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Linhas, mensagens e conversas: a educação não escolar com crianças, jovens e adultos

LINHAS, MENSAGENS E CONVERSAS: A


EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR COM CRIANÇAS,
JOVENS E ADULTOS

Elenice Maria Cammarosano Onofre (UFSCar)*


https://orcid.org/0000-0002-3623-4728
André Luiz Martins Kastein Filho (UFSCar)**

Edla Cristina Rodrigues Caldas (UFSCar)***


https://orcid.org/0000-0003-2770-9346
Gustavo Aranha Portela (UFSCar)****
https://orcid.org/0000-0002-2329-9389

“Para empinar papagaio (pipa ou pandorga),


só mesmo quem fareja horizontes”.

RESUMO
Pesquisar práticas sociais em diferentes espaços é nosso ponto de partida:
acontecem processos educativos em nossas vivências, não mais ou menos
válidas, apenas diferentes do que as vividas em escolas ou quaisquer outras
instituições de educação escolar. As pessoas vão se formando em todas as
experiências de que participam ao longo da vida. Este artigo é resultado de
estudos por nós realizados em espaços não escolares que acolhem crianças,
jovens e adultos: um programa de socioeducação, um projeto ligado ao ser-
viço de convivência e fortalecimento de vínculos e uma unidade feminina de
privação de liberdade. Os dados foram coletados em inserções e vivências
com os colaboradores de pesquisa e organizados em diários de campo. A
análise dos dados nos permitiu compreender que os processos educativos
acontecem ao longo da vida nas práticas sociais em que participamos - a
educação é um fenômeno que promove a escrita e a leitura da vida e da rea-
lidade das crianças, jovens e adultos estejam eles onde estiverem.
Palavras-chave: Educação em espaço de privação de liberdade. Processos
educativos em práticas sociais. Educação dialógica.

* Doutora pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar. E-mail eleonofre@ufscar.br
** Mestrando em Educação pelo PPGE/UFSCar e graduando em comunicação social pela Universidade de
Ribeirão Preto – UNAERP. E-mail: kastein@gmail.com.
*** Doutoranda em educação pelo PPGE/UFSCar, mestre em educação pela Universidade Federal do Ama-
zonas/UFAM e professora da UFAM. E-mail: edlacristina@gmail.com.
**** Mestrando em educação pelo PPGE/UFSCar e graduado em em história e publicidade e propagan-
da – Universidade Barão de Mauá – Jardim Paulista, professor de história da Escola Metropolitana.
E-mail: aranhagustavo@gmail.com.

162 Revista Internacional de Educação de Jovens e Adultos, v. 02, n. 04, p. 162-175, jul./dez. 2019
Elenice Maria Cammarosano Onofre; André Luiz Martins Kastein Filho; Edla Cristina Rodrigues Caldas; Gustavo Aranha Portela

ABSTRACT
LINES, MESSAGES AND CONVERSATIONS: NON-SCHOOL
EDUCATION WITH CHILDREN, YOUNG PEOPLE AND ADULTS
Researching social practices in different spaces is our starting point: edu-
cational processes take place in our experiences, no more or less valid, just
different than those experienced in schools or any other school education
institutions. People are being trained in all the experiences they participate
in throughout life. This article is the result of studies carried out by us in
non-school spaces that welcome children, young people and adults: a so-
cio-educational program, a project linked to the service of coexistence and
strengthening of bonds and a female unit of deprivation of liberty. The data
were collected in insertions and experiences with the research collabora-
tors and organized in field diaries. The analysis of the data allowed us to
understand that the educational processes happen throughout life in the
social practices in which we participate - education is a phenomenon that
promotes the writing and reading of the life and reality of children, youth
and adults wherever they are .
Keywords: Education in a space of deprivation of liberty. Educational pro-
cesses in social practices. Dialogic education.

RESUMEN
LÍNEAS, MENSAJES Y CONVERSACIONES: EDUCACIÓN NO
ESCOLAR CON NIÑOS, JÓVENES Y ADULTOS
La investigación de las prácticas sociales en diferentes espacios es nuestro
punto de partida: los procesos educativos tienen lugar en nuestras experien-
cias, no más o menos válidas, simplemente diferentes a las experimentadas
en las escuelas o en cualquier otra institución educativa escolar. Las perso-
nas reciben capacitación en todas las experiencias en las que participan a
lo largo de la vida. Este artículo es el resultado de estudios realizados por
nosotros en espacios no escolares que acogen a niños, jóvenes y adultos: un
programa socioeducativo, un proyecto vinculado al servicio de convivencia y
fortalecimiento de lazos y una unidad femenina de privación de libertad. Los
datos se recopilaron en inserciones y experiencias con los colaboradores de
la investigación y se organizaron en diarios de campo. El análisis de los da-
tos nos permitió comprender que los procesos educativos ocurren a lo largo
de la vida en las prácticas sociales en las que participamos: la educación es
un fenómeno que promueve la escritura y la lectura de la vida y la realidad
de los niños, jóvenes y adultos dondequiera que se encuentren.
Palabras clave: La educación en un espacio de privación de libertad. Proce-
sos educativos en prácticas sociales. Educación dialógica.

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INTRODUÇÃO – dialogar com práticas sociais não escola-


O artigo que se apresenta é resultado de res que educam crianças, jovens e adultos.
estudos realizados por pesquisadores do Nossa proposta é apresentar os espaços
Núcleo de Investigação e práticas educati- de pesquisa em que estamos inseridos, ca-
vas em espaços de restrição e privação de racterizar as atividades que ali estão pre-
liberdade – EduCárceres/UFSCar, vinculado sentes, descrevê-las de maneira reflexiva e
a dois grupos de pesquisa do Programa de apresentar os processos educativos viven-
Pós-Graduação em Educação da Universida- ciados. Na segunda parte, analisamos nossa
de Federal de São Carlos – UFSCar, a saber, compreensão de educação não escolar e as
Educação de Jovens e Adultos em restrição aprendizagens relacionadas às experiências
e privação de liberdade e Práticas Sociais e de pesquisar com crianças, jovens e adultos.
Processos Educativos. Trata-se, pois, de apresentar nosso exercí-
Esses grupos de pesquisa partem do en- cio como grupo que busca potencializar o
tendimento de educação como formação sentido do fazer pesquisa com o outro, em
humana e investigam como as pessoas se práticas por vezes opressivas, por vezes hu-
educam nas mais diversas práticas sociais manizadoras.
das quais participam. Compreendemos que
essas práticas são ações e relações que as CENÁRIOS E PERSONAGENS:
pessoas e os grupos mantêm entre si para CONSTRUINDO ALGUMAS
difundir as normas de vida, de manutenção REFLEXÕES
ou transformação da sociedade para garan- As práticas sociais anunciadas nestes apon-
tir a sobrevivência, e é delas que decorrem tamentos ocorrem em espaços não escola-
os processos educativos. res que acolhem crianças, jovens e adultos:
O educar e educar-se estão, dessa manei- um programa de socioeducação, um projeto
ra, intimamente associados ao partilhar das ligado ao serviço de convivência e fortaleci-
vivências em grupos, nos quais os conheci- mento de vínculos e uma unidade feminina
mentos/saberes são produzidos a partir das de privação de liberdade. Esses espaços lo-
práticas sociais, pois têm o “propósito de calizam-se em instituições do interior do es-
produzir bens, transmitir valores, significa- tado de São Paulo/Brasil e não serão identi-
dos, ensinar e viver e a controlar o viver, en- ficados, garantindo-se, também, o sigilo dos
fim, manter a sobrevivência material e sim- nomes dos participantes.
bólica das sociedades humanas” (OLIVEIRA Um dos espaços de pesquisa foi um Pro-
et al., 2014, p.33). grama de Medidas Socioeducativas do inte-
As pessoas vão, assim, sendo formadas rior do estado de São Paulo que atende ado-
em todas as experiências de que participam lescentes que cometeram atos infracionais.
ao longo da vida, e o reconhecimento da Vale esclarecer que o Art. 103 do Estatuto
existência de processos educativos ineren- da Criança e Adolescente – ECA, define ato
tes às práticas sociais das quais participa- infracional como “a conduta descrita como
mos rompe com o monopólio pedagógico da crime ou contravenção penal”. Adolescentes
escola como única prática social em que as a partir de 12 anos de idade já são consi-
pessoas se educam. derados responsáveis pelas condutas des-
Estamos, desta forma, anunciando a in- critas como infracionais e devem cumprir
tenção das nossas reflexões neste artigo medidas socioeducativas. Volpi (1999, p.

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20) explica: “As medidas socioeducativas A presença de um “modelo” não nos pa-
comportam aspectos de natureza coercitiva, receu necessário. Talvez acreditar na criati-
uma vez que são punitivas aos infratores, e vidade e nas perspectivas dos jovens fosse a
aspectos educativos no sentido da proteção melhor maneira de confeccionar os jogos. A
integral e oportunização, e do acesso à for- nosso ver, os adolescentes podem ser pro-
mação e informação”. Sendo assim, pode-se tagonistas do processo educativo do qual
dizer que o aspecto educativo é fundante da fazem parte; contar com o exercício da cria-
característica socioeducativa. tividade deles poderia tornar a atividade
O trabalho de campo, por decisão da mais interessante.
instituição, foi realizado junto à equipe res- Antes de começar a costura, os adoles-
ponsável pela condução das atividades, com centes, as orientadoras e eu pintamos pe-
oito adolescentes que cumpriam medida de quenos pedaços de tecidos que se transfor-
Prestação de Serviço à Comunidade – PSC. mariam nas peças. As cores das peças do
Participaram das atividades, além dos jo- jogo eram fortes para que se destacassem
vens, uma orientadora de Medida, com for- da base. Ao todo pintamos 40 peças. Con-
mação em Psicologia (aqui chamada de F.), sideramos muito relevante a proposta de
e outra, licenciada em Artes (aqui como S.), produzir algo para o outro. A confecção dos
responsável por propor a confecção de ma- jogos levou os adolescentes a pensarem nas
teriais de cunho artísticos e artesanais, bem características dos idosos, nas limitações e
como de ensinar técnicas e desenvolver as possibilidades que eles possuem.
atividades. Durante esse processo, os diálogos fo-
Tais atividades foram desenvolvidas nas ram profícuos e intensos. Desde o primeiro
dependências do Programa. A prática so- momento até o final da atividade do dia, as
cial da qual participamos foi a confecção conversas desenrolavam-se sem restrições.
de jogos da velha para doação a um abrigo Os adolescentes pareciam saber que ali po-
de idosos da cidade. Os adolescentes reali- diam falar de suas histórias, contar seus uni-
zaram a primeira visita há alguns meses e versos e, ao mesmo tempo, saber de nossas
o grupo pretendia voltar para fazer uma es- experiências e ter outras informações de sa-
pécie de sarau com jogos, música e poesia beres diferentes.
junto aos idosos. A costura não era tarefa fácil para os jo-
A atividade iniciou com a costura de fu- vens, sobretudo para os rapazes. C., jovem
xicos, estes seriam utilizados como peças de 14 anos, estava concentrado e observa-
dos jogos da velha. No primeiro dia de in- dor e, enquanto ouvia explicações sobre
serção para a coleta dos dados, a proposta como fazer a tarefa, fazia expressão de que
da orientadora de Medida era fazer um “mo- aquilo seria desafiador. Os jovens sabiam
delo” para mostrar aos adolescentes. Logo que precisavam cumprir a atividade. Apesar
nos dispusemos a ajudar e essa foi a postura de difícil, é perceptível que eles aprendiam
adotada ao longo deste estudo. Os materiais com rapidez. Enquanto nossas mãos mo-
disponíveis eram linhas de costura, fitas de vimentavam-se, costurando e traçando ca-
cetim, pedaços de tecidos cortados em cír- minhos nos tecidos, temas eram trazidos à
culo, pedaços de tecido camurça cortados mesa por meio dos diálogos iniciados, quase
em forma quadrada, pincéis, tintas para te- sempre, pelos próprios jovens. A experiên-
cidos e agulhas. cia com a escola, com as drogas, com a vio-

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lência, com a polícia e com as famílias per- se mostrar estudioso, J. não se vê em cur-
passavam palavras, tecidos, tintas e linhas a so superior ou em um bom emprego, não
todo momento. projeta coisas positivas na vida; projeta sua
A escolarização dos adolescentes era entrada em um presídio por conta de suas
preocupação constante das orientadoras do experiências com a polícia. “Quando o polí-
Programa - “sucesso” e “fracasso escolar” fo- cia quer pegar, ele não quer saber se o cara
ram discutidos pelos próprios jovens, como mudou de vida ou não. Ele pega mesmo! Mi-
vemos em um dos diálogos; parece haver nha cidade me espera, aí, ó! ” - Prenunciou
tensões no universo escolar vividas por eles. J. (Diário de Campo – 02 de maio de 2018).
C. revela que foi “expulso” da escola: As condições sociais e materiais de nossa
Destravamo o extintor da escola. Fomo pra sociedade produzem um diálogo de deses-
diretoria e a diretora disse que ia fazer B.O., perança. Há pouca coisa para a escola fazer
mas daí ela não fez não. Só que veio uma ou- diante do descaso e abandono sofridos pe-
tra professora, mentindo e dizendo que meu las crianças e adolescentes no Brasil e no
colega tinha ameaçado ela. Daí o meu colega
mundo. Cientes disso, os adolescentes pro-
ficou com raiva e ameaçou de verdade. Dis-
jetam um futuro desanimador, não somente
se que ia pegar e ia matar. Aí eu fui expulso.
(Trecho do Diário de Campo - 02 de maio de para eles como para outros de sua idade. A
2018). fala de J. pode indicar que muitos de seus
colegas também já estão praticando atos in-
No entanto, nem tudo é dificuldade na
fracionais. Convém lembrar, no entanto: “É
vida dos jovens. O sucesso também faz parte
preciso ficar claro que a desesperança não
da vida deles. J., rapaz de 16 anos, contou-
é maneira de estar sendo natural do ser hu-
nos, orgulhoso, ter obtido bom desempenho
mano, mas distorção da esperança. ” (FREI-
escolar no ano anterior: - Minhas notas são
RE, 1992, p. 81).
boas, dona! – E apontou para F.: - Pode per-
Uma distorção da esperança era o que,
guntar pra ela. - F. concordou, mas ressalvou
aparentemente, vivia B.: jovem de quase 18
que havia visto os boletins do ano passado
anos, mãe de um menino de 1 ano e meio. Ela
(Diário de Campo - 02 de maio de 2018).
sorria dos diálogos, mas se mantinha calada.
As conversas tinham teor educativo. O
diálogo pode oferecer momentos de refle- Apenas costurava e produzia os fuxicos, fa-
xão do pensar sobre a prática cotidiana. zia isso rapidamente. Concentrada, parecia
Nesse sentido, compartilhamos das ideias querer terminar o quanto antes. Apesar do
de Onofre (2013ª, p.95): ambiente agradável e propício às práticas
sociais dialógicas, o caráter punitivo estava
Em nosso entender, a abordagem dialógica de
presente no significado das atividades.
educação proposta por Freire – que anuncia o
diálogo entre iguais (educador e educando), Os diálogos correm por outros caminhos
em um processo em que ambos são aprendi- e reconstroem pensamentos e ideias de si
zes e protagonistas de mesma situação – ga- e de outros. A religiosidade era interesse
rante aos indivíduos que reconheçam sua his- constante dos rapazes e de B. Entre linhas
toricidade e, dessa forma, se percebam como e reflexões, surgem perguntas sobre reli-
sujeito histórico
giosidades. J. brincava com as linhas e fitas,
Essas experiências positivas, no entanto, aparentava estar entediado, vez por outra
nem sempre produzem perspectivas de um vagava o olhar, parecendo reflexivo. Até que
futuro promissor para os jovens. Apesar de perguntou:

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- O que é candomblé? É espiritismo? ” S. e vimentos de mãos e muitas palavras ditas e


F (orientadoras) ficaram em silêncio e me ouvidas, lá estavam o que os adolescentes e
olharam. Senti que podia responder. - Faz B., os orientadores e eu produzimos ao lon-
parte do espiritismo. É uma religião de ma-
go de mais de um mês: jogos da velha para
triz africana. - Cê é evangélica, dona? – R.
perguntou-me. Diante de minha resposta doar a um abrigo de idosos.
positiva, o jovem persistiu: - Mas então cê A seguir, nossa atenção se volta para ou-
não é contra essa religião, né? Pelo jeito que tro espaço não escolar que educa crianças
cê tá falando, cê não é contra. Porque tem e adolescentes de 6 a 18 anos, contexto por
uns evangélicos que são contra e falam coi- nós pesquisado, conveniado com a Secre-
sas, cê não é? - Todos me olhavam. “Não sou taria Municipal de Cidadania e Assistência
contra nenhuma religião. Se eu pratico uma
Social em uma cidade de médio porte, na
religião, não posso ser contra a religião de
ninguém”. S. admirou-se da conversa: -Nun- Proteção Social Básica pelo Serviço de Con-
ca tinha pensado assim: se pratico uma reli- vivência e Fortalecimento de Vínculos. O
gião, não posso ser contra as outras. - Balan- projeto está vinculado a uma comunidade
cei a cabeça em sinal de acordo (Diário de religiosa e localizado ao lado de uma paró-
Campo – 30 de maio de 2018). quia. Os participantes frequentam as ativi-
A troca de saberes esteve evidente. dades de artes, esportes, informática e re-
Aprendíamos juntos. O ouvir o outro. A não creação de segunda a sexta-feira, no período
desvalorização de culturas e práticas sociais do contraturno escolar.
religiosas diferentes das nossas. Percebe- A “Mensagem do Viver” é uma prática so-
mos juntos o poder educativo dos processos cial com duração de aproximadamente uma
dialógicos. Aprendemos porque estávamos hora, que ocorre todos os dias no projeto,
uns com os outros partilhando do saber de com o objetivo de acolher as crianças e os
experiência feito. No dizer de Freire (1992, adolescentes, preferencialmente, em situa-
p. 14), “o educador ou a educadora progres- ção de vulnerabilidade social para debater
sista, ainda quando, às vezes, tenha de falar temas relacionados à moral, convivência,
ao povo, deve ir transformando o ao em com ética e cidadania. A atividade já teve cará-
o povo. Isso implica o respeito ao “saber de ter religioso e hoje consiste num momento
experiência feito [...]”. Isso nos indica a im- onde um dos educadores, responsável du-
portância de aprender com cientistas e tam- rante o período, seleciona um vídeo ou ou-
bém com o operário, com a dona de casa, tro material para apresentação e posterior
com jovens, com aqueles com os quais tam- bate-papo entre crianças e adolescentes.
bém queremos falar. Adotamos, na coleta de dados, como
Os processos educativos também esta- procedimentos metodológicos, o diálogo, a
vam na organização do espaço e na inten- observação e uma atividade em grupo jun-
cionalidade de educar, bem como de fazer to aos adolescentes. Procuramos assumir,
com que os jovens se sintam parte de pla- como sugerem Oliveira e Sousa (2014, p.
nejamentos e da criação de ações. Há apren- 39), “o lugar de um integrante, procurando
dizagem de uma postura educativa diferen- olhar, identificar e compreender os proces-
te: A de que nas simples ações, há muito o sos educativos que se encontram nessa prá-
que ensinar e aprender. Isso se evidencia a tica social. Isto só é possível quando somos
todo instante, sobretudo, no esforço para acolhidos, nos dispomos a ser acolhidos e a
concluir a tarefa. Após esforços, muitos mo- acolher”

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Foi possível identificar que a prática so- para pedir silêncio. Nas falas das crianças
cial da reunião do grupo para educar para apareciam pedidos para familiares enfermos
a convivência, neste caso, chamada de Men- (por exemplo: “eu queria pedir para meu pai
que está passando por uma cirurgia”), para
sagem do Viver, gera processos educativos
as pessoas presentes, amigos e conhecidos
relacionados à visão e sentido da vida e do (Diário de campo - 24 de abril de 2018).
mundo e aos valores que devem estar pre-
sentes em um convívio harmonioso e huma- No período da coleta de dados, destaca-
nizado. Esta interpretação relaciona-se com mos os depoimentos dos adolescentes com
o conceito de educação trazido por Silva idades entre 15 e 16 anos e que participam
(2010, p. 181), quando se refere a do projeto desde os 6 anos, sinalizando as
Construir a própria vida, que se desenvolve transformações que a Mensagem do Viver
em relações entre gerações, gêneros, grupos teve no decorrer dos tempos. Uma adoles-
raciais e sociais, com a intenção de transmi- cente compartilhou que a Prefeitura Mu-
tir visão de mundo, repassar conhecimen- nicipal cogitou cessar o repasse de verbas
tos, comunicar experiências. para o desenvolvimento do projeto, pelo
Em contrapartida, no contexto da Men- fato das atividades pertencerem exclusiva-
sagem do Viver, pode-se distinguir os pro- mente a uma doutrina religiosa e a maioria
cessos educativos entre as intenções da das crianças e adolescentes praticarem ou-
instituição e dos educadores e os processos tras religiões. Outra adolescente reiterou a
desencadeados pelas crianças e adolescen- fala da colega, dizendo que o projeto precisa
tes, a partir da resistência às imposições e considerar a diversidade religiosa das pes-
à falta de sentido em algumas práticas pro- soas.
postas. Atualmente, a equipe é orientada a atuar
Durante o período de coleta de dados, a na perspectiva da diversidade religiosa. To-
Mensagem do Viver quase sempre extrapo- davia como separar a subjetividade do edu-
lou o horário previsto para o término. Esta- cador católico da prática para a diversida-
va planejada em quatro momentos: a espera de? Como transformar a intersubjetividade
pela chegada de toda turma, enquanto são compartilhada no âmbito do projeto? Hoje,
reproduzidos clipes musicais; o chamado o uniforme das crianças e adolescentes ain-
“pedir para”; a exposição de um vídeo pro- da mantém a frase “Tudo posso naquele que
posto pelo educador responsável pela orga- me fortalece”, mas o discurso dos educado-
nização da atividade e, finalmente, a roda de res promove a diversidade religiosa e de
conversa sobre o tema proposto. O momen- crença.
to “de pedir para” pode ser melhor com- A igualdade de gêneros exposta na entra-
preendido no trecho que segue: da do espaço considera apenas o masculino
Após minha apresentação J. chamou a aten- e o feminino, porém, nos diálogos aparece
ção de todos e disse que o momento esta- o respeito por alunos e alunas homosse-
va aberto para quem quisesse falar alguma xuais. Madalena Freire (1997) afirma que
coisa. As crianças começaram a levantar as não fomos criados para olhar o mundo e nós
mãos e, precedidos pelo que me recordo, do
mesmos e a observação é a melhor forma
termo “eu queria pedir para”, uma a uma as
crianças e adolescentes foram falando a par- de aprendermos a ter um olhar sensível e
tir da mediação e organização de J., que em pensante. Nesse sentido, nós, educadores,
alguns momentos interrompia a atividade frente ao desafio de aprendermos a nos re-

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conhecer em nossas práticas, identificando brincava de casinha e cuidava de uma bone-


elementos que constituem nossa identida- ca, convencendo-a de que a brincadeira fica-
de, trabalhando a partir dessa consciência ria muito mais divertida com uma criança de
verdade para cuidar. A história se desenrola
e procurando romper com o modelo auto-
e entre choros e sumiços da criança, Mônica
ritário no qual fomos educados, precisamos e Magali conseguem levá-la até a mãe de Ce-
de atenção, “atenção que envolve sintonia bolinha, que o castiga pelo que fez. Apesar
consigo mesmo, com o grupo”. (WEFFORT, do vídeo abordar o tema da transferência
1997, p.1). de responsabilidade, naturalizava nas rela-
Vale ressaltar, no depoimento dos ado- ções entre as personagens, atitudes relacio-
lescentes, a valorização das vivências no nadas ao bullying e atitudes violentas, por
projeto enquanto prática social. Em rela- exemplo, na relação típica entre Cebolinha e
Mônica, no menino que ofende a amiga cha-
ção ao período ali vivido desde a infância,
mando-a de dentuça e em seguida apanha
uma das adolescentes assim se manifesta: “ com o coelho de pelúcia” (Diário de campo
Claro, quando era criança eu achava que a - 22 de maio de 2018).
Mensagem do Viver era para brincar e, hoje,
percebo que tem significados” (Diário de Importante destacar que, em diálogos
campo – 29 de maio de 2018). junto ao coordenador do projeto, ficaram
A adolescente destaca aprendizagens evidentes as intenções da prática do educar
nas diferentes práticas sociais que parti- com e não educar para, da valorização do
cipa: “Na escola parece que a vida é isso e diálogo como forma de planejar as práticas
pronto, e aqui no projeto a gente pode olhar sociais, construir as relações e os processos
a vida por outros aspectos. ” E continua: “ educativos, porém, foi possível vivenciar no
Lá, na escola, eu aprendo coisas que irei cotidiano a manifestação por parte de um
utilizar para trabalhar no futuro e aqui eu dos educadores: “ Pronto, infelizmente a
aprendo coisas que levarei para o resto da gente precisa perder a paciência com vocês.
minha vida.” (Diário de campo – 29 de maio A L. [educadora] não consegue executar a
de 2018). atividade enquanto vocês falam, se batem e
Neste contexto, os processos educativos se xingam. Vocês precisam se colocar aqui
da Mensagem do Viver tratam de respeito, no nosso lugar, nós somos educadores e vo-
mas o respeito na concepção do educador. cês não.” (Diário de campo – 22 de maio de
Fala-se de saber ouvir, mas durante a prá- 2018).
tica social, ouvir apenas o que é permitido, Consideramos que o não compartilha-
saber falar, mas falar apenas quando lhe é mento na construção das práticas sociais
autorizado. Quando proposto o aprendizado entre educadores e educandos, o educar
sobre responsabilização, deixou-se reforçar para e não educar com, possa resultar em
a promoção de formas violentas de se rela- efeitos inversos em relação ao que preten-
cionar, como ficou relatado em um diário de demos promover enquanto processos edu-
campo: cativos, considerando o protagonismo e a
autonomia. A atividade Mensagem do Viver
O vídeo transmitido era uma história da Tur-
ma da Mônica, de Maurício de Souza, onde
pode sugerir temas que sejam do interesse
Cebolinha, tendo recebido de sua mãe a ta- das crianças e adolescentes, porém, aconte-
refa de cuidar de sua irmã mais nova, trans- cendo de acordo com as regras e limitações
feriu a responsabilidade para Mônica, que indicadas pelos educadores, ela favorece

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reações e comportamentos no sentido de ma Santos (2009), que a intersubjetividade


repelir o indesejado, repelir o que não faz é tão importante quanto complexa.
sentido. Repelir no próprio sentido da pala- Para finalizar esta seção, trazemos para
vra, expulsar, impelir para longe, não deixar estes apontamentos, uma terceira prática
que se aproxime, rejeitar com aspereza. social que evidencia o conceito de educação
Em outro momento da coleta de da- por nós adotado e que nos leva a inferir que
dos, a responsabilidade pela atividade foi os processos educativos ocorrem em dife-
assumida por outra educadora, fator inte- rentes espaços. Trata-se de um programa
ressante considerando as diferentes pro- voltado para a educação de mulheres em
postas e dinâmicas que poderiam apare- privação de liberdade, que envolve forma-
cer no grupo. Neste dia, presenciamos os ção profissional através de cursos profissio-
momentos de maior desafio em relação à nalizantes e formação cultural e programas
adesão das crianças e adolescentes às prá- de incentivo à cultura. As atividades são de-
ticas propostas: senvolvidas por mulheres que estão priva-
Ao final da atividade, com a cabeça rodeada das de liberdade, em unidades prisionais no
de ideias e sentimentos do que havíamos estado de São Paulo.
passado, pensamos em como os educadores O estudo por nós realizado procura res-
poderiam estar exaustos e desmotivados. Na ponder: como as monitoras da unidade pri-
complexidade que trabalhamos, diariamen- sional preparam as aulas do programa? Quais
te, e em decorrência disso, na importância materiais utilizam? Em busca de respostas a
de conciliarmos a prática com a teoria, no
essas questões, inserimo-nos em uma unida-
sentido de nos instrumentalizarmos, com-
partilharmos e aprendermos com outras de prisional feminina, nos momentos em que
experiências. Precisamos valorizar os mo- as monitoras se reuniam para planejar as
mentos de cuidado da equipe com a própria aulas dos módulos de formação profissional.
equipe, do entendimento e acolhimento do Nossa intenção foi a de participar e enten-
outro. Ao final da atividade o olhar de L era der como elas constroem essas aulas, quais
vazio e sem esperança (Diário de campo - 22 recursos pedagógicos buscam e onde, quais
de maio de 2018).
estratégias utilizam. Nosso desafio central
Acreditamos ser de grande contribuição foi: como podemos contribuir com elas no
ao debate entre educadores, que por vezes exercício dessa prática social?
podem, inclusive, divergir quanto às propos- Com as autorizações confirmadas pela
tas pedagógicas, refletir sobre a afirmação: “ unidade, realizamos uma reunião com as
[...] ainda que minha tese, minha proposta monitoras e explicamos nossa proposta de
fossem certas e em torno delas eu não tives- estudo e se elas nos cederiam autorização
se dúvida, era imperioso, primeiro, saber se para acompanhá-las. O parecer foi positivo.
elas coincidiam com a leitura de mundo dos Utilizando do instrumento da elaboração de
grupos ou da classe social a quem falava”. diários de campo, organizamos as anotações
(FREIRE, 1992. p.8). A ecologia dos saberes sobre a prática social de preparo das aulas,
aplicada aos contextos de educação não es- buscando identificar os processos educati-
colar atua emergencialmente no sentido de vos que ali acontecem. O primeiro encontro
humanizar e, considerando a intercultura- da coleta de dados aconteceu em um espaço
lidade, contribui para nos enriquecermos da unidade prisional que se chama sala de
mutuamente, reconhecendo conforme afir- eventos e, os demais, nas salas de aula.

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De maneira breve, descrevemos alguns do conosco também. Nesses encontros de


espaços do interior da unidade prisional fe- coleta de dados, foi possível perceber, com
minina, por nós pesquisada, por se consti- clareza, o entendimento de experiência a
tuir como espaço pouco conhecido e mesmo que se refere Larrosa Bondía (2012, p. 21):
invisibilizado nos estudos acadêmicos. O “a experiência é o que nos passa, o que nos
pátio é dividido por um portão de grades e acontece, o que nos toca. Não o que se passa,
de lá temos uma visão geral da unidade. não o que acontece, ou o que toca. A cada dia
[...] vejo algumas mulheres andando em pa- se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
res, outras conversando com outras que es- tempo, quase nada nos acontece”.
tão dentro das celas. Vejo algumas toalhas No primeiro encontro que ocorreu na
e roupas penduradas nas grades das celas, sala de leitura, foi possível notar que duas
existem alguns colchonetes, mas ninguém das três monitoras que atuam no programa,
está deitado neles, o Sol está muito forte e
por serem menos experientes, estavam an-
esse pátio é sem cobertura, a não ser uma
tela de proteção (Diário de Campo - 24 de
siosas, porém a mais experiente se propôs a
abril de 2018). ajudar, como sinalizamos no diário de cam-
po:
As paredes da sala de aula estão cheias de
cartazes com frases incentivando a leitura, o Não precisa ter medo, eu vou ajudar vocês
estudo e com o nome do Leia Mulheres, um toda hora. Só aproveita que vou embora no
grupo de mulheres que ajudam na mediação fim do ano. [...] tenho tudo anotado no meu
dos clubes de leitura que acontecem naquele caderno, tudo as aulas montadas, a antiga
espaço. No fundo da sala, existe um banhei- monitora deixou o dela também (Diário de
ro, uma mesa e um ventilador de parede no Campo - 09 de maio de 2018).
alto. O teto é alto e a ventilação se dá pela
porta da grade e por três grades que ficam
Esse trecho nos leva a refletir sobre como
próximas ao teto da sala, elas estão cobertas vai se organizando esse acúmulo de conhe-
por alguns panos para tapar o sol (Diário de cimento com os pares, pois, além da pró-
Campo - 24 de abril de 2018). pria experiência, as monitoras utilizam um
A partir do segundo encontro na unidade material elaborado por outra monitora que
prisional (etapa de coleta de dados), fomos deixou suas anotações. Pode-se identificar,
conduzidos à sala de leitura que fica no mes- nesses encontros das monitoras, o que Ono-
mo corredor das salas de aula: fre (2017, 2013b, 2012) sinaliza em estudos
sobre formação de professores que atuam
A sala de leitura é mais ou menos do tama-
em espaços de privação de liberdade – a re-
nho da sala de aula, menor que a sala de
eventos. Nela existem duas prateleiras com levância do apoio dos mais experientes com
livros no meio da sala, à esquerda da entra- os iniciantes, uma vez que compartilham
da. Na parede da esquerda existe uma pra- conhecimentos, estranhamentos, angústias
teleira, no fundo da sala existem duas pra- e problemas.
teleiras que tomam a parede toda. O mesmo Em outro momento, uma das monitoras
acontece na parede em frente à entrada da apresentou um material montado por ela e
sala. Prateleiras tomam conta de tudo (Diá-
que trata sobre organizar metas de vida, co-
rio de Campo - 09 de maio de 2018).
nhecer suas habilidades e competências e a
As interações com as monitoras no pre- importância de sonhar. O material é finaliza-
paro das aulas indicaram processos educa- do com frases de Shakespeare, Dalai Lama e
tivos entre elas mesmas, o que foi partilha- outros autores.

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Linhas, mensagens e conversas: a educação não escolar com crianças, jovens e adultos

Quando perguntamos qual foi a fonte do. Aí depois expliquei quais os materiais
para que ela montasse esse material, ela que são recicláveis e o que podemos fazer
respondeu: “[...] eu gosto muito de ler e mi- com eles (Diário de Campo - 23 de maio de
2018).
nha mãe manda carta pra mim toda semana,
como ela e meu pai são leitores famintos, ela E a Monitora B:
sempre manda essas frases. Eu gosto muito. [...] eu usei a música da Elis Regina, como as
Fui professora da rede estadual de ensino minhas alunas são senhorinhas, elas adora-
20 anos, né.” (Diário de Campo - 09 de maio ram cantar, sabiam a letra e tudo. Aí como
de 2018). Aqui podemos notar que, em es- tem umas palavras difíceis, perguntava para
elas o que significava, elas diziam que não
paços de privação de liberdade, a participa-
sabiam. Então, peguei um dicionário e fomos
ção da família pode ser positiva e que diá- procurando nele os significados dessas pala-
logos e cartas contribuem para a elevação vras. Foi bem legal. Aprendi bastante coisa
da autoestima, estabelecimento de vínculos que não sabia e elas também. Dicionários
com a família e até para a construção de ma- são legais! (Diário de Campo - 23 de maio de
teriais pedagógicos. 2018).
Em diálogo com as monitoras, combina- Nessas situações pedagógicas, as moni-
mos que eu levaria, em outro dia, letras de toras buscaram outras maneiras de traba-
músicas que tivessem relação com o tema lhar com o material, ou seja, elas se apro-
de meio ambiente e sustentabilidade, tema priaram do material e utilizaram da me-
que iriam utilizar com suas alunas. Foi mar- lhor forma possível, pois convivem com as
cante a disponibilidade delas para o traba- demais mulheres que estão em privação de
lho que fizeram algo diferente. As monito- liberdade. Valla (1996, p. 179) ajuda-nos a
ras trabalharam com letras das músicas: pensar sobre esses saberes da vivência ao
“Planeta Azul”, de Chitãozinho e Xororó; “O afirmar que os “saberes da população são
Sal da Terra”, de Beto Guedes; e “Águas de elaborados sobre a experiência concreta, a
março”, de Elis Regina. Mesmo não sendo partir de suas vivências, que são vividas de
possível utilizar o áudio das músicas devido uma forma distinta daquela vivida pelo pro-
à falta de acesso a aparelhos reprodutores fissional”.
de som, as letras foram lidas pelo grupo e Apresentamos a seguir, um trecho do
os temas das músicas foram discutidos. Foi
Diário de Campo em que uma das monito-
bastante positiva a forma como avaliaram o
ras explica uma atividade realizada, apro-
desenvolvimento da atividade com as letras
veitando sua facilidade em lidar com traba-
das músicas:
lhos manuais e os materiais disponíveis na
Monitora S: sala de leitura da unidade prisional. Assim
[...]. Olha, eu usei a música do Chitãozinho e se expressa:
Xororó. [...] Nossa, consegui, demorou duas aulas,
[...] eu não sei como é essa música, aí per- mas foi muito legal. Fizemos as flores, de-
guntei para as minhas alunas e elas tam- pois que terminamos pedi para que elas me
bém não. Então o que eu fiz? Peguei a letra dissessem qual sentimento elas tiveram ao
mesmo e fui lendo com elas e perguntava fazer. Então, fui escrevendo na lousa tam-
quais palavras tinham a ver com o meio bém. Amor, bonito, orgulho, dificuldade,
ambiente e sustentabilidade e fui escre- mas depois superação, pois conseguiu fa-
vendo na lousa conforme elas iam falan- zer a flor, carinho. Um monte; teve uma que

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Elenice Maria Cammarosano Onofre; André Luiz Martins Kastein Filho; Edla Cristina Rodrigues Caldas; Gustavo Aranha Portela

falou que queria botar fogo, pois a cola que OUTRAS MIRADAS ...
a gente usou não colava. Aí falei para ela
guardar essa palavra para depois. Depois, DESVELANDO TERRITÓRIOS
pedi para elas destruírem a flor que fize- QUE EDUCAM
ram, rasgar, amassar. Elas falaram que não
Pesquisar práticas sociais em espaços di-
iam fazer porque estavam com dó, porque
tinham carinho pelo que fizeram. Eu insis- versos nos leva de volta ao nosso ponto de
ti e elas foram amassando e rasgando as partida: acontecem processos educativos
flores. Feito isso, perguntei quais os senti- em nossas vivências, não mais ou menos
mentos que elas tiveram ao destruir a flor. válidas, apenas diferentes do que as vividas
Ódio, tristeza, culpa, vontade de chorar. No em escolas ou quaisquer outras instituições
fim, falei para elas que a natureza cria as de educação escolar.
coisas às vezes a partir de uma pequena
As experiências com adolescentes no
semente, leva muito tempo, utiliza muitos
nutrientes para fazer crescer e o homem Programa de Medidas Socioeducativas no
vai lá e destrói tudo rapidamente, mas às interior do estado de São Paulo mostram
vezes essas pessoas que fazem isso estão desafios e possibilidades. Um dos mais
sendo pagas e precisam sobreviver e tal- proeminentes é o de colaborar, significativa-
vez elas também fiquem tristes por terem mente, com a construção de outras oportu-
que fazer isso. Às vezes isso acontece com nidades a esses jovens estigmatizados como
a gente, né? Às vezes a vida nos leva para
infratores. A educação, em sua perspectiva
caminhos ruins, mas podemos plantar uma
semente nova e fazer outra vida (Diário de
humanizadora, voltada para formação à ci-
Campo- 04 de junho de 2018). dadania, está presente num Estado de direi-
to que se diz democrático.
Esta passagem exemplifica como as mo- No entanto, não deixamos de reconhecer
nitoras, mesmo em um ambiente de pri- que as condições sociais e materiais de nos-
vação de liberdade, sem qualquer recurso sa sociedade produzem, por vezes, uma edu-
informatizado e com acesso restrito à in- cação desesperançosa. Há pouca coisa para
formação externa, adaptam-se e produzem as instituições escolares ou não escolares
conhecimentos e saberes com sentido con- promoverem diante do descaso e abandono
creto. Saberes e conhecimentos frutos de sofridos pelas crianças, adolescentes e adul-
pesquisa e diálogo com o outro, levando em tos no Brasil, especialmente, para as classes
conta os saberes e vivências das estudantes menos favorecidas da sociedade. Ainda as-
em privação de liberdade. Essas práticas po- sim, os processos educativos nos diálogos,
dem se relacionar aos escritos de Paulo Frei- na organização das atividades e na maneira
re a respeito do “saber de experiência feito”, de cuidar dos adolescentes como sujeitos
diálogo e rigorosidade de estudo naquilo com direitos, podem trazer possibilidades
em que se propõe a ensinar, e humildade em de mudança em suas vidas.
saber que não se sabe tudo e que se busca Ao compartilharmos as práticas sociais
saber. A forma de vivenciar e compartilhar junto às crianças e adolescentes, conforme
conhecimentos na prática social de preparo retratado na Mensagem do Viver, é preci-
das aulas se revela como fonte de processos so estar atento que fomos educados, como
educativos relevantes no processo de edu- apontam Santos (2009) e Quijano (2009),
cação libertadora das mulheres em privação sob a ótica colonial e capitalista universal,
de liberdade. que institui a linha que separa conhecimen-

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Linhas, mensagens e conversas: a educação não escolar com crianças, jovens e adultos

tos válidos e não válidos e prioriza o capital colar, elas falam da práxis para a liberdade.
em detrimento das relações e valores huma- É o sujeito histórico que não só faz, mas é
nos. Compartilhamos práticas sociais com história, buscando essa forma histórica que
pessoas colocadas à margem da sociedade, se constitui e reconstitui como pessoa. É
privadas de direitos e cujas existências e nessa busca que se tem a educação liberta-
saberes passam pela anulação ontológica e dora, como Fiori alerta:
gnosiológica, ou seja, do ser e do saber. Nes- A educação é esforço permanente do ho-
se sentido, resgatamos a fala de Freire: mem por constituir-se e reconstituir-se,
O impossível para mim é a falta de consciên- buscando a forma histórica na qual possa
cia, mesmo reconhecendo a impossibilidade re-encontrar-se consigo mesmo, em plenitu-
de uma coerência absoluta. No fundo, esta de da vida humana, que é, substancialmente
qualidade ou esta virtude, a coerência, de- comunhão social. Esse reencontro que, no
manda de nós a inserção num permanente horizonte do respectivo momento histórico,
processo de busca, exige de nós paciência e coloca o homem em seu lugar próprio, tem
humildade, virtudes também, no trato com um nome adequado: autonomia e liberdade
os outros. E às vezes nos achamos, por “n” (FIORI, 1971, p.83).
razões, carentes dessas virtudes, fundamen- Nesse sentido, o responsável pela mu-
tais ao exercício da outra, a coerência. (FREI- dança do mundo são as próprias mulheres
RE, 1992, p.34).
que se encontram, momentaneamente, em
Na perspectiva a que estamos a nos for- privação de sua liberdade, mas que se per-
mar, defendemos a relevância do nosso es- cebem como agentes dessa mudança, levan-
forço diário no sentido de nos percebermos do em conta a historicidade delas próprias e
como agentes passíveis de reproduzir pa- de suas alunas.
drões hegemônicos de comportamento de Analisando a prática social de preparar
nosso passado colonial, relacionado ao con- aulas dentro de uma unidade prisional, po-
ceito de modernidade eurocêntrica ao qual demos destacar que a dinâmica dessa cons-
estamos submetidos. trução leva em conta historicidades, inter-
Outro apontamento reflexivo, no sentido pretação de materiais didáticos, traz à tona
de contribuir para a construção de práticas as culturas, saberes e experiências de vida
sociais dialógicas em espaços escolares e das monitoras e das alunas, a criação ou re-
não escolares, é trazer a problematização do criação de um novo mundo.
tempo, da realidade concreta, falar do hoje, Os jovens em cumprimento de medi-
do aqui e agora, em lugar de um futuro abs- da de prestação de serviços à comunidade
trato, centrado em nossa própria história, é anunciam em suas práticas de acolhimento
trazer para o centro das discussões as brin- às pessoas idosas: “Linha clara, para come-
cadeiras, intrigas e conversas que tendemos çar o dia” é a possibilidade de uma prática
a censurar, e reconhecê-las como campos social em que processos educativos com-
férteis para se desenvolver processos edu- prometidos com a transformação do mun-
cativos. do são inerentes. Os diálogos entre linhas
Ao acompanharmos os momentos de e agulhas podem reconstruir vias, apontar
construção e produção de saberes junto às novos caminhos, reconstruir vias obstruí-
mulheres em privação de liberdade foi pos- das por histórias de exclusão e injustiças
sível notar que elas colocam em prática algo sociais? Acreditamos que sim. No entanto,
que talvez tenha se perdido na educação es- faz-se necessário o reconhecimento de cada

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Elenice Maria Cammarosano Onofre; André Luiz Martins Kastein Filho; Edla Cristina Rodrigues Caldas; Gustavo Aranha Portela

criança, jovem e adulto como sujeitos de sua 26, p. 169-181, 2017.


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