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 Escola de Chicago:

Entrevista com Isaac Joseph*

P o r Lícia do Prado Valladares e


R oberto K ant de Lim a

Isaac Joseph veio pela prim eira vez ao Nos dias atuais Isaac Joseph é uma re­
Brasil em 1988 por ocasião da conferência ferência obrigatória quando se pensa na Es­
“Reestruturação Urbana: tendências e desa­ cola de Chicago. Sobretudo na França, onde
fios”, prom ovida pela A ssociação Interna­ a discussão p ro v o cad a por esta E sco la e
cional de S ociologia, C om itê n.° 21 (D e­ pelas pesquisas de vários dos seus rep re­
senvolvim ento U rbano e R egional) e pelo sentantes tem tido reflexos im portantes no
IUPERJ. Sua participação no evento se deu quadro da sociologia clássica. Vale lembrar
no âmbito de uma M esa-Redonda sobre Vio­ que vários dos livros produzidos naquele
lência Urbana, organizada por Lícia Vallada­ contexto só recentem ente foram traduzidos
res e da qual participou, entre outros, Rober­ em francês1 — com grande repercussão nas
to K ant de Lima. Tal encontro entre p es­ atuais gerações de cientistas sociais, inte­
q u isadores nacionais e estran g eiro s teve ressadas em questões candentes como a das
desdobram entos, sendo o principal deles o formas de integração dos diferentes grupos
Acordo CAPES/COFECUB entre o Progra­ étnicos no espaço urbano.
ma de A ntropologia e C iência P olítica da A França, que tradicionalmente originou
Universidade Federal Fluminense - especial­ e difundiu um modelo de sociedade republi­
mente o NUFEP ( Núcleo Fluminense de E s­ cano, igualitário e homogeneizador, enfrenta
tudos e Pesquisas) - e as áreas de Sociolo­ hoje dilemas típicos de uma sociedade multi­
gia do IUPERJ e da Universidade de Paris X, cultural: tem de com patibilizar esse modelo
Nanterre. O projeto “Espaço Público, Con­ com diferentes form as de incorporação de
flito s e D em ocracia em uma P erspectiva minorias. Talvez seja uma das principais ra­
C om parada" , que desde 1998 vem reunin­ zões deste retorno à Chicago das primeiras
do as três instituições, expressa o caráter décadas do século XX, quando a sociedade
multidisciplinar da opção adotada pelos pes­ americana, preocupada com a construção de
quisadores e a valorização de experiências um a sociedade dem ocrática, se defrontava
m etodológicas variadas. Um a referência à com se m elh an te s p ro b lem as p ro v o cad o s
Escola de Chicago impôs-se, tanto pela ên ­ pelo afluxo de grupos sociais heterogêneos
fase temática, como pela importância atribu­ e culturalmente diversificados, mas ocupan­
ída por todos os envolvidos (professores e do um mesmo espaço urbano.
alunos de pós-graduação) ao trabalho de Isaac Joseph, que está entre os que vis­
campo. lumbraram o valor de tal com paração,2 não

* E n tre v is ta re a liz a d a em 30 d e o u tu b ro de 1999.

BIB, Rio de Janeiro, n.° 49, 1,° semestre de 2000, pp. 3-13 3
se limitou à contribuição daqueles que inte­ tes e pesquisadores franceses a oportunida­
graram a “Primeira Escola de Chicago”. Seu de de conhecer os trabalhos dessa corrente
interesse se estende aos autores da cham a­ que vai além da sociologia urbana. N esses
da “Segunda Escola de Chicago”. Nesse sen­ trabalhos achou-se um legado precioso, apto
tido Howard Becker e Erving Goffman se tor­ a servir de ponto de partida para a sociolo­
naram seus in te rlo c u to re s nos inúm eros gia das migrações, para a sociologia em píri­
trabalhos de pesquisa que ele vem realizan­ ca das profissões e ocupações, e sobretudo,
do sobre o espaço público.3 A importância mais recentemente, uma introdução ao prag­
do face a face, da interação entre os diver­ matismo e à sociologia da ação.
sos atores que compartilham um mesmo es­ Mas não concordo com o juízo pseudo-
paço social, os inúm eros papéis desem pe­ crítico e preguiçoso que procura reduzir a
nhados por um m esm o ator são elementos discussão científica a um fenômeno de moda.
que fazem parte da prática de uma microsso- Prefiro o argumento de Bernard Lepetit a esse
ciologia cuja herança vem de Chicago e en­ respeito: “O termo m oda não é pejorativo.
contra hoje, em Isaac Joseph, um de seus
Não ressalta o caráter efêmero de uma aten­
principais representantes. A “etnografia do
ção específica, mas designa o processo au-
lugar”, tão recorrente em pesquisas realiza­
tomantido e auto-organizado de elaboração
das na França, tem nele, sem dúvida, uma
de um a referência com um .”7 A introdução
referência.
da Escola de Chicago na França, a partir do
Por ocasião do 23.° Encontro Anual da
fim da década de 1970, faz parte de uma m u­
Anpocs (1999), foi organizada uma Mesa-
Redonda intitulada “A Escola de Chicago: dança de paradigm a nas ciências sociais,
impactos de uma tradição no Brasil e na Fran­ após duas décadas de predom ínio das teo ­
ça”. Coordenada por Lícia Valladares, a Mesa4 rias estruturalistas e do materialismo históri­
c o n stitu iu -se em um a o portunidade para co, além de corresponder a uma necessidade
apresentar Isaac Joseph à com unidade na­ e a um trabalho: a necessidade de dispor de
cional de cientistas sociais e reafirmar a im­ in stru m en to s p ertin en tes de an álise p ara
portância de Chicago para se pensar o espa­ com preender os problem as sociais da im i­
ço urbano e público também no Brasil. gração, da urbanização e das form as co n ­
Dada a tradição brasileira na área de es­ temporâneas do pluralismo cultural; e um tra­
tudos urbanos,5 que tem no m étodo etno­ b alho longo e in g rato de trad u ç ão e de
gráfico um dos seus principais instrumentos disponibilização da história da sociologia do
para ajudar a desvendar e explicitar a hetero­ início do século. Excluindo alguns textos há
geneidade presente em nossa cultura e soci­ muito esgotados, a obra de Georg Simmel
edade, é evidente o interesse em contrastar não fora traduzida para o francês até 1979.
diferentes contextos, idéias e resultados de Quanto a Gabriel Tarde, não era lido há m ui­
pesquisa. Sobretudo quando os mesmos são to tempo por ninguém (com exceção de Gil­
pautados por um referencial comum. les Deleuze). O mesmo pode ser dito de Georg
Com a palavra Isaac Joseph/’ H erbert Mead: Georges Gurvitch tinha pu­
blicado a tradução de L ’esprit, le soi et la
LV - Para você, a Escola de Chicago está société nos anos 60 (na coleção que ele diri­
hoje em moda na França? gia nas Presses U niversitaires de France),
mas o livro nunca mais foi reeditado. Em ou­
Desde a publicação da coletânea de tex­ tros termos, resta ainda muito a fazer para
tos em 1979 de Yves Grafmeyer & Isaac Jo­ que o legado da sociologia escape às impo­
seph, vários livros ofereceram aos estudan­ sições da escola durkheimiana.

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LV - Há relação entre o atual interesse na tação recíproca” com aquele que não se c o ­
França pela Escola de Chicago e os p ro ­ nhece e não se vai conhecer? Como não per­
blemas sociais, especialmente aqueles liga­ ceber que o que é comum, o que prevalece é,
dos à im igração? ao contrário, a inquietação da reciprocidade,
a frieza da relação? R elação que não tem
Na experiência de Chicago, urbanização como apelar para o implícito nem para a fami­
e imigração estão imediatamente ligadas. A liaridade. O que interessa à tradição socioló­
cidade-mundo é também a porta da im igra­ gica que tem origem em Chicago não é a so­
ção maciça. Talvez seja a melhor explicação ciabilidade de um “nós” já constituído. O
para a tardia descoberta da Escola de Chica­ interessante é o que emerge de um encontro
go na França, explicação mais convincente público (é a definição precisa de sociabilida­
que a dos bloqueios acadêmicos e da barrei­ de para historiadores com o M aurice Agu-
ra da sociologia urbana de inspiração m ar­ lhon ou Daniel Roche), o m ais sociedade,
xista (Henri L efebvre e M anuel Castells). para falar como Simmel, que se pode esperar
C onvém notar a esse respeito a ausência de uma reunião feliz, pertinente. É, a meu ver,
espantosa de qualquer m enção aos estran­ o principal interesse da figura do estrangei­
geiros na obra de Lefebvre. Na sociologia ro: como ele vê a capacidade de determinada
urbana de Henri Lefebvre e de seu sucessor sociedade fazer com que o vínculo social
Henri Raymond, a figura do estrangeiro não tome consistência; que ele, estrangeiro, seja
aparece. Pode-se explicar essa ausência com “transportado” , no cotididano de sua expe­
argumentos historicistas e dizer que o “pro­ riência mundana e urbana, para o coração da
blem a” da im igração não tinha na época a esfera pública.
acuidade que adquiriu nos últim os quinze Vou acrescentar duas observações. Pri­
anos. Argumento que não satisfaz e é quase meiro para assinalar que não se mediu a trans­
um a falta de respeito: o pesqu isad o r não ferência de conhecimentos efetuada, na so­
constrói seus objetos de investigação bus­ ciologia de Chicago, da experiência migra­
cando-os na atualidade dos “problem as de tó ria à e x p e riê n c ia com um de cad a um.
sociedade”. P arece-m e que a explicação é Lembremos que o famoso conceito de "defi­
outra: Lefebvre, várias vezes em seus livros, nição de situação” é utilizado por William
menciona o fascínio pelo que chama “as co­ Isaac Thomas para descrever a experiência
munidades de exaltação recíproca” : grupos de adaptação do migrante a seu novo mun­
de militantes, fidelidade de irmãos unidos por do, bem antes de servir como princípio de
crenças comuns, sociedades de p ares... es­ análise da socialização em geral. Ou seja, a
sas m icrossociedades estão longe dos sa­ força do legado de Chicago para nós, hoje,
lões, dos bares, dos rituais da conversa: são está em inverter completamente a problemá­
sociedades polêm icas, em guerra contra a tica da integração, isto é, não preocupar-se
alienação geral, polindo suas armas críticas em saber como ele se torna “igual a todo o
na base de vínculos fortes. Bem pouco “ur­ m undo”, mas considerá-lo com o qualquer
banas” no sentido do Iluminismo. um, como um observador do vínculo social
Ora, de Simmel a Goffman, a linha de comum.
pensam ento que incorporou a questão do Por outro lado, é próprio das socieda­
estrangeiro construiu-se sobre outra expe­ des de imigração e do tipo de tolerância que
riência: a dos vínculos fracos, a do mal-en- elas constroem, como dem onstrou Michael
tendido e do retraimento, da inevitável su­ Walzer, aceitar e promover o que ele chamou
perficialidade das trocas. De fato, com o é de identidades com hífen: ítalo-americanos,
possível pensar uma “com unidade de exal­ afro-americanos, latino-americanos etc. É a

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tolerância por esses casos de dupla origem materialista ou vitalista para o estudo da ci­
que as idéias de integração estreitam ente dade de acordo com lógicas de recom posi­
republicanas não aceitam , o que as leva a ção e de transformação constantes. A apre­
verem com maus olhos a cidade assim como sen tação em 1924 do p rim eiro cu rso de
a viam os eugenistas e os inimigos do urba­ ecologia urbana por Robert Park e Roderick
no no início do século. O intolerável para M cKenzie especifica que não se trata de es­
esses modos de ver a integração é o fato de tudar a relação de um a população com seu
com preender que só podemos partilhar “re­ território, mas a relação entre duas popula­
talhos de cultura” como afirma John Gum- ções num mesmo território. Desse modo, a
perz (1991) e que o mosaico de culturas atin­ sociologia urbana é levada a ver a cidade
ge cada um de nós na alimentação, no gosto não apenas como mosaico de territórios, mas
artístico, bem como na linguagem corporal e também como arranjo de populações de ori­
nos gestos da intimidade. gens diferentes num mesmo meio e num mes­
mo sistema de atividades. Acima de tudo, o
LV —Associa-se a Escola cle Chicago à Eco- conceito de com petição pelo espaço adqui­
logiçi Hum ana . Há relação com o que se re todo o sentido para com preender tanto a
considera hoje Ecologia, tema em voga em econom ia da m obilidade residencial, como
m eios que não são sociológicos? os problem as sociais de co-habitação resi­
dencial ou de co-presença no espaço públi­
A sociologia de Chicago apresentou-se, co. O fato de pensar o espaço urbano como
de fato, como ecologia urbana. Por que eco­ lugar de disputas e de contestação está no
logia? Trata-se de sim ples m etáfora? Con­ âm ago dos trabalhos de m icroecologia de
vém lembrar que a abordagem ecológica é, Goffman, na qual as situações de encontro
antes de tudo, resposta e alternativa à litera­ são o terreno para analisar juízos de urbani­
tura eugenista e antiurbana que ganhou es­ dade e formas do acordo quanto à urbanida­
paço na virada do século, fosse para tratar de de um lugar.
dos problemas sociais criados pela im igra­ Isso tem conseqüências para o modo de
ção em m assa, fosse com o conseqüência compreender o espaço de que falam os soció­
precipitada do darwinismo. A compreensão logos da cidade. A abordagem ecológica,
dos fenômenos de delinqüência, por exem ­ seja ela qual for — quer se trate da ecologia
plo, no contexto territorial apresenta-se como urbana da Escola de Chicago, ou dos traba­
uma saída materialista e reformista ao cienti- lhos de Aaron Cicourel sobre a ecologia das
ficismo denunciador do eugenismo. atividades no contexto de trabalho, ou da
É im portante situar esse enunciado do ecologia da percepção de J.J. Gibson — , de­
projeto científico na discussão pública da fine o espaço de maneira específica. Isto é, o
época, dom inada pelas teorias raciais. Em espaço não é um invólucro vazio mas um
outras palavras, é um enunciado polêmico, meio completo no qual a atividade de adap­
no bom sentido do termo, no sentido em que tação e de co operação dos indivíduos ou
G aston Bachelard falava das polêmicas da dos grupos encontra recursos. Do conceito
razão: um a abordagem dos fenôm enos de tradicional de “cultura objetiva”, tal como
desvio e de delinqüência (de insegurança, era empregado no início de século, ao con­
diríamos hoje) exige que se levem em conta ceito de affordance tal com o funciona na
os contextos nos quais se observam distúr­ ecologia da percepção de G ibson, a idéia
bios da co-habitação ou form as de desso- subjacente é a mesma: a de que toda ativida­
cialização. É preciso pois compreender a re­ de en c o n tra em seu am b ien te p o n to s de
fe rê n c ia à e c o lo g ia com o um c o n v ite apoio. Por isso é im portante dar um trata­

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mento qualitativo e sensível aos espaços ur­ contrei uma espécie de romantismo da mobi­
banos, o que garante o sentido e a pertinência lidade baseado na figura do estrangeiro e na
do modo como os citadinos vão usá-los. tensão entre proxim idade e distância, entre
Enfim, a ecologia urbana foi desde a ori­ socialização e dessocialização. David Frisby
gem a ecologia da mobilidade. Habitar uma falou de sociologia impressionista a respei­
cidade não é apenas ter nela sua residência, to de Simmel, apreciação que nada tem de
mas é mudar de residência, passar de um a pejorativo. Havia em Simmel uma maneira não
para outra residência, de um lugar para ou­ convencional de descrever os mom entos e
tro, de uma região para outra. Robert Park as situações que m e pareceu “v iço sa”, se
costumava lembrar que havia passado m ui­ com parada à sociologia acadêmica: conse­
to tem po andando pelas grandes cap itais gui enfim compreender o jogo das sociabili­
antes de aceitar seu lugar na universidade dades sem recorrer às categorias psicologi-
de Chicago. O citadino é alguém que se lo­ zantes das afinidades, a conversação apare­
comove, e o movimento é parte fundamental c ia com o um v e rd a d e iro o b je to p ara o
de sua atividade. Isso significa não apenas sociólogo... Isso tudo, explicado por Robert
que a mobilidade dá a medida das relações Park (que seguiu os cursos de Simmel e só
sociais e o grau de socialização de determi­ ab andonou o jo rn a lism o por esse desvio
nada população urbana, mas também que a descritivo) e principalm ente por Goffman,
urbanidade só se define pela capacidade de soou para mim como uma direção de pesqui­
com por diversas regiões morais. Park pro­ sa. Sentia que podia lançar-m e ao trabalho
punha como definição para segregação: es­ com um instrumental que já tinha dado re­
tar cativo em um território, sem possibilida­ sultado e continuava fecundo. Sem contar
de de freqüentar outros. Por isso a importân­ que os heróis dessa corrente (Simmel, Tho-
cia da temática da acessibilidade urbana na mas, Park, Hughes, Becker, Goffman) tinham
sociologia dos espaços públicos e a im por­ algo de sim pático: todos haviam tido uma
tância dos “locais-m ovim entos da cid ad e” posição marginal na universidade (aliás foi
(estações de trem e rodoviárias, estações de Park que introduziu o termo “m arginal” na
metrô, aeroportos etc.) Pensar a cidade não disciplina em seu artigo de 1928 sobre “o
é insistir em apropriar-se ou em querer per­ homem m arginal”, réplica das “digressões
tencer a um bairro, mas estudar os recursos sobre o estrangeiro” de Simmel), haviam es­
urbanísticos, os equipam entos e serviços tabelecido seu próprio espaço e .proposto
que perm item ao citadino superar o estra­ questões de pesquisa ligadas aos problemas
nhamento de um território pouco familiar e da época.
orientar-se em um “universo de estranhos”
(Lyn Lofland). LV - O que levou você e Yves Grafmeyer a
publicarem em francês a coletânea ? O que
LV e RK - Por que você se interessou pela o rien to u a escolha dos texto s ? P o r que
Escola de Chicago ? Como vê sua trajetó­ H albw achs?
ria intelectual articulada a essa Escola?
Yves Grafmeyer e eu propusemos assim
Para dizer a verdade, por oportunismo! a tradução de uma seleção de textos funda­
Eu, que não tinha form ação de sociólogo, mentais da ecologia urbana. A maioria deles
descobri uma sociologia que meus colegas era extraída de um livro publicado pela edito­
não conheciam ou que passaram a atacar ra da universidade de Chicago sob o título
com argumentos de segunda mão. Além dis­ The city, feito em co-edição com Park e Bur-
so, a leitura de Simmel me fascinara: nele en­ gess. Grafm eyer conhecia bem os trabalhos

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mais recentes de ecologia urbana e suas li­ A tradição de Chicago é, pelo contrário,
gações com geógrafos, sobretudo M areei a melhor defesa contra o individualismo m e­
Roncayolo, o familiarizavam com essa linha todológico ou ideológico. Park e B urgess
de pesquisa atenta aos territórios e aos fe­ indicavam com clareza, desde os anos 20: a
nômenos de m obilidade residencial. A res­ unidade elem entar das ciências sociais é a
peito da cidade e dos fenômenos urbanos, o interação. E. Hugues vai repetir com ênfase
modo de ele entender os textos que traduzía­ vinte anos mais tarde: “a sociedade é feita
mos era mais próximo do modo de ver dos de interações”. Uma das conseqüências dis­
historiadores das m obilidades residenciais so é que o se//(q u e não é o eu, nem o sujeito
ou dos trabalhos de Halbwachs. Foi ele quem das filosofias da consciência ou das feno-
quis anexar o artigo deste autor à coletânea, menologias) é um a construção da interação.
para deixar bem claras as ligações com as Ou, ainda, é possível dizer: o indivíduo é uma
abordagens em termos de morfologia social. categoria que faz parte do público. E nestes
Quanto a mim, estava mais interessado na termos que o interacionismo está inteiramente
tem ática das sociabilidades, na noção de no pragmatismo, obrigando-nos a pensar o
proximidade, nas formas de vizinhança no ator em seu contexto de ação e a conceber o
espaço residencial ou nas formas de co-pre- ator como um observador.
sença no espaço público. Acho que nossa É esse par conceptual que se deve com­
busca de conhecim ento era com plem entar. preender para liquidar o individualism o: a
Expressamos, aliás, essa com plem entarida­ noção de interação com o “ação recíproca”
de nos títulos dos seminários que dirigimos (Simmel), e a unidade social elem entar da
e nos programas de pesquisa: “la ville enjeit ação e da observação (por exemplo, em Mead,
et la ville milieu” (a cidade desafio e a cida­ a conversa é definida como uma ação de co­
de meio) no início dos anos 80 e, mais tarde, operação observável). Entre Georg Simmel,
“análise de populações e análise de situa­ de quem eles se inspiraram, e Louis Wirth
ções” . Era um modo de nos distanciarm os que escreveu, em 1938, um dos mais famo­
da tradicional oposição dos programas aca­ sos artigos sobre o assunto, Urbanism as a
dêmicos entre análise quantitativa e análise way o f life, os sociólogos de Chicago nos
qualitativa. Tal oposição não nos parecia convenceram a não desesperar do vínculo
expressiva: o quantitativo não revela nada social nas sociedades com plexas que inter­
se não for tratado com inteligência, e o qua­ pretam cada crise como um aumento do indi­
litativo abre as portas para qualquer coisa. vidualismo ou que proclamam, a partir de uma
A pedido de Jérôme Lindon das edições de leitura economicista e liberal do social, que o
Minuit, traduzi e apresentei o livro de U lf indivíduo é a única realidade. Ensinaram-nos
Hannerz (1982). Além de essa obra apresen­ a considerar a distância nas relações sociais
tar todo o percurso das pesquisas dos etnó- como um dos pontos positivos do social.
grafos de Chicago dos anos 20 até a obra de As sociedades urbanas se caracterizam, para
G offm an, acrescentava ao nosso trabalho Simmel, pela aceleração das trocas e, ao mes­
uma dimensão antropológica. A partir disso, mo tempo, pelo distanciamento das pessoas
os alunos podiam dispor de uma base sólida que trocam entre si. Wirth, por seu lado, in­
para o trabalho empírico. sistia na superficialidade das trocas sociais
decorrente da heterogeneidade das popula­
RK - M uitas vezes se atribui à Escola de ções e da densidade das relações. Em outros
Chicago e ao interacionism o uma defesa termos, os modos de vida urbanos são mar­
do individualismo. Como vê esta questão ? cados pela tensão entre distância e proximi­
dade, socialização e dessocializaçâo, apego território, é muito mais que contentar-se com
e desapego. Desse ponto de vista os soció­ o vocabulário da exclusão, da pobreza ou
logos de Chicago nos levaram a observar dos guetos. Ao oposto do urbanism o m o­
formas de sociedades diversas das socieda­ dernista, é tomar consciência de que os ur­
des de interconhecim ento, a estudar o uni­ banistas hoje vivem da cidade, que o ofício
verso dos encontros (G offm an) com o um deles é feito de acordos e com prom etim en­
universo de vínculos fracos, e a neles detec­ tos. Em vez do zoneamento e do planejamen­
tar todas as regularidades e ritos da socieda­ to voluntarista, trata-se de cuidar das áreas
de tradicional. E essa atenção às formas me­ de transição e dos equipamentos que garan­
nores de civilidade e às “pequenas predile- tem a continuidade do tecido urbano na es­
ç õ e s” , bem m ais que um a fid elid ad e ao cala de uma aglomeração. Ou seja, as pes­
discurso da “m odernidade”, que explica o quisas baseadas em hipóteses “d u alista s”
cuidado etnográfico e descritivo dos traba­ parecem-me distantes da herança de Chica­
lhos da escola e seu “irredutível empirismo” go porque não dão suficiente atenção aos
(O. Schwartz). Muito mais que uma sociolo­ fenômenos de hibridação das formas e cul­
gia dos atores, individuais ou coletivos, é turas urbanas, de origem lícita ou ilícita, que
uma sociologia da ação que nasce em Chica­ ligam a econom ia dos bairros abastados à
go, antes de obter seu reconhecim ento nas dos bairros relegados. Enfim, se há uma ex­
pesquisas contem porâneas sobre a ação si­ periência urbana “moderna”, é a da visibili­
tuada. dade da pobreza: os Sem-Domicílio-Fixo já
não são relegados para fora da cidade ou
LV e RK - Na M esa-Redonda da Anpocs subtraídos ao nosso olhar, estão expostos
você se referiu à herança de Chicago como aos olhares dos transeuntes. Tal visibilida­
necessária à reflexão atual sobre as ques­ de é paradoxalm ente uma conquista da de­
tões vinculadas à segregação nas cidades. mocracia, um de seus dardos morais, a fábri­
O tema da exclusão social está muito p re­ ca cotidiana da com paixão ou da simpatia,
sente no debate atual brasileiro. O que a mas também da solidariedade como recurso
Escola de C hicago e Isaac Joseph têm a civil e não apenas como injunção do Estado e
dizer? dos “aparelhos ideológicos”, como se costu­
mava dizer.
Acho perigoso, ou inutilmente enfático,
procurar na Escola de Chicago o pensamen­ LV - Por que um livro sobre Goffman?
to da modernidade triunfante. Em com pen­
sação, a experiência da própria cidade de Primeiro, porque a sociologia de Goff­
Chicago tal como a descreveu Maurice Hal­ m an, com o todos os g randes rela to s que
faw ac hs nos anos 30, embora não seja a úni­ perdemos, ajuda-nos a com preender o que
ca (convém lembrar Berlim na mesma época, está acontecendo conosco: confrontados à
por exemplo), levou os observadores — so­ pluralidade de mundos sociais, nossa com ­
ciólogos, mas também jornalistas ou filan­ petência social se mede pela nossa capaci­
tropos — a conceberem a idéia das grandes dade de entrar em acordo. E o campo da or­
metrópoles como laboratórios sociais. Essa g a n iz a ç ã o so c ia l dos e n c o n tro s qu e a
idéia persiste no âmago de muitos progra­ m icrosociologia constrói com o dom ínio de
mas de pesquisa em ciências sociais. Pensar pleno direito e do qual esse livro tenta explo­
a cidade “em ação” (J.C. Bailly) é levar a sé­ rar o arcabouço conceptual e os desdobra­
rio os fenômenos de recomposição social e mentos empíricos. Tomando por objeto a or­
de sucessão de populações em um mesmo dem da interação, Erving Goffman propõe à

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sociologia que confirme sua herança desta- meio denso? Sem dúvida. De fato, trata-se
cando-se das psicologias sociais; que leve a de outra coisa se com preenderm os que es­
sério as perguntas contem porâneas sobre a ses comportamentos exigem uma aprendiza­
noção de espaço público e se dê o direito de gem e uma confirmação que os instituem, por
descrever e analisar de modo original e rigo­ exemplo ao entregar o trabalho de regulação
roso as condições e as conseqüências da a guardas de trânsito. Ao contrário, é claro
acessibilidade m útua constitutiva das rela­ que a regra de indiferença civil enunciada
ções em público. por Goffman (civil inattention) faz parte da
D epois, porque G offm an propõe um a gramática da mobilidade em meio urbano e
sociologia da civilidade e da sociedade de que a hospitalidade urbana deve aceitar o
serviços, e esses são dois temas fundamen­ fato que, em um meio denso e em um univer­
tais para se estar à altura das exigências con­ so de estranhos, a disponibilidade de cada
temporâneas da reflexão democrática. A ci­ um à mudança seja necessariamente restrita.
v ilid a d e re m e te a um a p re su n ç ã o de O universo dos encontros e a socieda­
igualdade. É importante enfatizar quanto essa de de serviços constituem as duas facetas
tem ática se afasta das discussões sobre a do mundo de Goffman. A segunda geração
noção de democracia formal baseada no le­ da Escola de Chicago teve o mérito de haver
gado marxista. A presunção de igualdade é explorado, sob o impulso de Everett C. Hu-
um pressuposto do espaço público e do uni­ gues, o universo das ocupações e das pro­
verso dos encontros sociáveis. Não se trata fissões a partir da dupla herança das gera­
de saber se a igualdade é adquirida: um pres­ ções precedentes. Por um lado, a observação
suposto é um dispositivo de regulação e um do meio urbano mostrava a incrível prolife­
princípio da ordem das interações. Exemplo: ração de ofícios e de nichos profissionais
uma fila diante de um caixa. A regra que reza produzida pela cidade como espaço de cir­
“o primeiro a chegar é o primeiro a ser aten­ culação sempre mais extenso e complexo e
dido” é um pressuposto dessa ordem, eficaz como espaço de comunicação cada vez mais
de pleno direito e que não aceita correção, a sofisticado. C ada um a dessas ocupações,
não ser que se apresente uma razão pública precárias ou inovadoras, vem enriquecer uma
e publicável (ser deficiente físico, pessoa sociedade de serviços com seus dilemas de
idosa ou estar acompanhado por criança etc). status e seu trabalho sujo, oferecendo no­
O importante é que a própria existência da vas oportunidades aos m oradores das cida­
fila manifesta, torna visível, que o pressu­ des — porteiros e zeladores, camelôs, bisca­
posto é partilhado como princípio regulador tes. Por outro lado, ao socializar os serviços
pelos p articip a n tes. P odem os dar outros aos particulares, ao fazê-los sair da esfera
exemplos, como no espaço do tráfego: o cru­ doméstica onde estavam fechados na socie­
zamento com sinal vermelho ou o estaciona­ dade burguesa tradicional, esses serviços
mento. Estou querendo dizer que a globali­ consagram uma esfera de usos hoje em ple­
zação não é apenas um processo econômico: na expansão e que se tornou o cerne do que
ela produz uma “sociedade civil global” na se chama conforto ou qualidade urbana. O
qual a presunção de igualdade civil é puxada mérito de Goffman foi o de fazer desse uni­
para cima. Por exemplo, pode-se imaginar que verso de serviços um laboratório dos rituais
seremos todos marcados por algum elemen­ da vida contemporânea, de estudar-lhe a di­
to da cultura dos espaços públicos jap o n e­ mensão normativa e de analisar os motivos
ses e que vamos nos acostumar um dia (...um em termos de competências sociais.
dia) a fazer fila para atravessar a rua: simples Para compreender o alcance da obra de
conseqüência da gestão dos fluxos em um Goffman, bem além da mera microssociolo-

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gia, convém citar ainda uma vez o historiador normas e de taxinomias mais adequado, de
Bernard Lepetit em um de seus últimos escri­ construir, a partir de regras e de valores dis­
tos, no qual assinala a importância da pragmá­ parates, as interpretações que organizarão o
tica na atual renovação das ciências sociais e mu rido de modo diferente. Sobre todos es­
assim define a noção de competência: ses pontos, não é postulada nenhum a igual­
“Por com petência...entende-se a capa­ dade entre os atores. Sua liberdade é pro­
cidade de reconhecer a pluralidade dos cam ­ p o rc io n a l à p o siç ã o m o m e n tâ n e a que
pos normativos e de identificar os respecti­ desfrutam, à m ultiplicidade de m undos aos
vos c o n te ú d o s; a a p tid ã o a d e te c ta r as quais suas ex p eriên cias de vida lhes dão
características de uma situação e as qualida­ acesso, e a suas capacidades inferenciais.”
des de seus protagonistas; a faculdade, en­ (Lepetit 1995:20)
fim, de esgueirar-se nos espaços intersticiais
que os universos de regras propiciam entre (R ecebido pa ra publicação
si, de mobilizar em seu proveito o sistema de em abril de 2000)

Notas

1. A mais antiga tradução é a do livro de Sutherland (1963). A seguir os franceses introdu­


ziram Goffman (1968) na academia. Pouco depois aparece a coletânea organizada por
Grafm eyer e Joseph (1979) com textos clássicos de Park, Burguess, M cKenzie, Wirth,
entre outros. O conhecido livro de Wirth (1980), sai finalm ente traduzido em francês.
Becker (1985) é divulgado a seguir e nos anos noventa as traduções se multiplicam com
Whyte (1996), Andersen (1997) e finalmente o clássico de Thomas e Znaniecki (1998).
2. Vale citar também Yves Grafmeyer, Alain Coulon, Jean-Michel Chapoulie.
3. Os mais relevantes trabalhos de Isaac Joseph no seu diálogo com Chicago estão indica­
dos na bibliografia ao final da entrevista.
4. Também integravam a Mesa-Redonda: Mário Antônio Eufrásio (USP), Juarez Ruben Bran­
dão Lopes (Ministério do Trabalho-Incra), Gilberto Velho (Museu Nacional/UFRJ).
5. A base de dados URBANDATA/BRASIL tem o registro de nada menos que 9.000 títulos
(até 1999) entre livros, artigos de periódico, teses, relatórios de pesquisa e comunicações
apresentadas em congressos científicos.
6. O primeiro livro do autor a ser editado em português, Erving Goffman e a microssociolo-
gia, encontra-se no prelo, pela Editora da Fundação Getúlio Vargas.
7. Cf. Les formes de l’expérience. Paris:Albin Michel, 1995:14.

Bibliografia Citada

Anderson, Nels
1998 Le Hobo; sociologie du sans-abri. Paris, Nathan.
Becker, Howard
1985 Outsiders. Paris, A-M. Métailié.

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Goffman, Erving
1968 Asiles. Paris, Editions du Minuit.
Grafmeyer, Yves e Joseph, Isaac
1979 (orgs.) L ’école de Chicago; naissance de l ’écologie urbaine. Paris, Les Editions
du Champ Urbain.
Gumperz, John
1991 Engager la conversation. Paris, Editions du Minuit.
Hannerz, U lf
1982 Explorer la ville. Paris, Editions du Minuit.
Joseph, Isaac
1998 La ville sans qualités .Paris, Editions de l’Aube.
1955 (org.) Prendre place; espaces publics et cultures dram atiques, Paris, Éditions
Recherches.
1995 (org.) Villes en Gares, Paris, Editions de l’Aube.
Lepetit, Bernard
1995 Les formes de l ’expérience; une autre histoire sociale. Paris, Albin Michel
Sutherland, Edwin
1963 Le voleur professionel. Paris, Spès.
Thomas, William et Znaniecki, F.
1998 Le paysan polonais en Europe et en Amérique; récit de vie d ’un migrant. (Chica­
go, 1919). Paris, Nathan.
Whyte, William Foote
1996 Street Corner Society; la structure sociale d ’un quartier italo-américain. Paris,
Editions la Découverte.
Wirth, Louis
1980 The Ghetto. Grenoble, Presses Universitaire de Grenoble.

Resumo

Escola de Chicago: Entrevista com Isaac Joseph

Entrevista realizada quando Isaac Joseph esteve no Brasil, participando do 23.° Encontro
Anual da ANPOCS. O Autor de Erving and M icrosociology fala sobre a influência da Escola
de Chicago no pensamento francês. Chama atenção da sua relevância para o entendimento e
análise dos problemas sociais de imigração, urbanização e as form as contem porâneas de
pluralismo cultural.

Palavras-chave: Escola de Chicago, trabalho de campo, abordagem qualitativa, Isaac Joseph

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A bstract

The Chicago School: Interview with Isaac Joseph

This interview took place when Isaac Joseph was in Brazil for the last time, participating in
A N PO C S’ 23rd A nnual Conference. The author o f Erving G offm an and M icrosociology
talks about the Chicago School’s influence on French thought. He underscores its relevance
to understanding and analyzing the social problems o f imm igration, urbanization, and con­
temporary forms of cultural pluralism.

K eyw ords: Chicago School, fieldwork, qualitative approaches, Isaac Joseph

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