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RESUMO
Pesquisar práticas sociais em diferentes espaços é nosso ponto de partida:
acontecem processos educativos em nossas vivências, não mais ou menos
válidas, apenas diferentes do que as vividas em escolas ou quaisquer outras
instituições de educação escolar. As pessoas vão se formando em todas as
experiências de que participam ao longo da vida. Este artigo é resultado de
estudos por nós realizados em espaços não escolares que acolhem crianças,
jovens e adultos: um programa de socioeducação, um projeto ligado ao ser-
viço de convivência e fortalecimento de vínculos e uma unidade feminina de
privação de liberdade. Os dados foram coletados em inserções e vivências
com os colaboradores de pesquisa e organizados em diários de campo. A
análise dos dados nos permitiu compreender que os processos educativos
acontecem ao longo da vida nas práticas sociais em que participamos - a
educação é um fenômeno que promove a escrita e a leitura da vida e da rea-
lidade das crianças, jovens e adultos estejam eles onde estiverem.
Palavras-chave: Educação em espaço de privação de liberdade. Processos
educativos em práticas sociais. Educação dialógica.
* Doutora pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar. E-mail eleonofre@ufscar.br
** Mestrando em Educação pelo PPGE/UFSCar e graduando em comunicação social pela Universidade de
Ribeirão Preto – UNAERP. E-mail: kastein@gmail.com.
*** Doutoranda em educação pelo PPGE/UFSCar, mestre em educação pela Universidade Federal do Ama-
zonas/UFAM e professora da UFAM. E-mail: edlacristina@gmail.com.
**** Mestrando em educação pelo PPGE/UFSCar e graduado em em história e publicidade e propagan-
da – Universidade Barão de Mauá – Jardim Paulista, professor de história da Escola Metropolitana.
E-mail: aranhagustavo@gmail.com.
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Elenice Maria Cammarosano Onofre; André Luiz Martins Kastein Filho; Edla Cristina Rodrigues Caldas; Gustavo Aranha Portela
ABSTRACT
LINES, MESSAGES AND CONVERSATIONS: NON-SCHOOL
EDUCATION WITH CHILDREN, YOUNG PEOPLE AND ADULTS
Researching social practices in different spaces is our starting point: edu-
cational processes take place in our experiences, no more or less valid, just
different than those experienced in schools or any other school education
institutions. People are being trained in all the experiences they participate
in throughout life. This article is the result of studies carried out by us in
non-school spaces that welcome children, young people and adults: a so-
cio-educational program, a project linked to the service of coexistence and
strengthening of bonds and a female unit of deprivation of liberty. The data
were collected in insertions and experiences with the research collabora-
tors and organized in field diaries. The analysis of the data allowed us to
understand that the educational processes happen throughout life in the
social practices in which we participate - education is a phenomenon that
promotes the writing and reading of the life and reality of children, youth
and adults wherever they are .
Keywords: Education in a space of deprivation of liberty. Educational pro-
cesses in social practices. Dialogic education.
RESUMEN
LÍNEAS, MENSAJES Y CONVERSACIONES: EDUCACIÓN NO
ESCOLAR CON NIÑOS, JÓVENES Y ADULTOS
La investigación de las prácticas sociales en diferentes espacios es nuestro
punto de partida: los procesos educativos tienen lugar en nuestras experien-
cias, no más o menos válidas, simplemente diferentes a las experimentadas
en las escuelas o en cualquier otra institución educativa escolar. Las perso-
nas reciben capacitación en todas las experiencias en las que participan a
lo largo de la vida. Este artículo es el resultado de estudios realizados por
nosotros en espacios no escolares que acogen a niños, jóvenes y adultos: un
programa socioeducativo, un proyecto vinculado al servicio de convivencia y
fortalecimiento de lazos y una unidad femenina de privación de libertad. Los
datos se recopilaron en inserciones y experiencias con los colaboradores de
la investigación y se organizaron en diarios de campo. El análisis de los da-
tos nos permitió comprender que los procesos educativos ocurren a lo largo
de la vida en las prácticas sociales en las que participamos: la educación es
un fenómeno que promueve la escritura y la lectura de la vida y la realidad
de los niños, jóvenes y adultos dondequiera que se encuentren.
Palabras clave: La educación en un espacio de privación de libertad. Proce-
sos educativos en prácticas sociales. Educación dialógica.
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20) explica: “As medidas socioeducativas A presença de um “modelo” não nos pa-
comportam aspectos de natureza coercitiva, receu necessário. Talvez acreditar na criati-
uma vez que são punitivas aos infratores, e vidade e nas perspectivas dos jovens fosse a
aspectos educativos no sentido da proteção melhor maneira de confeccionar os jogos. A
integral e oportunização, e do acesso à for- nosso ver, os adolescentes podem ser pro-
mação e informação”. Sendo assim, pode-se tagonistas do processo educativo do qual
dizer que o aspecto educativo é fundante da fazem parte; contar com o exercício da cria-
característica socioeducativa. tividade deles poderia tornar a atividade
O trabalho de campo, por decisão da mais interessante.
instituição, foi realizado junto à equipe res- Antes de começar a costura, os adoles-
ponsável pela condução das atividades, com centes, as orientadoras e eu pintamos pe-
oito adolescentes que cumpriam medida de quenos pedaços de tecidos que se transfor-
Prestação de Serviço à Comunidade – PSC. mariam nas peças. As cores das peças do
Participaram das atividades, além dos jo- jogo eram fortes para que se destacassem
vens, uma orientadora de Medida, com for- da base. Ao todo pintamos 40 peças. Con-
mação em Psicologia (aqui chamada de F.), sideramos muito relevante a proposta de
e outra, licenciada em Artes (aqui como S.), produzir algo para o outro. A confecção dos
responsável por propor a confecção de ma- jogos levou os adolescentes a pensarem nas
teriais de cunho artísticos e artesanais, bem características dos idosos, nas limitações e
como de ensinar técnicas e desenvolver as possibilidades que eles possuem.
atividades. Durante esse processo, os diálogos fo-
Tais atividades foram desenvolvidas nas ram profícuos e intensos. Desde o primeiro
dependências do Programa. A prática so- momento até o final da atividade do dia, as
cial da qual participamos foi a confecção conversas desenrolavam-se sem restrições.
de jogos da velha para doação a um abrigo Os adolescentes pareciam saber que ali po-
de idosos da cidade. Os adolescentes reali- diam falar de suas histórias, contar seus uni-
zaram a primeira visita há alguns meses e versos e, ao mesmo tempo, saber de nossas
o grupo pretendia voltar para fazer uma es- experiências e ter outras informações de sa-
pécie de sarau com jogos, música e poesia beres diferentes.
junto aos idosos. A costura não era tarefa fácil para os jo-
A atividade iniciou com a costura de fu- vens, sobretudo para os rapazes. C., jovem
xicos, estes seriam utilizados como peças de 14 anos, estava concentrado e observa-
dos jogos da velha. No primeiro dia de in- dor e, enquanto ouvia explicações sobre
serção para a coleta dos dados, a proposta como fazer a tarefa, fazia expressão de que
da orientadora de Medida era fazer um “mo- aquilo seria desafiador. Os jovens sabiam
delo” para mostrar aos adolescentes. Logo que precisavam cumprir a atividade. Apesar
nos dispusemos a ajudar e essa foi a postura de difícil, é perceptível que eles aprendiam
adotada ao longo deste estudo. Os materiais com rapidez. Enquanto nossas mãos mo-
disponíveis eram linhas de costura, fitas de vimentavam-se, costurando e traçando ca-
cetim, pedaços de tecidos cortados em cír- minhos nos tecidos, temas eram trazidos à
culo, pedaços de tecido camurça cortados mesa por meio dos diálogos iniciados, quase
em forma quadrada, pincéis, tintas para te- sempre, pelos próprios jovens. A experiên-
cidos e agulhas. cia com a escola, com as drogas, com a vio-
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lência, com a polícia e com as famílias per- se mostrar estudioso, J. não se vê em cur-
passavam palavras, tecidos, tintas e linhas a so superior ou em um bom emprego, não
todo momento. projeta coisas positivas na vida; projeta sua
A escolarização dos adolescentes era entrada em um presídio por conta de suas
preocupação constante das orientadoras do experiências com a polícia. “Quando o polí-
Programa - “sucesso” e “fracasso escolar” fo- cia quer pegar, ele não quer saber se o cara
ram discutidos pelos próprios jovens, como mudou de vida ou não. Ele pega mesmo! Mi-
vemos em um dos diálogos; parece haver nha cidade me espera, aí, ó! ” - Prenunciou
tensões no universo escolar vividas por eles. J. (Diário de Campo – 02 de maio de 2018).
C. revela que foi “expulso” da escola: As condições sociais e materiais de nossa
Destravamo o extintor da escola. Fomo pra sociedade produzem um diálogo de deses-
diretoria e a diretora disse que ia fazer B.O., perança. Há pouca coisa para a escola fazer
mas daí ela não fez não. Só que veio uma ou- diante do descaso e abandono sofridos pe-
tra professora, mentindo e dizendo que meu las crianças e adolescentes no Brasil e no
colega tinha ameaçado ela. Daí o meu colega
mundo. Cientes disso, os adolescentes pro-
ficou com raiva e ameaçou de verdade. Dis-
jetam um futuro desanimador, não somente
se que ia pegar e ia matar. Aí eu fui expulso.
(Trecho do Diário de Campo - 02 de maio de para eles como para outros de sua idade. A
2018). fala de J. pode indicar que muitos de seus
colegas também já estão praticando atos in-
No entanto, nem tudo é dificuldade na
fracionais. Convém lembrar, no entanto: “É
vida dos jovens. O sucesso também faz parte
preciso ficar claro que a desesperança não
da vida deles. J., rapaz de 16 anos, contou-
é maneira de estar sendo natural do ser hu-
nos, orgulhoso, ter obtido bom desempenho
mano, mas distorção da esperança. ” (FREI-
escolar no ano anterior: - Minhas notas são
RE, 1992, p. 81).
boas, dona! – E apontou para F.: - Pode per-
Uma distorção da esperança era o que,
guntar pra ela. - F. concordou, mas ressalvou
aparentemente, vivia B.: jovem de quase 18
que havia visto os boletins do ano passado
anos, mãe de um menino de 1 ano e meio. Ela
(Diário de Campo - 02 de maio de 2018).
sorria dos diálogos, mas se mantinha calada.
As conversas tinham teor educativo. O
diálogo pode oferecer momentos de refle- Apenas costurava e produzia os fuxicos, fa-
xão do pensar sobre a prática cotidiana. zia isso rapidamente. Concentrada, parecia
Nesse sentido, compartilhamos das ideias querer terminar o quanto antes. Apesar do
de Onofre (2013ª, p.95): ambiente agradável e propício às práticas
sociais dialógicas, o caráter punitivo estava
Em nosso entender, a abordagem dialógica de
presente no significado das atividades.
educação proposta por Freire – que anuncia o
diálogo entre iguais (educador e educando), Os diálogos correm por outros caminhos
em um processo em que ambos são aprendi- e reconstroem pensamentos e ideias de si
zes e protagonistas de mesma situação – ga- e de outros. A religiosidade era interesse
rante aos indivíduos que reconheçam sua his- constante dos rapazes e de B. Entre linhas
toricidade e, dessa forma, se percebam como e reflexões, surgem perguntas sobre reli-
sujeito histórico
giosidades. J. brincava com as linhas e fitas,
Essas experiências positivas, no entanto, aparentava estar entediado, vez por outra
nem sempre produzem perspectivas de um vagava o olhar, parecendo reflexivo. Até que
futuro promissor para os jovens. Apesar de perguntou:
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Foi possível identificar que a prática so- para pedir silêncio. Nas falas das crianças
cial da reunião do grupo para educar para apareciam pedidos para familiares enfermos
a convivência, neste caso, chamada de Men- (por exemplo: “eu queria pedir para meu pai
que está passando por uma cirurgia”), para
sagem do Viver, gera processos educativos
as pessoas presentes, amigos e conhecidos
relacionados à visão e sentido da vida e do (Diário de campo - 24 de abril de 2018).
mundo e aos valores que devem estar pre-
sentes em um convívio harmonioso e huma- No período da coleta de dados, destaca-
nizado. Esta interpretação relaciona-se com mos os depoimentos dos adolescentes com
o conceito de educação trazido por Silva idades entre 15 e 16 anos e que participam
(2010, p. 181), quando se refere a do projeto desde os 6 anos, sinalizando as
Construir a própria vida, que se desenvolve transformações que a Mensagem do Viver
em relações entre gerações, gêneros, grupos teve no decorrer dos tempos. Uma adoles-
raciais e sociais, com a intenção de transmi- cente compartilhou que a Prefeitura Mu-
tir visão de mundo, repassar conhecimen- nicipal cogitou cessar o repasse de verbas
tos, comunicar experiências. para o desenvolvimento do projeto, pelo
Em contrapartida, no contexto da Men- fato das atividades pertencerem exclusiva-
sagem do Viver, pode-se distinguir os pro- mente a uma doutrina religiosa e a maioria
cessos educativos entre as intenções da das crianças e adolescentes praticarem ou-
instituição e dos educadores e os processos tras religiões. Outra adolescente reiterou a
desencadeados pelas crianças e adolescen- fala da colega, dizendo que o projeto precisa
tes, a partir da resistência às imposições e considerar a diversidade religiosa das pes-
à falta de sentido em algumas práticas pro- soas.
postas. Atualmente, a equipe é orientada a atuar
Durante o período de coleta de dados, a na perspectiva da diversidade religiosa. To-
Mensagem do Viver quase sempre extrapo- davia como separar a subjetividade do edu-
lou o horário previsto para o término. Esta- cador católico da prática para a diversida-
va planejada em quatro momentos: a espera de? Como transformar a intersubjetividade
pela chegada de toda turma, enquanto são compartilhada no âmbito do projeto? Hoje,
reproduzidos clipes musicais; o chamado o uniforme das crianças e adolescentes ain-
“pedir para”; a exposição de um vídeo pro- da mantém a frase “Tudo posso naquele que
posto pelo educador responsável pela orga- me fortalece”, mas o discurso dos educado-
nização da atividade e, finalmente, a roda de res promove a diversidade religiosa e de
conversa sobre o tema proposto. O momen- crença.
to “de pedir para” pode ser melhor com- A igualdade de gêneros exposta na entra-
preendido no trecho que segue: da do espaço considera apenas o masculino
Após minha apresentação J. chamou a aten- e o feminino, porém, nos diálogos aparece
ção de todos e disse que o momento esta- o respeito por alunos e alunas homosse-
va aberto para quem quisesse falar alguma xuais. Madalena Freire (1997) afirma que
coisa. As crianças começaram a levantar as não fomos criados para olhar o mundo e nós
mãos e, precedidos pelo que me recordo, do
mesmos e a observação é a melhor forma
termo “eu queria pedir para”, uma a uma as
crianças e adolescentes foram falando a par- de aprendermos a ter um olhar sensível e
tir da mediação e organização de J., que em pensante. Nesse sentido, nós, educadores,
alguns momentos interrompia a atividade frente ao desafio de aprendermos a nos re-
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Quando perguntamos qual foi a fonte do. Aí depois expliquei quais os materiais
para que ela montasse esse material, ela que são recicláveis e o que podemos fazer
respondeu: “[...] eu gosto muito de ler e mi- com eles (Diário de Campo - 23 de maio de
2018).
nha mãe manda carta pra mim toda semana,
como ela e meu pai são leitores famintos, ela E a Monitora B:
sempre manda essas frases. Eu gosto muito. [...] eu usei a música da Elis Regina, como as
Fui professora da rede estadual de ensino minhas alunas são senhorinhas, elas adora-
20 anos, né.” (Diário de Campo - 09 de maio ram cantar, sabiam a letra e tudo. Aí como
de 2018). Aqui podemos notar que, em es- tem umas palavras difíceis, perguntava para
elas o que significava, elas diziam que não
paços de privação de liberdade, a participa-
sabiam. Então, peguei um dicionário e fomos
ção da família pode ser positiva e que diá- procurando nele os significados dessas pala-
logos e cartas contribuem para a elevação vras. Foi bem legal. Aprendi bastante coisa
da autoestima, estabelecimento de vínculos que não sabia e elas também. Dicionários
com a família e até para a construção de ma- são legais! (Diário de Campo - 23 de maio de
teriais pedagógicos. 2018).
Em diálogo com as monitoras, combina- Nessas situações pedagógicas, as moni-
mos que eu levaria, em outro dia, letras de toras buscaram outras maneiras de traba-
músicas que tivessem relação com o tema lhar com o material, ou seja, elas se apro-
de meio ambiente e sustentabilidade, tema priaram do material e utilizaram da me-
que iriam utilizar com suas alunas. Foi mar- lhor forma possível, pois convivem com as
cante a disponibilidade delas para o traba- demais mulheres que estão em privação de
lho que fizeram algo diferente. As monito- liberdade. Valla (1996, p. 179) ajuda-nos a
ras trabalharam com letras das músicas: pensar sobre esses saberes da vivência ao
“Planeta Azul”, de Chitãozinho e Xororó; “O afirmar que os “saberes da população são
Sal da Terra”, de Beto Guedes; e “Águas de elaborados sobre a experiência concreta, a
março”, de Elis Regina. Mesmo não sendo partir de suas vivências, que são vividas de
possível utilizar o áudio das músicas devido uma forma distinta daquela vivida pelo pro-
à falta de acesso a aparelhos reprodutores fissional”.
de som, as letras foram lidas pelo grupo e Apresentamos a seguir, um trecho do
os temas das músicas foram discutidos. Foi
Diário de Campo em que uma das monito-
bastante positiva a forma como avaliaram o
ras explica uma atividade realizada, apro-
desenvolvimento da atividade com as letras
veitando sua facilidade em lidar com traba-
das músicas:
lhos manuais e os materiais disponíveis na
Monitora S: sala de leitura da unidade prisional. Assim
[...]. Olha, eu usei a música do Chitãozinho e se expressa:
Xororó. [...] Nossa, consegui, demorou duas aulas,
[...] eu não sei como é essa música, aí per- mas foi muito legal. Fizemos as flores, de-
guntei para as minhas alunas e elas tam- pois que terminamos pedi para que elas me
bém não. Então o que eu fiz? Peguei a letra dissessem qual sentimento elas tiveram ao
mesmo e fui lendo com elas e perguntava fazer. Então, fui escrevendo na lousa tam-
quais palavras tinham a ver com o meio bém. Amor, bonito, orgulho, dificuldade,
ambiente e sustentabilidade e fui escre- mas depois superação, pois conseguiu fa-
vendo na lousa conforme elas iam falan- zer a flor, carinho. Um monte; teve uma que
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falou que queria botar fogo, pois a cola que OUTRAS MIRADAS ...
a gente usou não colava. Aí falei para ela
guardar essa palavra para depois. Depois, DESVELANDO TERRITÓRIOS
pedi para elas destruírem a flor que fize- QUE EDUCAM
ram, rasgar, amassar. Elas falaram que não
Pesquisar práticas sociais em espaços di-
iam fazer porque estavam com dó, porque
tinham carinho pelo que fizeram. Eu insis- versos nos leva de volta ao nosso ponto de
ti e elas foram amassando e rasgando as partida: acontecem processos educativos
flores. Feito isso, perguntei quais os senti- em nossas vivências, não mais ou menos
mentos que elas tiveram ao destruir a flor. válidas, apenas diferentes do que as vividas
Ódio, tristeza, culpa, vontade de chorar. No em escolas ou quaisquer outras instituições
fim, falei para elas que a natureza cria as de educação escolar.
coisas às vezes a partir de uma pequena
As experiências com adolescentes no
semente, leva muito tempo, utiliza muitos
nutrientes para fazer crescer e o homem Programa de Medidas Socioeducativas no
vai lá e destrói tudo rapidamente, mas às interior do estado de São Paulo mostram
vezes essas pessoas que fazem isso estão desafios e possibilidades. Um dos mais
sendo pagas e precisam sobreviver e tal- proeminentes é o de colaborar, significativa-
vez elas também fiquem tristes por terem mente, com a construção de outras oportu-
que fazer isso. Às vezes isso acontece com nidades a esses jovens estigmatizados como
a gente, né? Às vezes a vida nos leva para
infratores. A educação, em sua perspectiva
caminhos ruins, mas podemos plantar uma
semente nova e fazer outra vida (Diário de
humanizadora, voltada para formação à ci-
Campo- 04 de junho de 2018). dadania, está presente num Estado de direi-
to que se diz democrático.
Esta passagem exemplifica como as mo- No entanto, não deixamos de reconhecer
nitoras, mesmo em um ambiente de pri- que as condições sociais e materiais de nos-
vação de liberdade, sem qualquer recurso sa sociedade produzem, por vezes, uma edu-
informatizado e com acesso restrito à in- cação desesperançosa. Há pouca coisa para
formação externa, adaptam-se e produzem as instituições escolares ou não escolares
conhecimentos e saberes com sentido con- promoverem diante do descaso e abandono
creto. Saberes e conhecimentos frutos de sofridos pelas crianças, adolescentes e adul-
pesquisa e diálogo com o outro, levando em tos no Brasil, especialmente, para as classes
conta os saberes e vivências das estudantes menos favorecidas da sociedade. Ainda as-
em privação de liberdade. Essas práticas po- sim, os processos educativos nos diálogos,
dem se relacionar aos escritos de Paulo Frei- na organização das atividades e na maneira
re a respeito do “saber de experiência feito”, de cuidar dos adolescentes como sujeitos
diálogo e rigorosidade de estudo naquilo com direitos, podem trazer possibilidades
em que se propõe a ensinar, e humildade em de mudança em suas vidas.
saber que não se sabe tudo e que se busca Ao compartilharmos as práticas sociais
saber. A forma de vivenciar e compartilhar junto às crianças e adolescentes, conforme
conhecimentos na prática social de preparo retratado na Mensagem do Viver, é preci-
das aulas se revela como fonte de processos so estar atento que fomos educados, como
educativos relevantes no processo de edu- apontam Santos (2009) e Quijano (2009),
cação libertadora das mulheres em privação sob a ótica colonial e capitalista universal,
de liberdade. que institui a linha que separa conhecimen-
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Linhas, mensagens e conversas: a educação não escolar com crianças, jovens e adultos
tos válidos e não válidos e prioriza o capital colar, elas falam da práxis para a liberdade.
em detrimento das relações e valores huma- É o sujeito histórico que não só faz, mas é
nos. Compartilhamos práticas sociais com história, buscando essa forma histórica que
pessoas colocadas à margem da sociedade, se constitui e reconstitui como pessoa. É
privadas de direitos e cujas existências e nessa busca que se tem a educação liberta-
saberes passam pela anulação ontológica e dora, como Fiori alerta:
gnosiológica, ou seja, do ser e do saber. Nes- A educação é esforço permanente do ho-
se sentido, resgatamos a fala de Freire: mem por constituir-se e reconstituir-se,
O impossível para mim é a falta de consciên- buscando a forma histórica na qual possa
cia, mesmo reconhecendo a impossibilidade re-encontrar-se consigo mesmo, em plenitu-
de uma coerência absoluta. No fundo, esta de da vida humana, que é, substancialmente
qualidade ou esta virtude, a coerência, de- comunhão social. Esse reencontro que, no
manda de nós a inserção num permanente horizonte do respectivo momento histórico,
processo de busca, exige de nós paciência e coloca o homem em seu lugar próprio, tem
humildade, virtudes também, no trato com um nome adequado: autonomia e liberdade
os outros. E às vezes nos achamos, por “n” (FIORI, 1971, p.83).
razões, carentes dessas virtudes, fundamen- Nesse sentido, o responsável pela mu-
tais ao exercício da outra, a coerência. (FREI- dança do mundo são as próprias mulheres
RE, 1992, p.34).
que se encontram, momentaneamente, em
Na perspectiva a que estamos a nos for- privação de sua liberdade, mas que se per-
mar, defendemos a relevância do nosso es- cebem como agentes dessa mudança, levan-
forço diário no sentido de nos percebermos do em conta a historicidade delas próprias e
como agentes passíveis de reproduzir pa- de suas alunas.
drões hegemônicos de comportamento de Analisando a prática social de preparar
nosso passado colonial, relacionado ao con- aulas dentro de uma unidade prisional, po-
ceito de modernidade eurocêntrica ao qual demos destacar que a dinâmica dessa cons-
estamos submetidos. trução leva em conta historicidades, inter-
Outro apontamento reflexivo, no sentido pretação de materiais didáticos, traz à tona
de contribuir para a construção de práticas as culturas, saberes e experiências de vida
sociais dialógicas em espaços escolares e das monitoras e das alunas, a criação ou re-
não escolares, é trazer a problematização do criação de um novo mundo.
tempo, da realidade concreta, falar do hoje, Os jovens em cumprimento de medi-
do aqui e agora, em lugar de um futuro abs- da de prestação de serviços à comunidade
trato, centrado em nossa própria história, é anunciam em suas práticas de acolhimento
trazer para o centro das discussões as brin- às pessoas idosas: “Linha clara, para come-
cadeiras, intrigas e conversas que tendemos çar o dia” é a possibilidade de uma prática
a censurar, e reconhecê-las como campos social em que processos educativos com-
férteis para se desenvolver processos edu- prometidos com a transformação do mun-
cativos. do são inerentes. Os diálogos entre linhas
Ao acompanharmos os momentos de e agulhas podem reconstruir vias, apontar
construção e produção de saberes junto às novos caminhos, reconstruir vias obstruí-
mulheres em privação de liberdade foi pos- das por histórias de exclusão e injustiças
sível notar que elas colocam em prática algo sociais? Acreditamos que sim. No entanto,
que talvez tenha se perdido na educação es- faz-se necessário o reconhecimento de cada
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