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DOI: http://dx.doi.org/10.

31657

Artigo

Testemunhas de si mesmo: mudanças no


jornalismo na era dos testemunhos
Witnesses of self: changes in journalism in the age of testimonies
Testigos de sí mismos: cambios en el periodismo en la era de los testimonios
Cristine Gerk
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
<crisgerk@gmail.com>

Marialva Barbosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
<marialva153@gmail.com>

Resumo Abstract Resumen


Este trabalho pretende discutir o que This work intends to discuss what Ese trabajo desea discutir lo que llama-
denominamos Jornalismo na Era dos has being called “Journalism in the mos “Periodismo en la Era de los Testi-
Testemunhos, a partir de uma reflexão Testimony Age”, starting with a re- gos”, desde una reflexión sobre la ma-
a respeito da forma como os relatos flection about the way testimonies nera que son tratados hoy los testigos
são tratados em produtos midiáticos are treated by journalists in midiatic por periodistas en productos midiáti-
na contemporaneidade. Tratamos das products. We talk about the implica- cos. Hablamos sobre las implicaciones
implicações entre memória, testemu- tions between memory, testimony entre memoria, testigo y periodismo,
nho e jornalismo, a partir do testemu- and journalism with the help of the con la ayuda de periodistas elegidos
nho dos próprios jornalistas, eleitos testimonies of the journalists elected por los pares como referencias de la
pelos pares como referências na by the group as references in the pro- profession en Brasil. Ellos hablan sobre
profissão no Brasil. Escolhidos como fession in Brazil. They talk about their sus memorias y sobre la dimensión del
porta-vozes por mais de cem profissio- memories and about the dimension testigo en las práticas professionales.
nais com passagens por redações do of the testimony in their professio- Caco Barcellos, Ricardo Boechat, Elia-
Rio de Janeiro, Caco Barcellos, Ricardo nal practices. Caco Barcellos, Ricardo ne Brum, Glória Maria y Leslie Leitão
Boechat, Eliane Brum, Glória Maria e Boechat, Eliane Brum, Glória Maria analisam los cambios en el periodismo
Leslie Leitão analisam as mudanças and Leslie Leitão analyse changes in hoy tenendo como norte la análisis del
na profissão hoje, tendo como norte journalism nowadays, focusing on impacto del también llamado “perio-
a análise do impacto deste também the analysis of the impact of the so dismo declaratório”.
chamado “jornalismo declaratório”. called “declaratory journalism”.
Palavras clave: Periodismo. Contem-
Palavras-chave: Jornalismo. Contem- Keywords: Journalism. Contempora- poraneidad. Medios de comunicación.
poraneidade. Mídia. Prática profissional. neity. Media. Professional practice. Práctica profesional.

O lide tem sido recorrente: o jornalismo temporâneo que denominamos “Era dos
passa por um período de crise, com neces- Testemunhos”. E que lugar histórico é
sidade de reinvenção. Essa luta se relaciona esse? O de testemunha da história? O que
com a tentativa de manter protegido um significa esta Era dos Testemunhos?
lugar histórico conquistado pela profissão, Os relatos têm ganhado legitimação por
em meio ao turbilhão de um período con- si sós, sem necessidade de canal legitima-

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dor ou intermediário para a divulgação. quê. Na sequência, os “ícones” eleitos, que


Mas a história... Por mais nebulosos que neste trabalho denominamos personagens-
pareçam o presente e o futuro, não é pos- -emblemas memoráveis, comentaram as
sível ignorar que o jornalismo tem muita mudanças no jornalismo, os desafios, falam
história. E vice-versa. São principalmente sobre suas memórias, aqueles que admiram
as associações entre jornalismo, memória e na profissão, seus valores e sobre como ava-
testemunho que sempre tornaram essa his- liam o que denominamos aqui Jornalismo
tória profissional possível e viva, cheia de na Era dos Testemunhos. Foram escolhidos
rupturas e continuidades. para entrevista os seis mais citados pelos pa-
Este artigo percorre os caminhos que res: Caco Barcellos, Ricardo Boechat, Elio
relacionam esses três campos para analisar Gaspari, Eliane Brum, Glória Maria e Les-
as transformações sofridas pelo jornalismo lie Leitão. Destes, apenas Elio Gaspari não
a partir do advento da internet, sobretudo aceitou ter sua entrevista reproduzida. Os
de smartphones e redes sociais, sem per- entrevistados dão seu testemunho e nos em-
der de vista a historicidade. O testemunho prestam suas memórias e análises sobre este
não pode ser pensado sem se considerar a momento da história, no qual ocupam lugar
dimensão da memória. Ele pressupõe o privilegiado de testemunha. Um período
contato com lembranças e registros, indivi- no qual as testemunhas (e seus relatos) têm
duais e coletivos. Da mesma forma, a me- lugar privilegiado nos jornais e nas redes
mória só é consolidada a partir do momento sociais. Neste artigo, focamos em analisar
em que é transmitida, através dos relatos. como eles entendem esse fenômeno.
Muito se tenta prever sobre o futuro A pesquisa partiu de algumas questões
dessa profissão a partir do século XXI, mas principais: se em uma época com profusão
é difícil fazer qualquer previsão sem estu- de testemunhos o jornalista tem seu teste-
dar o testemunho daqueles que tentam se- munho enfraquecido, então o jornalismo
gurar as rédeas do fluxo descontrolado do perdeu o lugar autoatribuído de testemu-
tempo para continuar na cela de referência. nha? Como isso impactaria as práticas co-
É preciso analisar quem inspira ainda esse tidianas e a forma como a profissão é refe-
grupo, e que valores motivam a admiração, renciada pelos próprios jornalistas? Sendo
para entender para onde esse trotar confuso assim, há uma hipótese central que norteia
se direciona. Portanto, a questão do teste- este trabalho: se há uma mudança do teste-
munho é estudada em duas dimensões nes- munho como dimensão do jornalismo, ha-
ta pesquisa: o testemunho como ferramen- veria também mudanças nas práticas e na
ta histórica de produção do jornalismo e o identidade jornalísticas.
testemunho do jornalismo sobre si mesmo. Segundo Vaz, Santos e Andrade (2014),
O ponto de partida metodológico foi a passamos hoje de um cenário em que se
aplicação de um questionário, respondido privilegiava a confissão – forma de discurso
por 103 jornalistas cariocas entre março e autobiográfico decisiva para a constituição
abril de 2017. Foi pedido para que o parti- da subjetividade desde, ao menos, o Concí-
cipante indicasse o jornalista que conside- lio de Trento até a modernidade – para uma
ra uma espécie de ícone na profissão e por era de testemunhos, o novo discurso auto-

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biográfico crucial para a produção da sub- mas também os de observadores de situa-


jetividade. Neste contexto, o interlocutor ções diversas e aqueles que expressam e le-
deixa de ser valorizado por ter autoridade e gitimam a opinião de um grupo, sobretudo
ser capaz de ajudar em um processo secre- de um grupo com opiniões políticas especí-
to de salvação ou cura. Ele passa a ocupar ficas, muitas vezes não importando para os
um lugar de duplo endereçamento. Quem jornalistas e para os espectadores/leitores
escuta é um indivíduo qualquer, tolerante se as informações transmitidas nesses re-
e solidário, em uma dinâmica terapêutica latos são verdadeiras ou falsas. Neste sen-
que pressupõe a ida ao espaço público, e tido, caberia novamente investigar o papel
não o segredo. Desta forma, é valorizado da credibilidade das instituições e figuras
como corajoso aquele que supera o medo e a emblemáticas do jornalismo nesse ambien-
vergonha e vem a público assumindo lugar te de difusão de boatos e acusações falsas.
de vítima ou de denunciante vitimizado. Para estudar a memória do jornalismo e
Essa característica presente na expe- como ele se configura e reconfigura hoje, é
riência – de que ela mesma produz a ver- fundamental uma análise que envolva a di-
dade vivida – está também de maneira ex- mensão do testemunho.
ponencial em vídeos e fotos mandados pe-
los leitores para jornais e sites. Jornalistas
alertam para o perigo da prática, cada vez Personagens-emblema memoráveis
mais frequente, de produzir matérias ape- Antes de conhecermos a opinião dos en-
nas a partir de um relato enviado por leitor trevistados, cabe fazer uma pequena intro-
em redes sociais, como Whatsapp. Há mais dução sobre os personagens eleitos como re-
chances de virarem matérias as mensagens ferência por pares, bem como sobre suas tra-
acompanhadas de fotos ou vídeos, sobre- jetórias. Caco Barcellos nasceu na periferia de
tudo de pessoas que denunciam abusos do Porto Alegre, em 1950. Ele se especializou,
poder público ou violências no lugar de ví- ao longo da carreira, em jornalismo investi-
timas. O testemunho valorizado é cheio de gativo e em grandes reportagens, sobretudo
fatos bem descritos, para dar uma dimen- sobre injustiça social e violência. Começou
são realista à narrativa (SARLO, 2007, p. no jornalismo como repórter do jornal Folha
50). É o lugar da vítima, a contrário da con- da Manhã, do grupo gaúcho Caldas Júnior.
fissão, que seria o lugar de um agente re- Teve atuação destacada nos veículos da im-
flexivo sobre seu próprio comportamento. prensa alternativa dos anos 1970. Antes de
A partir de um princípio de presunção da trabalhar para a Rede Globo, onde ficou mais
inocência do narrador, quem desconfia de conhecido pelo grande público, foi repórter
um testemunho é visto como sem compai- de outros jornais e das revistas de informação
xão ou preconceituoso (VAZ; SANTOS; semanal Istoé e Veja. Ainda quando trabalha-
ANDRADE, 2014, p. 5). va no jornalismo impresso, no fim dos anos
É importante ressalvar que os relatos 1970, foi correspondente internacional em
valorizados e compartilhados no ambiente Nova Iorque. Durante seis anos apresentou
virtual, e muitas vezes replicados em veícu- um programa semanal na emissora Globo
los de mídia, não são apenas os de vítimas, News. A partir de 2001, passou a atuar como

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correspondente internacional em Londres, No programa, ficou conhecida pelas maté-


para a Rede Globo. Atuou durante mais de rias especiais e viagens a lugares exóticos, e
20 anos em programas da Globo, como Glo- por entrevistar celebridades como Michael
bo Repórter, Fantástico, Jornal Nacional e no Jackson e Madonna. A jornalista cobriu a
Profissão Repórter, que comanda atualmente. guerra das Malvinas (1982), a invasão da
É o autor do livro Rota 66, que lhe custou oito embaixada brasileira do Peru por um gru-
anos de pesquisa e várias ameaças. A obra faz po terrorista (1996), os Jogos Olímpicos
denúncias sobre o trabalho da polícia em São de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na
Paulo. A investigação levou à identificação de França (1998). Após 10 anos no Fantástico,
4.200 vítimas mortas pela Polícia Militar de Glória anunciou que iria tirar dois anos de
São Paulo. Em 2008, recebeu o Prêmio Espe- licença para se dedicar a projetos pessoais e,
cial das Nações Unidas, como um dos cinco ao retornar à Globo, em 2010, pediu para
jornalistas que mais se destacaram, nos últi- integrar a equipe do Globo Repórter, pro-
mos 30 anos, na defesa dos direitos humanos grama do qual faz parte até hoje.
no Brasil. Leslie Leitão tem a sua trajetória profis-
Ricardo Boechat nasceu em Buenos Ai- sional ligada a veículos sediados no Rio de
res, em 13 de julho de 1952, e morreu em Janeiro. Ele começou a carreira na editoria
fevereiro de 2019, em um acidente de heli- esportiva, em 1996, sendo repórter da [hoje
cóptero. Trabalhou nos principais jornais extinta] agência Sports Press. Aos 19 anos,
do Brasil, como O Globo, O Dia, O Estado chegou diário Lance. Leslie passou pelos
de S. Paulo e Jornal do Brasil. Foi também jornais Extra e, depois, O Dia. Entre suas
diretor de jornalismo na Band, e trabalhava principais reportagens nas áreas de espor-
como âncora de dois jornais: nas redes de rá- tes, em que ficou por oito anos, está o caso
dio da BandNews FM, e de televisão, a Band do assassinato da modelo Eliza Samudio
do Grupo Bandeirantes de Comunicação. pelo ex-goleiro do Flamengo Bruno Souza,
Boechat ganhou três prêmios Esso (1989, que Leslie foi o primeiro a noticiar. Sobre o
1992 e 2001), oito prêmios Comunique-se caso, escreveu, em parceria com dois outros
(2006, 2007, 2008, 2010, 2012, 2013, 2014 jornalistas, o livro Indefensável – o goleiro
e 2017) e o Troféu Imprensa 2016 – Melhor Bruno e a história da morte de Eliza Samu-
Apresentador de Telejornal, entre outras dio. Outra reportagem de grande destaque
honrarias. foi sobre Eurico Miranda e a caixa-preta do
Glória Maria nasceu no Rio de Janei- futebol, publicada pelo Extra, que concor-
ro, em 1949. Em 1970, foi levada por uma reu ao prêmio Esso, em 2001. Com o traba-
amiga para ser rádio-escuta da Globo do lho Faroeste Carioca, publicado no jornal O
Rio. Em 1971, estreou como repórter da DIA, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo
emissora. Glória trabalhou no Jornal Hoje, em 2010. Ele foi ainda finalista ao Prêmio
no Bom Dia Rio e no RJTV. No Jornal Esso, categoria regional 3, em 2007, com o
Nacional, foi a primeira repórter a apare- trabalho Memórias do cárcere, publicado no
cer ao vivo, em 1977. A partir de 1986, a jornal O DIA. Desde 2017, Leslie trabalha
jornalista integrou a equipe do Fantástico, na TV Globo, no núcleo de jornalismo in-
do qual foi apresentadora de 1998 a 2007. vestigativo.

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Gaúcha de Ijuí, nascida em 1966, Eliane bre as consequências desse método, e como
Brum é jornalista, escritora e documentaris- ele impacta na profissão, no sentido de in-
ta. Trabalhou 11 anos como repórter do jor- terferir, ou não, na capacidade de o próprio
nal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 como jornalista ser ele mesmo “testemunha da
repórter especial da revista Época, em São História”. A temática já havia sido abor-
Paulo. Desde 2010, atua como freelancer e dada espontaneamente pelos jornalistas em
faz projetos de longo prazo com populações outros momentos das conversas, mas como
tradicionais da Amazônia e das periferias da este trabalho se relaciona diretamente a
Grande São Paulo. De 2009 a 2013, foi co- esse assunto, o exploramos um pouco mais
lunista do site da revista Época. Desde 2013 e trazemos os resultados neste artigo, para
tem uma coluna quinzenal, em português e pensarmos o fenômeno à luz da opinião de
espanhol, no jornal El País. É também cola- personagens escolhidos como referência.
boradora do jornal britânico The Guardian. Barcellos reconhece o fenômeno e diz
Publicou seis livros – cinco de não ficção e que ele impacta negativamente, em primei-
um romance –, além de participar de cole- ro lugar, na “felicidade do jornalista”, já que
tâneas de crônicas, contos e ensaios. Como para ele é um privilégio e algo “apaixonante”
jornalista, Eliane Brum ganhou mais de 40 para o jornalista “se guiar com luz própria, ir
prêmios nacionais e internacionais de re- atrás da história, onde ela estiver, conhecer
portagem, como Esso, Vladimir Herzog, pessoas novas todos os dias e aprender com
Ayrton Senna, Líbero Badaró, Sociedade elas”. Para ele, a presença física do profissio-
Interamericana de Imprensa e Rei de Es- nal durante a reportagem é essencial.
panha. Em 2008, recebeu o Troféu Espe-
cial de Imprensa ONU, “por tudo o que já Toda pessoa, independentemente de
fez e vem realizando em defesa da Justiça e classe social, guarda consigo uma bela
da Democracia”. Foi três vezes reconheci- história, cabe a você conhecê-la, ouvi-
da, em votação da categoria, com o Prêmio -la. Acho que as ferramentas, que não
Comunique-se. Por cinco vezes ganhou o são nada tecnológicas, mais eficazes
Troféu Mulher Imprensa. para um bom trabalho de profundi-
dade jornalística são as que estão na
nossa cabeça, são os olhos, a boca, e
Análise das referências principalmente os ouvidos, são essen-
Perguntamos aos entrevistados sobre ciais, porque você se dedicar a ouvir
o conceito, trabalhado nesta pesquisa, de o conhecimento alheio é fascinante,
“Jornalismo na Era de Testemunhos”. Ex- você aprende junto, e depois é contar
plicamos que tinha relação com uma críti- aquela história. E no conjunto des-
ca, feita por muitos jornalistas, de um jor- sa busca é relativamente fácil você se
nalismo que se baseia, atualmente, apenas aproximar da verdade. A verdade ab-
em relatos enviados ou publicados em rede soluta é um conceito inatingível, mas
social, por vezes apenas acompanhados de é nossa obrigação se aproximar dela.
resposta de autoridades competentes. A in- [...] Eu confio e desconfio de todos, é
tenção era questionar os entrevistados so- preciso estar lá e ver com meus olhos,

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quais as perguntas que eu tenho, qual que o jornalista sempre se apropriou dos
o interesse de quem enviou o relato, a testemunhos alheios, sem ser ele mesmo a
que grupo pertence, qual a sua ideo- testemunha. Apenas teria perdido o mo-
logia, preferências religiosas, sexua- nopólio da difusão da informação coletada.
lidades, preconceitos. O meu olhar é O apresentador tampouco acreditava que o
de desconfiança. Interagindo com o jornalista esteja mais “preguiçoso”: ele teria
grupo você tem novas possibilidades, apenas se adaptado a novos parâmetros e re-
diferentes, de contar uma história, de ferências, sem que tenha ocorrido uma “pio-
se aproximar dessa verdade. Claro que ra” em relação a outras épocas.
cada um sofre influências de seus pre-
conceitos. O jornalista nunca foi testemunha de
merda nenhuma, na redação estavam,
Boechat também reconheceu o fenô- eram acionados pelas testemunhas
meno, mas não teve uma interpretação dos fatos, as pessoas contavam o que
negativa da tendência. Para ele, a questão tinham visto, a história sempre foi
se resumia a uma análise sobre mediação, contada pelas pessoas que viveram a
mais especificamente sobre uma perda de história. O que o jornalismo fazia era
protagonismo do jornalista. dar voz a essas pessoas, trabalhar e
estruturar essa narrativa para ela ser
As testemunhas nos entregavam seus assimilada, passada da forma mais
testemunhos, essa função, esse carre- fiel e sedutora possível para o maior
gamento de conteúdo, era feito só pe- número de consumidores dessa nar-
los jornalistas. Eu vejo essa mudança rativa. [...] Essa difusão era o grande
de forma saudável, hoje são 7 bilhões pulo do gato, porque quem detinha
de pessoas fazendo isso. Não vejo isso esse poder de difusão eram os meios
assim, como uma prática de só admi- de comunicação nos quais ele estava
nistrar relatos sem agregar à apuração, inserido. Hoje essa capacidade de di-
faz isso quem quer, é uma forma de re- fusão de massa está na mão de todo
duzir a relevância do que está fazendo, mundo. Então, o jornalista continua
eu por exemplo não escuto autorida- tendo esse mesmo papel, qualifican-
des. Agora, existem fatos com início, do a narrativa, checando, confrontan-
meio e fim na própria cena, a teste- do, questionando, formatando, mas
munha que viu uma colisão, você tem é evidente que se ele não tiver como
quase 100% do necessário para contar aportar esse ganho de qualidade à
o fato, e isso basta naquele primeiro narrativa do fato, esse fato será narra-
momento. do pelas próprias testemunhas numa
condição privilegiada porque elas vi-
Para Boechat, as pessoas “comuns” estão veram os fatos. Num acidente aéreo
se fazendo presentes numa escala que nunca quem você quer ouvir? O jornalista
estiveram e elas são as testemunhas reais da dizendo que houve um acidente aéreo
história. Ele argumentou, nesse momento, ou o sobrevivente que esteve a bordo

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do acidente aéreo, que viu as pessoas nalista nunca foi testemunha, ele mesmo,
gritando, reagindo, caindo, choran- dos fatos, contestando um valor autoatri-
do? Eu posso contar, mas tenho a voz buído na longa duração.
do cara contando diretamente. Então Barcellos descreve como principal de-
eu tenho que aportar alguma coisa safio do jornalismo na contemporaneidade,
ao testemunho histórico porque esse justamente, a noção de “jornalismo declara-
testemunho nunca me pertenceu, ele tório”, o contexto analisado neste trabalho.
vinha pra minha mão antes porque a
testemunha não tinha opção de torná- Hoje a gente tem uma função essen-
-lo público em grande escala. Agora cial, nesse momento em que é um
ela tem. Então qual é o meu papel modismo o jornalismo declaratório.
nessa história? Meu papel é [...] qua- O jornalismo declaratório não com-
lificar a narrativa do fato, vou agregar bina com a reportagem feita com luz
a ela coisas que eu pela natureza do própria. No jornalismo declaratório,
que faço vou poder somar, fazer me- basta uma entrevista, e uma entrevis-
mória de outros acidentes. Isso está ta pode conter todas as verdades do
um pouco perto de todo mundo, nun- mundo e também todas as mentiras.
ca esteve tão perto, mas ainda assim Eu só admito divulgar uma entre-
esse é meu trunfo, é a capacidade de vista, já que sou repórter, depois de
montar um texto, uma narrativa des- provar que cada palavra dita é ver-
critiva com estilo, qualidade idiomá- dadeira. O jornalismo, no gênero re-
tica, com síntese, objetividade, coisas portagem, é essencial nesse momento
que às vezes as pessoas que não são em que outros gêneros se ocuparam
treinadas não vão fazer [...]. dessa função de ser jornalista. Eu
gosto muito, adoro, evidentemente
É interessante observar que Boechat não tenho nada contra, usar as en-
e Barcellos apresentaram opiniões com trevistas como multiplicadoras de
pontos divergentes e semelhantes. Barcel- ideias, para reflexão, nesse gênero de
los enxerga um declínio e uma crítica em jornalismo, não sei se posso chamar,
relação ao uso indiscriminado de narra- mais centrado na reflexão. Mas por
tivas pelos jornalistas, já Boechat não via si só, numa reportagem, não passa de
uma mudança em relação ao que era feito um instrumento para início de uma
no passado. Mas ambos defenderam uma pauta. Acho essencial porque muita
necessidade de qualificar o relato jornalís- gente hoje, o público em geral, não
tico com algo mais do que o simples relato faz essa diferença, não entende que
alheio. Barcellos, porque se preocupa com ali tem uma opinião do autor, da obra
o conteúdo transmitido e sua relação com jornalística, acreditando que seja
a verdade. Boechat, porque acreditava que, verdade, e não o olhar de um profis-
sem isso, não haveria motivo para o espec- sional apenas. E como estamos nessa
tador escolher o relato jornalístico, e não o situação de extrema polarização, acho
da fonte. Boechat defendeu ainda que o jor- essencial essa função de retratar de

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forma precisa as notícias conforme que os bandidos botavam fogo nos


elas nascem [...]. Nossa função é legal ônibus no Rio de Janeiro, causando
também para o trabalho do sociólogo, prejuízo público. Se esse repórter ti-
do historiador, do antropólogo, que ver luz própria, fazendo a pergunta
se baseiam na história instantânea, ‘por quê?’, esse historiador vai poder
no relato do repórter. Agora, claro olhar para esse momento de outra
que eu falo de repórter, estamos fa- maneira, houve uma época no Rio de
lando de repórter que trabalha com Janeiro em que as famílias revoltadas
luz própria. Por exemplo, a cobertu- pelo fuzilamento de seus parentes co-
ra de Lava-Jato não é um trabalho de locavam fogo nos ônibus para chamar
reportagem. É reprodução de dossiê. a atenção da imprensa, das autorida-
[...] Não é a reprodução que eu acho des, que ignoram essa situação que se
essencial, o trabalho essencial é inde- repete mil vezes por ano.
pendente. Buscar as informações não
só através do relato, que é obra de ter- A fala de Barcellos é crucial porque vai
ceiros, do promotor, juiz, do policial, ao encontro de nossa hipótese de que há
do delegado. [...] O que acho essen- um fenômeno, que ele batiza de jornalismo
cial é esse trabalho nosso de buscar, declaratório, notado pelo personagem-em-
questionando o assunto”. blema eleito como porta-voz pelos pares.
O fenômeno é criticado por ele, que iden-
Barcellos também citou como exemplo tifica um risco em não buscar mais fontes
do que o incomoda as reportagens que abor- ou “uma investigação com luz própria”,
dam apenas aspectos superficiais, como as reforçando a importância da ida presencial
que classificam manifestações como ações do repórter à cena dos acontecimentos. E
de vândalos, enfocando apenas o prejuízo Barcellos ainda ressalta outros valores rela-
público ou danos ao patrimônio. tivos ao jornalista como o capaz de “buscar
verdades além das declarações” e autopro-
Se o autor da obra fosse um repór- clamado “produtor de um registro históri-
ter, perguntasse por que [um ônibus co futuro”. A fala se relaciona a um desejo
estava queimado], andasse quatro de futuro do jornalismo, no sentido de criar
quarteirões, certamente iria encon- registros que permaneçam e virem fonte
trar o corpo de um negro pobre fu- para historiadores de outros tempos.
zilado pela polícia. [...] Imagina, se As opiniões de Barcellos também se re-
o trabalho fosse com esse olhar in- lacionam a reflexões propostas em alguns
dependente do repórter, a sociedade estudos sobre testemunho, como o de Bar-
seria informada de outra maneira. Eu bosa (2016), que postulou que os textos
imagino que daqui a dois anos, 15, jornalísticos deveriam mostrar a presença
20 anos, quando o historiador contar de um sujeito real no desenrolar dos acon-
a história do Rio de Janeiro e se ele tecimentos (seja o próprio jornalista ou
basear nos relatos da maioria, vai di- outros que assumam o papel de testemu-
zer que houve uma época no Rio em nhas), confrontar o que é dito entre várias

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testemunhas e, por fim, colocar em cena o Assim como os documentos da Lava


contraditório (opiniões e visões divergen- Jato, os relatos na internet são só pon-
tes, no pressuposto de que se devam ouvir tos de partida pro jornalista. Eles são
os vários lados dos envolvidos na trama só por onde tu começa uma investiga-
para produzir um texto com pretensão à ção, me parece. Primeiro você tem que
isenção). Uma mera administração de um saber quem é aquela pessoa, se aquela
ou dois relatos não cumpriria esse papel. pessoa existe, se ela é quem diz ser.
O modo de produção, de certa forma Pra eu publicar algum pequeno rela-
superficial por não empreender essa inves- to de alguém na internet, eu falo com
tigação mais aprofundada, também se rela- essa pessoa, e eu falo com pessoas que
ciona com os regimes de tempo da atualida- possam me dizer quem é essa pessoa.
de, adaptados ao cotidiano profissional do Eu checo, eu preciso checar. E eu tento
jornalista. A alta competição no ambiente fazer, assim, é claro que às vezes não
digital, repleto de fontes de informação, é possível, mas eu te diria que 95%
demanda uma participação ativa no mun- do que eu faço é pessoalmente, com
do virtual, sobretudo pela necessidade de meu corpo e diante do corpo daquele
receber e processar ininterruptamente uma outro. Primeiro porque eu acho que a
imensa e crescente quantidade de dados. gente documenta muito mais do que
Isso provoca no jornalista um estresse de palavras. Nós não somos aplicadores
atenção contínuo. As leituras são, em geral, de aspas em série. Cheiro, expressão,
um scanning intuitivo, sem tempo maior cenário, contexto, móveis, ruídos que
para grande esforço de concentração ou in- não são palavras, tudo isso faz parte
terpretação de texto. daquilo que a gente tá documentando.
Para Eliane, é complicado fazer a asso- Então pra mim como repórter é muito
ciação entre o conceito de testemunho e o difícil fazer jornalismo sem fazer com
jornalismo, porque ela acredita que o tes- meu corpo.
temunho é um conceito complexo, profun-
do, “ainda mais nesse tempo de Comissão Assim como os demais, Leitão reforça
da Verdade”. Ela preferiria usar os termos a importância da checagem das informa-
“relatos” ou “desabafos”. Feita essa ob- ções e questiona “informações iniciais”
servação, Eliane ressaltou que acha muito como “verdades absolutas”. Ele comenta
complicado “fazer jornalismo que não seja que emissoras de rádio sofreram críticas
com o corpo, com colocar o corpo”, ressal- por “colocar no ar” falas inverídicas, sem
tando também a importância do jornalismo nenhuma checagem. Para Leitão, nós es-
presencial. O exemplo dado pela jornalista tamos vivendo “na era da delação”, mas a
foi o mesmo de Barcellos, referente ao tra- “delação não é uma verdade absoluta”. O
tamento dado a documentos da operação jornalista pondera, porém, que é preciso
Lava-Jato. Eliane ressaltou a importância também não cair no outro extremo, de dei-
da checagem antes da publicação e da pre- xar de enxergar quando um relato de fato
sença “corporal” como fundamento básico vira notícia, “não se pode brigar com a no-
para uma reportagem de qualidade. tícia”, com “fatos”.

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Recentemente, por exemplo, nós entendeu que o repórter estava “queren-


vivemos um pouco desse dilema. do diminuir o trabalho dele”. O exemplo
O Orlando da Curicica prestou um ilustra a difícil relação com fontes, sobre-
depoimento oficial no Ministério tudo no jornalismo policial, na hora dessa
Público Federal fazendo várias acu- checagem de informações.
sações. E aí ficou um debate. Vamos
dar voz a bandido? O cara preso por Eu vivo de credibilidade. Então a
homicídio. [...] Primeiro que eu sou senhora, a dona Maria, que tem um
favor de ouvir qualquer pessoa. Se- bar na esquina do Jacarezinho, ela
gundo que, a partir do relato dele, o não pode numa reportagem minha
Ministério Público Federal tomou achar que eu sou um desinformado,
uma medida. Então ele prestou um entendeu? Que eu digo ainda que
depoimento e a Raquel Dodge deter- um cara que foi chefe do tráfico oito
minou que viesse uma missão da Po- anos atrás continua como chefe do
lícia Federal pro Rio de Janeiro para tráfico. Não faz o menor sentido.
apurar vários casos e investigar a Esse tipo jornalismo declaratório...
investigação da Polícia Civil. Então eu chequei, eu já sabia quem era e
existe um fato criado a partir dessas fui checar e não era mesmo. Ele já
declarações dele. Essas declarações tinha saído, entendeu? Isso é o mí-
dele ganham um pouco de contornos nimo de checagem, é uma checagem
oficiais. Aconteceu uma coisa, mu- muito “bê-a-bá”, até porque o pró-
dou de patamar. Não é uma simples prio telespectador, o leitor, ele já
denúncia [...]. Então nós resolvemos tá meio de saco cheio, “ah, o cara
dar por isso, guardadas todas as pro- é chefe do tráfico mesmo? Porque
porções, fazendo todos os poréns, todo mundo é chefe do tráfico”, en-
esclarecendo de quem se trata, mas tendeu? Então esse é o tipo de coisa
informando ao telespectador o que que dá pra checar. Não é difícil de
tá acontecendo, entendeu? Porque checar isso.
há uma pressão gigantesca no caso
Marielle. Assim como os demais, Leitão ressalta
a importância da presença no jornalismo
Para Leitão, o mais importante é che- policial. Como exemplo, ele cita a cober-
car se é notícia e ouvir o “outro lado”, e tura de ações policiais em favelas, quan-
não apenas “sair escrevendo”. Ele cita do, geralmente, “a imprensa inteira fica
uma ocasião em que uma fonte, um poli- do lado de fora” e “quando a polícia sai,
cial, ficou chateado com ele porque não es- ela conta o que aconteceu, a versão dela”.
creveu que determinado criminoso preso Leitão diz que sempre defende a impor-
era chefe do tráfico de uma favela do Rio tância de a imprensa participar das opera-
de Janeiro. Ele se recusou a dar essa infor- ções porque, inclusive, “as arbitrariedades
mação porque sabia que ele não tinha mais acabam sendo evitadas pelo simples fato
esse posto na comunidade, e o policial de a imprensa estar ali, diligente, cobran-

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do, explicando”. A presença é “vantajosa” quantidade de informações ou falsas


também para a polícia, porque “um traba- ou dúbias. Então o que acontece: às
lho eventual que eles façam, uma apreen- vezes você tem lá a verdade pura e
são” é noticiado. A fala de Leitão reforça cristalina, mas ela deixa de ter impor-
a valorização de um jornalista considerado tância em torno das versões. Então
cão de guarda da sociedade, até mesmo eu acho que essas novas tecnologias,
antes da produção da notícia, ou seja, para elas têm um lado que elas ajudam,
que os desmandos que possam vir a ser mas têm um lado que elas estão em-
notícias nem sequer aconteçam. pobrecendo fortemente o exercício do
jornalismo.
Agora quando a gente tá junto, você
entra na missa, né, você não fica do Lopes (2013) se aprofundou em alguns
lado de fora da igreja. E, assim, eu aspectos que se ligam à identidade jorna-
acho que ali você passa a ser teste- lística, como a dimensão gnoseológica, ou
munha realmente ocular dos fatos, seja, o fato de que ele sempre se reporta ao
que é um pouco o caso da guerra, de mundo real, e não ficcional, mesmo que a
você ouvir o que acontece na Síria e realidade se enquadre a um mundo virtua-
você ir à Síria e tentar entender a rea- lizado. Aí se fundariam, segundo a autora,
lidade de perto. Eu acho isso aí ab- as crenças sobre a verdade jornalística e o
solutamente fundamental. Por isso papel de mediação. O segundo âmbito do
que eu sempre defendi, inclusive até jornalismo seria o político-discursivo, um
muitas vezes eu fui atacado por isso. discurso autorizado e desejado entre públi-
Alguns colegas me criticaram por co e fatos. A retórica jornalística, de acordo
isso, alguns colegas entendiam que com Lopes, explora a verossimilhança ao
era risco demais. Assim, tem o risco, mesmo tempo que busca um estatuto de
eu me preparei praquele risco ali, eu verdade, pela norma da objetividade, ou
fui aprendendo a lidar com aquele seja, na reunião de elementos que esfuma-
risco. çam o esforço retórico e revertem o discurso
de aparência inquestionável, evidente, lógi-
Glória Maria também ressaltou o va- ca. Lopes ressalta que, na época da ditadu-
lor histórico do jornalismo, de ser um ca- ra, ficaram reforçados os papéis de jornalis-
nal propagador de “verdades”. Para ela, o tas como promotores dos valores democrá-
jornalismo “corre o risco de virar uma coisa ticos e defensores de garantias individuais
menor” se passa a se basear apenas em rela- e coletivas, porta-vozes desinteressados do
tos, pelo risco da publicação de informações bem comum. A busca pela “revelação da
inverídicas. verdade” também trouxe à tona a categoria
de jornalismo investigativo, que marcou o
Porque hoje você ir em busca dos fa- jornalista como um “vigia” da sociedade,
tos, os fatos vão atrás de você. Porque mediador entre o poder público e os fatos.
às vezes você tem até a informação Todos esses fatores, segundo a autora, re-
correta, mas você é soterrado pela forçaram o papel social do jornalismo. E,

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como mostram os entrevistados neste tra- quando o trabalho se resume à adminis-


balho, ainda têm grande peso. tração de relatos. O testemunho costuma
ter sentido mais amplo e profundo quando
relacionado ao grupo do qual seu autor faz
Considerações finais parte, ou seja, depende do contexto do in-
Barcellos, Boechat, Eliane, Glória e divíduo em questão. A lembrança não está
Leitão demonstram preocupação com o encerrada em si mesma.
fenômeno descrito por eles como jornalis- O jornalismo é cada vez mais im-
mo declaratório, a prática atual recorrente pregnado desses relatos, que surgem
de fazer jornalismo apenas a partir de re- muitas vezes a partir das redes sociais e
latos recolhidos, muitas vezes, através de são reproduzidos nos veículos midiáti-
redes sociais. É importante articular as cos sem aprofundamento. A vítima que
interpretações dadas por eles ao fenôme- vem a público poderia ser cada um de
no, na condição de porta-vozes do grupo nós. Nossa veneração das vítimas pode
na atualidade, com as análises dos pesqui- se relacionar ao fato de reconhecermos
sadores que estudam as articulações entre nelas nossa própria passividade diante
testemunho, memória e jornalismo, perce- de um presente que tentamos controlar e
bendo como a contemporaneidade favore- enquadrar o tempo todo, via aparatos co-
ce o testemunho como discurso essencial e municacionais, mas que parece nos guiar
dotado de uma aura de verdade apriorís- para um abismo sem futuro. Esta é uma
tica, muitas vezes também admitida pelo das dimensões do uso do testemunho nos
jornalismo baseado em um tratamento veículos jornalísticos que citamos como
simplório das declarações, meramente exemplo deste momento histórico, entre
reproduzidas sem checagem ou pesquisa outras, como o uso acusatório.
contextual mais fundamentada. Se antes o jornalista se posicionava
Muitos artigos em veículos jornalísti- como observador da realidade, ele hoje
cos se resumem à reprodução da mensa- parece perder lugar para um novo autor
gem do leitor, com a resposta da autori- cada vez mais legitimado pela experiência.
dade competente, sem polifonia ou análise Ou seja, quanto mais tenha vivenciado a
sobre passado e futuro da situação. A ver- situação narrada, mais esse novo autor vai
dade da experiência de cada um, transmu- parecer autêntico aos olhos do leitor-es-
tada sob a forma de imagens vistas, cap- pectador. E, atualmente, esse canal de co-
turadas e partilhadas, produz um discur- municação é facilitado pelas redes sociais
so desassociado de qualquer referencial, e smartphones, mecanismos que tornam
tendo nele mesmo o sentido exacerbado possível e imediata a transmissão de ex-
do verdadeiro. A compulsão pela fala de- periências em qualquer lugar, a qualquer
sassociada de sentido profundo esvazia a hora. Ou seja, não se pode desconsiderar
capacidade de categorizar, de evoluir cria- que o jornalista sempre colheu relatos e
tivamente. testemunhos para produzir suas histórias.
Dificilmente há tempo e investimento O que parece ter mudado são o tratamento
na produção de conteúdos que marquem e o lugar de destaque dados hoje ao rela-

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to puro, sem contexto ou confronto, bem polifonia e a análise nos produtos jorna-
como a profusão e agilidade de sua veicu- lísticos.
lação. O papel de mediador do jornalista Além disso, não se pode esquecer que
tem perdido sentido na contemporanei- a possibilidade de narrar carrega ainda a
dade (GERK, 2016) diante de uma nova potência do que não é narrável e, sendo
configuração do tempo, que não permite o assim, “o testemunho vale essencialmen-
hiato necessário para a mediação. te por aquilo que nele falta” (AGAM-
Para Georg Simmel (1969), a objeti- BEN, 2008, p. 43). Nessa perspectiva, o
vidade do contato olho a olho, da visibi- testemunho é também uma construção
lidade recíproca que só existe se não for de linguagem que se configura na tensão
mediada (por palavras ou outras ima- entre o que se pode dizer e aquilo que de
gens), é o tipo de interação humana mais fato é dito. O que foi deixado de fora? O
fundamental. Leva a uma compreensão que foi escolhido? É preciso interrogar-se
do outro que não é filtrada por categorias também sobre a natureza deste não dito.
gerais, mas é singular, é a forma maior de Assim, o relato transmite tanto as provas
sociabilidade. A visibilidade promovi- e evidências de seu trajeto como os des-
da pelas ferramentas tecnológicas foge a vios e mistérios encontrados. Um relato
essa lógica. A reflexão se relaciona com é um mapa, que leva para muitos cami-
a preocupação que os personagens eleitos nhos, explorados ou não naquela fala. É
como referências demonstram: a pouca preciso entender essas rotas e os proces-
ida do jornalista a campo. sos sociais nos quais estão imbricadas.
É complexo e perigoso considerar o Como apontou Joutard (2015), o teste-
testemunho apenas como um registro munho é sempre um problema, e a natu-
objetivo de uma experiência. O discurso, ralização de qualquer testemunho é a sua
inclusive o jornalístico, altera a realidade, morte. Para tratá-lo com ética e responsa-
uma vez que a narrativa inventa o mun- bilidade, é preciso considerá-lo um proble-
do, no sentido de recriá-lo. No caso da ma. Não há compreensão sem crítica. Essa
Operação Lava Jato, é difícil distinguir explosão de registros se ancora, muitas
em que medida o próprio discurso jorna- vezes, no testemunho, em dar automatica-
lístico afetou o rumo dos acontecimentos mente legitimidade a discursos. Entretan-
que levaram à derrubada da presidente, to, nada muda mais que o passado, quando
por exemplo. Este é um dos grandes pa- repensado a partir do presente. Se não são
radoxos do  testemunho: se só é possível buscados uma verdade e os fundamentos,
narrar recorrendo à imaginação e à me- apenas versões satisfazem. Chega-se a uma
mória, até que ponto o teor de verdade do situação em que falta um debate buscando
testemunho seria contaminado por essa um consenso, pois só há duelo de forças. O
dose de imaginação e ficção? Não é que as jornalista sempre tem uma posição, mas é
delações não devessem, necessariamente, um perigo cair em um relativismo absolu-
ser divulgadas e conhecidas. Mas é o tra- to, porque ele ainda procura ter um lugar
tamento simplista e sem questionamento de legitimidade da ordem do saber, e não só
que se dá às falas que pode empobrecer a do “ponto de vista”.

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Referências bibliográficas
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Fora, v. 8, p. 1-33, 2014.

Data de recebimento: 09/04/2019


Data de aceite: 27/05/2019

Dados das autoras


Cristine Gerk
Doutoranda em Mídia e Mediações socioculturais da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). E-mail: crisgerk@gmail.com

Marialva Barbosa
Professora doutora do programa de Mídia e Mediações socioculturais da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: marialva153@gmail.com

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