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Artigo
Marialva Barbosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
<marialva153@gmail.com>
O lide tem sido recorrente: o jornalismo temporâneo que denominamos “Era dos
passa por um período de crise, com neces- Testemunhos”. E que lugar histórico é
sidade de reinvenção. Essa luta se relaciona esse? O de testemunha da história? O que
com a tentativa de manter protegido um significa esta Era dos Testemunhos?
lugar histórico conquistado pela profissão, Os relatos têm ganhado legitimação por
em meio ao turbilhão de um período con- si sós, sem necessidade de canal legitima-
Gaúcha de Ijuí, nascida em 1966, Eliane bre as consequências desse método, e como
Brum é jornalista, escritora e documentaris- ele impacta na profissão, no sentido de in-
ta. Trabalhou 11 anos como repórter do jor- terferir, ou não, na capacidade de o próprio
nal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 como jornalista ser ele mesmo “testemunha da
repórter especial da revista Época, em São História”. A temática já havia sido abor-
Paulo. Desde 2010, atua como freelancer e dada espontaneamente pelos jornalistas em
faz projetos de longo prazo com populações outros momentos das conversas, mas como
tradicionais da Amazônia e das periferias da este trabalho se relaciona diretamente a
Grande São Paulo. De 2009 a 2013, foi co- esse assunto, o exploramos um pouco mais
lunista do site da revista Época. Desde 2013 e trazemos os resultados neste artigo, para
tem uma coluna quinzenal, em português e pensarmos o fenômeno à luz da opinião de
espanhol, no jornal El País. É também cola- personagens escolhidos como referência.
boradora do jornal britânico The Guardian. Barcellos reconhece o fenômeno e diz
Publicou seis livros – cinco de não ficção e que ele impacta negativamente, em primei-
um romance –, além de participar de cole- ro lugar, na “felicidade do jornalista”, já que
tâneas de crônicas, contos e ensaios. Como para ele é um privilégio e algo “apaixonante”
jornalista, Eliane Brum ganhou mais de 40 para o jornalista “se guiar com luz própria, ir
prêmios nacionais e internacionais de re- atrás da história, onde ela estiver, conhecer
portagem, como Esso, Vladimir Herzog, pessoas novas todos os dias e aprender com
Ayrton Senna, Líbero Badaró, Sociedade elas”. Para ele, a presença física do profissio-
Interamericana de Imprensa e Rei de Es- nal durante a reportagem é essencial.
panha. Em 2008, recebeu o Troféu Espe-
cial de Imprensa ONU, “por tudo o que já Toda pessoa, independentemente de
fez e vem realizando em defesa da Justiça e classe social, guarda consigo uma bela
da Democracia”. Foi três vezes reconheci- história, cabe a você conhecê-la, ouvi-
da, em votação da categoria, com o Prêmio -la. Acho que as ferramentas, que não
Comunique-se. Por cinco vezes ganhou o são nada tecnológicas, mais eficazes
Troféu Mulher Imprensa. para um bom trabalho de profundi-
dade jornalística são as que estão na
nossa cabeça, são os olhos, a boca, e
Análise das referências principalmente os ouvidos, são essen-
Perguntamos aos entrevistados sobre ciais, porque você se dedicar a ouvir
o conceito, trabalhado nesta pesquisa, de o conhecimento alheio é fascinante,
“Jornalismo na Era de Testemunhos”. Ex- você aprende junto, e depois é contar
plicamos que tinha relação com uma críti- aquela história. E no conjunto des-
ca, feita por muitos jornalistas, de um jor- sa busca é relativamente fácil você se
nalismo que se baseia, atualmente, apenas aproximar da verdade. A verdade ab-
em relatos enviados ou publicados em rede soluta é um conceito inatingível, mas
social, por vezes apenas acompanhados de é nossa obrigação se aproximar dela.
resposta de autoridades competentes. A in- [...] Eu confio e desconfio de todos, é
tenção era questionar os entrevistados so- preciso estar lá e ver com meus olhos,
quais as perguntas que eu tenho, qual que o jornalista sempre se apropriou dos
o interesse de quem enviou o relato, a testemunhos alheios, sem ser ele mesmo a
que grupo pertence, qual a sua ideo- testemunha. Apenas teria perdido o mo-
logia, preferências religiosas, sexua- nopólio da difusão da informação coletada.
lidades, preconceitos. O meu olhar é O apresentador tampouco acreditava que o
de desconfiança. Interagindo com o jornalista esteja mais “preguiçoso”: ele teria
grupo você tem novas possibilidades, apenas se adaptado a novos parâmetros e re-
diferentes, de contar uma história, de ferências, sem que tenha ocorrido uma “pio-
se aproximar dessa verdade. Claro que ra” em relação a outras épocas.
cada um sofre influências de seus pre-
conceitos. O jornalista nunca foi testemunha de
merda nenhuma, na redação estavam,
Boechat também reconheceu o fenô- eram acionados pelas testemunhas
meno, mas não teve uma interpretação dos fatos, as pessoas contavam o que
negativa da tendência. Para ele, a questão tinham visto, a história sempre foi
se resumia a uma análise sobre mediação, contada pelas pessoas que viveram a
mais especificamente sobre uma perda de história. O que o jornalismo fazia era
protagonismo do jornalista. dar voz a essas pessoas, trabalhar e
estruturar essa narrativa para ela ser
As testemunhas nos entregavam seus assimilada, passada da forma mais
testemunhos, essa função, esse carre- fiel e sedutora possível para o maior
gamento de conteúdo, era feito só pe- número de consumidores dessa nar-
los jornalistas. Eu vejo essa mudança rativa. [...] Essa difusão era o grande
de forma saudável, hoje são 7 bilhões pulo do gato, porque quem detinha
de pessoas fazendo isso. Não vejo isso esse poder de difusão eram os meios
assim, como uma prática de só admi- de comunicação nos quais ele estava
nistrar relatos sem agregar à apuração, inserido. Hoje essa capacidade de di-
faz isso quem quer, é uma forma de re- fusão de massa está na mão de todo
duzir a relevância do que está fazendo, mundo. Então, o jornalista continua
eu por exemplo não escuto autorida- tendo esse mesmo papel, qualifican-
des. Agora, existem fatos com início, do a narrativa, checando, confrontan-
meio e fim na própria cena, a teste- do, questionando, formatando, mas
munha que viu uma colisão, você tem é evidente que se ele não tiver como
quase 100% do necessário para contar aportar esse ganho de qualidade à
o fato, e isso basta naquele primeiro narrativa do fato, esse fato será narra-
momento. do pelas próprias testemunhas numa
condição privilegiada porque elas vi-
Para Boechat, as pessoas “comuns” estão veram os fatos. Num acidente aéreo
se fazendo presentes numa escala que nunca quem você quer ouvir? O jornalista
estiveram e elas são as testemunhas reais da dizendo que houve um acidente aéreo
história. Ele argumentou, nesse momento, ou o sobrevivente que esteve a bordo
do acidente aéreo, que viu as pessoas nalista nunca foi testemunha, ele mesmo,
gritando, reagindo, caindo, choran- dos fatos, contestando um valor autoatri-
do? Eu posso contar, mas tenho a voz buído na longa duração.
do cara contando diretamente. Então Barcellos descreve como principal de-
eu tenho que aportar alguma coisa safio do jornalismo na contemporaneidade,
ao testemunho histórico porque esse justamente, a noção de “jornalismo declara-
testemunho nunca me pertenceu, ele tório”, o contexto analisado neste trabalho.
vinha pra minha mão antes porque a
testemunha não tinha opção de torná- Hoje a gente tem uma função essen-
-lo público em grande escala. Agora cial, nesse momento em que é um
ela tem. Então qual é o meu papel modismo o jornalismo declaratório.
nessa história? Meu papel é [...] qua- O jornalismo declaratório não com-
lificar a narrativa do fato, vou agregar bina com a reportagem feita com luz
a ela coisas que eu pela natureza do própria. No jornalismo declaratório,
que faço vou poder somar, fazer me- basta uma entrevista, e uma entrevis-
mória de outros acidentes. Isso está ta pode conter todas as verdades do
um pouco perto de todo mundo, nun- mundo e também todas as mentiras.
ca esteve tão perto, mas ainda assim Eu só admito divulgar uma entre-
esse é meu trunfo, é a capacidade de vista, já que sou repórter, depois de
montar um texto, uma narrativa des- provar que cada palavra dita é ver-
critiva com estilo, qualidade idiomá- dadeira. O jornalismo, no gênero re-
tica, com síntese, objetividade, coisas portagem, é essencial nesse momento
que às vezes as pessoas que não são em que outros gêneros se ocuparam
treinadas não vão fazer [...]. dessa função de ser jornalista. Eu
gosto muito, adoro, evidentemente
É interessante observar que Boechat não tenho nada contra, usar as en-
e Barcellos apresentaram opiniões com trevistas como multiplicadoras de
pontos divergentes e semelhantes. Barcel- ideias, para reflexão, nesse gênero de
los enxerga um declínio e uma crítica em jornalismo, não sei se posso chamar,
relação ao uso indiscriminado de narra- mais centrado na reflexão. Mas por
tivas pelos jornalistas, já Boechat não via si só, numa reportagem, não passa de
uma mudança em relação ao que era feito um instrumento para início de uma
no passado. Mas ambos defenderam uma pauta. Acho essencial porque muita
necessidade de qualificar o relato jornalís- gente hoje, o público em geral, não
tico com algo mais do que o simples relato faz essa diferença, não entende que
alheio. Barcellos, porque se preocupa com ali tem uma opinião do autor, da obra
o conteúdo transmitido e sua relação com jornalística, acreditando que seja
a verdade. Boechat, porque acreditava que, verdade, e não o olhar de um profis-
sem isso, não haveria motivo para o espec- sional apenas. E como estamos nessa
tador escolher o relato jornalístico, e não o situação de extrema polarização, acho
da fonte. Boechat defendeu ainda que o jor- essencial essa função de retratar de
to puro, sem contexto ou confronto, bem polifonia e a análise nos produtos jorna-
como a profusão e agilidade de sua veicu- lísticos.
lação. O papel de mediador do jornalista Além disso, não se pode esquecer que
tem perdido sentido na contemporanei- a possibilidade de narrar carrega ainda a
dade (GERK, 2016) diante de uma nova potência do que não é narrável e, sendo
configuração do tempo, que não permite o assim, “o testemunho vale essencialmen-
hiato necessário para a mediação. te por aquilo que nele falta” (AGAM-
Para Georg Simmel (1969), a objeti- BEN, 2008, p. 43). Nessa perspectiva, o
vidade do contato olho a olho, da visibi- testemunho é também uma construção
lidade recíproca que só existe se não for de linguagem que se configura na tensão
mediada (por palavras ou outras ima- entre o que se pode dizer e aquilo que de
gens), é o tipo de interação humana mais fato é dito. O que foi deixado de fora? O
fundamental. Leva a uma compreensão que foi escolhido? É preciso interrogar-se
do outro que não é filtrada por categorias também sobre a natureza deste não dito.
gerais, mas é singular, é a forma maior de Assim, o relato transmite tanto as provas
sociabilidade. A visibilidade promovi- e evidências de seu trajeto como os des-
da pelas ferramentas tecnológicas foge a vios e mistérios encontrados. Um relato
essa lógica. A reflexão se relaciona com é um mapa, que leva para muitos cami-
a preocupação que os personagens eleitos nhos, explorados ou não naquela fala. É
como referências demonstram: a pouca preciso entender essas rotas e os proces-
ida do jornalista a campo. sos sociais nos quais estão imbricadas.
É complexo e perigoso considerar o Como apontou Joutard (2015), o teste-
testemunho apenas como um registro munho é sempre um problema, e a natu-
objetivo de uma experiência. O discurso, ralização de qualquer testemunho é a sua
inclusive o jornalístico, altera a realidade, morte. Para tratá-lo com ética e responsa-
uma vez que a narrativa inventa o mun- bilidade, é preciso considerá-lo um proble-
do, no sentido de recriá-lo. No caso da ma. Não há compreensão sem crítica. Essa
Operação Lava Jato, é difícil distinguir explosão de registros se ancora, muitas
em que medida o próprio discurso jorna- vezes, no testemunho, em dar automatica-
lístico afetou o rumo dos acontecimentos mente legitimidade a discursos. Entretan-
que levaram à derrubada da presidente, to, nada muda mais que o passado, quando
por exemplo. Este é um dos grandes pa- repensado a partir do presente. Se não são
radoxos do testemunho: se só é possível buscados uma verdade e os fundamentos,
narrar recorrendo à imaginação e à me- apenas versões satisfazem. Chega-se a uma
mória, até que ponto o teor de verdade do situação em que falta um debate buscando
testemunho seria contaminado por essa um consenso, pois só há duelo de forças. O
dose de imaginação e ficção? Não é que as jornalista sempre tem uma posição, mas é
delações não devessem, necessariamente, um perigo cair em um relativismo absolu-
ser divulgadas e conhecidas. Mas é o tra- to, porque ele ainda procura ter um lugar
tamento simplista e sem questionamento de legitimidade da ordem do saber, e não só
que se dá às falas que pode empobrecer a do “ponto de vista”.
Referências bibliográficas
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Marialva Barbosa
Professora doutora do programa de Mídia e Mediações socioculturais da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: marialva153@gmail.com