uma distância crítica. Se chegassem mais perto, me
dominariam e eu perderia a mim mesmo como uma entidade
cognitiva, fundindo-me com eles. Eles acrescentam que eu os
separei em dois, mas que na realidade são um no espaço onde eu

17
próprio me encontro. Dizem que insisto em continuar a ser um
individuo, impingindo assim uma projeção sobre eles, como se
fossem dois. Comunicam-me em seguida que se eu retornar a meu
corpo, eventualmente perceberei a unidade deles, a minha e a de
muitos outros. Eles dizem que são meus guardiões. Consigo
percebê-los quando estou perto da morte do corpo. Neste estado,
não há tempo. Há uma perceção imediata do passado, do presente
e do futuro, como se estivessem no momento presente.

Anita Moorjani

Nesse estado próximo da morte, eu estava mais intensamente


consciente de tudo o que estava acontecendo à minha volta do que
jamais estivera num estado físico normal. Eu não estava usando os
meus cinco sentidos biológicos, mas estava assimilando tudo
intensamente, muito mais do que se estivesse usando meus órgãos
físicos. Era como se um outro tipo de perceção, completamente
diferente, tivesse entrado em ação, e, mais do que apenas perceber,
eu parecia também abarcar tudo o que estava acontecendo, como
se estivesse lentamente me fundindo com tudo. Não senti nenhum
apego emocional ao meu corpo aparentemente sem vida, que
estava deitado na cama do hospital. Não tinha a impressão de que
ele fosse meu. Ele parecia pequeno e insignificante para ter
abrigado o que eu estava vivenciando. Eu estava me sentindo
livre, liberada e magnífica. Toda dor, incómodo, tristeza e pesar
haviam desaparecido! Eu me sentia completamente desimpedida.
Não conseguia lembrar-me de alguma vez me ter sentido dessa
maneira. Comecei a sentir-me sem peso e a conscientizar-me de
que era capaz de estar em qualquer lugar, a qualquer hora, e isso
não parecia incomum. Parecia normal, como se fosse a verdadeira
maneira de perceber as coisas. Embora eu não sentisse nenhum
apego ao meu corpo, senti que as minhas emoções estavam sendo

18
profundamente influenciadas pelo drama que estava se
desenrolando em volta da minha forma inerte. Tão logo comecei a
me envolver emocionalmente com o drama que estava ocorrendo à
minha volta, também me senti simultaneamente sendo afastada,
como se houvesse uma realidade mais ampla, um plano mais
grandioso, que estivesse se desenvolvendo. Pude sentir meu apego
retroceder enquanto começava a entender que tudo era perfeito e
estava acontecendo de acordo com o plano. Comecei a dar-me
conta de que estava continuando a expandir-me e a preencher cada
espaço, até não haver mais nenhuma separação entre mim e tudo o
mais. Eu abarquei – não, eu me tornei – tudo e todos. Era como se
não estivesse mais restrita pelos limites do espaço e do tempo, e
continuasse a espalhar-me para ocupar uma extensão maior de
consciência. Enquanto continuava a mergulhar cada vez mais
profundamente na outra esfera, expandindo-me para fora,
tornando-me tudo e todos, senti todo meu apego emocional a meus
entes queridos e a meu ambiente gradualmente desaparecer. O que
só posso descrever como um esplêndido e glorioso amor
incondicional me circundou, envolvendo-me com força à medida
que eu continuava a entregar-me. Eu não tinha a sensação de ter
ido fisicamente para outro lugar – era mais como se tivesse
despertado. Minha alma estava finalmente alcançando a sua
verdadeira magnificência! E, ao fazer isso, ela estava se
expandindo além do meu corpo e deste mundo físico. Ela se
estendia cada vez mais para fora, até abranger não apenas esta
existência, mas continuava a se expandir em outra esfera, que
estava além deste tempo e espaço, e ao mesmo tempo o incluía.
Amor, alegria, êxtase e admiração se derramavam em mim,
através de mim, e isso me engolia. Fui absorvida e envolvida por
um amor maior do que eu jamais imaginara existir. Eu me sentia
mais livre e viva do que nunca. Também me conscientizei de
outros seres à minha volta. Não os reconheci, mas sabia que eles

19
me amavam muito e estavam me protegendo. Compreendi que
estavam ali o tempo todo, envolvendo-me com muito amor,
mesmo quando eu não estava consciente disso. Embora eu não
estivesse mais usando os meus cinco sentidos físicos, minha
perceção era ilimitada, como se um novo sentido tivesse se
tornado disponível, sentido esse que era mais intenso do que
qualquer uma de nossas faculdades usuais. Eu tinha uma visão
periférica de 360 graus, com uma consciência total do meu
ambiente. E, por mais incrível que possa parecer, isso parecia
quase normal. Estar num corpo parecia agora limitante. O tempo
também parecia diferente naquela esfera, e eu sentia todos os
momentos ao mesmo tempo. Eu estava consciente de tudo o que
me dizia respeito – passado, presente e futuro – simultaneamente.
Tomei consciência do que pareceram ser vidas simultâneas sendo
representadas. Compreendi que o universo inteiro está vivo e
impregnado com consciência, abrangendo toda a vida e natureza.
Tudo pertence a um todo infinito. Somos todos facetas dessa
unidade – somos todos um.

A. J. Ayer

A única lembrança que tenho de uma experiência envolvendo


intimamente a minha morte é muito vívida. Fui confrontado por
uma luz vermelha, extremamente brilhante, e também muito
dolorosa, mesmo quando me afastava dela. Estava ciente de que
essa luz era responsável pelo governo do universo. Entre seus
ministros havia duas criaturas encarregadas do espaço. Esses
ministros inspecionavam periodicamente o espaço e haviam
realizado recentemente essa inspeção. No entanto, eles falharam
em fazer seu trabalho adequadamente, o que fez com que o
espaço, como um quebra-cabeças mal encaixado, estivesse
ligeiramente desarticulado. Outra consequência foi que as leis da

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natureza deixaram de funcionar como deveriam. Senti que cabia a
mim consertar as coisas. Vi ali também uma maneira de apagar a
luz dolorosa. Presumi que ela estava sinalizando que o espaço
estava errado e que se desligaria quando a ordem fosse restaurada.
Infelizmente, eu não tinha ideia de para onde os guardiões do
espaço tinham ido e temia que, mesmo se os encontrasse, não seria
capaz de me comunicar com eles. Então ocorreu-me que, embora
até o século atual os físicos aceitassem a separação newtoniana de
espaço e tempo, tornou-se costume, desde a defesa da teoria geral
da relatividade de Einstein, tratar o espaço-tempo como um todo.
Consequentemente, pensei que poderia curar o espaço operando
sobre o tempo. Estava vagamente ciente de que os ministros
encarregados do tempo estavam na minha vizinhança e comecei a
saudá-los. Mas fiquei novamente frustrado. Ou eles não me
ouviram, ou optaram por me ignorar, ou não me compreenderam.
Então, comecei a andar para cima e para baixo, agitando meu
relógio, na esperança de chamar a atenção deles, não para o
relógio em si, mas para o tempo que ele media. Isso não suscitou
resposta. Fiquei cada vez mais desesperado, até que a experiência
repentinamente chegou ao fim.

Victor Solow

Têm-nos ensinado a perceber o mundo de uma forma


deturpada. Estou certo de que foi no preciso instante em que me
senti morrer, que comecei a deslocar-me a alta velocidade em
direção a uma rede luminosa, de um brilho muito intenso. No
universo não havia quaisquer outros contornos, formas ou objetos
que não fossem eu e essa tal rede gigantesca, semelhante a uma
enorme rede de ténis que atravessava aquela vastidão da
eternidade à eternidade. Havia nós na rede onde as linhas se
uniam. Estes pontos modais que ligavam os elementos da rede

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vibravam com uma intensa forma de energia — energia pura, em
bruto. Entrei sem dúvida numa outra realidade no momento exato
em que morri e a diferença entre ela e as experiências desta vida é
tão grande que se torna impossível traduzi-la ou explicá-la aos
outros. A minha experiência não pode ser compreendida a não ser
através da experiência da própria morte. A forma como me
relacionei com a tal rede gigantesca e vibrante foi algo de
inteiramente novo para mim. Era como se eu estivesse a perceber
qualquer coisa de um modo absolutamente único. Nada daquilo
tinha a ver com o nosso quadro de referências nem com os nossos
métodos atuais de perceber as coisas. A minha perceção do
universo através do qual eu voava, ultrapassa as experiências
sensoriais que vivemos neste mundo. O vazio do universo
rodeava- me e servia de pano de fundo à rede palpitante de
vibrações. Esse vazio universal não tinha cor. Não posso afirmar
que fosse negro, era outra coisa diferente. Talvez fosse uma total
ausência de luz, nem emitida nem refletida. A determinada altura a
velocidade com que me deslocava em direção àquela energia
fortíssima da rede, pareceu abrandar. Os fios e os nós continuavam
a emitir um brilho radioso, vibrantes de energia. Passei então a
fazer parte dessa teia. Foi aí que se deu uma segunda
transformação, no momento em que tomei contato com ela. O que
quer que eu fosse anteriormente, o certo é que isso, ao primeiro
contato com a teia foi drenado, absorvido e alterado — tudo ao
mesmo tempo. Contudo, não senti dor nem me assustei.
Transformei-me por completo. Tornei-me num eu diferente, na
mais simples essência do meu eu anterior. Da minha vida passada
de medos, esperanças e preocupações, emergiu ou foi recriado, um
novo eu. Transformei-me num ser indestrutível — num espírito
puro, em energia absoluta. Mas já não constituía uma entidade
separada, pois passara a fazer parte do universo. Integrava-me nele
de forma perfeita e harmoniosa. O meu espírito ficou calmo e

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sossegado. Já não precisava de nada. Senti que havia algo mais
além daquilo. Não sei ao certo o que era, nem como descrevê-lo.
Foi então que senti uma pancada e, de súbito, regressei à mesa da
sala de emergência onde jazia o meu corpo.

Peter Panagore

Eu estava de alguma forma acordado dentro de uma


escuridão interior. Eu tinha os olhos fechados, mas podia ver, e o
que eu via e sentia eram coisas que não conseguia entender. Via e
sentia a escuridão como se fosse uma coisa: uma escuridão em
movimento, uma escuridão viva. E movia-se na minha direção,
movendo-se em mim. Imediatamente, ela me sugou para fora do
meu corpo. Ela me levou, e eu sentia que deveria me levar. Ela
arrancou o meu verdadeiro eu, todo o meu eu, toda a minha alma
sagrada. Eu era apenas alma. Meu corpo não era eu. Nunca fora
eu. Eu podia ver, mas não tinha olhos, ou talvez tivesse dez mil
olhos, porque podia ver em todas as direções ao mesmo tempo. Eu
podia ouvir, mas não tinha ouvidos; além disso, não havia voz ou
som, ainda assim podia ouvir. Do outro lado, não há nada. Tudo
aqui neste lado, no mundo em que vivemos, é uma coisa. Lá, nada
é uma coisa. Não há nada. Deus não é nada. Deus não é uma coisa.
Tudo o que pode ser dito sobre Deus é incorreto. Deus não pode
ser explicado, contido, descrito ou mesmo visto. Encontrava-me
numa escuridão vasta e infinita, num lugar que não era um lugar,
fora do tempo, e eterno, um lugar onde não há nada, e, ainda
assim, eu era um ser tipo esférico, e eu tinha vida, mas sem fôlego.
Meu corpo era uma bola de alma, uma bola de ser. Uma porta ou
portal gigante apareceu, ou talvez estivesse lá o tempo todo e eu
simplesmente não tinha visto ainda. O portal e seu túnel ou
corredor perfuravam essa vasta escuridão e estavam contidos
dentro dela, mas aparentemente conduziam para além dela, ou

23
através dela de alguma forma. A porta em si estava brilhando e
fluindo, como uma cachoeira, só que não era água e era
simultaneamente translúcida e transparente. Estendi a mão com
meu ser para tocar o brilho, para senti-lo, e o fiz. Toquei o brilho
com algo parecido com uma mão, mas não tinha mão. O brilho
estava vivo. O portal estava vivo. Eu sentia a vida nele. Era
energia viva. Senti a energia da vida fluindo na luz bruxuleante e a
senti fluir para dentro de mim. Simultaneamente, ouvi meu nome
ser chamado do fundo, bem dentro de mim, mas também além de
mim. Era o nome da minha alma, e foi dito com Amor além da
imaginação, além da compreensão. Era o Amor que era Real e o
Amor que é Realidade. Era e é o meu nome que só Deus pode
falar. Eu ouvi meu nome vindo de fora de mim e de dentro de
mim, mas não era uma palavra. Eu pertencia Àquele que me criou
e, de repente, sabia dessa verdade e o que ela significava. Não
houve palavras faladas. Não havia linguagem. Não houve nenhum
som. A voz me conhecia plena e completamente e não havia
nenhuma parte de mim que lhe fosse desconhecida. Eu fui
revelado, totalmente revelado, em toda a minha beleza e
hediondez. Cada ação, cada amor, cada ódio, cada tristeza, cada
alegria, cada lágrima e cada sorriso estava lá, e não havia cantos
escuros e escondidos acerca de mim. A voz não era nem homem
nem mulher, nem velho nem jovem. A voz era pura e sagrada, e
apenas Amor, e Beleza, e Luz, Todo-Poderoso Criador. Ver, ouvir,
ser, sentir, pensar era tudo uma coisa só para mim. E então a voz
me encheu com um sopro imerecido de Amor e Esperança e
Alegria e Beleza e Verdade e Caridade e Bondade e Compaixão e
Paciência, e era tudo uma combinação indescritível e amalgamada.
Eu estava no limiar do céu, no portal, e Deus me deu o dom
imerecido do céu dentro de mim. Neste nosso mundo, aqui na
terra, separamos Amor e Esperança e Alegria e Beleza e Verdade e
Caridade e Bondade e Compaixão e Paciência em coisas

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diferenciadas. Não é assim no céu. No céu, elas são uma só coisa;
elas estão unidas e emanam do divino que é unidade. Eu estava
preenchido, transbordando com esta unidade. Eu me tornei o
Amor e Esperança e Alegria e Beleza e Verdade e Caridade e
Bondade e Compaixão e Paciência. Eu estava nu, estava exposto.
E fui amado além da imaginação, além da compreensão. Então
testemunhei e sofri cada instância de dor, cada instância de pecado
desde o meu nascimento, numa sequência rápida e completa. Senti
a dor que causei a outros, que eles sentiram, e foi avassaladora,
como um fogo doloroso, mas purificador, em minha alma. Todas
as feridas que já causei, grandes ou pequenas, intencionais ou não,
foram empilhadas para eu ver, sentir e experimentar. Diante do
Grande Amor, eu não era nada e não tinha nada com que me
defender. E de repente, sem merecimento, fui perdoado total,
completamente e instantaneamente. Eu não merecia misericórdia.
Toda a dor que causei desapareceu.

H. B.

Cinco anos atrás tive uma experiência que se mostrou mais


frutífera, talvez, do que todas as outras combinadas. Levei uma
queda e bati com a cabeça. Perdi a consciência. Ao recuperar a
posse de mim mesmo, passei por todas as experiências da espécie
humana! No primeiro estágio, simplesmente tomei consciência do
facto de que eu era alguma coisa; o que era isso eu nem sabia nem
me importava em saber. Não sabia o que era saber. Estava calmo,
bem-aventuradamente feliz, e para mim não havia nem passado
nem futuro. Não havia tempo, lugar algum, coisa alguma, a não
ser aquela partícula de consciência que era eu mesmo. Como não
havia nada para denotar duração, esse estágio pode ter tido uma
duração incompreensível. Seja como for, esta foi sua lição para
mim. Esse estágio de existência bem-aventurada terminou com

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minha descoberta de que havia alguma coisa em mim que não era
eu mesmo. Comecei a ver e, vendo, comecei a raciocinar e assim
acabei encontrando meu mundo objetivo. Como no estágio
anterior, eu não tinha o que fazer com o tempo e portanto, para
mim, não havia tempo. Este estágio poderia ter durado uma
eternidade, no que tange à minha consciência dele. Eu me ocupei
em estudar primeiro a mim mesmo e depois as coisas ao meu
redor, e assim a infinita paz de minha primeira experiência foi
rompida. Incapaz de pensar de outra maneira, concluí que o que
via tinha de ser como eu mesmo e assim comecei meu
conhecimento desse mundo exterior transferindo para seus objetos
o que encontrava em mim mesmo. Este estágio durou em minha
experiência do momento em que vi coisas ao meu redor até o
despertar da ciência experimental. Então me familiarizei com o
começo de todo conhecimento e especialmente de toda religião.
Naturalmente, a autoconsciência logo voltou e eu retornei a meu
velho mundo outra vez. Desde aquela hora minha experiência tem
parecido maior do que a de minha vida anterior. Agora, nada é
mais confuso ou obscuro. Minha expansão espiritual tem sido
rápida nestes três ou quatro últimos anos. Vivo no mundo mas
para mim mesmo não pareço pertencer a ele!

A. J. S.

Fui me exaurindo continuamente e sentia dores constantes em


consequência de uma queda na infância que lesara minha espinha.
Tomei vários remédios para dormir, mas eles só me trouxeram
excitação e delírio. Finalmente fui mandada para um sanatório,
para um quarto escuro, e me recusei a ver qualquer um de meus
amigos. Por algum tempo minha vida não inspirou esperança e eu
só pensava em fazer planos de acabar com ela quando tivesse
oportunidade. Por fim veio um período em que abandonei toda

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esperança e achei que não havia mais nada por que eu vivesse ou
que pudesse esperar. Um dia, neste estado, estava deitada
tranquilamente em minha cama quando uma grande calma pareceu
tomar conta de mim; adormeci, mas acordei poucas horas depois,
vendo-me então numa torrente de luz. Fiquei alarmada. Depois
pareceu-me ouvir as palavras, “Fica tranquila,” várias vezes. Não
posso dizer que era uma voz, mas ouvi as palavras claramente,
distintamente, assim como ouvia a música que saía da velha
escrivaninha, na minha infância. Pus minha cabeça debaixo do
travesseiro, para não ouvir aquele som, mas continuei a ouvi-lo do
mesmo jeito. Fiquei deitada naquela posição durante o que me
pareceu um longo tempo, em que pouco a pouco fui ficando
novamente no escuro. Sentei-me na cama. Não compreendia nada,
mas senti que aquilo significava alguma coisa. Aquela mesma
calma me veio várias vezes e sempre antes da luz. Depois daquela
noite minha recuperação foi firme, sem ajuda de qualquer tipo, de
médico ou de remédios. Quando a luz me veio outra vez, algum
tempo depois, perguntei a meu marido se a tinha visto e ele disse
que não. Não tenho tentado cultivá-la, visto que não a
compreendo. Só sei que, se antes antes eu era um caco, hoje estou
bem e forte física e mentalmente e, se antes gostava da excitação
de uma vida pública, agora gosto da tranquilidade de uma vida
caseira e com uns poucos amigos. Na época em que vi a luz pela
primeira vez eu tinha 24 anos. No total eu a vi três vezes. Agora,
quanto às experiências intelectuais e morais que se seguem
imediatamente à luz, é quase impossível descrevê-las, pois as
palavras são muito pobres como meio de expressar quer o
sentimento quer a visão que me vieram naquela ocasião. Creio que
o intelecto jamais poderia me dar, com todo o estudo do mundo, o
que me foi revelado durante essa experiência e o que se seguiu
imediatamente à presença da luz. Para mim, isso transcende a
expressão intelectual. Consiste em ver interiormente e a palavra

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harmonia poderia talvez expressar uma parte do que é visto.

L. L.

Após ter sido violentamente atacado, envolvi-me com o


agressor e tentei agarrá-lo em torno das pernas e nádegas, mas
quando o fiz, comecei a cambalear para trás e tropecei no passeio.
Caí para trás, batendo com a parte de trás da cabeça, e o agressor
caiu em cima de mim. Senti um aperto terrível no pescoço e perdi
a consciência. A minha experiência começa aqui. Senti que estava
sozinho na escuridão e muito consciente de mim mesmo. Vi então
um ponto de luz, não maior do que uma cabeça de fósforo. O
ponto de luz começou a crescer lentamente, e quando atingiu o
tamanho de uma bola de basebol, comecei a perceber que a luz
não estava realmente ficando maior, na verdade eu estava
movendo-me em direção a ela. Quanto mais perto eu chegava,
mais rápido parecia estar viajando. Devo dizer que estava
assustado com o que estava acontecendo, e nesse momento não
relacionei isso com morrer e ir para o céu. Quando cheguei à luz,
foi como se, de repente, não houvesse nada além de um branco
brilhante muito intenso ao meu redor. Imediatamente senti o
estado mais pacífico, sem dor, contente e eufórico que posso
imaginar. Nunca me senti tão bem e em casa em todas as minhas
experiências de vida na Terra. Eu podia sentir que havia três ou
quatro outros na luz, mas não podia vê-los claramente, devido à
intensidade da luz que os cercava e estava ao meu redor. Tive a
impressão de que eles estavam subindo numa ampla escadaria.
Senti que havia também alguém de maior importância um pouco
mais acima naqueles degraus que eu não conseguia ver de jeito
nenhum, e certamente essa era a fonte da luz. Depois de ficar lá
por cerca de um minuto, apenas parado pensando em como me
sentia incrivelmente bem, uma voz que parecia estar ao meu redor

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perguntou: “Queres ficar ou queres voltar?” Não lembro se essas
eram as palavras exatas, mas esse era o significado implícito.
Também não sei dizer ao certo se foram faladas em voz alta ou se
apenas encheram minha cabeça de tal forma que pareciam ter sido
faladas. Eu sabia que precisava tomar uma decisão e não era fácil
decidir. Tenho duas filhas e na época elas tinham oito e doze anos
e, embora quisesse ficar, dizia para mim mesmo que precisava
voltar por elas. Num instante, eu estava viajando na escuridão,
exatamente no sentido contrário do que fizera no início. Quando
voltei, lá estava eu deitado de costas no quintal olhando para o céu
azul. Senti-me ótimo e não pensei em nada, exceto de onde eu
tinha acabado de vir. Tinha machucado a minha medula espinhal
causando uma paralisia temporária e tenho muita sorte de estar
andando. Passados dezesseis anos, ainda não esqueci essa
experiência. Na verdade, ela me trouxe muito conforto sobre a
morte e o que nos espera após a morte. Tenho doença pulmonar
obstrutiva crônica e uso oxigenoterapia 24 horas por dia, 7 dias
por semana, mas não tenho o menor medo de morrer.

Joseph Geraci

Foi uma experiência muito assustadora. Eu me sentia


partindo e estava com muita dor. Lembro-me de ter tentado
aguentar, dizendo a mim mesmo que ia ficar bem, mas cheguei ao
ponto onde simplesmente não consegui mais, e tudo começou a
ficar muito quieto. Foi então que experimentei o que chamam de
experiência de quase-morte. Para mim, não havia “quase,” ela
estava lá. Foi uma imersão total em luz, brilho, calor, paz,
segurança. Não tive uma experiência fora do corpo, não vi meu
corpo nem ninguém ao meu redor. Eu imediatamente entrei nesta
bela luz brilhante. É difícil descrever, aliás é impossível descrever.
Verbalmente, não pode ser expressa. É algo que se torna você e

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você se torna isso. Eu poderia dizer que era paz, era amor, era o
brilho, tudo era parte de mim. Não me lembrava de nada
biológico. Não é como se pudesse ver alguma coisa, porque a
visão biológica é necessária aqui, o ouvir é necessário aqui, a
linguagem é necessária aqui, mas não lá. Lá apenas sabia, era
onisciente, tudo era uma parte de mim, era tão belo. Era a
eternidade. É como se eu sempre estivesse lá e sempre estarei lá,
que minha existência na terra foi apenas um breve instante. É um
conceito difícil de entender a eternidade, porque quando se
compara com o tempo, o tempo exige progressão, as coisas têm
uma sequência, as coisas se sucedem, mas lá era tudo de uma só
vez, não havia passagem de uma coisa para outra. Acho que fiquei
inconsciente por um minuto e os médicos me trouxeram de volta.
Assim que regressei, a dor voltou imediatamente, o medo, tudo
que era humano voltou, e eu me lembro de ter ficado com muita
raiva por me terem trazido de volta. Então seguiram-se os seis
meses mais frustrantes da minha vida. Depois de experimentar a
perfeição em algo tão belo, a vontade era de me agarrar a isso, não
o perder e não foi fácil. Depois que me recuperei pela segunda vez
e fui para casa, tudo parecia ter mudado, era quase como se eu
estivesse começando minha vida de novo. Lembro-me, em minha
tentativa de manter esse sentimento e essa paz, que comecei a
esbarrar em coisas terrenas que sabia não iriam escapar de mim,
pois elas estão lá. Minha primeira experiência frustrante foi com a
televisão. Eu não conseguia assistir televisão. Havia um comercial
de cosmético, e desligava, porque era algo falso, desnecessário,
simplesmente não pertencia, era insignificante. Qualquer tipo de
violência, mesmo um filme de faroeste antigo, eu tinha que
desligar, porque para mim isso era ignorância total, simplesmente
não havia razão na terra para mostrar pessoas matando pessoas. E
isso era frustrante, especialmente quando a família estava sentada
tentando assistir televisão e eu me levantava e a desligava o tempo

30
todo. Então finalmente aprendi a ir para o meu quarto. Naquela
época um amigo muito próximo que era um padre, sentou-se
comigo algumas vezes e era muito compreensivo. Eu sabia que era
um homem que não havia experimentado o que eu experimentei,
mas ele parecia saber. Ele sabia do que eu estava falando, era
muito compreensivo. Talvez a coisa mais importante que fez por
mim foi ajudar-me a me reajustar, a aceitar a vida, a entender que
aquilo está ali e vai voltar.

B. B.

Era uma manhã de sábado normal. Acordei e me vesti para


tomar o café da manhã. Desci as escadas e, ao me virar para entrar
na sala, me senti estranho. A sensação me fez parar a meio do
caminho. Não ouvi uma voz, mas senti algo dentro de mim, me
instruindo. Pensei que não era bom morrer agora, pois ainda tinha
muito que fazer. Era como se eu estivesse respondendo às
perguntas de alguém. Expressei medo por minha irmã mais velha.
Ela é deficiente e precisa de ajuda financeira e no dia a dia. Eu
temia por seu cuidado, para que não ficasse sozinha. Meus
pensamentos corriam e meus sentimentos vazavam fluindo, e
desapegado, eu concordava com eles. Minhas entranhas diziam:
senta-te e fica quieto, ou arriscas alarmar tua irmã. Eu sabia que
ela estava sentada a apenas alguns metros de distância, na mesa da
cozinha. Minha cabeça de repente parecia muito grande, eu podia
ouvir meu coração batendo. A batida estava batendo num ritmo
forte ou decrescente. E então comecei a ver um brilho laranja
quente que ficou branco brilhante enquanto eu me sentia flutuando
para longe. Eu podia ver meu corpo sentado na beirada da cadeira
abaixo de mim enquanto eu era cercado por um tipo de luz quente
e brilhante como o sol de verão. Estava quente. Eu estava tão feliz
com ela. A experiência foi tão maravilhosa. Não consigo encontrar

31
palavras adequadas para expressar minha alegria. De alguma
forma, eu sabia que se cedesse a esse sentimento e ficasse mais
tempo, não seria capaz de voltar. Retornar à vida. Assim que esse
pensamento ocorreu, minha visão voltou. A experiência acabou e
eu estava de volta ao meu corpo olhando para a sala. Fiquei pasmo
e assustado ao mesmo tempo. Percebi que não conseguia respirar.
Eu estava hiperventilando. Quando consegui respirar novamente,
levantei-me para ir até a cozinha para beber água e descobri que só
conseguia andar alguns metros sem perder o fôlego
completamente. Tomei uma aspirina e, em cerca de quinze
minutos, voltei ao normal, exceto por me sentir muito cansado.
Subi para descansar. No dia seguinte, domingo, minha perna
direita inchou e na segunda-feira fui ao médico. Ele chamou uma
ambulância e eu fui imediatamente levado para um hospital e
colocado na unidade de terapia intensiva para coagulação e todas
as embolias. Na sala de emergência, o médico pulmonar me
examinou. Ficou espantado de eu ter sobrevivido, pois tinha
coágulos sanguíneos nos pulmões e, no entanto, estava deitado ali
parecendo perfeitamente saudável. Com toda a dor que estou
sentindo por causa dos coágulos e todas as intervenções dos
médicos, pergunto-me se eu enganei a morte ou a morte me
enganou.

David Ditchfield

Em 2006, eu estava me despedindo de uma amiga numa


estação de comboio perto de Cambridge, em Inglaterra. Entrei no
comboio para ajudá-la com a sua bagagem e para me despedir
dela, mas quando me afastei, meu casaco comprido ficou preso
nas portas do comboio. Não conseguia desprender o casaco,
quando o comboio começa a andar comigo preso nas portas. Fui
puxado ao longo da plataforma enquanto ele ganhava velocidade,

32
sendo jogado como uma boneca de pano. Então fui sugado para o
espaço entre o comboio e a plataforma e acabei na linha de
comboio, com ele voando acima de mim. Apesar do perigo, sentia-
me estranhamente calmo. Tudo se desenrolou lentamente, como
num sonho. Senti uma sensação sobrenatural e absoluta de calma.
Os paramédicos chegaram e fui levado às pressas para o hospital,
pois estava perdendo muito sangue. Pouco depois de lá chegar,
perdi a consciência normal e de repente me vi num ambiente
completamente diferente, imerso numa escuridão que parecia
quente e suave. Não sentia mais dor e sentia-me muito tranquilo.
Eu podia ver cores pulsantes como pequenas orbes, muito mais
brilhantes e nítidas do que quaisquer cores que já tinha visto na
minha vida normal. Olhar para elas foi realmente relaxante e
terapêutico. Era um lugar tão belo, com a sensação de que estava
sendo cuidado e apoiado. A sensação de amor ficou mais forte e
quando olhei para os meus pés, vi um enorme túnel de luz se
aproximando de mim. Eu senti, e ainda acredito nisso agora, que a
luz branca é a fonte de toda a criação. Nunca sonhei que veria algo
tão belo. Era a luz do amor puro e incondicional. Cada molécula
do meu corpo estava pulsando com amor e luz. Foi a sensação
mais incrível. Sentia-me mais vivo do que nunca. Parecia que
estava experimentando a verdadeira realidade, enquanto meu
velho mundo era apenas uma ilusão. Nesse ponto, tive certeza de
que estava morto, mas não senti nenhum medo ou arrependimento.
Coloquei a cabeça para trás e ri porque me sentia muito feliz.
Então, de repente, eu estava de volta ao hospital, com uma
confusão de barulho e luzes e pessoas e vozes frenéticas.

Daniel Evangelista

Sou médico anestesiologista e no dia 14 de Dezembro de


2011 sofri um AVC e fiquei seis dias em coma na UTI. Na UTI eu

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tive uma experiência onde uma espécie de abajur se abriu e vi uma
luz branca no que parecia ser um portal. Senti que devia passar por
ele, mas fiquei indeciso se passava ou não. Decidi então não
passar e o portal se fechou. Fiquei mais duas semanas no hospital
sem lembrar de mais nada. Depois de mais ou menos um mês, eu
tive uma outra experiência. Eu estava deitado e sem ter tomado a
medicação e de repente me vi de pé e passando do sofá para o
computador. Não estava sonhando. Eu era uma bola de energia,
sem peso, do tamanho de uma bola de golfe. Sentia uma outra bola
de energia me seguindo, que tinha uma luz muito forte amarela.
Não cheguei a vê-la, mas sabia que ela estava lá. Não sei quem
era. Eu acho que era o meu anjo da guarda. Ela não falava nada,
apenas me seguia, e parecia fazê-lo de um outro plano. Eu não
tinha corpo físico, mas conseguia ver, ouvir e mastigar. Eu estava
voando ou flutuando. Então olhei para baixo e vi uma cidade tipo
Manhattan, com vários prédios e arranha-céus, velhos,
abandonados, tomados por vegetação, e não tinha ninguém lá. Eu
diria que era um lugar destruído. Não sei dizer se é algum cenário
futurista da Terra, mas a sensação que tive foi a melhor sensação
que já experimentei. Era uma sensação fantástica. Uma sensação
muito boa de desapego total, irrestrito. Apesar do cenário
desolador, o que estava vendo não tinha importância. Então,
depois de viajar por lá não sei por quanto tempo, uma voz me
falou diretamente na mente. Ela me deixou saber precisamente o
que eu precisava saber. Sinto que era isso que a voz me queria
mostrar, esse desapego total e irrestrito. Mas não de coisas. De
coisas é muito fácil desapegar-se. O desapego que ela me queria
mostrar era o desapego de pessoas, de parentes, de pai, de mãe, de
esposa, de filho, de filha, de todos. É muito importante para nós
termos esse desapego aqui, pois é o apego que nos mantém presos
à Terra, e o desapego gradual nos vai libertando. Haviam também
outras pessoas lá, outras energias. E essa voz me disse que lá não

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havia género, não havia masculino nem feminino. Me foi
mostrado também um lugar mau. Era um lugar que não tinha
gemido, não tinha fogo, não tinha nada disso, mas a sensação era
uma sensação imensa de depressão, de desolação. Eu queria sair
depressa de lá e acabei saíndo. Depois de viajar não sei por quanto
tempo nesse lugar, voltei para a Terra. Voltei e tinham se passado
só cinco minutos. Isso era assim porque lá não tem tempo. O
tempo é coisa daqui. Tentei segurar aquela sensação indescritível,
mas ela acabou por desaparecer. Ainda hoje me pergunto porque
voltei para aqui, se lá era tão bom e eu queria ter ficado lá. Não
queria voltar para este corpo que estava apodrecendo. Ao entrar
novamente nele, retornou o peso, e a dor e o apego. Nunca
esquecerei esta experiência. Não é questão de fé. Eu vi, é a
realidade. Vi que a vida na Terra é muito fugaz, um sopro, mas
como estamos aqui pensamos que é muito.

Tespésio de Soli

O seguinte relato encontra-se na Vingança Divina de


Plutarco. Este relato diz respeito a um homem de Soli, Cilícia,
cujo nome original era Arideu, mas que recebeu o novo nome de
Tespésio durante sua estadia no outro mundo. Ele caiu de uma
altura e bateu com o pescoço, e embora não tivesse havido
ferimento, mas apenas uma concussão, ele morreu. No terceiro
dia, na hora de seu funeral, ele reviveu. Plutarco relatou que este
homem, embora parecesse morto, teve a sensação de que sua
inteligência foi expulsa de seu corpo e que ele havia subido um
pouco e estava respirando com todo o seu ser e vendo por todos os
lados ao redor, sua alma tendo-se aberto amplamente como se
fosse um único olho. Tendo se familiarizado com a mobilidade de
seu novo corpo e notado a presença de almas de muitos tipos
diferentes no ambiente elevado para o qual havia ascendido,

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Arideu reconheceu uma alma, a de um parente, embora não
distintamente, pois ele era apenas uma criança quando o parente
morreu; ele aproximou-se e disse: “Saudações, Tespésio.” Este
guia então levou Tespésio num passeio pelas várias regiões do
outro mundo. Essas regiões incluíam um grande abismo que se
estendia por todo o caminho, chamado de lugar de Lete, e outro
abismo profundo no ambiente, que era uma grande cratera com
riachos fluindo nela, uma mais branca que a espuma do mar ou
neve, outra como o violeta do arco-íris, e outras de tons diferentes,
cada uma tendo um brilho próprio. Tespésio também viu uma
região com aqueles que estavam sofrendo punição. O espetáculo
final de sua visão foi o das almas voltando a um segundo
nascimento, sendo forçadas a caber em todos os tipos de coisas
vivas. Enquanto ele estava assistindo a esta cena, uma mulher se
interpôs, e ele foi repentinamente puxado para longe como por
uma corda e lançado numa rajada de vento forte, abrindo os olhos
novamente quase de seu túmulo.

Natalie Sudman

Estava na carrinha com a cabeça apoiada nas mãos, meio


adormecida, e então já não estava mais. Esse movimento
instantâneo de um lugar para outro foi como num piscar de olhos.
Nesse novo ambiente, eu estava num estrado oval parecendo um
tanto intrépida em minhas roupas sangrentas e rasgadas, um pouco
curvada, suja e bronzeada, dirigindo-me a milhares de seres ou
personalidades vestidas de branco. Elas estavam arrumadas e ao
meu redor como se eu estivesse no centro de um enorme estádio, o
estrado em que eu estava tendo talvez seis metros de diâmetro. As
personalidades não eram físicas em essência, e assumiam forma se
pretendessem fazer isso para um propósito específico. Percebi a
aparência delas de acordo com o que eu preferia para os meus

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propósitos. Como eu havia sido transferida abruptamente do plano
físico para aquele, era mais simples percebê-las numa forma
humana, usando vestes brancas brilhantes. Muitos desses milhares
me eram familiares, e todos eram meus iguais, independentemente
de sua admiração por minha última façanha tola na terra. (Quão
intrépido é, realmente, optar por explodir?) Eu sabia que a
Reunião era uma reunião de muitos grupos que representam uma
ampla variedade de interesses e responsabilidades pertencentes
não apenas diretamente às energias terrenas e físicas do universo,
mas também a dimensões e questões além. A coisa que
comuniquei primeiro foi que eu estava cansada e não tinha
interesse em retornar ao plano físico. Entendia que a decisão era
minha, e neste ponto minha decisão era terminar minha existência
física. Imediatamente depois disso, ou talvez mais precisamente
ocorrendo dentro disso, eu apresentei o que parecia ser, segundo
minha perceção atual, uma transferência de informação na forma
de uma matriz inexplicavelmente complexa. A informação era
minuciosamente detalhada e amplamente conceitual, ao mesmo
tempo em camadas e infinitamente densa, mas elegantemente
simples. Incluía eventos, pensamentos, incidentes, indivíduos e
grupos em todas as suas complexidades de relacionamento:
histórias, conceitos, conexões, nuances, julgamentos e projeções.
Incluía equações cinéticas, dimensões, símbolos e fluxos. Em vez
de ser uma cena clássica da vida passando diante dos nossos
olhos, esta comunicação era uma coleção que enfatizava o que
pode ser amplamente entendido como informação cultural e
política. Eu estava ciente de ter oferecido deliberadamente os
dados condensados em cumprimento a um pedido que havia sido
feito por esta Reunião de personalidades antes de eu assumir este
corpo para esta vida física. Enquanto as personalidades digeriam a
matriz que disponibilizei, novamente me espantei com a
admiração que me foi enviada. Eles ficaram claramente

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impressionados não apenas com a minha aparência intrépida, mas
também com a profundidade e amplitude das informações que eu
estava fornecendo. Mesmo assim, percebi que a tarefa era fácil e
as informações óbvias, portanto, indignas de admiração. Quando a
forma de pensamento ou matriz foi absorvida por todos, o que
levou apenas alguns segundos, as discussões prosseguiram entre
os vários grupos e dentro de toda a Reunião. Isso pode parecer
impossível considerando que havia milhares de pessoas presentes,
mas não era. Nenhuma sobreposição ocorreu, nenhuma
interrupção ocorreu, nenhum mal-entendido se formou e as
divergências foram respeitosa e cuidadosamente tratadas e
resolvidas. Toda comunicação foi realizada por meio do
pensamento. Eles então pediram que eu voltasse ao meu corpo
físico para realizar mais algum trabalho. Foi-me dado a entender
que minhas habilidades particulares eram necessárias neste
momento e só seriam eficazes se eu realmente estivesse presente
num corpo. Respondi que estava disposta, mas devido ao meu
nível de exaustão e desinteresse pelas dificuldades desta vida
física em particular até agora, solicitei que certa assistência fosse
fornecida nessa existência física. Enquanto todos nós digeríamos
alguns detalhes, eu me retirei para um lugar profundo, onde
poderia me recuperar e restaurar minhas energias. Outros seres
ajudaram nisso, fazendo a maior parte do trabalho enquanto eu
entrava numa espécie de profundo estado de repouso espiritual.
Do ponto de vista físico, esse estado durou o equivalente a séculos
em menos de um segundo. Quando voltei para a Reunião,
concordamos sobre tarefas específicas que eu realizaria e coisas
específicas nas quais eles me ajudariam quando eu estivesse de
volta ao físico. Esta não foi uma discussão acesa, como
poderíamos supor de nossa perspectiva cultural. Era mais uma
concessão de serviços genuinamente fácil, sem peso colocado no
valor ou custo relativo do esforço implícito em cada acordo.

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Depois de concordar, fui para o lugar onde seria realizada a cura
de meu corpo físico. Deste local, eu podia ver meu corpo físico na
carrinha, a cabeça apoiada na minha mão direita, o cotovelo
apoiado na maçaneta da porta exatamente como eu havia deixado.
Também podia ver meu corpo como uma matriz de energia. Podia
observar que minha mão direita estava quase decepada no pulso,
meu pé e tornozelo direitos estavam gravemente mutilados e eu
tinha um ferimento profundo no meu torso direito. Havia um
grande buraco na minha cabeça: estava faltando um olho, o seio
frontal e uma parte do meu cérebro. Alguns seres de energia e eu
trabalhamos juntos, reparando rapidamente o corpo,
principalmente trabalhando através da matriz. Os ferimentos não
foram totalmente curados, já que alguns seriam úteis em situar-me
para tarefas que havia concordado em realizar ou coisas que eu
queria experimentar como um eu infinito completo. Enquanto
trabalhávamos, brincávamos um com o outro sobre o que deveria
e não deveria ser feito e casualmente nos engajamos em muitas
brincadeiras. Quando terminamos, agradeci a meus companheiros
e me mudei para outro lugar que serviu como um ponto de partida
conveniente. Lá, encontrei-me brevemente com alguns outros
seres que me eram familiares. Discutimos detalhes do que eu
havia concordado fazer, bem como alguns problemas pessoais.
Então, simplesmente respirei fundo e voltei para o corpo.

Paciente com esquizofrenia

Na tentativa de penetrar o outro mundo encontrei seus


guardiões naturais, a personificação de minha própria fraqueza e
falhas. Julguei a princípio que esses demónios fossem habitantes
desprezíveis do outro mundo, que podiam brincar comigo como se
eu fosse uma bola, porque penetrei naquelas regiões despreparado
e me perdi. Mais tarde pensei serem partes isoladas de minha

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própria mente (paixões) que existiam próximas de mim, no espaço
livre, alimentando-se de meus sentimentos. Acreditava que todos
os demais as possuíssem também, embora sem percebê-lo, graças
à ilusão protetora e bem sucedida do sentimento de existência
pessoal. Julguei que a última fosse um artifício da memória,
complexos de ideias, etc., uma boneca bonita de se olhar, mas sem
qualquer conteúdo real. Eu queria aproximar-me das fontes mais
sublimes da existência. Deveria ter me preparado para isto durante
um período prolongado de tempo, invocando em mim um eu mais
elevado, impessoal, já que o “néctar” não é para lábios mortais.
Agia de modo destrutivo sobre o eu do animal humano, dividindo-
o em partes que gradualmente se desintegravam. Eu forçara o
acesso à fonte vital e a ira dos “deuses” caíra sobre mim. Ocorreu
então uma iluminação. Um eu maior, amplo e mais compreensivo
emergiu e pude abandonar a anterior personalidade com todo o seu
séquito. Vi que essa personalidade anterior jamais poderia penetrar
nas regiões transcendentais e senti uma dor terrível, um golpe
aniquilador, mas fui salvo, os demónios encolheram-se,
desapareceram, pereceram. Uma nova vida começou para mim e
de então em diante senti-me diferente das outras pessoas. Um eu
consistindo de mentiras convencionais, enganos, auto-ilusões,
imagens da memória, um eu exatamente como o dos outros tornou
a crescer em mim, mas por detrás e acima erguia-se um eu mais
amplo e mais compreensivo, que me impressionou, sendo dotado
de algo eterno, imutável, imortal e inviolável e que desde então
tem sido meu protetor e refúgio. Acredito que seria bom para
muitos conhecerem esse eu mais elevado e saberem que há gente
que alcançou este objetivo por meios mais tranquilos.

A. T.

Depois de terminar um relacionamento amoroso, caí numa

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depressão e decidi tentar o suicídio com uma overdose de
medicamentos para o coração. Estava pronto para morrer. Foi
então que vi no centro da minha visão um minúsculo ponto preto
infinitamente pequeno. Percebi que esse minúsculo ponto escuro
está na visão de toda a gente o tempo todo. É tão pequeno que é
como olhar para a ponta de uma agulha de frente, não de perfil. É
tão pequeno que não o percebemos, mas está sempre à nossa
frente e em tudo o que vemos. Não importa para onde olhemos,
ele está sempre no centro de tudo o que olhamos. É a morte. O
minúsculo ponto preto ficou maior, não porque tivesse mudado de
tamanho (não mudou), mas porque me aproximei dele.
Finalmente, ele cresceu até cobrir todo o meu campo de visão.
Nesse momento, eu me vi num lugar diferente com dois ou três
outros seres. Eles eram muito mais altos do que eu. Eu me sentia
muito pequeno e insignificante ao lado deles. Eles foram muito
compassivos comigo, apesar da minha inconsequência diante
deles. Eles mostraram-me a minha vida e falaram sobre ela.
Apontaram um acontecimento na minha infância quando eu tinha
quatro ou cinco anos, e um deles disse aos outros: “É por isso que
ele tinha que fazer grandes coisas,” e os outros concordaram. Eu
não sabia do que eles estavam falando e queria saber o significado
daquilo, mas de repente voltei para ao meu corpo, para o meu
quarto, para a minha cama. Dormi muito tempo, mas lembrei da
experiência. Eu não sabia o que eles queriam dizer com “grandes
coisas,” mas desde então, eu já atuei três vezes na Casa Branca
como músico e produzo um programa de rádio que é transmitido
para todo o mundo e ouvido por mais de um milhão pessoas a
cada semana e muitas outras coisas. Eu não percebi na época, mas
anos depois, percebi que suas palavras se tornaram realidade e que
minha tentativa de suicídio foi um erro estúpido, e que eu tive uma
segunda chance.

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D. R.

Eu tinha atingido uma depressão muito forte em minha vida.


Minha mãe tinha problemas mentais e tentou o suicídio várias
vezes ao longo da vida. Quando esgotei todas as possibilidades de
melhorar minha situação, decidi tentá-lo também. Comprei dois
pacotes de 36 tabletes de pílulas para dormir. Liguei para dizer que
não ia trabalhar e deitei pela última vez na minha cama, ou assim
pensei. Acordei sem motivo aparente. Fiquei ali deitado como um
vegetal, sentindo os efeitos do meu corpo fortemente medicado,
que parecia extremamente pesado. Havia um zumbido alto e
constante soando na minha cabeça. Foi então que ocorreu o
pensamento de que eu morreria acordado. Tentei mover minha
cabeça para ver se o telefone sem fio estava na base no outro lado
do quarto. Quando a cabeça não girou, tentei virar meu corpo. Foi
então que entrei em pânico e tentei sair da cama e caí no chão. De
lá, rastejei, rolei e avancei em volta da cama até o telefone.
Parecia que estava a quilômetros de distância e eu não conseguia
alcançá-lo. Quando finalmente cheguei ao outro lado do quarto,
meu braço e minha mão pareciam pesados demais para levantar,
mas consegui derrubar o telefone para o chão. Liguei para o 911 e
pude ouvir a operadora, mas tive grande dificuldade em responder.
Depois de algum tempo fui capaz de dizer “ajuda”. Quando já
estava perdendo a consciência, a polícia local começou a bater na
porta. Acordei numa maca de hospital sendo empurrado por
vizinhos através do estacionamento para uma ambulância.
Tentaram enfiar uma agulha no meu peito, e nesse momento
comecei a sentir-me leve como o ar e flutuei para cima e para
longe de toda a comoção. Acredito que isso aconteceu quando eu
perdi meus sentidos, minha visão turvou e a segunda visão
começou. Todo o barulho se transformou num silêncio pacífico.
Em seguida, fui puxado para uma espécie de túnel longo. Não

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podia vê-lo, mas podia senti-lo. Estava viajando a uma velocidade
enorme. A sensação de leveza estava presente. Comecei a sentir
medo e pânico, e então passei para o que acredito ser o outro lado.
Uma súbita calma tomou conta de mim e também uma nova
felicidade. Eu sei agora que enquanto estivermos presentes em
nossas conchas, ou corpos, não podemos sentir essa extensão de
paz, amor, tranquilidade e conforto. O túnel deu lugar a uma luz
imensa que não podia ser vista, mas sim sentida. Tudo era
ofuscante, mas não no mesmo sentido de como olhar para o sol ou
para um arco de solda. Era mais um fenómeno da segunda visão.
Comecei a comunicar-me com algo vasto e todo-poderoso,
onisciente e verdadeiro na mais pura definição. Não era como se
estivéssemos falando de pessoa para pessoa, mas sim diretamente
na mente. Eu entendo perfeitamente agora como as palavras são
incapazes de compreender uma experiência espiritual. As palavras
não chegam perto. Acho que todos nós iremos experimentar coisas
semelhantes um dia. De repente, senti que esse vasto poder ficou
muito chateado comigo e senti um medo além das palavras quando
fui atirado como um raio de volta ao meu corpo. Recuperei a
consciência e quando abri os olhos, descobri que estava deitado
numa cama de hospital.

Louise

Louise é uma professora primária de 24 anos cujas


experiências de despersonalização permeiam todas as formas
como ela se relaciona com seu corpo e seus movimentos, bem
como toda a sua experiência visual do mundo. Sua
despersonalização começou quando ela tinha cerca de 10 anos,
época em que sentia que sempre que levantava as pernas ou
braços, seu corpo ficava sem peso e ela começava a flutuar. Ela
diz: “Para mim, pode ser uma experiência muito visual. É como se

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eu estivesse usando óculos que não consigo ver, como se houvesse
um zíper para abrir.” Hoje ela já não sente tanto; ela se descreve
como entorpecida e é raro chorar mesmo quando tem vontade. Seu
corpo não parece uma parte dela: “Às vezes eu bato na minha mão
ou belisco minha perna só para sentir algo e saber que está lá.”
Louise muitas vezes sente que uma parte dela está “atuando”. “Ao
mesmo tempo, há uma outra parte cá dentro que não se está
conectando com o eu que está falando consigo,” diz ela. Quando a
despersonalização é mais intensa, ela sente que simplesmente não
existe. Essas experiências a deixam confusa sobre quem ela
realmente é e, muitas vezes, ela se sente como uma “atriz” ou
simplesmente, “uma farsa”.

Alphonse Daudet

A primeira vez que percebi que eu era dois foi por ocasião da
morte de meu irmão Henri, quando meu pai gritou tão
dramaticamente que ele estava morto. E ao passo que o meu
primeiro eu chorava, o segundo pensava: “Como foi natural e
espontâneo esse grito, como ele ficaria bem no teatro!” Eu tinha,
então, catorze anos. Essa horrível dualidade forneceu-me,
reiteradas vezes, matéria para reflexão. Esse terrível segundo eu,
sempre sentado enquanto o outro está de pé, agindo, vivendo,
sofrendo, atarefando-se. Esse segundo eu que nunca fui capaz de
embebedar, de fazer chorar, ou de adormecer. E como ele enxerga
o fundo das coisas, como zomba!

Tom com despersonalização

Sento-me numa reunião importante e recebo perguntas


cruciais, e de alguma forma eu encontro as respostas. Mas não
estou realmente lá. É como se nada fosse real, eu ou a reunião.

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Olho da janela a 40 metros de altura e pergunto onde o céu
termina. Ou me vejo sentado nessa reunião discutindo os
resultados e as promoções de vendas como se realmente tivessem
algum significado para mim. É mais do que sonhar acordado. É
como se eu estivesse ciente de certos aspectos mais amplos da
realidade. Diante do céu infinito acima, ou de um tempo infinito
antes e depois da minha curta existência, como poderiam coisas
como o meu trabalho ter significado algum para mim?

Anónimo com despersonalização

Olho de dentro para a minha mente e sinto-me preso e


perplexo com a estranheza da minha existência. Meus
pensamentos rodopiam sem cessar, constantemente sondando a
estranheza da individualidade. Nesses momentos, desenvolvem-se
sentimentos de pânico, como se eu estivesse sofrendo de uma
fobia sobre meus próprios pensamentos. Em outros momentos,
não me sinto “enraizado”. Olho para este corpo e não consigo
entender porque estou dentro dele. Eu me ouço conversando e me
pergunto de onde vem a voz. Imagino a minha vida como se
estivesse vendo um filme no cinema. Mas nesse caso, onde estou?
Quem está assistindo o filme? O que é o cinema? A pior parte
disso tudo é que isso parece ser a verdade, e que os períodos da
minha vida onde eu não sentia isso eram ilusões.

John Geiger

Quando eu tinha sete anos, experimentei algo que sempre


quis experimentar novamente. Eu estava acompanhando meu pai
numa viagem para analisar a topografia dos sedimentos do sul de
Alberta. Era um dia sufocante de verão e caminhávamos ao longo
da fronteira entre uma vasta campina e a margem superior do rio

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Oldman. Estávamos escalando um barranco íngreme e seco. Eu
estava seguindo meu pai quando de repente fui parado por uma
cascavel, enrolada e pronta para atacar. O som do réptil despertou
uma sensação de urgência. A cobra estava sob uma rocha saliente
entre mim e meu pai. Meu pai havia passado por ela sem perceber
e estava à minha frente na ladeira. Ainda hoje não tenho certeza do
que aconteceu a seguir. Também não sei qual parte das minhas
memórias é real e qual parte pertence à imaginação hiperativa de
uma criança. Mas o que eu lembro, lembro muito claramente.
Houve um momento de terror absoluto. Então, de repente, uma
mudança psicológica de perspectiva. Eu me senti dissociado da
minha situação imediata e a cena apareceu para mim de um ângulo
impossível. Eu era duas pessoas em dois lugares ao mesmo tempo.
Eu vi meu pai e vi uma criança, uma criança que só podia ser eu.
Se não era eu, quem era então? Mas eu assistia os eventos se
desenrolarem à distância, como um observador. O tempo parecia
passar mais devagar, mas tudo terminou num instante. Meu pai
agarrou o menino com uma das mãos, com o que parecia uma
força sobre-humana, e o carregou nos ombros. Estava fora de
perigo. Foi uma experiência inesquecível, que não poderia ter
ocorrido tal como me lembrava. Ou será que ocorreu? Tudo que
sei é que quando me lembro do incidente e conto as pessoas lá
presentes, não são duas, mas três.

São Francisco de Assis

Dois anos antes de partir deste mundo para o céu,


permanecendo ele no ermitério que, em razão do local onde se
encontra, tem o nome de Alverne, foi por Deus favorecido com a
seguinte visão: pairando acima dele, apareceu-lhe um homem em
forma de Serafim, com seis asas, preso a uma cruz, os braços
estendidos, unidos os pés. Duas asas prolongavam-se por cima da

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cabeça, duas abriam-se para voar, e outras duas cobriam-lhe todo
o corpo. Esta aparição mergulhou num pasmo infindo o servo do
Altíssimo que, todavia, não acabava de lhe entender o significado.
Sentindo-se envolvido pelo olhar benigno e afetuoso daquele
serafim de inexcedível beleza, experimentava um gozo imenso,
uma fogosa alegria. Contudo, aterrava-o sobremaneira vê-lo
cravado na cruz, sofrendo atrozmente as dores de tamanha paixão.
Levantou-se triste e alegre ao mesmo tempo, se assim me é lícito
exprimir, alternando em seu espírito sentimentos de fruição e de
amargura. Buscava com ardor descobrir o sentido da visão, mas
todo se lhe agitava o espírito no esforço de o conseguir. Não lhe
consentindo a inteligência devassar coisa alguma e sentindo-se
totalmente subjugado com a singularidade da aparição, eis que nas
suas próprias mãos e pés vê surgir os mesmos sinais dos cravos
que pouco antes vira no misterioso homem crucificado.

Charles G. Finney

A elevação de minha alma foi tâo grande que eu corri para o


quarto que ficava atrás do escritório da frente, para orar. Não havia
fogo ou luz no quarto; não obstante, parecia como se ele estivesse
perfeitamente iluminado. Conforme eu entrei e fechei a porta,
pareceu como se tivesse encontrado o Senhor Jesus Cristo face a
face. Não me ocorreu que se tratava completamente de um estado
mental; pareceu que eu o vi como teria visto qualquer outro
homem. Ele nada disse, mas me olhou de tal maneira que me fez
prostrar-me a seus pés. Desde então sempre considerei isto um
estado mental bastante especial; pois pareceu-me que ele estava de
pé diante de mim e eu caí a seus pés e abri minha alma para ele.
Chorei alto como uma criança e fiz as confissões que pude com a
voz sufocada. Devo ter continuado nesse estado por um bom
tempo; mas minha mente estava absorta demais para se lembrar de

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qualquer coisa que eu tivesse dito. Mas sei que, tão logo minha
mente se acalmou, eu retornei ao escritório da frente e vi que o
fogo que tinha feito com madeira grossa estava quase apagado.
Mas conforme eu me virei e estava prestes a me sentar perto do
fogo, recebi um poderoso batismo do Espírito Santo. Sem esperar
por isto, sem jamais ter tido a ideia em minha mente de que
houvesse tal coisa para mim, sem qualquer lembrança de que eu
jamais tivesse ouvido tal coisa mencionada por qualquer pessoa no
mundo, o Espírito Santo desceu sobre mim, de um modo que
parecia entrar em mim, corpo e alma. Não há palavras para
expressar o maravilhoso amor que foi derramado em meu coração.
Chorei alto, com alegria e amor; e não sei, mas eu diria que
literalmente gritei os inexprimíveis jorros de meu coração. Estas
ondas me perpassaram, me perpassaram, me perpassaram, uma
após a outra, até o momento em que me lembro de ter gritado: “Eu
vou morrer se estas ondas continuarem a passar por mim.” E disse:
“Senhor, não posso mais aguentar;” mesmo assim não sentia
nenhum medo da morte. Por quanto tempo continuei nesse estado,
não sei. Mas era tarde da noite quando um integrante de meu coro
veio me ver. Era um dos fiéis da igreja. Ele me encontrou naquele
estado de choro alto e perguntou: “Sr. Finney, o que há com o
senhor?” Não consegui formular nenhuma resposta por algum
tempo. Então ele perguntou: “Está com alguma dor?” Procurei me
recompor e respondi: “Não, mas estou tão feliz que não posso
viver.”

Maximiliano Kolbe

Em 1914, após o pai ter sido feito prisioneiro pelos


comunistas russos e enforcado por eles, a sua mãe retirou-se para
um convento beneditino, de onde escreveu uma carta narrando as
experiências místicas do filho: “Tremia pela emoção e com

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lágrimas nos olhos me disse: ‘Apareceu para mim Nossa Senhora,
tendo nas mãos duas coroas: uma branca e outra vermelha.
Olhava-me com amor e me perguntou se as queria. A branca
significava a pureza e a vermelha o martírio. Respondi que
aceitava. Então, Nossa Senhora me olhou com doçura e
desapareceu!’ A mudança extraordinária nele, para mim, atestava a
verdade da coisa. Nem sempre era compreendido, e acenava com
o rosto radiante a sua desejada morte de mártir.”

Max Jacob

Depois de tirar meu chapéu, eu me preparava, como bom


burguês, para calçar os chinelos quando lancei um grito. Havia um
Hóspede na parede. Caí de joelhos, meus olhos se encheram
subitamente de lágrimas. Um inefável bem-estar desceu sobre
mim, e permaneci imóvel sem compreender. Num minuto, vivi um
século. Pareceu-me que tudo me foi revelado. Instantaneamente
também, depois que meus olhos encontraram o Ser inefável, senti-
me despojado de minha carne humana, e apenas duas palavras me
preenchiam: morrer, nascer. Após a desaparição da imagem
sagrada, eu escutava uma multidão de vozes e palavras muito
nítidas, muito claras e sensatas, que me mantiveram desperto
durante toda a tarde e toda a noite, sem que eu sentisse
necessidade de qualquer coisa além da solidão.

Coronel James Gardiner

Nasceu em 10 de Janeiro de 1688. Diz-se que travou três


duelos antes de se tornar adulto. Entrou jovem no exército e lutou
com muita bravura. Consta que suas relações com mulheres eram
livres e mesmo licenciosas. Não era religioso, bem ao contrário,
mas às vezes sofria “inexprimível remorso” por causa da vida que

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levava, que lhe parecia má. Em meados de Julho de 1719, quando
tinha trinta e um anos e meio de idade, ocorreu o seguinte: ele
passara a primeira parte da noite com alguns companheiros alegres
e tinha um encontro amoroso com uma mulher casada, com quem
se comprometera encontrar à meia-noite. A reunião com os
companheiros terminou às onze e, não achando conveniente
antecipar a hora marcada para o encontro, foi para seu quarto a
fim de matar a hora ociosa, talvez com algum livro divertido, ou
de algum outro modo. Mas aconteceu, muito acidentalmente que
ele pegou um livro religioso que sua bondosa mãe ou sua tia
pusera sem ele saber em sua valise. Se lembro o título exato, o
livro era O Soldado Cristão, ou o Céu Tomado de Assalto e fora
escrito por Thomas Watson. Julgando pelo título que encontraria
algumas frases relativas à sua própria profissão, escritas num
modo espirituoso que ele achou que poderia lhe proporcionar
alguma diversão, resolveu lê-lo; mas não deu nenhuma atenção
séria a qualquer coisa nele. Mesmo assim, enquanto o livro estava
em suas mãos, foi causada na sua mente uma impressão (talvez só
Deus saiba como) que trouxe uma série de consequências das mais
importantes e felizes. Ele pensou que viu um facho incomum de
luz caindo sobre o livro que estava lendo, o que a princípio
imaginou que podia ter acontecido por algum acidente com a vela;
mas levantando os olhos constatou, para seu extremo assombro,
que havia diante dele, como que suspensa no ar, uma
representação visível do Senhor Jesus Cristo na cruz, rodeada em
todos os lados de um resplendor, e teve a impressão de que uma
voz ou algo equivalente a uma voz se manifestou a ele mais ou
menos com este sentido (pois não tinha certeza quanto às
palavras): ‘Oh!, pecador, tudo isto sofri por ti, e esta é a tua
retribuição?’ Impressionado com esse fenômeno espantoso,
dificilmente restou alguma vida nele, de modo que afundou na
poltrona em que estava sentado e continuou insensível, não

50
sabendo por quanto tempo. Consta que o efeito imediato da
experiência de Gardiner foi um conhecimento, ou melhor, uma
visão, da majestade e benevolência de Deus e sua vida posterior
(um período de vinte e seis anos) foi de uma notável excelência. O
novo homem foi tão virtuoso, puro e piedoso como o velho
homem havia sido licencioso e profano.

Anónima

Eu tinha cerca de 34 anos e estava trabalhando como cientista


na Antártica durante o verão. Fomos levados de avião para o lago
Vanda, nos vales secos, para limpar um derramamento de óleo.
Demorou 2 dias para retirar o gelo poluído da superfície do lago
com picadores de gelo. Então, houve uma nevasca na base e os
pilotos do helicóptero não puderam vir buscar-nos e acabamos
tendo uma (muito necessária) folga de 2 dias. Como se faz nas
folgas, fomos dar um passeio. Caminhamos até o final do vale e
depois subimos Bull Pass. Todos nós subimos a colina ao nosso
próprio ritmo, e eu já estava bem afastada de meus companheiros
quando cheguei ao topo e me sentei para descansar. Minha mente
estava totalmente em branco. Depois de um tempo, percebi que
havia expandido. Já não era uma pequena consciência discreta
localizada na minha cabeça – abrangia todo o vale. Eu era enorme.
Eu fazia parte de tudo – ou melhor, tudo fazia parte de mim. Eu
era antiga e incrivelmente poderosa. Foi maravilhoso. Depois de
algum tempo, não tenho ideia de quanto, mas pode ter sido cerca
de 10 minutos, meus amigos apareceram e meu estado voltou ao
normal. Fiquei muito triste com isso, mas também bastante
aliviada! Comemos alguma coisa e descemos a colina novamente.

Juan Diego

51
Era sábado de madrugada, pouco antes do amanhecer, ele
estava em seu caminho, a seguir seu culto divino e empenhado em
sua tarefa. Ao chegar no topo da montanha conhecida como
Tepeyacac, o dia amanhecia e ele ouviu cantos acima da
montanha, semelhantes aos cantos de vários pássaros. De vez em
quando, as vozes cessavam e parecia que o monte lhes respondia.
Juan Diego parou, olhou e disse para si mesmo: “Porventura, sou
digno do que ouço? Será um sonho? Estarei dormindo em pé?
Onde estou? Será que estou agora num paraíso terrestre de que os
mais velhos nos falam a respeito? Ou quem sabe estou no céu?”
Ele estava olhando para o oriente, acima da montanha, de onde
vinha o precioso canto celestial e então de repente houve um
silêncio. Então, ouviu uma voz por cima da montanha chamando
por seu nome. Ele com coragem foi onde o estavam chamando,
não teve o mínimo de medo, pelo contrário, encorajou-se e subiu a
montanha para ver. Quando alcançou o topo, viu uma Senhora,
que estava parada e disse-lhe para se aproximar. Em sua presença,
ele maravilhou-se pela sua grandeza sobre-humana. Seu vestido
era radiante como o sol, o penhasco onde estavam seus pés,
penetrado com o brilho, assemelhava-se a uma pulseira de pedras
preciosas e a terra cintilava como o arco-íris. As ervas daninhas
que ali estavam, pareciam como esmeraldas, sua folhagem como
turquesas e seus ramos e espinhos brilhavam como ouro. Ele
inclinou-se diante dela e ouviu sua palavra, suave e cortês, como
alguém que encanta e cativa muito.

Richard Maurice Bucke

Achava-me num estado de tranquilo aprazimento, quase


passivo, sem realmente pensar, mas deixando que as ideias,
imagens e emoções fluíssem por si mesmas, por assim dizer,
através da minha mente. De repente, sem qualquer prenúncio, vi-

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me envolto numa nuvem cor de chama. Por um instante pensei em
fogo, numa imensa conflagração em algum lugar, perto dali, na
grande cidade; mas em seguida percebi que o fogo estava dentro
de mim. Acudiu-me de pronto um sentimento de júbilo, de imensa
felicidade, acompanhado ou imediatamente seguido de uma
iluminação intelectual totalmente impossível de descrever. Entre
outras coisas, não somente vim a acreditar, senão vi que o
universo não se compõe de matéria morta mas, pelo contrário, de
uma Presença viva; tornei-me cônscio, em mim mesmo, da vida
eterna. Não era a convicção de que eu possuiria a vida eterna, mas
a consciência de que já a possuía; vi que todos os homens são
imortais; que a ordem cósmica é de tal natureza que, sem qualquer
possibilidade de erro, todas as coisas trabalham juntas para o bem
de cada um e de todos; que o princípio fundamental do mundo, de
todos os mundos, é o que chamamos de amor, e que a felicidade
de cada um e de todos, afinal de contas, é absolutamente certa. A
visão durou uns poucos segundos e desapareceu; mas sua
lembrança e o sentido da realidade do que ensinou permaneceu
durante o quarto de século que transcorreu depois disso.

São Bento

O homem de Deus, Bento, antecipava em vigília a hora da


oração noturna. Ora, eis que, estando à janela em prece a Deus
onipresente, de súbito, na calada da noite, olhou para cima e viu
uma luz que se difundia do alto e dissipava as trevas da noite,
brilhando com tal esplendor que, apesar de raiar nas trevas,
superava o dia em claridade. Nesta visão, seguiu-se uma coisa
admirável, pois, como depois ele mesmo contou, também o
mundo inteiro lhe apareceu ante os olhos, como que concentrado
num só raio de sol. Ainda quando o venerável padre fixava
atentamente a vista no esplendor da cintilante luz, viu a alma de

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Germano, bispo de Cápua, levada ao céu pelos anjos numa esfera
de fogo. Querendo, então, que alguém lhe servisse de testemunha
de tão grande visão, chamou repetidamente, duas ou três vezes,
em alta voz, o diácono Servando pelo próprio nome. Este,
perturbado pelo insólito clamor de tão grande homem, subiu,
olhou para o alto e ainda viu um rastro exíguo de luz. Ficou
estupefato por tão grande maravilha e o homem de Deus narrou-
lhe por ordem tudo que acontecera e imediatamente encarregou o
virtuoso Teóprobo de Cassino, de mandar alguém na mesma noite
a Cápua para saber o que havia com o bispo Germano e comunicá-
lo a Bento. De facto, aconteceu que o enviado encontrou já
defunto o reverendíssimo bispo Germano, e, indagando
minuciosamente, apurou que ele morrera no mesmo instante em
que o homem de Deus tomou conhecimento de sua ascensão. Para
a alma que vê o Criador, toda criatura é pequena. Por pouco que
ela chegue a ver a luz do Criador, exíguo se lhe torna tudo que é
criado, porque, à luz dessa visão profunda, o íntimo da mente se
dilata e de tal modo se expande em Deus, que fica acima do
mundo. A própria alma do vidente coloca-se, então, acima de si
mesma. Ao ser raptada acima de si na luz de Deus, amplia-se
interiormente, e, quando, nesse estado de exaltação, olha abaixo
de si, compreende quão pequeno é tudo aquilo que, no seu estado
de humilhação, não podia compreender. O homem de Deus, que,
contemplando o globo de fogo, também via os anjos de volta ao
céu, certamente não podia ver essas coisas senão na luz de Deus.
Que é, pois, de admirar, se viu o mundo concentrado diante de si,
aquele que, elevado na luz do espírito, esteve fora do mundo? Se,
porém, se diz que o mundo todo foi concentrado diante dos seus
olhos, não é que o céu e a terra tenham sido contraídos, mas o
espírito do vidente é que foi dilatado, e, raptado em Deus, pôde
sem dificuldade ver tudo que está abaixo de Deus. Portanto,
enquanto aquela luz lhe resplandecia aos olhos de fora, houve uma

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luz interior na mente, que arroubando ao alto o espírito do vidente,
lhe mostrou quão estreito é tudo que se acha aqui em baixo.

John E. McTaggart

Desde a juventude, e periodicamente ao longo de toda a sua


vida, McTaggart foi sujeito a uma espécie de experiência mística
que lhe revelou ser a essência da realidade última encontrada na
emoção do amor. Isto é, ele percebeu que, por trás do mundo
cotidiano da aparência, o metafisicamente mais elevado e mais
fundamental de todos os estados de existência consiste em nada
menos que o amor de uma pessoa pela outra. A experiência
revelou-lhe que a realidade é um sistema de espíritos unidos pelo
amor, que o amor é o princípio unificador da realidade e a base do
ser. A comunidade de espíritos é fundida pelo amor num todo
unificado. Ele escreveu: “Sabemos que é um estado de amor
atemporal e infinito – amor tão direto, tão íntimo e tão poderoso
que até mesmo o mais profundo arrebatamento místico nos dá
apenas o mais leve antegozo de sua perfeição. Sabemos que não
teremos ciência senão de nosso amado e daqueles que nos amam,
e de nós mesmos como os amando, e que somente nisso
buscaremos e encontraremos satisfação.” O amor será direto
porque “na realidade absoluta, o conhecimento que cada pessoa
tem de outra será, em certo grau, semelhante ao conhecimento que
ela tem, na experiência presente, de si mesma.” Será um amor
diferente, pois é um tipo de união “que traz o descanso perfeito
que o amor aqui apenas anseia.”

Ron DiFrancesco

Ron DiFrancesco estava no escritório financeiro localizado


no 84º andar da Torre Sul do World Trade Center, quando o avião

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colidiu com a Torre Norte, que estava à sua frente. Eram 8:46 da
manhã do dia 11 de Setembro de 2001. A maioria começou a
evacuar o prédio, mas DiFrancesco não o abandonou. Minutos
depois, por meio do sistema de som, um aviso conciso foi
transmitido por todo o prédio de escritórios dizendo que houve um
incidente na outra torre, que a Torre Sul estava segura e não havia
necessidade de evacuar. Ele decidiu continuar a trabalhar. Nesse
momento, ele recebeu um telefonema de uma amiga de Toronto
dizendo-lhe para sair dali rapidamente. Conversaram brevemente e
DiFrancesco concordou em ir embora. Às 9:03, 17 minutos após o
primeiro impacto, o segundo avião colidiu com a Torre Sul,
causando um intenso incêndio alimentado por 90 mil litros de
combustível. DiFrancesco foi jogado contra a parede. Painéis do
telhado e outros detritos caíram sobre ele. O prédio balançou.
DiFrancesco entrou na escada A. A Torre Sul tinha três escadas de
emergência. Felizmente, ele encontrou a única que permitia a fuga
de pessoas acima da zona de impacto. A escada ficara protegida
pela enorme sala de máquinas do elevador, localizada no 81º
andar, onde colidiu a frente do 767. Outras pessoas se juntaram a
DiFrancesco nas escadas e começaram a descer. Mas umas
mulheres subiam as escadas dizendo que tinham de subir, porque
havia muita fumaça e fogo abaixo. Eles discutiram a possibilidade
de subir e esperar a chegada dos bombeiros ou serem resgatados
por helicóptero no telhado, ou continuar descendo e enfrentar a
fumaça e chamas. Respirando pesadamente, Ron decidiu subir
para escapar da fumaça. Subiu vários andares, mas a cada patamar,
ao tentar abrir as portas de emergência, constatou que estavam
todas fechadas. Continuou a subir, finalmente alcançando um
grupo de outras pessoas. Ele convenceu a todos de que a melhor
rota de fuga era escalar a Torre Sul. Mas, à medida que subiam, as
escadas ficavam mais entupidas de pessoas. DiFrancesco é uma
pessoa geralmente imperturbável. Ele trabalha como corretor da

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bolsa num negócio de alto risco que requer nervos de aço. Mas ele
é um pouco claustrofóbico e como a fumaça ia ficando mais forte,
ele entrou em pânico. Ele decidiu dar meia-volta e descer
novamente. Mas a situação já estava muito pior. A fumaça pesada
havia subido pela escada estreita. Começou a descer tateando,
incapaz de ver além de um degrau. Parou então num patamar no
meio da zona de impacto, o 79º ou 80º andar. Invadido pela
fumaça, ele se juntou a um grupo de cerca de uma dúzia de
pessoas. Alguns estavam deitados de bruços no chão de concreto,
outros agachados nos cantos, todos respirando pesadamente. Uma
parede em ruínas os impediu de descer. DiFrancesco leu o pânico
e o medo em seus olhos. Alguns choravam. Outros estavam
começando a desmaiar. E, naquele momento, algo extraordinário
aconteceu: “Alguém lhe disse para se levantar.” “Alguém,” disse
ele, “me falou.” A voz – que era masculina, mas não pertencia a
nenhuma das pessoas na escada – era urgente: “Levanta-te!” A voz
dirigiu-se a DiFrancesco pelo primeiro nome, encorajando-o: “Tu
podes fazê-lo.” Mas era mais do que apenas uma voz; era também
a perceção vívida de uma presença física. Naquele dia, muitas
pessoas tomaram decisões em frações de segundos que
determinaram se viveriam ou morreriam. O que é notável no caso
de Ron é que, num momento crítico, ele recebeu ajuda de uma
aparente força externa. Tinha a sensação de que “alguém estava
pegando nele.” Sentiu que algo o guiava: “Fui conduzido em
direção à escada. Não acho que algo segurava minha mão, mas
definitivamente estava me levando.” Ele continuou a descer e logo
depois viu um ponto de luz. Seguiu esse ponto, empurrando as
paredes de alvenaria, que haviam desabado, e outros destroços que
obstruíam as escadas. De repente depara-se com o fogo e dá um
passo atrás. Mas então alguém o ajuda novamente. Um anjo o
incitou a seguir em frente. “A situação ainda era perigosa, então
ele me conduziu até à escada, encorajando-me a superar a situação

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e passar pelo fogo. Não havia dúvida de que alguém me estava
encorajando. Não vás por ali, não vás em direção ao fogo, etc.”
Ele cobriu a cabeça com os antebraços e continuou a descer, agora
correndo. O fogo o atingiu várias vezes. Ele acreditava que havia
descido pelo menos três andares em chamas. Finalmente chegou a
um lance de escada clara e iluminada sob o fogo, no andar 76. Só
então aquela alma benevolente, que havia permanecido com ele
por cinco minutos, desapareceu. Enquanto descia, passou por três
bombeiros que subiam, e estes lhe disseram que ele encontraria
ajuda no final da escada. DiFrancesco continuou o mais rápido
possível até chegar ao piso térreo. Enquanto se dirigia para a
saída, um segurança o parou e avisou que era muito perigoso. Eles
o direcionaram então para a saída nordeste. Ao se aproximar da
saída, DiFrancesco ouviu um rugido tremendo. Viu uma grande
bola de fogo e sentiu o prédio encolher. Ele não sabe o que
aconteceu a seguir e ficou inconsciente por algum tempo; acordou
muito mais tarde no Hospital Saint Vincent, em Manhattan. Ron
DiFrancesco foi a última pessoa a deixar a Torre Sul antes de ela
desabar.

Santo Agostinho

Mas, que amo eu quando te amo? É uma certa luz, uma certa
voz, um certo odor, um certo alimento, um certo abraço: tudo isto
não sendo experimentado senão pelo que há em mim de interior.
Minha alma vê brilhar uma luz que não está no espaço, ela escuta
um som que não se cala com o tempo, ela sente um perfume que o
vento não leva embora, ela saboreia um alimento que a avidez não
faz diminuir, ela se apega a um objeto que a saciedade não a faz
abandonar. Eis o que amo quando amo o meu Deus.

Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei,

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guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque
te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima
desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a luz imutável;
não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do
mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo
com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz
diferente de todas estas. Ela não estava sobre meu espírito como o
azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de
mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por
ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece,
conhece a eternidade. O amor a conhece! Tu és meu Deus. Por ti
suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-
me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu
ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista
com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor.
Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se
ouvira tua voz do alto dizendo: “Sou o pão dos fortes; cresce, e
comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o
alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim.”

Jalal ad-Din Rumi

Com a maré da manhã surgiu no céu uma lua, e de lá desceu


e fitou-me. Como o falcão que arrebata o pássaro, essa lua
agarrou-me e cruzou o céu. Quando olhei para mim, já não me vi:
naquela lua meu corpo se tornara, por graça, sutil como a alma.
Viajei então em estado de alma e nada mais vi senão a lua, até que
o segredo do saber divino me foi por inteiro revelado: as nove
esferas celestes fundiram-se na lua e o vaso do meu ser dissolveu-
se inteiro no mar. Quando o mar se quebrou em ondas, a sabedoria
divina lançou sua voz ao longe. Assim tudo ocorreu, assim tudo
foi feito. Logo o mar se inundou de espumas, e cada gota de

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espuma tomou forma e corpo. Ao receber o chamado do mar, cada
corpo de espumas se desfez e tornou-se espírito no oceano.

Que maravilha eu vi e agora não posso virar minha face!


Leva-me ou não, as duas coisas são a mesma, pois enquanto
houver vida neste corpo, eu sou teu escravo. Como o Amado
preenche meu coração, como um milhão de almas num corpo, um
milhão de colheitas num feixe de trigo, um milhão de céus girando
no buraco de uma agulha. Num doce momento, explodiste de meu
coração. Ali, nos sentamos no chão, e bebemos um vinho
vermelho como rubi. Encantado com tua beleza, eu vi e toquei –
toda a minha face se transformou em olhos, todos os meus olhos
se transformaram em mãos.

J. M. Watkins

Enquanto assim refletia, avistei, no corredor ao meu lado,


uma névoa impalpável e de cor violeta. Pensando ter
experimentado algum defeito ótico momentâneo ou ilusão, olhei
para o fundo do corredor, mas lá também a mesma névoa delicada
estava presente. Percebi maravilhado que se estendia além das
paredes e do telhado do edifício e não estava confinada por eles.
Através dela eu podia olhar e ver a paisagem além. Vi todas as
partes do meu ser simultaneamente, e não com os meus olhos.
Mesmo assim, apesar de todo esse poder de perceção
intensificado, não houve perda de contato com meu ambiente
físico, nenhuma suspensão de minhas faculdades dos sentidos.
Senti felicidade e paz além das palavras. Naquele instante, a névoa
luminosa que me envolvia e tudo ao meu redor se transformou em
glória dourada, em luz indizível. A luz dourada da qual a névoa
violeta parecia agora ser como um véu ou franja externa, brotava
de um imenso globo central de brilho. Mas o mais maravilhoso era

60
que esses feixes e ondas de luz, aquela vasta extensão da fotosfera,
e até mesmo o próprio grande globo central, estavam preenchidos
com formas de criaturas vivas, um único organismo coerente
preenchendo todos os lugares e espaços, e no entanto composto
por uma infinidade de existências individuais. Além disso, vi que
aqueles seres estavam presentes em miríades abundantes na igreja
em que eu estava; que estavam misturados e passando sem
obstruções por mim e por meus companheiros de adoração. A
hoste celestial passou pela congregação humana como um vento
passa por um bosque de árvores; seres de beleza radiante e
vestidos com roupas brilhantes. Mas esse vasto espetáculo de céu
e terra foi sucedido por uma experiência ainda mais rica; uma em
que tudo no tempo, espaço e forma desapareceu de minha
consciência e apenas as coisas eternas inefáveis permaneceram. E
como a ponta da chama de uma vela que salta repentinamente para
cima quando um objeto é segurado logo acima dela, a chama da
minha consciência saltou para o seu limite máximo e passou para
a região do amorfo e não-criado que todas as palavras falham em
descrever. Por alguns momentos do tempo mortal, que não são
nenhuma medida da experiência do espírito no mundo imortal,
toda a consciência do meu ambiente físico foi removida. Por fim,
enquanto assim extasiado, a lembrança do mundo exterior do qual
minha consciência havia sido transportada voltou a mim, como
uma velha memória meio esquecida. O mundo e meus arredores
recentes foram exibidos novamente, mas a uma distância remota.
Sem choque ou violência, a consciência que havia sido tão
exaltada recaiu e voltou aos seus limites normais e se ajustou às
condições físicas; o espírito foi devolvido ao seu invólucro carnal
como uma joia é recolocada em seu caixão após o uso e trancada.
Mais uma vez eu estava na igreja; perfeitamente bem e impassível.

São João Crisóstomo

61
Ao mesmo tempo que o ser de Deus se manifestava, estas
criaturas que se mostravam tão excelentes e tão plenas de glória se
recolhiam com uma rapidez incrível em seu centro, que é o nada.
E vendo que o grande Deus estava em mim, e mais em mim do
que eu mesmo estava, experimentei por isso uma alegria inefável,
e não podia compreender como era possível ter Deus em mim e
em toda a parte fora de mim, e ocupar-se das criaturas. Eu estava
encantado de que aquilo fosse eterno, imutável, infinito, e vos
digo em verdade que, ao dizer, “Em meu Deus tudo é Deus,”
minha vontade foi tocada por um tão grande e tão ardente amor,
que me parecia que todo o ser criado desaparecia diante de mim, e
que eu jamais me ocuparia de nada mais além de Deus. Não posso
explicar o júbilo infinito de meu coração à vista de suas imensas
perfeições, mas vendo suas grandezas incompreensíveis e, por
outro lado, o meu nada com todas as misérias que o acompanham,
eu ia do infinito ao infinito, e sentia-me incapaz de amá-lo como
eu desejaria, o que me fazia sofrer intensamente; pois quanto mais
eu me sentia impotente para amá-lo com um amor recíproco, mais
me devorava interiormente um amor secreto.

Mirra Alfassa

Depois, imediatamente, sem transição, fui como que


mergulhada no banho do Amor do Supremo, com a sensação de
alguma coisa que é sem limite; quer dizer, quando se tem a
perceção do espaço, que está em toda a parte (está além da
perceção do espaço, mas dentro da perceção do espaço, está em
toda a parte). E é uma espécie de massa vibratória homogênea,
imóvel, e entretanto com uma intensidade de vibração sem igual,
que se pode traduzir por uma luz quente, dourada (mas não é isto,
é muito mais maravilhoso que isto!). E, então, está em toda a parte

62
ao mesmo tempo, em toda a parte idêntica a si mesma, sem
alternâncias de alto e baixo, sem mudança, numa intensidade de
sensação que é invariável. E esta “alguma coisa” que é própria à
natureza divina (que é muito difícil de exprimir em palavras) é ao
mesmo tempo imobilidade absoluta e intensidade vibratória
absoluta. E Isto, Isto ama. Não há “Senhor” e não há “coisas;” não
há sujeito, não há objeto. E Isto ama. E como dizer o que é Isto? É
impossível. E Isto ama em toda a parte e tudo, o tempo todo, ao
mesmo tempo. Isto está aqui, eternamente; Isto sempre esteve
aqui, eternamente; Isto sempre estará aqui, eternamente, sempre
semelhante a si mesmo e no máximo de sua possibilidade. Isto não
partiu, e não poderá mais partir agora. Então uma vez vivenciado
Isto, tornamo-nos irrevogavelmente conscientes de que tudo
depende da perceção individual, inteiramente; e esta perceção
individual (do Amor divino) depende, naturalmente, da
insuficiência, da inércia, da incompreensão, da incapacidade, do
facto de que as células não podem conter nem conservar a
Vibração, enfim, de tudo aquilo a que o homem chama seu
“caráter” e que provém de sua evolução animal.

Anónima

Estava passando por um período de depressão profunda e


isoladora quando as escamas caíram de meus olhos e vi o mundo
como ele realmente é. Foi como se o casulo tivesse estourado e
meus olhos se abrissem e vi que o mundo era infinitamente belo,
cheio de luz como se de um esplendor interno. Tudo estava vivo e
Deus estava presente em todas as coisas, de facto a terra, todas as
plantas e animais e pessoas pareciam ser feitas de Deus. Todas as
coisas eram uma, e eu era uma com toda a criação e estava segura
num amor profundo. Estava cheia de paz e alegria e com uma
profunda humildade, e só podia curvar-me diante da santidade da

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presença de Deus.

Winifred Holtby

Aos trinta e três anos, no auge de seu poder como romancista,


Winifred Holtby foi informada por um especialista que talvez não
tivesse mais de dois anos de vida. Compelida pela fraqueza
corporal a abandonar seu trabalho, todo seu ser estando em
rebelião, um dia, sentindo-se muito cansada e desanimada, subiu
uma colina e chegou a um vale perto de uma fazenda. Sua
superfície estava congelada e alguns cordeiros estavam reunidos
em torno dela. Ela quebrou o gelo para eles com seu bastão e, ao
fazê-lo, ouviu uma voz dentro dela dizer: “Não tendo nada, mas
possuindo todas as coisas.” Era tão distinta que ela olhou em volta
assustada, mas estava sozinha com os cordeiros no topo da colina.
De repente, num flash, a dor, a amargura, a sensação de frustração
desapareceram; todo o desejo de possuir poder e glória para si
mesma desapareceu e nunca mais voltou. O momento de
conversão na colina, disse com lágrimas nos olhos, foi a suprema
experiência espiritual de sua vida.

J. H. M. Whiteman

Uma noite, despertei e separei-me imediatamente do meu


corpo. Essa forma separada foi puxada para cima, muito depressa,
como se percorresse uma grande distância. De súbito, sem que
tivesse havido qualquer outra alteração, os meus olhos abriram-se.
Lá em cima e à minha frente, no entanto em mim, de mim e ao
meu redor estava a Glória da Luz Arquetípica. Uma luz criadora
da própria Vida, fluindo em Amor e Compreensão e formando a
partir da sua própria substância todas as outras vidas.

64
Anónimo

A primeira delas ocorreu no final de 1916, durante a Batalha


do Somme. Agachei-me na escuridão de uma trincheira na linha
de frente, que não era nada além de uma vala lamacenta, fedendo a
cadáveres não enterrados, em meio a um emaranhado de buracos
de granadas. Ao amanhecer, meu batalhão deveria atacar. Observei
o lento movimento do mostrador luminoso do meu relógio de
pulso, temendo o momento em que deveria levantar-me e conduzir
meus homens em direção às linhas alemãs. E de repente, com
absoluta certeza, soube que estava totalmente seguro. Não era a
segurança de Rupert Brooke: “Seguro, embora toda a segurança
esteja perdida, seguro onde os homens caem; e se esses pobres
membros morrerem, o mais seguro de todos.” Muito menos era o
tipo de fatalismo comum entre os guerreiros em ação. Em vez
disso, era uma sensação vívida de estar completamente seguro
fisicamente. Quando o estrondo da barragem estourou, avancei
sem medo. Esta experiência pode não parecer muito importante;
poderia pensar-se que foi apenas o efeito de uma tensão
particularmente forte. Mas deve ser considerada lado a lado com
outra experiência que me aconteceu na noite de 18 de Abril de
1936, a noite do dia anterior ao nascimento de meu filho. Meu
primeiro filho nascera morto e, deitado na cama, fiquei muito
ansioso com minha esposa e muito perturbado. E então uma
grande paz tomou conta de mim. Eu tinha consciência de um
padrão adorável e inexplicável em toda a textura das coisas, um
padrão do qual tudo e todos faziam parte; e a tecer o padrão havia
um Poder; e esse Poder era o que chamamos mais ou menos de
Amor. Percebi que não somos átomos solitários num universo frio,
hostil e indiferente, mas que cada um de nós está ligado a um
ritmo, do qual podemos estar inconscientes, e que nunca
poderemos realmente conhecer, mas ao qual podemos submeter-

65
nos com confiança e sem reservas.

J. S.

Estava assentado em minha cama, quando, subitamente, vi-


me no meio dos trilhos de um comboio, e à medida que percorria
esses trilhos, via a cidade à direita. De repente, meu pé direito sai
do trilho e bate no solo e olho meu pé para ver o que se passava;
quando olho minha perna direita, atraído por não sei o que,
encontro-me, subitamente, diante de uma cena dantesca: uma
floresta extraordinária, na qual os sentidos do homem não tinham
mais razão de ser – a lógica se tornava ilógica. Assim, sem que
fosse necessário olhar, via tudo o que estava em torno de mim
desmoronar e se fechar; via as folhas no chão; sentia-as ceder, mas
não havia nenhum som; sentia os galhos das árvores elevados
balançando ao vento; pressentia-os mas não os sentia; a copa das
árvores se confundia com o horizonte; o silêncio era absoluto. A
uma certa distância, vi um homem e uma mulher, assentados, de
costas para mim; tive o pressentimento de que me viam, assim
como pressentia que estava lá para ser apresentado a alguém. De
súbito, vi-me nos trilhos; eram duas dimensões diferentes; uma
caracterizada pela cidade, a outra dimensão caracterizada por esta
visão e, agora, reunida na minha visão como se fosse uma só
realidade. Senti-me assentado, de novo, na cama, vestido, como se
nada tivesse se passado. Eram três horas da tarde. A experiência
durou apenas algum segundos; mas tenho a impressão de que
vários séculos se passaram. Durante todo o dia, senti uma paz
indescritível e um amor infinito por todas as coisas e pessoas. Esta
é a descrição de minha primeira experiência. Nunca falei disso a
ninguém porque, na minha lógica pessoal, não encontrei nenhuma
explicação para essa experiência de cuja certeza não tenho
nenhuma dúvida – tratava-se de algo superior à vida de todos os

66
dias; tinha medo que pensassem que era fruto de uma imaginação
muito fértil. A partir dessa experiência, comecei a diagnosticar as
doenças à distância, a ter intuições quanto a medicamentos que
minha formação médica não podia aceitar e que salvaram várias
vidas; previ, contra toda lógica, várias mortes que não pude evitar
apesar da intervenção de colegas. Não são acontecimentos
quotidianos; mas quando acontecem nunca erram.

Santa Teresa de Ávila

Enquanto orava, pareceu-me ou senti, para dizer o mínimo,


uma vez que com os olhos do corpo ou da alma nada via, que
Cristo estava ao meu lado; ele parecia andar sempre ao meu lado;
não era uma visão imaginária, mas não vi de que maneira ele
estava presente; mas estando sempre do lado direito, senti-o de
maneira muito clara, e que era testemunha de tudo o que eu fazia;
eu o via e sentia com clareza, embora não com os olhos do meu
corpo e da minha alma; parecia ser como uma pessoa que está às
escuras e não vê outra que lhe está próxima, ou então que seja
cega. Tem alguma semelhança com isso, mas não muita, porque
nesses casos o sente com os sentidos, ou o ouve falar, ou o abana,
ou o toca. Mas aqui neste caso não há nada disso, nem há
escuridão.

O como é esta que chamam união e o que é, eu não sei


explicar. Na teologia mística se explica. Eu não saberei nomear os
vocábulos, nem sei entender o que é mente, tampouco que
diferença têm alma ou espírito. Tudo me parece uma coisa só. Se
bem que, às vezes, a alma sai de si mesma, à maneira de uma
fogueira que está ardendo e com chamas e, às vezes, essa fogueira
cresce com ímpeto. Essa chama sobe muito acima da fogueira,
mas não por isso é uma coisa diferente, mas sim a mesma chama

67
que está na fogueira. Isso os senhores entenderão – pois eu não sei
dizer melhor – com sua erudição.

Nesses arrebatamentos parece que a alma não anima o corpo


e assim se sente muito faltar o calor natural dele. Vai esfriando,
ainda que com enorme suavidade e deleite. Aí não adianta nada
resistir. Muitas vezes sem o pensamento prevenir, nem ser de
nenhuma ajuda, vem um ímpeto tão acelerado e forte que vemos e
sentimos levantar-se essa nuvem ou essa águia poderosa e colher-
nos com suas asas. E digo que compreendemos e nos vemos ser
levados e não sabemos para onde. Porque ainda que seja com
deleite, a fraqueza de nossa natureza faz ter medo no começo. E é
necessária uma alma determinada e valorosa para arriscar tudo,
venha o que vier, e deixar-se nas mãos de Deus e ir aonde nos
levarem de bom grado. Porque levam, ainda que apesar de nós.

Aconteceu-me uma ignorância no princípio, pois não sabia


que Deus estava em todas as coisas. E como me parecia estar tão
presente, parecia-me impossível. Deixar de acreditar que estava ali
eu não podia, por me parecer que havia percebido quase com
clareza estar ali sua presença própria. Os que não tinham erudição
me diziam que ele estava só por meio da graça. Eu não podia
acreditar, porque, como disse, parecia estar presente e assim ficava
aflita. Um grande letrado da Ordem do glorioso são Domingos me
tirou essa dúvida, pois me disse estar presente e como se
comunicava connosco, de modo que me consolou muito.

Na oração da união, a alma está plenamente desperta no que


diz respeito a Deus, mas inteiramente adormecida no que concerne
a este mundo e a si mesma. No breve espaço de tempo que dura a
união, ela está, por assim dizer, privada de todo sentimento e,
mesmo que o quisese, ver-se-ia incapaz de pensar no que quer que

68
fosse. Por isso não precisa empregar nenhum artifício de forma a
embargar o uso do seu entendimento: ela permanece tão
impressionada com a inatividade que ela não sabe o que ama, nem
como ama, nem o que quer. Em suma, ela está completamente
morta para as coisas deste mundo e vive tão só em Deus. Nem
mesmo sei se nesse estado lhe sobeja vida suficiente para respirar.
Parece-me que não; ou, pelo menos, se respira, não tem
consciência disso. Seu intelecto gostaria de compreender alguma
coisa do que se passa dentro dela, mas tem agora tão pouca força
que não pode agir de maneira alguma. Analogamente, uma pessoa
que tem um desmaio profundo parece estar morta. Assim Deus,
quando ergue uma alma para unir-se a ele, suspende a ação natural
de todas as suas faculdades. Ela não vê, não ouve, não
compreende, enquanto está unida a Deus. Mas esse tempo é
sempre curto, e parece até mais curto do que é. Deus se estabelece
no interior da alma de tal maneira que, quando ela o toma em si,
lhe é totalmente impossível duvidar de que esteve em Deus e Deus
nela. Essa verdade permanece tão fortemente impressa nela que,
ainda que se passem muitos anos sem que o estado se repita, ela
nem pode esquecer o favor que recebeu, nem duvidar da sua
realidade. Se vós, não obstante, perguntardes como é possível que
a alma veja e compreenda que esteve em Deus, pois durante a
união não teve vista nem entendimento, replico que ela não o vê
na ocasião, mas que o vê claramente mais tarde, depois de haver
tornado em si, não por alguma visão, senão pela certeza que fica
com ela e que só Deus pode dar-lhe. Mas como, insistireis,
podemos ter essa certeza a respeito do que não vemos? Confesso-
me incapaz de responder a tal pergunta. Esses são os segredos da
onipotência de Deus, que não me cabe penetrar. A única coisa que
sei é que estou dizendo a verdade; e jamais acreditei que alguma
alma que não possua essa certeza tenha estado realmente unida a
Deus.

69
Estando uma noite tão mal que queria me dispensar de ter
oração, peguei um rosário para me ocupar vocalmente, não
procurando recolher a inteligência, ainda que, no exterior,
estivesse recolhida num oratório. Quando o Senhor quer, pouco
adiantam esses esforços. Estive assim bem pouco tempo e veio-me
um arrebatamento de espírito com tanto ímpeto que não deu para
resistir a ele. Parecia-me estar posta no céu, e as primeiras pessoas
que vi ali foram meu pai e minha mãe. E vi tão grandes coisas —
em tão pouco tempo como o que levaria para dizer uma Ave-Maria
— que fiquei bem fora de mim, parecendo-me muito excessiva
dádiva. Isso de ser tão pouco tempo, pode ser que tenha sido mais,
mas pareceu muito pouco. Tive medo de que fosse alguma ilusão,
embora não me parecesse. Quisera eu poder fazer entender algo da
menor parte do que eu entendia. E, pensando como poderia ser,
acho impossível. Porque só a diferença que há desta luz que
vemos para a que lá se mostra, sendo tudo luz, não há
comparação. Porque a claridade do sol parece uma coisa muito
esmaecida. Enfim, a imaginação — por mais sutil que seja — não
alcança pintar ou desenhar como será essa luz nem nenhuma coisa
das que o Senhor me fazia perceber com um deleite tão supremo
que não se pode dizer, porque todos os sentidos regozijam-se em
tão alto grau e suavidade, que não se pode exaltar o bastante e,
assim, é melhor não dizer mais nada. Depois, quisera ela ficar
sempre e não voltar a viver, porque foi grande o desprezo que me
ficou de tudo aqui. Parecia-me lixo, e vejo eu como nos ocupamos
baixamente, os que nos detemos nisso. Isso é uma grande
soberania para a alma. Tão grande que eu não sei se entenderá
quem não a possui. Porque é o próprio e natural desapego, porque
é sem esforço nosso. Deus faz tudo, pois mostra Sua Majestade
essas verdades de maneira que ficam tão gravadas que se vê
claramente que não poderíamos por nós mesmos, em tão pouco

70
tempo, adquiri-las daquela maneira. Fiquei também com pouco
medo da morte, de quem eu sempre tive muito medo. Agora me
parece uma coisa facílima para quem serve a Deus, porque num
momento a alma se vê livre desse cárcere e em descanso. Pois este
levar Deus o espírito e mostrar-lhe coisas tão excelentes nesses
arrebatamentos parece-me que se assemelha muito ao que
acontece quando uma alma sai do corpo, pois num instante se vê
em todo esse bem. Deixemos de lado as dores de quando se
arranca a alma, pois deve-se fazer pouco caso delas. E os que, de
verdade, amarem a Deus e tiverem dado adeus às coisas desta
vida, mais suavemente devem morrer. Também me parece que foi
de muito proveito para reconhecer nossa verdadeira terra e ver que
somos peregrinos aqui. E é uma grande coisa ver o que há lá e
saber onde havemos de viver. Porque se alguém tem que ir viver
assentado numa terra, é de grande ajuda, para aguentar o trabalho
do caminho, ter visto a terra onde há de ficar muito descansado. E
também para prestar atenção nas coisas celestiais e procurar que
nossa conversa seja sobre lá, faz-se com mais facilidade. E me
acontece às vezes ser os que me acompanham e aqueles com quem
me consolo os que eu sei que vivem lá. E acontece parecer-me
aqueles os vivos, e os que aqui vivem, tão mortos, que todo
mundo me parece que não me faz companhia, especialmente
quando tenho aqueles ímpetos. Tudo me parece sonho, o que vejo
— e que é uma brincadeira — com os olhos do corpo. O que eu já
vi com os olhos da alma é o que ela deseja e, quando se vê longe,
isso é o morrer. Enfim, é enorme a dádiva que faz o Senhor àquele
a quem dá semelhantes visões, porque ajuda muito, e também a
carregar uma pesada cruz, porque tudo não a satisfaz, tudo lhe
bate no rosto. E se o Senhor não permitisse que às vezes se
esquecesse, mesmo que volte a se recordar, não sei como se
poderia viver.

71
Estando uma vez em oração, mostrou-se a mim muito
rapidamente como se vêem em Deus todas as coisas e como as
tem todas em si. Foi sem que eu visse uma coisa formada, mas foi
com toda a clareza. Saber escrever sobre isso não sei, mas ficou
muito gravado na minha alma e é uma das grandes dádivas que o
Senhor me fez e das que mais me fizeram embaraçar-me e
envergonhar-me, lembrando-me dos pecados que cometi. Pareceu-
me, digo já sem poder me firmar em nada, que não vi nada. Mas
algo se deve ver, já que eu poderei fazer uma comparação. Mas é
por um modo tão sutil e delicado que o entendimento não deve ser
capaz de alcançar. Ou eu não sei me entender nessas visões que
não parecem imaginárias e em algumas delas algo de imagem
deve haver. Mas como ocorrem no arrebatamento, as potências
não sabem depois dar forma ao modo como o Senhor mostra algo
ali e quer que desfrutemos. Digamos ser a Divindade como um
diamante muito claro, muito maior que o mundo todo, ou um
espelho, à maneira do que falei da alma na outra visão. Só que é
de uma forma tão mais elevada que eu não saberei dar o devido
valor. E tudo o que fazemos se vê nesse diamante, sendo de uma
maneira que ele encerra tudo em si, porque não há nada que saia
fora dessa grandeza. Coisa espantosa foi para mim em tão breve
tempo ver tantas coisas juntas aí nesse claro diamante. E
tristíssima, cada vez que me lembro de ver que coisas tão feias se
mostravam naquela limpeza de claridade, como eram os meus
pecados. E assim é que, quando me lembro, eu não sei como
consigo levar. E fiquei então tão envergonhada que não sabia onde
me enfiar. Para que se lembrem de que não são ocultos, e que com
razão se incomoda Deus, uma vez que acontecem tão na presença
de Sua Majestade e tão desrespeitosamente nos comportamos
diante dele!

Swami Muktananda

72
Minha meditação, de súbito, tornou-se mais intensa. Minha
visão se fixou no alto. Enquanto eu contemplava a minúscula
pérola azul, ela se pôs a aumentar de tamanho, difundindo seu
brilho azul em todas as direções. Todo o espaço, da terra ao céu,
foi iluminado. Não era mais uma pérola; ela se havia ampliado até
se tornar a luz infinita. Essa luz foi descrita nos textos sagrados,
pelos videntes da verdade última, como a luz da consciência pura.
Eu vi realmente o universo emanar dessa luz em expansão, como
nuvens de fumaça emanam de um fogo. O cosmos me apareceu na
luz consciente e a luz consciente no cosmos, como fios num tecido
e o tecido nos fios. Assim como uma semente se transforma em
árvore, com seus ramos, folhas, flores e frutos, também a própria
consciência pura, em seu ser próprio, se transforma e torna-se
todas as criaturas. A luz consciente apresentava-se a mim
celestialmente bela; eu a sentia vibrar, cálida, de todos os lados,
dentro, fora, em cima, em baixo – felicidade suprema envolvendo
tudo. Meus olhos estavam abertos e, no entanto, eu estava em
meditação. Como o mergulhador que afunda na água e se vê
cercado de água, apenas água, eu estava completamente envolvido
nessa luz consciente. Naquele momento, o universo se dissipou;
tudo estava banhado nas ondas resplandecentes dessa luz. Apenas
resplandecia uma glória de luz sem nome nem forma.

Simone Weil

Num momento de intensa dor física, enquanto me esforçava


para amar, mas sem desejar dar nome a esse amor, senti, sem estar
de forma alguma preparada, uma presença mais pessoal, mais
certa, mais real do que a de um ser humano, apesar de inacessível
ao sentido e à imaginação, e parecia o amor que irradia o sorriso
mais terno de alguém que amamos. Daquele momento em diante,

73
o nome de Deus e o nome de Cristo encontram-se cada vez mais
irresistivelmente misturados com os meus pensamentos. O
resultado foi que a quantidade irredutível de ódio e repulsa que
acompanha o sofrimento e a aflição recaiu inteiramente sobre
mim. E a quantidade era muito grande, porque o sofrimento em
questão estava localizado na raiz de cada pensamento, sem
exceção.

Foi durante uma dessas recitações que o próprio Cristo


desceu e tomou posse de mim. Em minhas argumentações sobre a
insolubilidade do problema de Deus, nunca havia previsto a
possibilidade disso, de um contato real, pessoa a pessoa, aqui em
baixo, entre um ser humano e Deus. Eu tinha vagamente ouvido
falar de coisas desse tipo, mas nunca acreditei nelas. Além disso,
nesta repentina possessão de mim por Cristo, nem meus sentidos
nem minha imaginação tiveram qualquer participação; apenas
senti no meio do meu sofrimento a presença de um amor, como o
que se lê no sorriso de um rosto amado. Deus em sua misericórdia
impediu-me de ler os místicos, de modo a ficar evidente para mim
que eu não havia inventado esse contato absolutamente
inesperado.

Eu recitava a oração em grego todos os dias antes do


trabalho, e a repetia muito na vinha. Desde aquela época que tenho
o hábito de a recitar uma vez a cada manhã com atenção absoluta.
Se durante a recitação minha atenção divaga ou adormece, ainda
que por pouco, começo novamente até a concluir com uma
atenção absolutamente pura. O efeito dessa prática é
extraordinário e sempre me surpreende, pois, embora a
experimente a cada dia, ela supera a minha expectativa a cada
repetição. Às vezes, as primeiras palavras arrancam meus
pensamentos do meu corpo e os transportam para um lugar fora do

74
espaço onde não há perspectiva nem ponto de vista. A infinidade
das extensões comuns de perceção é substituída por uma
infinidade do segundo ou às vezes do terceiro grau. Ao mesmo
tempo, preenchendo cada parte desse infinito do infinito, há o
silêncio, um silêncio que não é ausência de som, mas que é objeto
de uma sensação positiva, mais positiva que a do som. Ruídos, se
houver, só chegam a mim depois de atravessar esse silêncio. Às
vezes, também, durante esta recitação, ou em outros momentos,
Cristo está comigo pessoalmente, mas a sua presença é
infinitamente mais real, mais comovente, mais clara do que na
primeira vez em que se apossou de mim.

Deus é pura beleza. Isso é incompreensível, pois a beleza, por


sua própria essência, tem a ver com os sentidos. Falar de uma
beleza impercetível deve parecer um mau uso da linguagem para
quem tem algum senso de exatidão, e com razão. A beleza é
sempre um milagre. Mas o milagre é elevado ao segundo grau
quando a alma recebe uma impressão de beleza que, embora esteja
além de toda perceção dos sentidos, não é abstração, mas real e
direta como a impressão causada por uma canção no momento em
que chega aos nossos ouvidos. Tudo acontece como se, por um
favor milagroso, nossos próprios sentidos tivessem sido
conscientizados de que o silêncio não é a ausência de sons, mas
algo infinitamente mais real do que os sons, e o centro de uma
harmonia mais perfeita do que qualquer coisa que uma
combinação de sons pode produzir. Além disso, existem graus de
silêncio. Há um silêncio na beleza do universo que é como um
ruído quando comparado com o silêncio de Deus.

Abre o portão pois queremos ver os pomares e beber das


fontes frescas onde a lua deixa o seu rastro. Esta longa estrada está
escaldante e é hostil com os estranhos. Vagamos sem

75
conhecimento e sem conseguir encontrar um lugar para nós.
Queremos ver as flores. Estamos tão sedentos aqui. Esperando e
sofrendo, estamos agora diante do portão, e se for preciso, vamos
abri-lo com os nossos golpes. Pressionamos e empurramos, mas
não conseguimos alterar o seu peso. Devemos definhar, ser
pacientes e observar em vão. Olhamos para o portão, bem
fechado, inquebrável. Fixamos nele o nosso olhar; atormentados,
choramos; sobrecarregados pelo peso do tempo, olhamos para ele
imóvel. O portão está ali diante de nós; de nada serve a vontade. É
melhor perder a esperança e ir embora. Jamais entraremos.
Estamos cansados de olhar para ele. Quando o portão se abriu,
tanto silêncio veio que nenhum pomar ou flor apareceu à nossa
vista, apenas a vasta extensão de vazio e luz, que encheu nossos
corações ao irromper à vista, e banhou nossos olhos quase cegos
de poeira.

Chefe Sioux Cervo Negro

Eu estava de pé na montanha mais alta, e abaixo de mim, ao


meu redor, encontrava-se o arco completo do mundo. E enquanto
eu pernanecia lá, de pé, vi mais do que sou capaz de dizer e
compreendi mais do que vi; pois eu via de maneira sagrada as
formas de todas as coisas no Espírito e a forma de todas as formas
tais como elas devem viver juntas como um único ser. E eu vi que
o arco sagrado de meu povo era um dos numerosos arcos que
formavam um círculo, tão amplo quanto a luz do dia e a luz das
estrelas, e em seu centro crescia uma poderosa árvore florida para
abrigar todas as crianças de uma só mãe e de um só pai. E vi que
isso era sagrado. Então, enquanto estava lá de pé, dois homens
chegavam do leste, a cabeça à frente como flechas em pleno vôo, e
entre eles surgiu a estrela da aurora. Aproximaram-se, deram-me
uma erva e declararam: “Com isto sobre a terra poderás incumbir-

76
te de qualquer coisa e realizá-la.” Era a erva da estrela da aurora, a
erva da compreensão, e eles me pediram que a deixasse cair sobre
a terra. Eu a vi cair, e quando ela atingiu o solo criou raízes,
cresceu e floresceu, quatro flores num caule, uma azul, uma
branca, uma escarlate e uma amarela, e os raios que originavam
espalharam-se em direção aos céus de tal forma que todas as
criaturas os viram e em lugar algum havia escuridão.

Friedrich Nietzsche

Uma tarde, caminhando pelo bosque em direção a Sils-Maria,


Nietzsche sentou-se junto de uma rocha, hoje dedicada à sua
memória, não muito distante do lugar chamado Surléi. Foi ali que
ele se sentiu tomado de êxtase. Nietzsche teve a visão do eterno
retorno. Em suas anotações, ele a introduz da seguinte maneira:
“Aconteceu a 6000 pés para além do homem e do tempo.” Ele
prossegue: “O mundo é animado por um movimento cíclico, que
não tem fim; os elementos que o compõem são de número infinito;
o número de combinações de que são capazes é igualmente
infinito; portanto, cada instante está destinado a voltar.” Eis
Nietzsche, convalescendo de longos sofrimentos, sentado à
sombra dessa rocha, visitado pelo êxtase. Mais tarde, ele faria
referência ao conceito de revelação, ecoando a sua experiência: “O
conceito de revelação, no sentido de algo repentino, com certeza e
sutileza indizíveis, torna-se visível, audível, algo que sacode e nos
leva ao fundo das coisas. Um êxtase cuja terrível tensão às vezes
se descarrega numa torrente de lágrimas.” Após a experiência,
Nietzsche desfrutou de sete anos de grande criatividade e escreveu
algumas de suas obras filosóficas mais lúcidas e perspicazes.

Marcel Proust

77
Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os
farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se
passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer
delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me
tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os
seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como
opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes,
essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia
medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa
alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do
biscoito, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da
mesma espécie. De onde vinha? Que significava? Na verdade, a
criatura que então saboreava em mim essa impressão, saboreava-a
naquilo que ela possuía em comum entre um dia antigo e o atual,
no que possuía de intemporal, era uma criatura que só aparecia
quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado,
podia achar-se no único ambiente em que conseguiria viver,
desfrutar da essência das coisas, isto é, fora do tempo. Isto
explicava por que minhas inquietações acerca da minha morte
teriam cessado no momento em que eu reconhecera o gosto do
bolinho, pois nesse instante a criatura que eu fora era um ser
intemporal, por conseguinte despreocupado das vicissitudes do
futuro. Desde que um ruído, um cheiro, já ouvido ou aspirado
antes, o sejam de novo, ao mesmo tempo no presente e no
passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, logo a
essência permanente e em geral oculta das coisas se libera, e nosso
verdadeiro eu, que às vezes parecia morto há muito tempo, mas
não o estava de todo, desperta e anima ao receber o alimento
celeste que lhe trazem. Essa contemplação, embora de eternidade,
era fugaz. E, contudo, sentia que o prazer que ela proporcionava à
minha vida, em raros intervalos, era o único fecundo e verdadeiro.

78
André Frossard

Não digo que o céu se abre. Não se abre, projeta-se,


subitamente se alça, silenciosa fulguração, dessa insuspeitável
capela na qual estava misteriosamente incluso. Como descrevê-lo
com estas palavras demissionárias, que recusam seus serviços e
ameaçam interceptar meus pensamentos para consigná-los ao
armazém das quimeras? O pintor ao qual fosse dado entrever cores
desconhecidas, com que cores as pintaria? É um cristal
indestrutível, de uma infinita transparência, de uma luminosidade
quase insustentável (um grau a mais me aniquilaria) e talvez azul,
um mundo, outro mundo, de um brilho e uma densidade que
devolvem o nosso às sombras frágeis dos sonhos inacabados. Ele é
a realidade, ele é a verdade, eu a vejo na margem obscura em que
estou retido. Há no universo uma ordem, e no seu ápice, para lá
desse véu de bruma resplandecente, a evidência de Deus, a
evidência feita presença e a evidência feita pessoa daquele que um
momento antes eu teria negado, que é suave de uma suavidade que
nenhuma outra iguala, que não é a passiva qualidade às vezes
designada por esse nome e sim uma suavidade ativa, explosiva,
sobrepassando toda violência, capaz de despedaçar a pedra mais
dura e, mais duro do que a pedra, o coração humano.

Sra. D. K.

Eu estava num jardim num dia de primavera; o ar parecia


tremer de forma estranha, como se a sequência do tempo comum
se tivesse expandido numa dimensão, e tomei consciência de que
alguma coisa desfavorável ia acontecer, se não naquele dia, muito
em breve. Querendo preparar-me de algum modo para isto,
dupliquei meu costumeiro tempo de sentar para meditar e estudei
os livros budistas até tarde da noite. Poucas noites mais tarde,

79
depois de reler com cuidado o Livro Tibetano dos Mortos e de
tomar meu banho, sentei-me diante de uma pintura de Buda e
escutei tranquilamente, à luz da vela, o movimento lento do
Quarteto em Lá menor de Beethoven – uma expressão profunda de
auto-renúncia do homem – e depois fui para a cama. Na manhã
seguinte, logo depois da refeição, de repente senti como se
estivesse sendo atingida por um raio de luz e comecei a tremer.
Subitamente todo o trauma do meu difícil nascimento acorreu à
minha mente. Como uma chave, abriu quartos escuros de
ressentimentos secretos e medos desconhecidos, que fluíram de
mim como venenos. Lágrimas correram e me enfraqueceram de tal
forma que tive de deitar-me. Apesar disto, uma profunda alegria
estava presente. Devagar meu foco mudou: “Eu estou morta! Não
há nada para me chamar de eu! Nunca houve eu! É uma alegoria,
uma imagem mental, um padrão pelo qual nada foi jamais
modelado!” Fiquei tonta de felicidade. Objetos sólidos apareciam
como sombras, e tudo que meus olhos encontravam tinham uma
beleza radiante. Estas palavras só podem referir-se ao que me foi
vividamente revelado nos dias que se seguiram: o mundo como é
apreendido pelos sentidos é o menos importante numa vasta
geometria da existência. As palavras são embaraçosas e primitivas
quando procuram sugerir a verdadeira obra multidimensional de
um vasto complexo de forças. Não há realmente nada para
conhecer, nada que possa ser conhecido. O mundo físico é uma
infinitude de movimento, tempo e experiência. Mas
simultaneamente de silêncio e de vazio. Não há nada para se fazer:
simplesmente ser, é o ato mais imensamente total. Olhando para
os rostos, vejo alguma coisa da longa cadeia de sua existência
passada e, às vezes, algo do futuro. Cada coisa tem sua própria
música; entretanto, debaixo desta variedade, elas se confundem
numa inexprimível e vasta unidade. Sinto um amor que não tendo
objeto, se pode chamar melhor de afetuosidade. Mas minhas

80
antigas reações emocionais interferem ainda grosseiramente nas
manifestações dessa afetuosidade sumamente gentil e
desembaraçada. Sinto uma consciência que não é eu mesma nem
deixa de ser eu mesma, e que me está protegendo ou levando em
direções que colaboram para meu próprio crescimento e
maturidade.

Sandrananda

Meu Senhor Buda solicitou ao irmão Vaustila e a mim que


concentrássemos nossa atenção na ponta de nosso nariz, e comecei
a notar, depois de três semanas, que minha inspiração e minha
expiração pelo nariz assemelhavam-se a uma fumaça saindo de
uma chaminé. Ao mesmo tempo, meu corpo e meu espírito
ampliaram-se interiormente e pude ver o mundo inteiro tornar-se
claro e transparente como uma esfera de cristal. Mais tarde, a
aparência de fumaça proveniente do nariz desapareceu
gradualmente e minha respiração tornou-se luminosa e brilhante.
Minha inspiração e minha expiração ampliaram-se e pareciam
propagar-se por todo o universo.

Rembrandt

Uma emoção me invade, a mesma de todos os dias, quando


mergulho na contemplação, no segredo da luz. É meu momento de
oração. Todos os dias, de manhã e à noite, quando um verso se
ilumina, quando o universo se apaga, um delírio sagrado se
apodera de mim. Meu corpo se imobiliza. Meus olhos se ampliam
mais e mais. Ao meu redor, há uma dança contínua e turbilhonante
de raios coloridos. Eles se colocam sobre o chão, sobre minha
mão, a parede, cada objeto. E o chão, a minha mão, a parede, o
objeto, por sua vez, começam a fremir, a tremer, a vibrar. Eles

81
também estão tomados de uma histeria luminosa. Minha mão não
é mais feita de carne humana, imensuravelmente granulosa,
mescla de um cinza descorado e um amarelo sujo. Ela se torna
uma praia enrugada e rósea, onde brincam miríades de tons sobre
os quais corre uma espécie de rio de ouro. Na sombra das árvores
ou nos cantos mais escuros do aposento, a luz se insinua,
conquista, explode. Sob sua pressão, porções de sombra se
iluminam pouco a pouco como versos brilhantes se preparando
para nascer. Depois, aos poucos, a sombra se enche de um calor
vivo. Resta a sombra, mas sombra que respira e convida. Ela é um
ventre em trabalho. Prisioneiros da sombra, uma multidão de
corpúsculos se agitam, captam grãos de luz, apoderam-se deles,
fazem-nos faiscar, depois voltam ao seu nada e, em seguida,
retornam à vida ardente e flamejante. E é um combate que não tem
interrupção, onde se podem sentir, na sombra que queima, dois
exércitos em terrível luta, onde milhares de grãos de poeira
passam sucessiva e indefinidamente, no mesmo segundo, da morte
mais negra à vida mais brilhante. Sobre cada coisa difunde-se um
fluxo de luminosidade. De meus olhos, parece-me, verte-se um
outro fluxo dourado. Já não sei mais se a irradiação vem das
coisas ou se ela nasce de meu olhar. Estou mergulhado num banho
de sol. Em toda parte e por sobre tudo, chove luz. Entre mim e a
natureza, há uma cortina transparente de gotículas douradas. Uma
correnteza de mel líquido ensolarado, uma imensa poeira de
estrelas. E eis que este rio dourado torna-se o fundo ornamental de
tudo o que quero pintar. Ele impregna tudo com sua chama quente,
enriquecendo-se ao mesmo tempo com os tons próprios de cada
corpo, de cada sentimento que nasce do próprio objeto. Luz, luz,
alegria e tortura de minha vida! Glória à tua embriaguez e ao teu
reino fascinante. Chove luz! Chove luz! Tu me levaste tão alto
quanto a Alighieri, no esplendor dos Paraísos que os homens
absolutamente não conhecem. Então eu te bendigo, prosternado na

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mais escura de tuas sombras ardentes; eu te bendigo, tu, minha
esposa, tu, minha alma: luz!

Mansur al Hallaj

Meu olhar, com o olhar da ciência, seguiu o puro segredo do


meu pensamento; um brilho surgiu, em minha consciência, mais
tênue do que a compreensão de uma simples ideia, e eu rasguei a
onda do mar da reflexão, deslizando ali como uma flecha. Meu
coração palpitou, emplumado de desejo, carregado nas asas do
meu desígnio, elevando-se para Aquele que, se sou questionado,
mascarei sob enigmas, sem nomeá-lo. No final da elevação, tendo
ultrapassado todos os limites, vagando já nas planícies da
Proximidade, e, olhando para ele então como num espelho de
água, não pude ver além dos traços do meu rosto. Avancei para
apresentar a minha submissão a ele, completamente abandonado, e
o amor já havia gravado dele em meu coração, com o ferro quente
do desejo, um selo. E a intuição da minha personalidade me
abandonou, e fiquei tão perto dele que esqueci meu nome. A partir
de agora não há mais nenhuma explicação intermediária, nenhuma
demonstração, nenhum milagre entre mim e Deus para me
convencer. Aqui está a explicação transfigurante dos fogos divinos
que brilham em mim, brilhando como uma pérola irrefutável. A
prova corresponde a ele, pertence a ele, está nele e é para ele; na
verdade, é ele quem ali encontramos, como uma ciência em sua
demonstração.

Gavampati

No curso da longa experiência durante a qual me concentrei


sobre a natureza dos gostos da língua, fui levado a constatar que
não havia nenhuma espécie de matéria nem qualquer espécie de

83
essência, e subitamente, por uma iluminação do espírito, atingi a
perfeita liberação de todos os apegos e contaminações, de tal
forma que, interiormente, fiquei livre de todos os conceitos
arbitrários, tanto daqueles do corpo como do espírito, e,
exteriormente, fiquei livre do apego a todas as coisas mundanas –
ou seja, eu era capaz de viver longe de todos os problemas dos três
mundos. Senti-me como um pássaro que tivesse fugido dos limites
de sua gaiola.

Blaise Pascal

O ano da graça de 1654, segunda-feira, 23 de Novembro, dia


de São Clemente. A partir de aproximadamente dez e meia da
noite, até aproximadamente meia-noite e meia. Fogo! Deus de
Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, não dos filósofos nem dos
sábios. Certeza! Alegria, alegria, prantos de alegria e paz! Deus de
Jesus Cristo, meu Deus e teu Deus. Teu Deus será meu Deus.
Esquecido do mundo e de todos, exceto de Deus. Ele só é
encontrado pelos meios ensinados no Evangelho. Grandeza da
alma humana. Alegria, lágrimas de alegria. Não me separo de ti.
Eles me deixaram para trás, eu, uma fonte de água viva. Meu
Deus, não me deixes. Que eu não seja separado de ti, eternamente.
É vida eterna que eles devam conhecer a ti, o único verdadeiro
Deus e aquele a quem enviaste, Jesus Cristo. Separei-me dele;
fugi, renunciei, crucifiquei-o. Que eu não esteja para sempre
separado dele. Só se é salvo pelo ensinamento do Evangelho.
Doce e total reconciliação. Total submissão a Jesus Cristo e a meu
diretor. Alegria eterna por um dia de prova sobre a terra. Nunca
esquecerei o que me ensinaste. Amém.

Jiddu Krishnamurti

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Surgindo por detrás das colinas, a lua rodeada por uma
nuvem serpentina transformou-se numa forma fantástica. Ela
projetava uma claridade luminosa sobre as colinas, a terra e as
pastagens verdejantes, desaparecendo imediatamente por entre
espessas nuvens escuras que anunciavam chuva. Durante o
passeio, a meditação surgia em plena conversação e no meio da
beleza noturna. De uma profundidade incrível, ela circulava
interior e exteriormente; ela explodia em expansão. Estávamos
conscientes; aquilo chegava; não se pode dizer que estávamos
fazendo a experiência, pois toda experiência é limitada; aquilo
simplesmente surgia. Não havia nenhuma participação nisso; o
pensamento não podia aí tomar parte, pois o pensamento é tão fútil
e mecânico que a emoção não podia estar a isso associada; era
verdadeiramente muito vivo e ao mesmo tempo perturbador para
os dois. Aquilo surgiu de uma profundidade de tal modo
desconhecida que não havia nenhum meio de medi-la. Mas havia
um grande silêncio. Era absolutamente surpreendente e
completamente incomum. As folhas brilhavam intensamente sob a
ação da lua que, em seu movimento em direção ao oeste, inundava
de luz o quarto. Até mesmo os latidos altos dos cães não
perturbavam o silêncio absoluto da noite. Ao acordar, aquilo se
encontrava lá, de uma maneira clara e precisa, e era o despertar
que se revelava necessário e não o sono; estava bem decidido que
era preciso estar consciente do que se passava, atento com plena
consciência de todos os acontecimentos. Adormecido, poder-se-ia
confundir tudo aquilo com um sonho, uma ilusão do inconsciente,
um ardil do cérebro; mas completamente desperto, essa alteração
estranha e desconhecida era uma realidade palpável, um facto e
não uma ilusão ou um sonho. Aquilo tinha a qualidade, se é que
podemos nos exprimir assim, de imponderabilidade e de força
impenetrável. E no repentino despertar, aquilo lá estava. E
juntamente com aquilo surgiu um êxtase inesperado, uma alegria

85
irracional; não havia nenhuma causa para isso, pois isso jamais
fora objeto de uma pesquisa ou de uma busca. Aquele êxtase
estava presente no novo despertar à hora habitual; ele estava lá e
continuou durante um tempo bastante longo.

Karlfried Durckheim

Isto se passou no ateliê do pintor Willi Geiger. Minha futura


esposa, que era sua amiga, abriu ao acaso o Tao Te Ching, e
começou a ler o décimo primeiro aforismo que termina dizendo:
“Mas é o vazio que há neles que faz a natureza do vaso.” E aquilo
foi inesperado. Enquanto o escutava, fui atingido por uma
revelação súbita. O véu se rasgou: eu fora despertado. Eu havia
experimentado aquilo. Tudo o resto era e não obstante não era
mais, era este mundo e ao mesmo tempo transparente para um
outro. Eu mesmo também era e não era a um só tempo. Eu estava
preenchido, capturado. Não obstante, completamente presente.
Feliz e como que vazio de sentimentos, muito distante e todavia
profundamente imerso nas coisas. Eu havia experimentado aquilo
de um modo evidente, como o impacto de um raio, e claro, como
um dia de sol; aquilo, que era totalmente incompreensível. A vida
continuava, a vida de antes, e no entanto já não era a mesma.
Havia a espera dolorosa de mais ser, uma promessa
profundamente sentida. E ao mesmo tempo forças crescendo até o
infinito e a aspiração no sentido de um compromisso – com o quê?
Esse estado excecional durou o dia inteiro e uma parte da noite.
Ele me marcou definitivamente. Eu vivenciara aquilo que através
dos séculos testemunharam muitos homens, que num momento
qualquer de suas vidas tiveram essa experiência. Ela os atingiu
como um relâmpago. Ela os ligou para sempre à corrente da
verdadeira vida. Ou antes, ela lhes tornou percetível a fonte de
uma grande felicidade e ao mesmo tempo de sofrimento que

86
experimentamos quando essa corrente é interrompida. Mas é
também uma experiência inseparável de um compromisso com a
via interior. Repetida depois por várias vezes, embora com menos
força, ela continua a servir de ponto de referência para indicar, a
mim e a outros, a direção acertada de conhecimento e de trabalho.

Henri Le Saux

Eu não sei mais nada, nem de mim, nem do mundo, nem de


Deus, nada além desta luz resplandecente sem raios, sem reflexo,
sem qualquer horizonte onde o olho possa repousar e se avaliar.
Onde tudo é luz, na frente, atrás, em cima, em baixo, mar de
cristal sem limites. Deus é luz demais para nos mantermos diante
dele. Desaparecemos absorvidos por seu manancial.

Dante Alighieri

Dante nasceu em 1265. A sua obra mais famosa, a Divina


Comédia, foi concluída em 1321. É uma suposição plausível que o
livro anterior, Vida Nova, estava sendo escrito no começo da
primavera de 1300 e que, quando a sua experiência ocorreu, esse
livro foi encerrado para dar lugar a uma obra maior a ser então
começada. O Vida Nova termina da seguinte maneira: “Após este
soneto, uma visão maravilhosa me apareceu, na qual vi coisas que
me fizeram resolver não mais falar dessa abençoada Beatriz antes
que pudesse tratá-la mais dignamente. E, para conseguir isto,
estudo ao máximo de minhas forças, como ela bem o sabe. Assim,
se for do agrado Daquele graças ao qual todas as coisas vivem,
que minha vida seja prolongada por alguns anos; espero dizer dela
aquilo que jamais foi dito de mulher alguma.” Dante escreveu a
Divina Comédia após a sua iluminação. Eis alguns exemplos das
coisas que viu: “A glória Daquele que move todas as coisas

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penetra o universo todo e brilha mais numa parte e menos numa
outra. No céu que recebe a maior parte da sua luz eu estive e vi
coisas que aquele que de lá do alto desce não sabe como contar
nem pode fazê-lo.” “Fitar o sol não pude longamente, mas de
repente dia pareceu ser acrescentado ao dia, como se Aquele que
pode fazê-lo tivesse adornado o céu com um outro sol.” “Uma
senhora me apareceu, trajada com a cor da chama viva.” “Beatriz
estava de pé, com seus olhos concentrados nas rodas eternas e nela
fixei meus olhos, do alto desviados. Olhando para ela, tornei-me
interiormente como Glauco se tornou ao provar da erva que o fez
companheiro no mar dos outros deuses. A transhumanização não
pode ser expressa em palavras; portanto, que o exemplo seja
suficiente para aquele a quem a graça reserva a experiência.”
“Olhos ousei fitar na luz eterna, consumando a visão almejada. E
lá na profundeza vi que se interna unido pelo amor, num só
volume, o que pelo universo se espalha.” “E essa luz tal efeito
produzia que deixá-la de ver por outra coisa que fosse me seria
impossível, pois que o bem que é objeto da nossa aspiração todo
está nela, e tudo lá é perfeito, como fora de lá tudo é defeito.”
“Mas, como, a vista olhando se alentava, a imutável essência
parecia mudar, quando só eu me transformava. Na substância
profunda e clara, eu via, da excelsa luz, três círculos discernidos
por três cores de igual periferia, íris de íris, estando um de outro
refletidos, girando, por igual, de um, de outro unidos.” “Aquilo
que eu estava vendo parecia-me um sorriso do universo. Ó alegria!
Ó inefável contentamento!”

Santa Teresa do Menino Jesus

Alguns dias após minha oferenda ao Amor Misericordioso,


comecei no coro o exercício do Caminho da Cruz, quando me
senti subitamente ferida por uma flecha de fogo tão ardente que

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pensei que fosse morrer. Não sei como explicar esse
arrebatamento, não há comparação que possa fazer compreender a
intensidade daquela chama. Parecia-me que uma força invisível
me mergulhava no fogo por completo. Que fogo! Que doçura! Eu
tive vários arrebatamentos de amor, particularmente uma vez,
durante meu noviciado, quando fiquei uma semana inteira bem
longe deste mundo. Não consigo traduzir em palavras, mas
parece-me que eu agia com um corpo emprestado; havia como que
um véu lançado por mim sobre todas as coisas da terra. Mas eu
não era queimada por uma chama real, podia suportar aquelas
delícias sem esperar ver meus vínculos se romperem sob seu peso.
Em contrapartida, naquele dia do qual falo, um minuto, um
segundo mais, minha alma se separaria do corpo. Assim,
encontrava-me novamente na terra, e a sequidão tornou
imediatamente a habitar meu coração!

Marpa

A perceção da verdade foi mostrada por estes sinais: sem


fixação, seja sobre o samsara seja sobre o nirvana, não se
apegando à aceitação ou rejeição em seu ser, sem expectativa de
benefícios provenientes de outros, mente livre de ocupação e
complexidade, não caindo nos quatro extremos, não-meditação e
não-dispersão, livre de pensamento e fala, além de toda e qualquer
analogia. Desde que a experiência destas perceções despontaram,
a mente e os eventos mentais cessaram, o espaço e a perceção são
inseparáveis. Defeitos e virtudes não aumentam nem diminuem.
Bem-aventurança, vazio e luminosidade não cessam;
consequentemente, a luminosidade desponta além do sair ou do
chegar.

São João do Alverne

89
Muitas vezes foi arrebatado aquele frade o qual
primeiramente escreveu estas coisas, entre as quais, uma noite em
que ficara tão elevado e arrebatado em Deus que viu nele, Criador,
todas as coisas criadas e celestiais e terrenas com todas as suas
perfeições e graus e ordens distintas. E então conheceu claramente
como cada coisa criada representava o seu Criador, e como Deus
está sobre e dentro e fora e ao lado de todas as coisas criadas. E
conheceu depois um Deus em três pessoas e três pessoas num
Deus, e a infinita caridade a qual fez o filho de Deus se encarnar.
E finalmente conheceu naquela visão como não há outra via pela
qual a alma possa ir a Deus e ter a vida eterna, senão pelo Cristo
bendito, o qual é caminho, verdade e vida da alma.

Jacob Boehme

O portal me foi aberto e num quarto de hora vi e aprendi mais


do que se tivesse passado muitos anos consecutivos numa
universidade, coisa que admirei extremamente, e em razâo disto
dirigi meu louvor a Deus. Pois vi e conheci o ser de todos os seres,
o abismo e a eterna geração da Santíssima Trindade, o descenso e
a origem do mundo e de todas as criaturas, através da sabedoria
divina: conheci e vi em mim mesmo todos os três mundos, isto é,
o divino, o escuro e o mundo externo e visível, e vi e conheci toda
a essência ativa, no mal e no bem, e a origem e a existência destes;
do mesmo modo, a maneira como o ventre fecundo da eternidade
frutificou. De modo que, não só fiquei grandemente maravilhado,
mas também me regozijei em extremo, posto que dificilmente
poderia eu apreender o mesmo na minha exterioridade de homem
e pô-lo por escrito com a pena.

Desde cedo na juventude que me esforcei para conseguir a

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salvação de minha alma e pensei em como poderia herdar ou
possuir o reino dos céus. Encontrando dentro de mim um poderoso
contrário, isto é, os desejos que dizem respeito à carne e ao
sangue, comecei a lutar uma dura batalha contra a minha natureza
corrompida e, com a ajuda de Deus, decidi sobrepujar a herdada
vontade má, derrotá-la, e entrar inteiramente no amor de Deus em
Cristo. Assim, pois, resolvi considerar a mim mesmo como morto
em minha forma herdada, até que o espírito de Deus tomasse
forma em mim, de modo que nele e através dele eu pudesse guiar
minha vida. Isto, entretanto, não me foi possível realizar, mas
continuei firme em minha veemente resolução e lutei uma dura
batalha comigo mesmo. Ora, enquanto estava lutando e
batalhando, ajudado por Deus, uma luz maravilhosa surgiu dentro
de minha alma. Era uma luz totalmente estranha à minha natureza
indisciplinada, mas nela reconheci a verdadeira natureza de Deus e
do homem, bem como a relação entre ambos, coisa que até aqui
jamais tinha compreendido e que jamais teria procurado.

De repente meu espírito irrompeu deveras no mais profundo


nascimento da Genitura da Divindade e ali fui abraçado com amor,
como um noivo abraça sua bem-amada noiva. Mas a grandeza do
triunfo que havia no espírito eu não posso expressar, falando ou
escrevendo; nem pode ela ser comparada a coisa alguma, exceto
àquilo onde a vida é gerada em meio à morte, e é como a
ressureição de entre os mortos. Nessa luz meu espírito de súbito
viu através de tudo e dentro e por todas as criaturas; mesmo nas
ervas e na grama ele conheceu a Deus, quem ele é e como ele é, e
o que sua vontade é; e de repente naquela luz minha vontade foi
movida, por um poderoso impulso, a descrever o ser de Deus. Mas
como eu não podia então apreender os nascimentos mais
profundos de Deus no ser deles nem compreendê-los em minha
razão, passaram-se quase doze anos até que o entendimento exato

91
disso me fosse dado.

Antes da uma hora da madrugada, ele chamou seu filho


Tobias para perto de sua cama e lhe perguntou se não estava
ouvindo uma música bonita; depois pediu que abrisse a porta do
quarto, para que a canção celestial pudesse ser ouvida melhor.
Mais tarde perguntou que horas eram e, quando lhe disseram que o
relógio havia batido duas horas, disse: “Ainda nâo é minha hora;
daqui a três horas será minha hora.” Deu então à sua esposa certas
instruções relativas a seus livros e outras coisas temporais,
dizendo-lhe também que ela não iria sobreviver a ele por muito
tempo (como de facto aconteceu) e, despedindo-se de seus filhos,
disse: “Agora entrarei no Paraíso.” Pediu então a seu filho mais
velho, cujo olhar amoroso parecia impedir que a alma dele se
separasse dos elos do corpo, que o virasse e, com um profundo
suspiro, sua alma entregou seu corpo à terra a que ele pertencia e
entrou no estado mais elevado que nâo é do conhecimento de
ninguém exceto daqueles que o vivenciaram pessoalmente.

Tukaram Maharaj

Quando, pela graça de meu guru percebi o Eu consciente,


extremamente sutil e luminoso, diferente das luzes vermelha,
branca, preta e amarela, o fluido da consciência purificou minha
visão, tomando a divina. A partir de então, as distinções
imaginárias entre dualismo e não-dualismo desapareceram.
Ultrapassei completamente a perceção das diferenças de tempo,
espaço e substância. (Na verdade, não existe espaço, nem tempo
nem substância. As diferenças não têm realidade.) Minha Alma
apresentou-se como o universo, e o universo – supostamente
realidade objetiva – apresentou-se como minha Alma. O mundo
exterior nunca é. Somente o Absoluto é. Eu sou ele. Eu obtive dele

92
a revelação direta. Na verdade, eu sou o Absoluto. Eu, Tukaram,
tornei-me Aquilo que se atinge pela contemplação Vedantina –
“Tu és Aquilo,” também chamado de beatitude transcendente.

Gopi Krishna

O estado de consciência elevado e ampliado, permeado por


uma indizível felicidade, o qual experimentei quando da primeira
manifestação da serpente de fogo em mim, era um fenómeno
interior, de natureza subjetiva, indicando uma expansão do campo
de consciência, ou do eu conhecedor, sem forma, invisível e
infinitamente sutil. A partir da unidade de consciência que eu era
originalmente, dominada pelo ego, e à qual eu estava habituado
desde a infância, eu me expandira repentinamente num círculo de
consciência resplandecente, que se alargava cada vez mais, até que
um máximo fosse atingido: o “eu” continuava a ser o que sempre
fora, mas em lugar de uma unidade constrangedora, limitadora, ele
próprio estava agora cercado de uma esfera de consciência
luminosa de grandes dimensões. À falta de melhor comparação, eu
diria que de minúsculo clarão que era, a consciência em mim se
tornou um vasto lago de luz radiante; o “eu,” completamente
imerso nesse lago, tinha ao mesmo tempo pleno conhecimento do
volume beatificamente resplandecente da consciência ao redor,
tanto próxima quanto longínqua. Para ser mais preciso, havia a
consciência do “eu” ao mesmo tempo que de um campo de
consciência de vasta expansão, existindo simultaneamente,
distintos e, no entanto, sendo apenas um.

Warner Allen

Encantado com a música de Beethoven, fechei os olhos e


observei um brilho prateado que se formou num círculo com um

93
foco central mais brilhante do que o resto. O círculo tornou-se um
túnel de luz proveniente de algum sol distante no coração do Eu.
Fui levado através do túnel com rapidez e suavidade e, à medida
que avançava, a luz passou de prata para ouro. Tive a impressão de
extrair forças de um mar ilimitado de poder e uma sensação de paz
cada vez mais profunda. A luz ficou mais brilhante, mas nunca foi
ofuscante ou alarmante. Cheguei a um ponto em que o tempo e o
movimento cessaram. Na minha lembrança, assumiu a forma de
uma rocha de topo plano, rodeada por um mar de verão, com uma
piscina de areia ao pé. A cena do sonho desaparece e estou agora
absorvido na Luz do Universo, na Realidade brilhando como fogo
com o conhecimento de si mesma, sem deixar de ser um e de mim
mesmo, fundido como uma gota de mercúrio no Todo, mas ainda
separado como um grão de areia no deserto. A paz que ultrapassa
todo o entendimento e a energia pulsante da criação são uma no
centro em meio às condições onde todos os opostos estão
reconciliados.

James Russell Lowel

Tive uma revelação na sexta-feira passada, à noite. Eu estava


em casa de Mary e falava, por acaso, a respeito da presença de
espíritos (da qual, afirmei, tinha frequentemente uma vaga
consciência), quando o Sr. Putnam se travou de razões comigo
acerca de assuntos espirituais. Enquanto eu falava, todo o sistema
se ergueu à minha frente como um vago destino que subia do
Abismo. Nunca, até então, eu sentira tão claramente o Espírito de
Deus em mim e em torno de mim. Dir-se-ia que toda a sala
estivesse repleta de Deus. O ar parecia ondular de um lado para
outro com a presença de Alguma Coisa que eu não sabia o que era.
Falei com a calma e a clareza de um profeta. Não posso contar-
lhes o que foi essa revelação. Ainda não a estudei o suficiente.

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Mas hei de completá-la um dia destes e vocês a ouvirão e lhe
reconhecerão a grandiosidade.

Clérigo Anónimo

Lembro-me da noite e quase me lembro exatamente do lugar,


no topo do morro, em que minha alma se abriu, por assim dizer,
para o Infinito, e os dois mundos, o interno e o externo, pareceram
fundir-se num só. Era o abismo chamando o abismo, o abismo que
a minha própria luta abrira no interior, correspondido pelo
insondável abismo exterior, que se estendia além das estrelas.
Quedei-me a sós com Aquele que me fizera, e toda a beleza do
mundo, e o amor, e a tristeza e até a tentação. Não o procurei, mas
senti a perfeita harmonia do meu espírito com o seu. Desvaneceu-
se o sentido ordinário das coisas à minha volta. Por um momento,
nada ficou além de uma alegria e uma exaltação inefáveis. É
impossível descrever plenamente a experiência. Dir-se-ia o efeito
de uma grande orquestra, quando todas as notas separadas se
fundem numa única harmonia transbordante, que deixa o ouvinte
cônscio de nada mais a não ser de que sua alma está sendo levada
para o alto, quase rebentando de emoção. A perfeita quietude da
noite vibrava por efeito de um silêncio mais solene. A escuridão
tinha uma presença tanto mais sentida quanto menos visível. Eu
não poderia duvidar mais da presença dele ali do que da minha.
Na verdade, senti-me, se possível, o menos real dos dois.

C. S. Lewis

A primeira é ela mesma a lembrança de uma lembrança.


Estando eu de pé ao lado de uma groselheira florida num dia de
verão, de repente surgiu em mim sem aviso, e como que de um
abismo não de anos, mas de séculos, a lembrança daquela

95
manhãzinha na Casa Velha, quando meu irmão trouxe o jardim de
brinquedo até o quarto. É difícil encontrar palavras fortes o
bastante para descrever a sensação que me invadiu; a miltoniana
enorme bem-aventurança do Éden chega perto. Foi, claro, uma
sensação de desejo; mas desejo de quê? Não, certamente, de uma
tampa de lata de biscoitos recheada de musgo, nem mesmo
(embora isto tenha vindo também) do meu próprio passado — e
antes de saber o que desejava, o próprio desejo se desfizera, todo o
vislumbre se dissipara, o mundo voltara à normalidade, ou era
agora só agitado pelo anseio do anseio que acabara de sumir.
Durara só um momento; e em certo sentido tudo o mais que me
acontecera até então era insignificante diante disso. O segundo
lampejo me veio por Squirrel Nutkirr, só por ele, embora eu
adorasse todos os livros de Beatrix Potter. Mas os outros eram
meramente diversão; enquanto esse ministrava o choque, era
perturbação. Perturbava-me com aquilo que só posso descrever
como a Ideia do Outono. Soa fantástico dizer que alguém pode
enamorar-se de uma estação, mas isso muito se assemelha ao que
aconteceu; e, como antes, a experiência foi de desejo intenso. E
então voltei ao livro, não para satisfazer o desejo (pois isso era
impossível), mas para redespertá-lo. E nessa experiência também
surgiu a mesma surpresa e o mesmo senso de incalculável
importância. Era algo bem diferente da vida comum, e mesmo do
prazer comum; algo, como hoje diriam, “de outra dimensão”. O
terceiro lampejo me veio pela poesia. Na época eu gostava muito
da Saga do Rei Olaf de Longfellow: gostava de uma maneira vaga
e superficial, em virtude da história e dos ritmos vigorosos. Mas
então — e bem diferente de tais prazeres, e como uma voz de
regiões muito mais distantes — passei a virar distraidamente as
páginas do livro e acabei descobrindo uma tradução sem rima de
Tegner's Drapa, lendo: “Ouvi uma voz que gritava: Balder, o belo
está morto.” Eu nada sabia sobre Balder; mas instantaneamente fui

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elevado a regiões vastíssimas do céu setentrional, e desejava com
intensidade quase doentia algo que jamais poderá ser descrito
(salvo que é frio, amplo, austero, pálido e distante); e então, como
nos outros exemplos, surpreendi-me exatamente no mesmo
momento, já perdendo o desejo e ansiando que ele voltasse.

Alfred Tennyson

Uma espécie de sonambulismo tive frequentemente, já desde


minha infância, quando fiquei totalmente só. Isto me tem muitas
vezes ocorrido pela repetição do meu próprio nome a mim mesmo,
silenciosamente, até que, de repente, como que da intensidade da
consciência da individualidade, a própria individualidade pareceu
dissolver-se e desvanecer-se num estado de ser ilimitado; e não foi
um estado confuso mas o mais claro dos mais claros, o mais
seguro dos mais seguros, o mais estranho dos mais estranhos,
extremamente além das palavras, em que a morte era uma quase
irrisória impossibilidade, a perda da personalidade (se era isto) não
parecia extinção alguma, mas a única vida verdadeira.

Paul Brunton

De repente, percebi que eu estava sendo esmagado por um


poder desconhecido. Foi então que comecei a orar fervorosamente,
sentindo-me desamparado, humilde, apavorado e perdido. Perdi a
sensação da passagem do tempo. Senti-me separado da realidade
terrena e fiquei tonto ao pensar que havia esgotado a minha
resistência. Então eu desmaiei. Os momentos antes de desmaiar
foram preenchidos com um horror indescritível. Mas logo acordei.
Uma pequena chama de esperança apareceu em meu coração. E
então cresceu e cresceu. Meu primeiro pensamento foi que Deus
estava respondendo às minhas orações. Aos poucos, comecei a

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sentir-me mais próximo das pessoas ao meu redor; mais perto do
que nunca. Algumas horas depois, a confiança gradualmente
retornou a mim e me senti maduro e recém-nascido. A iluminação
parecia ter chegado. Seguiu-se então um sentimento de unidade
com Deus. Parecia saber e compreender muitas coisas que nunca
tinha entendido antes. Meu ego desaparecia e minha felicidade
aumentava a cada momento. Senti que essa fé recém-descoberta
me guiaria em todas as situações possíveis. A Divina Presença
parecia estar muito próxima. Na verdade, eu sabia que estava na
minha verdadeira essência.

William Blake

Este mundo da Imaginação é o mundo da Eternidade; ele é o


seio divino para onde iremos após a morte deste corpo que vegeta.
Este mundo da Imaginação é infinito e eterno, enquanto que o
mundo da Geração, ou da Vegetação, é finito e temporal. Neste
mundo eterno existem as Realidades permanentes de cada coisa
que vemos refletidas neste vidro vegetal da Natureza. Todas as
coisas estão contidas, sob sua forma eterna, no Corpo Divino do
Salvador, a verdadeira Vinha da Eternidade, a Imaginação
humana, que se me apresentou chegando sob forma de Julgamento
entre seus Santos, e rejeitando para longe o Temporal para que o
Eterno pudesse se estabelecer.

Sua doença não foi violenta, mas uma queda suave e


gradativa de suas forças físicas, que de modo algum afetou sua
mente. O rápido fim não foi previsto por seus amigos. Sobreveio
num domingo, 12 de Agosto de 1827, perto de três meses antes de
ele completar setenta anos de idade. “No dia de sua morte,”
escreve Smith, que recebeu um relato da viúva, “ele compôs e
cantou canções ao seu Criador, de maneira tão doce para os

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ouvidos de sua Catharine, que, quando ela se levantou para ouvi-
lo, ele, olhando para ela com muito afeto, disse: Minha bem-
amada, elas não são minhas — não, elas não são minhas!” Disse
então que eles não se separariam; ele estaria sempre perto dela,
para cuidar dela. Às canções piedosas seguiu-se, por volta das 6
horas da tarde de verão, uma calma e indolor parada da respiração,
cujo exato momento não foi percebido por sua esposa, que estava
sentada a seu lado. Uma vizinha humilde, a única companhia que
ela tinha então, disse depois: “Estive presente à morte, não de um
homem, mas de um anjo abençoado.”

São Tomás de Aquino

Na festa de São Nicolau, no ano de 1273, três meses antes de


sua morte, ao rezar uma missa, São Tomás foi tomado por um
êxtase místico que durou alguns minutos. Ao voltar a si, disse para
os presentes: “O que acabo de ver é de uma maravilha tal, que
melhor seria que toda a minha obra fosse rasgada e jogada no
lixo!” Todos ficaram bastante surpresos com tal ideia, pois já o
tinham como grande génio. De acordo com o seu secretário e
amigo Reginaldo, São Tomás ter-lhe-á revelado que tudo o que
escrevera lhe parecia insignificante se comparado com o que lhe
tinha sido revelado naquele dia.

Bartolomeu de las Casas

Era dever de las Casas rezar a missa e vez por outra fazer um
sermão e, pensando no sermão de Pentecostes, em 1514, ele abriu
a Bíblia e seus olhos pousaram nos seguintes versículos do
capítulo 34 de Eclesiástico: “O Altíssimo não aprova as oferendas
do iníquo; nem é ele apaziguado quanto ao pecado pela multidão
de sacrifícios.” “O pão dos necessitados é sua vida; aquele que

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dele os defrauda é homem de sangue.” “Aquele que tira o sustento
de seu próximo o mata; e aquele que defrauda o trabalhador de seu
salário é um derramador de sangue.” Quando las Casas leu estas
palavras, uma luz do céu pareceu brilhar sobre ele. Aquilo que lhe
bloqueava a visão caiu de seus olhos. Ele percebeu que o sistema
de escravatura estava errado em princípio.

São João da Cruz

Não é este o único motivo de chamar-se, e ser, secreta a


sabedoria mística; é ainda porque tem a propriedade de esconder
as almas em si. Por vezes, com efeito, além do que costuma
produzir, de tal modo absorve e engolfa a alma em seu abismo
secreto, que esta vê claramente quanto está longe e separada de
toda criatura. Parece-lhe, então, que a colocam numa
profundíssima e vastíssima solidão, onde é impossível penetrar
qualquer criatura humana. É como se fosse um imenso deserto,
sem limite por parte alguma, e tanto mais delicioso, saboroso e
amoroso, quanto mais profundo, vasto e solitário. E a alma aí se
acha tão escondida, quanto se vê elevada sobre toda criatura da
terra. Este abismo de sabedoria levanta, então, a mesma alma, e a
engrandece sobremaneira, fazendo-a beber nas fontes da ciência
do amor. Não só lhe dá pleno conhecimento de que toda condição
de criatura fica muito aquém deste supremo saber e sentir divino,
mas ainda lhe faz ver como são baixos, limitados, e de certo modo
impróprios, todos os termos e vocábulos usados nesta vida para
exprimir as coisas divinas. A alma entende também como é
impossível, por modo e via natural, chegar ao conhecímento e
compreensão das coisas de Deus, conforme elas são na realidade,
por mais que se fale com elevação e saber, pois somente com a
iluminação desta mística teologia se poderá penetrá-las.

100
A comunicação que Deus costuma fazer à alma, em
semelhantes excessos, leva-a a experimentar a verdade das
palavras de São Francisco: “Meu Deus e meu tudo.” Donde, por
ser ele o tudo da alma, e encerrar em si o bem que há em todas as
coisas, é expressa aqui esta comunicação desse arroubamento, pela
semelhança da bondade e das coisas criadas, as quais são referidas
nas presentes canções, conforme iremos declarando em cada
verso. Havemos de entender que tudo quanto agora se declara, está
eminentemente contido em Deus, de modo infinito, ou, para
melhor dizer, cada uma destas grandezas que se atribuem a Deus,
e todas elas em conjunto, são o próprio Deus. E como a alma,
neste estado, se une com ele, tem o sentimento de que todas as
coisas são Deus. Não se há de pensar, portanto, que a alma, ao
traduzir seu sentimento, vê as coisas à luz de Deus, ou conhece as
criaturas nele, mas que, naquela posse divina, sente que Deus para
ela é todas as coisas.

Tudo quanto se pode dizer nesta canção, fica aquém da


realidade porque a transformação da alma em Deus é indizível.
Tudo se resume nesta palavra: a alma é feita Deus de Deus por
participação dele e de seus atributos por ele chamados aqui
lâmpadas de fogo. Para entendermos quais sejam estes
resplendores das lâmpadas de que a alma fala aqui, e como a
mesma alma neles resplandece, precisamos saber que estes
resplendores são os conhecimentos amorosos a ela comunicados
pelas lâmpadas dos atributos de Deus. Unida, segundo suas
potências, a eles, a alma também resplandece como eles,
transformada, então, em resplendores amorosos. Esta ilustração de
resplendores que fazem a alma por sua vez resplandecer, em fogo
de amor, não é semelhante à das lâmpadas materiais que, com seus
clarões, iluminam os objetos que as rodeiam; mas sim como de
lâmpadas que se acham dentro das chamas, porque a própria alma

101
está dentro desses resplendores. E não somente isto, mas até
transformada e convertida em resplendores. E assim podemos
dizer que é como o ar que se acha dentro da chama, abrasado e
transformado na própria chama. Esta, aliás, não se compõe de
outra coisa a não ser do ar inflamado; e os movimentos e os
resplendores daquela chama não são produzidos somente pelo ar,
nem somente pelo fogo, mas pelos dois elementos juntos; são
resplendores que o fogo produz no ar inflamado em seu calor.
Nesta mesma disposição, podemos compreender, acha-se a alma
com as suas potências, toda resplandecente, dentro dos
resplendores de Deus.

Quando essas visões ocorrem, é como se uma porta fosse


aberta para uma luz maravilhosa, pela qual a alma vê, assim como
os homens vêem quando o raio lampeja numa noite escura. O
relâmpago torna visíveis por um instante os objetos do ambiente e
depois os deixa no escuro, embora suas formas permaneçam na
imaginação. Mas no caso da alma a visão é muito mais perfeita,
pois as coisas que ela viu em espírito naquela luz ficam tão
impressas nela que, sempre que Deus a ilumina novamente, ela os
vê claro como o fez na primeira vez, exatamente como num
espelho, no qual vemos objetos refletidos toda vez que nele
olhamos. Uma vez concedidas à alma, essas visões nunca mais a
deixam totalmente; pois as formas permanecem, embora se tornem
um tanto indistintas no decurso do tempo. Os efeitos dessas visões
na alma são quietude, iluminação, glória como que jubilosa,
doçura, pureza, amor, humildade, propensão ou elevação da mente
a Deus, às vezes mais, às vezes menos, às vezes mais de um, às
vezes mais de outro, conforme a disposição da alma e a vontade
de Deus.

Em outras ocasiões, também, a luz divina atinge a alma com

102
tanta força que as trevas não são sentidas e a luz não é percebida; a
alma parece inconsciente de tudo que conhece e, portanto, por
assim dizer perdida no esquecimento, sem saber onde está nem o
que lhe aconteceu, inconsciente da passagem do tempo. Pode
acontecer e de facto acontece que muitas horas se passem
enquanto a alma se encontre nesse estado de esquecimento; tudo
parece apenas um momento quando ela novamente retorna a si.

Emanuel Swedenborg

Em 1745, Swedenborg jantava numa sala privada de uma


taverna em Londres. No final da refeição, uma escuridão caiu
sobre seus olhos, e a sala mudou de aspecto. De repente, ele viu
uma pessoa sentada num canto da sala, dizendo-lhe: “Não comas
demasiado!” Swedenborg, assustado, correu para casa. Mais tarde
naquela noite, o mesmo homem apareceu em seus sonhos. O
homem disse a Swedenborg que ele era o Senhor, que havia
designado Swedenborg para revelar o significado espiritual da
Bíblia e que orientaria Swedenborg no que escrever. Na mesma
noite, o mundo espiritual foi aberto para Swedenborg. Eis algumas
das visões de Swedenborg: “Que o Senhor apareça realmente no
céu como Sol é não somente o que me disseram os anjos mas
também é o que me foi permitido ver algumas vezes.” “O Senhor
apareceu-me também fora do Sol, numa forma angélica, um pouco
abaixo do Sol, no alto. Eu o vi também de perto numa forma
semelhante, com a face resplandecente.” “Que os anjos tenham
constantemente o Senhor diante de sua face é o que me foi
permitido saber e também perceber por um grande número de
experiências, porque, todas as vezes que estive em companhia dos
anjos, notei diante de minha face a presença do Senhor que, ainda
que não fosse visto, era, contudo, percebido na luz.” “Como daí
resultasse ansiedade para mim, fui elevado na esfera do céu e na

103
perceção em que estão os anjos sobre a eternidade e vi, então,
claramente, que se deve pensar sobre a eternidade não segundo o
tempo, mas segundo o estado, e que então se percebe o que é de
toda a eternidade; é também o que eu próprio percebi.” “Que a luz
nos céus seja espiritual e que essa luz seja a Divina verdade, é até
o que se pode concluir do facto de que para o homem há também
uma luz espiritual, e que por essa luz há nele iluminação enquanto
ele está na inteligência e na sabedoria pela Divina verdade. A luz
espiritual do homem é a luz do seu entendimento, cujos objetos
são as verdades, que ele dispõe analiticamente em ordens, que ele
forma em razões, e segundo as quais ele conclui coisas em série.
Que a luz, pela qual o entendimento vê tais coisas, seja uma luz
real, é o que o homem natural ignora porque não a vê com os
olhos e nem a percebe pelo pensamento. Mas muitos até a
conheceram, e também a distinguem da luz natural em que estão
aqueles que pensam naturalmente e não espiritualmente. Aqueles
que dirigem os seus olhares somente para o mundo e atribuem
tudo à natureza pensam naturalmente. Mas os que dirigem seus
olhares para o céu e atribuem tudo ao Divino, pensam
espiritualmente. Que seja verdadeira a luz que ilumina a mente e
inteiramente distinta da luz que é chamada luz natural, é o que me
foi permitido perceber e também ver. Fui interiormente elevado
nessa luz, por graus; e, à proporção que eu era elevado, meu
entendimento era iluminado a tal ponto, que eu percebia coisas
que não tinha percebido antes, e finalmente coisas que não
poderiam até ser compreendidas pelo pensamento segundo a luz
natural. Às vezes eu me indignava de que elas não eram
compreendidas, quando, todavia, tinham sido percebidas clara e
plenamente na luz celeste. Visto que há uma luz para o
entendimento, dele se diz do mesmo modo que se diz para os
olhos, que ele vê e que ele está na luz quando percebe, e que ele
está nas trevas e na sombra quando não percebe.” “Como a

104
inocência é o íntimo em todo o céu, daí também resulta que ela
afeta de tal modo as mentes, que quem a sente tem a impressão de
não estar mais senhor de si. Ser afetado por ela é como ser
transportado por um prazer tal que todo prazer do mundo parece
nada ser. Se assim falo é porque assim o percebi.”

W. H. W.

Fui para o quintal, para a bomba, e assim que cheguei lá


aconteceu — um choque, uma torrente de luz e, juntamente com
ela ou imediatamente depois, o choque e o fulgor subjetivo —
como um grande fogo interno; veio o sentimento de absoluta
harmonia com o poder que fez todas as coisas e está em todas as
coisas. Toda luta cessou — não havia nada por que lutar — eu
estava em paz.

Plotino

Contudo, no que toca ao absolutamente simples, que caminho


cabe percorrer? Basta, porém, que haja um contato, mesmo que
seja intelectivo, e que não haja possibilidade de poder dizer uma
só palavra no momento do contato, mas sim que seja mais tarde,
quando reflete sobre a experiência. E é imperioso acreditar que a
visão se dá no mesmo momento em que a alma, de repente, recebe
uma luz. Porque essa luz vem Daquele e é Aquele. E é preciso
acreditar que ele se faz presente no próprio momento em que
ilumina, acudindo como outros deuses acodem a uma casa por
invocação. Porque se ele não tivesse vindo, não teria iluminado.
Pois uma alma que não foi iluminada é uma alma que não foi
divinizada; mas se foi iluminada, alcançou o que deseja. Aqui está
o verdadeiro objetivo da alma: tocar essa luz e contemplá-la com
essa mesma luz; não com a luz de outro, mas contemplar a própria

105
luz através da qual ele vê. Porque a luz que o iluminou é a luz que
deve ser contemplada, já que nem mesmo vemos o sol com luz
alheia.

Mas quando não há nada para ver além da luz, o olho a vê


intuitivamente e de repente, embora seja verdade que mesmo
assim a vê junto a outra coisa, porque, isolada e desarmada, a
sensação não pode percebê-la. E até a própria luz do sol e inerente
ao sol passaria facilmente despercebida à sensação se não fosse
por uma massa mais sólida subjacente à luz. Assim também com a
visão da inteligência: ela também vê, graças a outra luz, os objetos
iluminados por aquela primeira Natureza, e os vê estando essa
outra luz presente naqueles. No entanto, se a inteligência
concentra sua atenção na natureza dos objetos iluminados, ela não
vê tanto aquela luz. Mas se ignora os objetos vistos e volta seu
olhar para aquilo através do qual os vê, verá uma luz e o princípio
da luz. Ao concentrar-se em si mesma, não vendo nada, ela
vislumbra uma luz que não é inerente a outro objeto, mas uma luz
absoluta, solitária, pura, auto-subsistente, aparecendo de repente, a
ponto de se perguntar, intrigada, de onde veio, se de fora ou de
dentro, e responder ao vê-la desaparecer: “então veio de dentro e
não veio de dentro.” Na verdade, ela não precisa perguntar de
onde veio, porque não existe esse “onde”. Porque não vem de
nenhum lugar nem vai a lugar nenhum, mas aparece e deixa de
aparecer. E por isso não é necessário procurá-la, mas esperar
serenamente até que apareça, uma vez que se tenha preparado para
ser espectadora, como o olho espera o nascer do sol. E o sol,
surgindo no horizonte, oferece-se espontaneamente aos olhos para
que eles o contemplem. Mas Aquele que o sol imita, em que
horizonte aparecerá? Ele se elevará acima da própria inteligência
contemplativa. Ela não só olha para ele, mas é uma só coisa com
ele. Ela olha para ele com aquilo de si que não é inteligência.

106
E uma vez que a alma tem a sorte de alcançá-lo e o Bem se
faz presente, ou melhor, se manifesta nela quando ela se
desinteressou das coisas presentes, preparando-se o mais
belamente possível e assemelhando-se ao Bem, pois que a alma vê
o Bem aparecendo subitamente dentro dela (porque não há nada
entre os dois e eles não são mais dois; eles são uma coisa:
enquanto o primeiro está presente, não se poderá distingui-los), a
alma então nem percebe que está no corpo nem diz sobre si
mesma que é outra coisa: nem que seja homem, nem que seja
animal, nem que seja, nem que seja tudo (a visão daquelas coisas
não seria uniforme), nem ela tem tempo ou desejo para essas
coisas, mas, como o Bem era justamente o que procurava, agora
que o tem presente, ela vai ao seu encontro e passa a olhar para ele
em vez de olhar para si mesma. Quem é ela que está olhando para
ele? Nem tempo tem para perceber isso. E ela não trocaria o Bem
por nada no mundo, mesmo que lhe oferecessem o céu inteiro,
sabendo como sabe que não há nada melhor do que o Bem, nada
mais bom do que o Bem. Porque subir mais alto não poderia, e
voltar-se para outras coisas, por mais sublimes que fossem, seria
descer. Ali ela pode já julgar corretamente e saber que isso era o
que ela queria; ela já pode afirmar que não há nada melhor do que
Aquele. Ali não há engano, pois onde encontraria algo mais
verdadeiro do que a Verdade? É dessa Verdade que ela fala, mas
fala depois, fala sem palavras; e já que está feliz, não se engana
quando diz que está feliz, porque não o diz por causa de alguma
excitação no corpo, mas porque voltou a ser o que era no passado,
quando era feliz. E todas as outras coisas nas quais antes se
deleitava, como autoridade, poderes, riquezas, belezas, ciências,
de todas essas coisas fala agora com desprezo. Não falaria assim
se não tivesse encontrado outras melhores. E ela não tem medo de
que algo lhe aconteça, sendo como está com Aquele, e não apenas

107
olhando para ele. E se as outras coisas ao seu redor
desaparecessem, o aceitaria de bom grado para ficar sozinha com
ele. Tal é o grau de bem-estar que atingiu! A consecução do Bem,
seja por conhecimento ou por contato, é o ideal supremo, e Platão
diz que este é o aprendizado supremo, entendendo por
aprendizado não a visão do Bem, mas antes o aprendizado prévio
a ela. Mas quem consegue ser espectador e espectáculo ao mesmo
tempo, de si mesmo e das outras coisas, tornando-se assim
essência, inteligência e “Ser Vivo perfeito,” não verá mais este Ser
Vivo de fora. Mas transformado nele, encontra-se já perto da meta:
a seguir vem o Bem, e o Bem já está próximo, banhando de
esplendor o universo inteligível. E então sim, abandonando todo o
aprendizado depois de ter sido conduzido pela mão e colocado em
segurança, enquanto lá está, ele pensa o inteligível. Mas então,
transportado por uma onda da própria inteligência e erguido ao
alto como pelo inchaço dessa onda, ele subitamente vê sem ver
como; mas a visão, inundando seus olhos de luz, não o faz ver
mais nada através da luz, mas antes a própria luz é o objeto da
visão. Porque no espectador não havia duas coisas: o objeto visto
e a luz, ou a inteligência e o inteligível, mas uma luminosidade
que depois gera essas duas coisas e permite que coexistam consigo
mesma. O próprio espectador é pura luminosidade geradora de
inteligência sem extinguir um pequeno raio de si mesma, mas
permanecendo ela mesma e originando a inteligência por ser quem
é.

Ramakrishna

O sofrimento me dilacerava. Ao pensar que não teria na vida


a graça desta visão divina, fui tomado de uma ansiedade terrível.
Pensei: se isto deve ser assim, estou farto desta vida! A grande
espada estava pendurada no santuário de Kali. Meu olhar caiu

108
sobre ela e um clarão atravessou-me a mente. Ela! Ela me ajudará
a pôr fim à minha vida. Precipitei-me em direção à espada.
Segurei-a como um louco. E eis que a sala, com todas as suas
portas e janelas, o templo, tudo desapareceu da minha vista.
Parecia-me que nada mais existia. Em lugar disto, enxerguei um
oceano do espírito, sem limites, resplandecente. Para qualquer
ponto que voltasse os olhos, por mais longe que fosse, avistava as
vagas enormes deste oceano brilhante. As ondas precipitavam-se
furiosamente sobre mim, com um ruído medonho, como se fossem
me engolir. Num instante estavam em cima de mim, arrebentaram,
engoliram-me. Enrolado por elas, perdi a respiração. Perdi a
consciência e caí no chão. Não sei como passei aquele dia e o
seguinte. Dentro de mim rolava um oceano de alegria inefável. E
até o fundo tinha consciência da presença da Mãe Divina.

Edward Carpenter

Passaram-se anos relativamente cheios de acontecimentos,


com saídas de Cambridge e palestras universitárias em cidades
provinciais, e assim por diante; mas com inatividade no tocante a
escrever e, interiormente, com extrema tensão e sofrimento.
Finalmente, no início de 1881, sem dúvida como culminação e
resultado de lutas e experiências que estiveram ocorrendo, tomei
consciência de que uma massa de material estava se formando
dentro de mim, exigindo imperativamente expressão — embora eu
nâo pudesse então ter dito o que exatamente haveria de ser sua
expressão. No momento tornei-me avassaladoramente consciente
da revelação, dentro de mim, de uma região que ultrapassava em
algum sentido as fronteiras comuns da personalidade, à luz da qual
minhas próprias idiossincrasias de caráter — defeitos, realizações,
limitações, e não sei o que mais — pareciam nâo ter a menor
importância — uma absoluta libertação da mortalidade,

109
acompanhada de uma calma e uma alegria indescritíveis. Também
percebi ou senti imediatamente que essa região do ego que havia
em mim existia igualmente (embora nem sempre igualmente
consciente) em outras pessoas. Relativamente a ela, as meras
diversidades de temperamento que comumente distinguem e
dividem as pessoas perderam sentido e se tornaram indiferentes e
foi aberto um campo no qual todas pudessem se encontrar, no qual
todas fossem verdadeiramente iguais. Assim, as duas palavras que
controlaram meu pensamento e minha expressão naquela ocasião
vieram a ser liberdade e igualdade. A necessidade de espaço e
tempo para trabalhar nisso cresceu tão fortemente que, em Abril
daquele ano, abandonei meu emprego de palestrante. Além disso,
uma outra necessidade me ocorrera, impondo essa decisão — a
necessidade de uma vida ao ar livre e de trabalho manual.
Finalmente nâo pude mais lutar contra esta necessidade nem
contra a outra; tive de desistir e obedecer.

Mas se me perguntassem — como algumas vezes me têm


perguntado — qual é a natureza exata dessa disposição de espírito,
desse esplendor iluminante, eu teria de dizer que não posso dar
nenhuma resposta. Todo o livro é uma tentativa de lhe dar
expressão; qualquer mera sentença isolada, ou definição direta,
nâo teria a menor utilidade — ao contrário, na realidade tenderia a
obscurecer por limitar. Tudo que posso dizer é que parece existir
uma visão possível ao ser humano como de algum ponto de vista
mais universal, livre da obscuridade e do localismo que se ligam
especialmente às nuvens passageiras de desejo, medo, e de todos
os pensamentos e emoções comuns; neste sentido, uma outra e
distinta faculdade; e uma visão sempre significa uma sensação de
luz, de modo que aqui há uma sensação de luz interior,
naturalmente desligada do olho mortal, mas trazendo ao olho da
mente a impressão de que ele vê e através do meio que lava, por

110
assim dizer, as faces interiores de todos os objetos, todas as coisas
e pessoas — como posso expressá-lo? E mesmo assim isto é muito
defeituoso, pois o sentimento é um senso de que a pessoa é os
objetos e as coisas e as pessoas que percebe (bem como todo o
universo) — um sentimento em que a visão, o tato e a audição
estão fundidos numa identidade. Nem pode esta questão ser
entendida sem se perceber que a faculdade inteira está enraizada
profunda e intimamente na natureza ultramoral e emocional e para
além da região de pensamento do cérebro.

C. L.

Em Fevereiro de 1890, logo depois de meu trigésimo sétimo


aniversário, o Rev. J. E. L., do Canadá, veio me dar assistência
numa série de reuniões especiais em minha igreja. Minha afeição
por ele aumentou durante sua permanência. Fazia três dias que ele
tinha ido embora quando, pensando nele bem tarde da noite — o
cinzento da manhã já despontando no céu — veio-me a convicção
de que nele eu tinha conhecido uma encarnação do Cristo. Por um
momento fiquei petrificado com esse pensamento. Estava aquilo
que eu nutrira como uma teoria para ser realizado como um facto?
Meu amigo foi esquecido na visão do Cristo, que viera a mim, não
de fora, mas através dos portões que se abrem interiormente. Eu o
conhecia, estava consciente dele em meu próprio espírito, em
minha própria alma e em meu próprio corpo. Então, com essa
consciência a desabrochar, veio uma infusão, como de uma nuvem
ou névoa delicada, que percorreu todo o corpo e que era mais
invasora que a luz, mais penetrante que o calor, de maior alcance
interno que a eletricidade. Era como se eu tivesse mergulhado
num banho de fluido mais sutil e penetrante que o éter. Contra o
fluxo de entrada e saída daquela essência envolvente, o corpo não
era tão resistente quanto o ar à asa de um pássaro ou uma neblina

111
da manhã aos raios do Sol. O arrebatamento, a exaltação, a
divindade daquele momento transcende o conhecimento. Então
rapidamente veio o temor reverente da misteriosa presença que me
encheu por completo e a consciência de toda a Criação, do
universo, passou vibrando por mim, não como um pensamento,
uma sensação, uma emoção, mas como o sopro vital de Deus. Isto
cresceu até que me senti subindo e me expandindo para o Infinito,
ali sendo difuso e perdido, a mente e o corpo em vertigem.
Afundei na minha cama e dormi como uma criança. Poucas horas
depois acordei com uma alegria que era inefável e plena de glória.

C. M. C.

A dor, a tensão no centro de meu ser, era tão grande que eu


me sentia como deveria se sentir alguma criatura que tivesse
crescido mais que a sua concha mas não conseguisse sair dela. O
que era eu não sabia, exceto que era um grande anelo para a
liberdade, para uma vida maior, para um amor mais profundo.
Parecia nâo haver nenhuma resposta na natureza para aquela
infinita necessidade. A grande maré avançou devastadoramente,
indiferente, impiedosa e, as forças esgotadas, exauridos todos os
recursos, nada restou senão submissão. Subjugada, com uma
curiosa, crescente força em minha fraqueza, eu me entreguei! Em
pouco tempo, para minha surpresa, comecei a sentir um conforto
físico, de repouso, como se algum esforço, alguma tensão tivesse
sido eliminada. Nunca antes eu tinha vivenciado um tal sentimento
de saúde perfeita. Eu me espantei com ele. A sensação de leveza e
expansão continuou crescendo, as arestas de tudo foram
aplainadas e não havia nada em todo o mundo que parecesse fora
de lugar. Se eu tivesse percebido então, como o fiz depois, que
uma coisa tão grandiosa estava me acontecendo, eu teria com
certeza deixado meu trabalho e me abandonado à contemplação

112
daquilo, mas tudo me pareceu tão simples e natural (apesar de seu
caráter maravilhoso) que eu e meus afazeres prosseguimos como
de costume. A luz e as cores fulguravam, a atmosfera parecia
tremular e vibrar ao meu redor e dentro de mim. Alegria, paz e
repouso perfeitos estavam por toda parte e, mais estranho que
tudo, veio-me uma sensação como de alguma presença serena e
magnética, grandiosa e onipresente. A vida e a alegria em meu
íntimo estavam se tornando tão intensas que, ao anoitecer, tornei-
me inquieta e saí andando pelos quartos e pelas salas, sem saber o
que fazer comigo mesma. Deitando-me cedo para que pudesse
ficar sozinha, logo todos os fenómenos objetivos foram
suprimidos. Eu estava vendo e compreendendo o significado
sublime das coisas, a razão de ser de tudo que antes estivera oculto
e em trevas. A grande verdade de que a vida é uma evolução
espiritual, de que esta vida é apenas uma fase passageira na
progressão da alma, irrompeu então ante minha visão espantada
com arrebatadora magnificência. Pensei: se isto é o que esta
experiência significa, se este é o resultado, então a dor é sublime!
Abençoados os séculos, as eras de sofrimento, se nos trazem a
isto! E o esplendor aumentou ainda mais. Nesse momento, o que
pareceu uma grande, rápida e crescente onda de esplendor e glória
inefável se abateu sobre mim e me senti sendo envolvida, tragada.
Senti que ia embora, que me perdia. Então fiquei aterrorizada, mas
com um medo brando. Estava perdendo minha consciência, minha
identidade, mas estava sem força para me controlar. Veio então um
período de arrebatamento, tão intenso que o universo parou, como
que pasmo ante a indizível majestade do espetáculo! Somente um
em todo o infinito universo! O Todo-Amoroso, o Ser Perfeito! A
Perfeita Sabedoria, verdade, amor e pureza! E com esse
arrebatamento veio a visão interior. Naquele mesmo maravilhoso
momento do que poderia ser chamado de superna bem-
aventurança, veio a iluminação. Vi, com intensa visão introspetiva,

113
os átomos e as moléculas de que aparentemente o universo é
composto — não sei se materiais ou espirituais — rearranjando-se
conforme o cosmo passa de uma ordem para outra. Que júbilo
quando vi que não havia nenhum intervalo na cadeia — nenhum
elo deixado fora — tudo em seu lugar e momento. Mundos,
sistemas, todos misturados num harmonioso todo. Vida universal,
sinónima de amor universal! Quanto tempo durou aquele período
de intenso êxtase, não sei — pareceu uma eternidade — mas pode
ter sido apenas alguns momentos. Depois relaxei, vieram as
lágrimas felizes, a expressão murmurada em êxtase. Eu estava em
segurança; estava na grande estrada, a via ascensional que a
humanidade tem trilhado com pés ensanguentados mas com
imorredoura esperança no coração e canções de amor e confiança
nos lábios. Agora eu compreendia as velhas verdades eternas, que
eram no entanto frescas, novas e encantadoras como o alvorecer.
Quanto tempo durou a visão, não sei dizer. De manhã, acordei
com uma leve dor de cabeça, mas com o sentido espiritual tão
forte que o que chamamos de coisas reais e materiais, ao meu
redor, a mim pareciam como sombras e irreais. Meu ponto de vista
estava inteiramente mudado. Coisas velhas tinham passado e tudo
tinha se tornado novo. O ideal tinha se tornado real, o velho real
tinha perdido sua realidade anterior e tinha se tornado como uma
sombra. Essa irrealidade sombria das coisas externas não durou
muitos dias. Todo anseio do coração foi satisfeito, toda pergunta
respondida, os “represados, aflitivos rios,” alcançaram o oceano
— eu amei infinitamente e fui infinitamente amada! A maré
universal fluiu sobre mim em ondas de alegria e regozijo,
derramando-se sobre mim em torrentes de fragrante bálsamo. Isto
descreve uma sensação real. O amor e a ternura infinitos pareciam
realmente fluir sobre mim, qual óleo santo, curando todas as
minhas feridas e contusões. Como pareciam tolos, infantis, a
petulância e o descontentamento, diante daquela serena majestade!

114
Eu aprendera a grande lição de que o sofrimento é o preço que tem
de ser pago por tudo aquilo que vale a pena; de que de algum
modo misterioso somos refinados e sensibilizados, sem dúvida em
alto grau por ele, de modo que nos tornamos suscetíveis às
influências mais elevadas e mais puras da natureza — e isto, se é
verdade para um, é verdade para todos. E, sentindo e sabendo isto,
agora já não me transtorno como antes, mas fico silente enquanto
me sento e contemplo todo o pesar do mundo — toda a
interminável maldade e agonia. Aquele doce e eterno sorriso na
face da natureza! Não há nada no universo que se lhe compare —
tão jubiloso repouso e tão doce despreocupação — dizendo-nos
com o mais terno amor: tudo está bem, sempre esteve e sempre
estará. A “luz subjetiva” (assim me parece) é magnética ou elétrica
— alguma força é liberada no cérebro e no sistema nervoso —
alguma explosão ocorre — o fogo que ardia no peito é agora uma
chama ascendente. Em diversas ocasiões, semanas após a
iluminação descrita, senti claramente faíscas elétricas saltarem dos
meus olhos. Na minha experiência, a “luz subjetiva” não foi uma
coisa vista — uma sensação distinta de uma emoção — foi a
própria emoção — êxtase. Foi o contentamento e êxtase do amor,
tão intensificado que se tornou um oceano de luz viva, palpitante,
cujo brilho reluzia mais que o brilho do Sol. Seu fulgor, seu calor
e sua ternura enchiam o universo. Aquele oceano infinito era o
amor eterno, a alma da natureza e tudo era um sorriso sem fim!

Philip K. Dick

Em Fevereiro de 1974, Dick passou por uma cirurgia dentária


para extrair um dente do siso que o estava incomodando. Após a
cirurgia, estando ele em casa com muitas dores, a entregadora da
farmácia com a medicação solicitada toca à campainha. Quando
Dick abriu a porta, encontra uma jovem usando um colar de ouro

115
com um medalhão reluzente em forma de peixe, que ela disse ser
um símbolo cristão e que provocou no autor uma sensação
misteriosa, um potente déjà vu que ele não podia suprimir. O
autor, ainda confuso com seu senso de familiaridade com aquele
medalhão, pegou o pacote e voltou para seu quarto. Foi nesse
momento que ele teria a primeira de uma série de visões profundas
e enigmáticas que abalariam profundamente sua visão da
realidade. Logo depois de fechar a porta e voltar para dentro, Dick
afirmou que tinha sido surpreendido por uma luz rosa súbita e
extremamente brilhante que banhava tudo, ao mesmo tempo
implantando um fluxo de imagens estranhas em sua mente,
incluindo padrões geométricos, imagens de lugares há muito
passados, pinturas estranhas, ideias filosóficas e até mesmo o que
ele descreveu como projetos de máquinas avançadas. Ele
escreveu: “Não era como uma realidade alternativa, era como o
que chamo de constância transtemporal. Era uma verdade eterna
como o mundo arquetípico de Platão onde tudo sempre esteve aqui
e agora, e sempre foi assim e sempre seria assim. Mas tinha algum
tipo de dinamismo, não era estático. Havia um tipo de tempo, mas
um tipo diferente de tempo. Um tempo como nos sonhos, onde
ocorrem os feitos dos heróis. Era uma espécie de época
mitológica. Tudo assumia uma qualidade mitológica.” Nos meses
seguintes, essas visões surgiram em rajadas e ondas, e ele ficou
cada vez mais convencido de que estavam sendo irradiadas na sua
cabeça por forças externas. O próprio Dick diria sobre isso: “Eu
experimentei uma invasão de minha mente por uma mente
transcendentalmente racional, como se eu tivesse sido louco por
toda a minha vida e de repente tivesse ficado são.” À medida que
as visões continuavam, ele começou a descobrir que muitas vezes,
ao realizar seus afazeres diários, ele via os arredores com o que
pareciam ser imagens da Roma antiga sobrepostas, e isso às vezes
era incrivelmente vívido, com centuriões romanos caminhando e

116
cenas do passado atuando sobre o mundo de sua realidade normal.
Ele veio a acreditar que na verdade a era de Roma nunca tinha
terminado e estava vivendo como uma espécie de existência
sombria paralela à nossa. Isso só foi reforçado pelo aparecimento
de viajantes do tempo extraterrestres de três olhos que às vezes
vinham através da misteriosa luz rosa para falar com ele, e a
história que eles tinham era realmente selvagem. Dick foi
informado de que ele era na verdade um dos primeiros espiões
cristãos que buscava derrubar os romanos, assim como a mulher
de entrega com o colar de ouro, razão pela qual ele a reconheceu,
com o brilho daquele medalhão sendo a chave através do qual ele
foi despertado para a ilusão e o engano. Curiosamente, tudo isso
foi acompanhado por infusões de conhecimento esotérico e
orientação de espíritos benevolentes que pareciam ter vindo para
ajudá-lo em sua missão. Seguindo seus conselhos, ele cuidou
melhor de sua saúde e tomou decisões de negócios inteligentes.
Num caso, uma voz o incitou a procurar atendimento médico para
seu filho para o que acabou sendo uma hérnia. O julgamento de
Dick melhorou. Ele se sentia mais vivo. Em certo sentido, sua
loucura divina o deixou mais são. Dick ficaria obcecado, tentando
descobrir o que tudo isso significava, numa busca desesperada por
respostas que o consumiriam pelo resto de sua vida. Ele escreveria
um diário de 8.000 páginas sobre toda a experiência e a explicaria
de forma fictícia em seus romances VALIS e A Invasão Divina.
Dick cobriu praticamente todos os ângulos possíveis a respeito do
que a luz rosa e sua miríade de fenómenos poderiam significar,
variando do estranho ao totalmente absurdo. Ele nunca encontrou
uma explicação confortável. Quando as visões terminaram e tudo
acabou, ele escreveu: “Em 1976, tentei me matar porque Elias
havia me deixado. Senti que ele partia e foi horrível. Não há nada
pior no mundo, nenhum castigo maior do que ter conhecido a
Deus e não mais conhecê-lo. As vozes pararam de falar comigo.

117
Não me importava mais se vivia ou morria.”

C. Y. E.

Na tarde de quarta-feira fui ver uma amiga, a esposa de um


fazendeiro, e fomos de carro aos campos de colheita, para levar
algum refresco a seu marido, que estava trabalhando com seus
homens. Quando eu estava indo embora, ela me deu duas rosas
“Maréchal Niel” muito bonitas. Eu sempre tivera paixão pelas
flores, mas o perfume daquelas e a beleza de sua forma e sua cor
me encantaram com força e vividez excecionais. Deixei minha
amiga e estava caminhando lentamente para casa, desfrutando a
calma beleza da noite, quando tomei consciência de uma indizível
quietude e, simultaneamente, todos os objetos ao meu redor foram
banhados numa luz suave, mais clara e mais etérea do que eu
jamais tinha visto. Então uma voz murmurou em minha alma:
“Deus é tudo. Ele não está lá longe no céu; está aqui. A relva sob
os teus pés é ele; esta abundante colheita, aquele céu azul, estas
rosas na tua mão — tu mesma, tudo é uno com ele. Tudo está bem
para todo o sempre, pois não há lugar ou momento em que Deus
não esteja.” Os efeitos desta experiência em minha vida diária têm
sido muitos; principalmente, creio eu, depois da alegria e da paz,
profundas e subjacentes, veio a fé na eterna retidão de todas as
coisas; veio a cessação da aflição e preocupação com o problema
do mal; veio o desejo de viver o mais possível ao ar livre e veio
um deleite sempre crescente com as belezas da natureza em todos
os momentos e todas as estações do ano; vieram também uma
forte tendência para simplicidade na vida e um sentimento cada
vez mais profundo da igualdade e da fraternidade de todos os seres
humanos.

Yogananda

118
Meu corpo tornou-se imóvel como se tivesse raízes; o alento
saiu de meus pulmões como se um íman enorme o extraísse.
Instantaneamente o espírito e a mente romperam com sua
escravidão ao físico e jorraram de cada um de meus poros como
luz perfurante e fluida. A carne parecia morta e, contudo, em
minha intensa lucidez, eu percebia que nunca antes estivera tão
plenamente vivo. Meu senso de identidade já não se achava
confinado à estreiteza de um corpo, mas abarcava os átomos
circundantes. Pessoas em ruas distantes pareciam mover-se
suavemente em minha própria e remota periferia. Raízes de
plantas e árvores eram percebidas através de uma tênue
transparência do solo; e eu distinguia nelas a interna circulação da
seiva.

Alphonse Ratisbonne

Saindo do café, deparei com o carro de um amigo. Ele se


deteve e convidou-me a entrar para darmos um passeio, mas
primeiro me pediu que esperasse alguns minutos enquanto
cumpria algumas obrigações na Igreja de San Andréa delle Fratte.
Em vez de ficar esperando no carro, entrei também na Igreja para
examiná-la. A Igreja de San Andréa, pequena e pobre, estava
vazia; acredito que ali me encontrei quase a sós. Nenhuma obra de
arte me atraiu a atenção; e relancei a vista mecanicamente pelo seu
interior sem me sentir preso por nenhum pensamento particular.
Só consigo lembrar-me de um cachorro inteiramente preto que
passou por mim enquanto eu cismava. Num instante, o cachorro
desaparecera, a Igreja se desfizera, eu já não via coisa alguma, ou
melhor, vi uma coisa apenas. Como falar sobre isso? Palavras
humanas jamais lograrão expressar o inexprimível. Qualquer
descrição, por sublime que fosse, seria apenas uma profanação da

119
verdade indizível. Eu estava lá, prostrado no chão, banhado em
minhas próprias lágrimas, com o coração que já não me pertencia,
quando meu amigo me chamou de volta à vida. Não pude
responder às suas perguntas, que se atropelavam umas às outras.
Finalmente, peguei a medalha que trazia no peito e, com toda a
efusão de minha alma, beijei a imagem da Virgem, radiante de
graça, que nela se estampava. Com efeito, era ela! Eu não sabia
onde estava: não sabia se eu era Alphonse ou outra pessoa. Só me
sentia mudado e acreditava ser outro eu; procurei por mim em
mim mesmo e não me encontrei. No fundo de minha alma senti
uma explosão da mais ardente alegria; não podia falar; não tinha
vontade alguma de revelar o que acontecera. Senti, porém, algo
solene e sagrado dentro de mim que me fez pedir um padre. Fui
conduzido a um sacerdote; e ali, sozinho, depois que ele me deu a
ordem positiva, falei o melhor que pude, com o joelho em terra e o
coração ainda trêmulo. Eu não conseguia explicar a mim mesmo a
verdade da qual adquirira conhecimento e fé. Tudo o que posso
dizer é que, num instante, a venda me caíra dos olhos; e não
apenas uma venda, senão as muitas vendas em que fora educado.
Uma depois da outra, desapareceram rapidamente, assim como
desaparecem, sob os raios do sol abrasador, a lama e o gelo. Saí
como quem sai de um sepulcro, de um abismo de trevas; e estava
vivo, perfeitamente vivo. Mas chorei porque, no fundo daquela
voragem, vi o extremo de miséria de que eu fora salvo por uma
infinita misericórdia; e estremeci à vista das minhas iniquidades,
estupefato, enternecido, aniquilado de pasmo e gratidão. Você
poderá perguntar-me como cheguei a essa nova visão intuitiva
pois, na verdade, eu nunca abrira um livro de religião nem lera
uma única página da Bíblia, e o dogma do pecado original ou é
inteiramente negado ou é esquecido pelos hebreus de hoje, de
modo que eu havia pensado tão pouco a esse respeito que duvido
até de que algum dia lhe tivesse sabido o nome. Mas como

120
cheguei, então, a essa perceção? Não posso responder coisa
alguma, a não ser que, ao entrar na Igreja, eu me achava na
escuridão total e, ao sair dela, vi a luz em todo o seu esplendor. A
melhor maneira de explicar a mudança, no meu entender, é através
do símile de um sono profundo ou da analogia de um cego de
nascença que abre, de repente, os olhos para a luz do dia. Vê, mas
não pode definir a luz que o banha e por cujo intermédio enxerga
os objetos que lhe excitam a admiração. Se não podemos explicar
a luz física, como explicaremos a luz que é a própria verdade? E
creio não estar ultrapassando os limites da veracidade quando digo
que, sem ter nenhum conhecimento da letra da doutrina religiosa,
naquele instante, lhe percebi intuitivamente o sentido e o espírito.
Melhor do que se as visse, senti aquelas coisas ocultas; sentias
pelos efeitos inexplicáveis que produziram em mim. Tudo
aconteceu em minha mente interior; e tais impressões, mais
rápidas que o pensamento, abalaram, revolveram e viraram minha
alma, por assim dizer, em outra direção, para outras metas, por
outros caminhos.

Fílon de Alexandria

Às vezes, quando chegava ao meu trabalho vazio, eu me


tornava repentinamente cheio; sendo as ideias, de maneira
invisível, despejadas sobre mim a modo de chuveiro, e
implantadas em mim desde o alto; de sorte que, sob o influxo da
inspiração divina, me senti grandemente emocionado, não
conhecendo nem o lugar em que eu estava, nem as pessoas que se
achavam presentes, nem a mim mesmo, nem o que eu estava
dizendo, nem o que estava escrevendo; pois então tive consciência
de uma riqueza de interpretação, um gozo de luz, uma visão
interior sumamente penetrante, uma energia manifesta em tudo o
que estava para ser feito; que me exerciam sobre a mente um

121
efeito como o que a mais clara das demonstrações oculares me
exerceria sobre os olhos.

Anónimo

Minha família estava lá embaixo em nossa casa. Eu estava


sentado, meditando — olhos fechados — e de repente, um túnel
apareceu — e era como se eu estivesse sendo puxado para dentro
dele, cada vez mais rápido. Então aconteceu — eu estava imerso
numa luz branca por toda parte. Em mim, fora de mim — não
havia separação. Apenas uma luz branca brilhante. E, ao mesmo
tempo, eu vi todas as coisas acontecendo ao mesmo tempo. Eu vi
todas as coisas como se estivessem na ponta afiada de uma agulha,
e senti que a única coisa que estava separando e causando todo o
sofrimento era não saber o que eu estava vendo agora. Era como
se eu soubesse todas as respostas, todas as lutas. Além disso, havia
uma sensação física poderosa de euforia. Não tenho certeza de
quanto tempo durou. Mas depois de sair dela, tive de descer para o
almoço. Estava tão comovido que sentia dificuldade em
comunicar-me com a família. Durante anos tentei obter essa
experiência novamente, mas sem sucesso. Meio que aparecia o
túnel de novo, mas não a imersão na luz branca.

Charles Lindbergh

O aviador Charles Lindbergh sentiu que não estava sozinho


ao tentar seu primeiro vôo transatlântico sozinho e sem escalas de
Nova York a Paris. Lindbergh decolou cedo de Roosevelt Field,
perto de Nova York, em 20 de Maio de 1927. Com o único auxílio
de uma bússola magnética e um anemômetro, ele pilotou seu
monoplano em direção nordeste ao longo da costa, e foi visto
sobre a Nova Escócia e a Terra Nova antes de virar o Oceano

122
Atlântico em direção à Irlanda. Foi um vôo muito difícil.
Dezessete horas após a decolagem, ele sentiu que não poderia
continuar sem dormir. Mas o sono significava morte certa, e
Lindbergh atribuiu sua salvação à instabilidade estrutural do
avião. A máquina, enquanto Lindbergh deslizava para os reinos do
sono, dava guinadas que o mantinham acordado. Gradualmente ele
começou a notar que, conforme seu corpo reclamava o sono e sua
mente tomava decisões às quais seus sentidos eram incapazes de
prestar atenção, ele cedeu o controle a uma “mente alheia,” uma
força que ele reconheceu como pertencente a si mesmo, mas não
inteiramente. Depois de um vôo de dezenove horas, Lindbergh
alcançou a primeira metade da viagem. Foi durante a vigésima
segunda hora da viagem que Lindbergh de repente encontrou uma
presença na fuselagem do avião. Enquanto lutava para ficar
acordado e controlar o monoplano, às vezes voando tão baixo que
chegava a tocar a espuma das ondas do Atlântico, Lindbergh
percebeu que tinha companhia. Na verdade, ele pensava que mais
de um ser estava viajando com ele. Ele conta: “Atrás de mim, a
fuselagem começa a encher-se de presenças fantasmagóricas,
figuras com contornos imprecisos, transparentes, móveis,
caminhando sem peso comigo no avião. Não fiquei surpreso com
a chegada deles. Não há nada repentino em seu aparecimento. Sem
me virar, posso vê-los tão claramente quanto o campo de visão
normal à minha frente.” Lindbergh sentiu os “fantasmas” falarem
com ele e os achou amigáveis. Ele não estava nem um pouco
assustado. Teve a sensação de que conhecia essas presenças, que
lhe eram familiares. Ele sabia que eles estavam ali para ajudá-lo,
“conversando e avisando sobre o vôo, falando sobre os problemas
da navegação aérea, me tranquilizando, dando-me conselhos
importantes, inacessíveis na vida normal.” Mais tarde naquele dia,
Lindbergh avistou uma mancha no oceano. Enquanto voava em
direção a ela, viu que era um barco de pesca e logo muitos outros

123
apareceram. Não demorou muito para chegar a um promontório
cheio de vegetação, e ele pensou que era a costa sudoeste da
Irlanda. Ele desceu em espiral até uma vila e viu pessoas saindo de
suas casas e correndo para a rua, observando-o e cumprimentando-
o. Lindbergh pensou: “A vontade de dormir foi-se e, com ela, as
presenças fantasmagóricas que viajaram comigo esta manhã.”
Lindbergh continuou a sobrevoar Plymouth, na Inglaterra, com a
intenção de chegar a Paris para finalizar o histórico vôo direto
entre os dois continentes. Ele mencionou pela primeira vez “seres
desencarnados” num livro de memórias fragmentário e inédito
escrito em 1939. Mais tarde, ele acrescentou detalhes ao que foi
realmente uma experiência muito íntima e pessoal, mas levaria
anos, quase três décadas após aquele vôo, para finalmente tornar
público seu encontro incomum. Lindbergh escreveu: “Nunca
acreditei em aparições, mas como posso explicar as figuras que
permaneceram comigo durante as longas horas daquele vôo?
Figuras transparentes com contornos humanos, com vozes que
falavam comigo com clareza e autoridade. Mas o que foi que me
disseram? Não me lembro de uma única palavra.” Lindbergh
nunca descartou que as presenças fossem alucinações, mas as
interpretou como “sequelas de experiências passadas armazenadas
no subconsciente.” Teve a sensação de ter tocado, durante seu
longo vôo, uma realidade superior. Apesar de não se lembrar dos
detalhes da conversa com seus companheiros fantasmagóricos, ele
se lembrava o suficiente deles para chamá-los de “conselheiros
amigáveis” e “seres encorajadores”.

Anónimo

Meu pai falecera recentemente e eu estava sozinho num


jardim. Estava sentado num banco, num local favorito, que tem
uma cachoeira escorrendo por ele. Estava simplesmente

124
relaxando, ouvindo o som suave da água, quando senti uma
mudança interior, na minha consciência. E então apareceu uma luz
de dentro que se tornou tão brilhante que eu não tinha mais
consciência dos meus sentidos, tudo era luz. E então uma voz se
tornou audível, não aos meus ouvidos, mas por dentro, ao meu
espírito. Essa voz me informou da minha vida: quem eu era e por
que vim ao mundo. Eu experimentei atemporalidade. Então a voz
silenciou, e a luz que eu estava experimentando tornou-se mais
intensa. E experimentei o que tinha ouvido e lido, mas nunca
havia experimentado: amor incondicional. Senti uma vontade de
morrer naquele momento e ali, se ao menos pudesse permanecer
exatamente onde estava, mesmo que isso significasse não me
despedir de entes queridos. Este estado durou talvez 5 ou 10
minutos. E então tudo acabou.

Henry Alline

Estando eu vagueando, mais ou menos à hora do pôr-do-sol,


nos campos, lamentando minha miserável condição perdida e
arruinada, e quase pronto para afundar debaixo do meu fardo,
refleti que eu me achava num estado tão miserável como nenhum
homem estivera antes. Voltei para casa e, chegado à porta, no
momento em que transpunha o limiar, as seguintes impressões me
invadiram a mente como uma vozinha baixa, mas poderosa: “Tens
andado procurando, orando, reformando, laborando, lendo,
ouvindo e meditando, e o que foi que fizeste com tudo isso pela
tua salvação? Estás mais próximo agora da conversão do que
estavas quando começaste? Estás mais preparado para o céu, ou
mais aparelhado para te apresentares à barra imparcial do tribunal
de Deus, do que no dia em que principiaste a procurar?” Isso
gerou em mim tamanha convicção que me vi obrigado a dizer que
não supunha estar um passo sequer mais perto do que no

125
princípio, mas tão condenado, tão exposto e tão miserável quanto
antes. Gritei dentro de mim, “Senhor Deus, estou perdido, e se tu,
ó Senhor, não encontrares algum caminho novo, que desconheço,
nunca serei salvo, porque os caminhos e métodos que me tenho
prescrito falharam todos e eu mesmo quis que eles falhassem.
Senhor, tem misericórdia! Senhor, tem misericórdia!” Esses
descobrimentos continuaram até que entrei na casa e me sentei.
Sentado, cheio de confusão, como um homem a pique de afogar-
se, que justamente se dava por perdido e numa quase agonia, virei-
me subitamente na cadeira e, vendo parte de uma velha Bíblia
numa das mesas, peguei-a à pressa; abrindo-a sem nenhuma
premeditação, meus olhos deram com o Salmo 38, e foi a primeira
vez que vi a palavra de Deus: apoderou-se de mim com tamanha
força que parecia atravessar-me toda a alma, de modo que se diria
que Deus estava rezando em mim, comigo e por mim. Mais ou
menos a essa hora meu pai chamou a família para as orações; fui
ter com ele, mas não atentei para o que ele dizia na oração, e
continuei a rezar com as palavras do Salmo. Naquele exato
momento, quando entreguei tudo a ele para que fizesse comigo o
que lhe aprouvesse, e estava querendo que Deus me governasse a
seu talante, o amor redentor irrompeu em minha alma com
repetidas escrituras, com tanta força que toda a minha alma
parecia derreter-se de amor; o fardo da culpa e da condenação
desaparecera, a treva fora expulsa, meu coração transbordava de
humildade e gratidão, e toda a minha alma, que, minutos antes,
gemia debaixo de montanhas de morte e gritava por socorro a um
Deus desconhecido, estava agora cheia de amor imortal, librando-
se nas asas da fé, libertada das cadeias da morte e da treva, e
gritando, “Meu Senhor e meu Deus: és minha rocha e minha
fortaleza, meu escudo e minha torre, minha vida, minha alegria, o
meu presente e minha parte na eternidade.” Erguendo os olhos,
julguei ver a mesma luz, pois vira, em mais de uma ocasião

126
anterior, subjetivamente, uma luz muito intensa, embora parecesse
diferente; e, tanto que a vi, compreendi-lhe o intento, de acordo
com a sua promessa, e fui obrigado a gritar: “Basta, basta, Deus
bendito!” O trabalho da conversão, a mudança e as suas
manifestações não são mais contestáveis do que a luz que vejo, ou
do que qualquer coisa que já vi. No meio de todas as minhas
alegrias, menos de meia hora depois que minha alma foi posta em
liberdade, o Senhor me desvelou o meu trabalho no sacerdócio e
chamou-me para pregar o evangelho. Passei a maior parte da noite
em êxtases de alegria, louvando e adorando o Eterno por sua graça
livre e sem limites. Após ter estado por tanto tempo absorto nesses
transportes, minha natureza pareceu exigir o repouso, e pensei em
cerrar os olhos por alguns momentos; nisso, entrou o demónio e
me disse que, se eu adormecesse, perderia tudo aquilo e, quando
acordasse na manhã seguinte, descobriria que tudo não fora mais
que fantasia e ilusão. Imediatamente gritei, “Senhor Deus, se eu
estiver iludido, desilude-me.” Fechei-me então os olhos por alguns
minutos, e creio que o sono me restaurou; quando acordei, minha
primeira pergunta foi, “Onde está o meu Deus?” E, numa fração
de segundo, minha alma pareceu despertar em Deus e com ele,
cercada pelos braços do amor sempiterno. Ao nascer do sol, ergui-
me com alegria a fim de contar a meus pais o que Deus fizera por
minha alma, e declarei-lhes o milagre da graça ilimitada de Deus.
Peguei a Bíblia para mostrar-lhes as palavras impressas por Deus
em minha alma na véspera; mas, quando a abri, ela me pareceu
inteiramente nova. Eu ambicionava tanto ser útil à causa de Cristo,
pregar o evangelho, que parecia já não poder ficar inativo por mais
tempo; precisava sair para contar a todos as maravilhas do amor
redentor. Perdi o gosto dos prazeres carnais e da companhia
carnal, e foi-me permitido abrir mão deles.

Edith Foltz Stearns

127
Stearns obteve sua licença de piloto em 1928 e começou a
realizar apresentações de acrobacias no noroeste dos Estados
Unidos. Numa competição em 1932, Stearns perdeu-se e estava
quase sem combustível. Pareceu-lhe que a única chance de evitar
um acidente era tentar pousar numa ferrovia que avistava. Ela
começou a descer e enquanto se preparava para o pouso perigoso,
uma voz gritou: “Não! Não, Edie, não!” Ela reconheceu aquela
voz como a de uma antiga colega de classe que morreu num
acidente de carro quando era adolescente. Assustada, ela subiu
rapidamente, nivelou a aeronave e continuou seu caminho. Alguns
minutos depois, ela avistou a pista de Phoenix e pousou sem
incidentes. Stearns disse: “Eu nunca vôo sozinha. Algum tipo de
presença se senta ao meu lado, e agoréa que penso nisso, é como
se ela fosse meu copiloto. Em momentos de grave perigo, uma
mão invisível assume o controlo e me salva.”

Pierre Weil

Numa noite de Natal, estava eu reunido com amigos,


participando alegremente daquela comemoração. Enquanto
dançava com uma amiga, dei-me conta, subitamente, de que o
meu ritmo e o dela formavam uma estranha e indissolúvel
unidade. Jamais havia vivido algo tão harmonioso; tal harmonia,
por sua vez, proporcionava-me uma felicidade indescritível. Pouco
tempo depois, sentado diante dela, percebi, de repente, que seu
rosto estava envolto por uma luminosidade azulada; um azul
semelhante ao que se desprende nas soldaduras feitas com
acetileno. A mistura do azul com a tonalidade natural de seu rosto
conferia uma coloração acinzentada à sua figura. A coloração
cinzenta era ainda mais acentuada ao redor de seu olho direito. Eu
soube, então, por uma via intuitiva, que seu olho estava enfermo;

128
mais tarde, ela o confirmou, contando que deveria submeter-se a
uma cirurgia oftalmológica. Eu me tornara clarividente. De súbito,
uma luz dourada e fascinante surgiu num dos cantos da sala;
assemelhava-se a uma cortina de luz. Ela possuía um caráter
sagrado e emanava qualquer coisa que me transmitia o sentimento
muito claro de uma presença invisível a meus olhos físicos, porém
percetível diretamente, se é que posso me exprimir assim. O
sentimento de algo sagrado se intensificou; entrei num estado de
arrebatamento, espanto e elevação espiritual extrema. Depois, vi
partículas luminosas e cintilantes no ar, que logo identifiquei
como sendo a manifestação da microestrutura subatômica. Um
sentimento de poder ilimitado tomou conta de mim, e reconheci
que podia penetrar, com os olhos do espírito, nos nós da madeira
de pinho do chalé onde me encontrava. Um detalhe que me parece
importante: primeiro, todas essas visões eram recebidas à margem
de meu campo visual, isto é, era preciso que olhasse de lado os
objetos ou luzes em questão; e segundo, embora me fossem
externas, dei-me conta de que não poderia afirmar o caráter de tais
perceções: se era externo ou interno. Elas não estavam, de facto,
nem dentro, nem fora: tratava-se de uma outra dimensão espacial.

Mark Twain

Enquanto relatava os eventos em seus diários, Twain e seu


irmão Henry estavam trabalhando no barco fluvial da Pensilvânia
em Junho de 1858. Enquanto estavam no porto de St. Louis, o
escritor teve um sonho notável: “De manhã, quando acordei eu
estava sonhando, e o sonho era tão vívido, tão parecido com a
realidade, que me enganou, e eu pensei que era real. No sonho, eu
tinha visto o cadáver de Henry. Ele estava num caixão de metal.
Ele estava vestido com um terno meu, e em seu peito estava um
grande buquê de flores, principalmente rosas brancas, com uma

129
rosa vermelha no centro.” Twain acordou, vestiu-se e preparou-se
para ir ver o caixão. Ele estava caminhando para a casa onde
pensava que o caixão estava antes de perceber que “não havia
nada de real nisso – era apenas um sonho.” Mas infelizmente não
era. Algumas semanas depois, Henry ficou gravemente queimado
numa explosão de caldeira e morreu pouco depois quando alguns
jovens médicos lhe deram uma enorme overdose de ópio para a
dor. Normalmente, os mortos eram enterrados em caixões de
pinho simples, mas algumas mulheres conseguiram angariar
dinheiro para colocar Henry num caixão especial de metal. Twain
explica o que aconteceu a seguir: “Quando voltei e entrei no
quarto, Henry estava naquele caixão aberto, e ele estava vestido
com um terno meu. Ele tinha pegado emprestado sem o meu
conhecimento durante nossa última estadia em St. Louis; e
reconheci instantaneamente que meu sonho de várias semanas
antes estava aqui sendo exatamente reproduzido, no que diz
respeito a esses detalhes, embora parecesse faltar um, mas que foi
imediatamente fornecido, pois então uma senhora idosa entrou no
local com um grande buquê consistindo principalmente de rosas
brancas, e no centro dele estava uma rosa vermelha, e ela o
colocou sobre o peito dele.” Agora, quem de nós não ficaria
permanentemente marcado, ao mesmo tempo inspirado e
assombrado, por tal série de eventos? Quem de nós, se este fosse
nosso sonho e nosso irmão, poderia honestamente descartar tudo
como uma série de coincidências? Twain certamente não poderia.
Ele estava obcecado por tais momentos em sua vida, que eram
muitos. Em 1878, ele descreveu alguns deles num ensaio e até
teorizou sobre como eles funcionam. Mas não conseguiu publicá-
lo, pois temia que “o público tratasse a coisa como uma piada,
enquanto eu estava falando sério.” Mas Twain acabou por ceder,
permitindo que seu nome fosse anexado às suas próprias
experiências e publicou este material na revista Harper em duas

130
partes separadas: “Telegrafia Mental: Um Manuscrito com uma
História” (1881) e “Novamente sobre a Telegrafia Mental” (1885).
A metáfora aponta para a tecnologia de ponta da época. Também
aponta para a convicção de Twain de que tais sonhos
precognitivos e comunicações instantâneas estavam ligados aos
atos de ler e escrever. Na verdade, Twain suspeitava que os
processos que essa telegrafia mental nomeava tinham alguma
relação profunda com as fontes de seu próprio sucesso literário. E
ele estava falando sério. O manuscrito com uma história do título
do primeiro ensaio refere-se a um enredo detalhado para uma
história sobre algumas minas de prata do Nevada que surgiu em
sua mente um dia, como que do nada, como se viesse de outra
pessoa. Quando uma carta de um amigo a três mil milhas de
distância chegou pelo correio alguns dias depois, ele sabia
exatamente o que havia nela antes de abrir o envelope: o enredo da
história das minas de prata que recebera num flash de criatividade
e inspiração alguns dias antes.

Ann Bancroft

Ann Bancroft e sua companheira norueguesa Liv Arnesen


tentariam viajar mais de 3.200 quilômetros através do continente
desde a Terra da Rainha Maud até a base americana de McMurdo
na Antártica. Se a expedição fosse concluída com sucesso, elas se
tornariam as primeiras mulheres a realizar a façanha e, ao mesmo
tempo, estabeleceriam um recorde difícil de bater. O terreno era
particularmente problemático. Ambas as mulheres arrastaram
pesados trenós de 120 quilos carregados de suprimentos e lutando
contra as ondas de gelo. Foram forçadas a ziguezaguear em
encostas íngremes para alcançar o planalto polar. Desde a sua
partida que elas se desviaram da rota planejada e,
consequentemente, sofreram não apenas severas dificuldades

131
físicas mas também enorme pressão psicológica causada pela
possibilidade de fracasso. Como se não houvesse obstáculos
suficientes, Bancroft sofreu uma torção dolorosamente dolorosa
quando uma forte rajada de vento sacudiu seu braço violentamente
enquanto ela lutava para desembaraçar uma corda de reboque. Um
dia, faltando apenas quatro horas de marcha, Bancroft teve a
repentina sensação de estar na companhia de outra pessoa.
Arnesen, que estava ilesa, caminhava à frente a uma boa distância.
Bancroft sentiu a presença atrás de seu ombro direito.
Instantaneamente a invadiu uma sensação de bem-estar, calor e
força. Bancroft explica: “Surpreendeu-me, porque a presença
trouxe consigo uma avalanche de emoções; foi intenso e
inconfundível, um bom remédio, e também era o que eu precisava.
Fosse o que fosse, funcionou. Abracei o sentimento e a sensação
da presença.” Bancroft acreditava que a presença era na verdade
uma mulher e, de maneira incomum, sentiu que “não havia
dúvidas sobre a identidade da presença”. No décimo segundo dia
da expedição ela anotou em seu diário: “A intensa presença de
minha mentora (falecida há pouco tempo) encheu a área. Foi uma
presença estimulante e encorajadora. Esse sentimento não só me
deu força, mas também trouxe um grande conforto.” A mentora
era sua falecida avó, a quem ela chamava de Rannie. Bancroft
ficou surpresa não apenas com a intensa sensação de sua
proximidade, mas também porque ela não era a avó que ela
esperava que aparecesse se tivesse imaginado tal situação de
antemão. A presença era sua avó paterna, uma mulher que havia
morrido seis anos antes, e de quem Bancroft não era tão próxima
como era de sua avó materna. A sensação de sua presença persistiu
por algum tempo. Bancroft relembra: “Ela permaneceu por um
tempo até o ponto em que — embora pareça um pouco ridículo
dizer isso — eu falei com ela alto e claramente.” Em resposta, ela
recebeu uma mensagem de encorajamento e uma garantia de que

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iria sobreviver: “Vais sobreviver, mas vai ser muito difícil.” Sua
situação melhorou e Bancroft e Arnesen finalmente triunfaram.

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