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1998+ +Ideologia++Estetica+Em+Psicanalise+ +Psicanálise+Fim+de+Século
1998+ +Ideologia++Estetica+Em+Psicanalise+ +Psicanálise+Fim+de+Século
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Publicado em Psicanálise Fim de Século – ensaios críticos, Iraí Carone (org.), Hacker, São Paulo, 1998.
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A primeira versão deste ensaio foi apresentada no Congresso Interamericano de Psicologia, PUC-SP, 1997
na mesa redonda Teoria da Sociedade e Cura Psicanalítica.
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DUNKER, C. I. L. - Crítica da Ideologia Estética em Psicanálise - um Estudo sobre o Fim de Análise
In: PSICANÁLISE FIM DE SÉCULO - ENSAIOS CRÍTICOS.1 ed.SÃO PAULO : HACKER, 1998,
v.1, p. 57-87.
Éticas freudianas:
O campo da ética define-se, desde os antigos, pela adequação entre os meios, os fins
e o agente de uma determinada ação. O fim delimita, desta forma, tanto a orientação de um
processo quanto o seu fechamento. Neste último caso, o fim é sinônimo de objetivo, meta
ou finalidade e representa-se em um dado acontecimento ou estado de coisas. Na acepção
de fim como orientação ou sentido de um ato, encontramos uma ligação com a idéia de
irrealização, de vir a ser ou ainda de um horizonte em perspectiva. Fala-se em vontade
quando o fim de um processo é objetivável e em desejo quando ele não é.
No caso do tratamento psicanalítico, a dupla conotação da idéia de fim está presente.
Há um conjunto de acontecimentos que precipitam o encerramento das sessões de análise,
ou seja, o momento de sua conclusão ou desenlace. Há, por outro lado, o sentido ou
orientação do que se passou que permanece indeterminado pois é capaz de ser
continuamente modificado pelo sujeito que o atravessou. A distinção feita por Freud
(1937c) entre análise terminável e análise interminável é útil para clarificar o problema. A
análise é terminável no sentido da dissolução da transferência que a suporta e da remoção
dos principais sintomas, angústias e inibições que acometem o analisante. Por outro lado, a
análise é interminável pela impossibilidade de tornar o inconsciente inteiramente consciente
e pela exigência pulsional que não é completamente redutível ou capaz de sublimação. Em
suma, a análise termina mas não acaba. Por que deveríamos supor então que ela se orienta
por uma única ética, já que se admite uma duplicidade de seus fins ?
O conjunto faz sugerir que o problema do fim da análise deva ser pensado de forma
incompleta, isto é, levando-se em conta sua não totalização por meio do reconhecimento de
um resto não analisável. Assim como há o umbigo do sonho, que não pode ser decifrado,
haveria o umbigo da análise, ponto limite de suas pretensões.
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DUNKER, C. I. L. - Crítica da Ideologia Estética em Psicanálise - um Estudo sobre o Fim de Análise
In: PSICANÁLISE FIM DE SÉCULO - ENSAIOS CRÍTICOS.1 ed.SÃO PAULO : HACKER, 1998,
v.1, p. 57-87.
Essa dicotomia, que limita e amplia as pretensões clínicas de uma análise, pode ser
considerada em termos éticos uma vez que são os modos de relação entre sujeito e
inconsciente que estão implicados, e, portanto, o desejo, bem como os modos de relação
com a pulsão e, portanto, com o gozo. De fato, as condições em questão na análise
interminável e na análise terminável não são exatamente da mesma ordem. Num caso, a
análise tem seu sucesso avaliado por condições clínicas precisas, no outro por um dado
modo de ser no mundo. Isso faz lembrar a distinção proposta por McIntire (1991) entre
éticas da excelência e éticas da eficácia. A ética exigida para dar cabo de tarefas específicas,
por meio de habilidades orientadas e papéis bem desempenhados, implica um tipo de
virtude que os gregos chamavam agathós, ou seja, saber fazer e fazê-lo bem. Esse tipo de
virtude opunha-se à areté, atributo daqueles que se exercitavam em atividades que tinham
seu fim em si mesmas. Neste caso, importa menos o que se faz e mais o que se é ao fazê-lo.
Na areté, o rei, juiz ou artista se qualificam, se enriquecem ou se transformam na medida
em que transformam o mundo e os outros.
De fato, a análise interminável propõe um aprofundamento contínuo na relação com
o inconsciente, um trabalho de decifração inesgotável em que sempre se poderá saber mais
sobre os modos de manifestação do desejo. Alguns analisantes referem-se a este trabalho
como uma satisfação intrínseca à análise, na qual a excelência da elaboração sempre poderá
ser aprofundada, pois trata-se de um fim em si mesmo. A análise, no que ela tem de
interminável, parece assim estar gerida pela aretè.
Por outro lado, o trabalho da análise pode ser considerado à luz da sua eficácia na
remoção dos sintomas e no alívio do mal estar psíquico. Neste caso, a ética da psicanálise
se aproxima da esfera do agathós: ela é um meio para realizar um fim. É inegável, neste
sentido, que a psicanálise é também uma terapêutica, como tal capaz de ser avaliada em sua
eficácia.
A tensão entre estas duas formas de ética está presente em vários aspectos das
recomendações técnicas sugeridas por Freud. Por exemplo, na contenção do furor curandis,
o desejo de curar o paciente a qualquer custo, sensivelmente prejudicial ao tratamento, na
valorização da análise pessoal como meio essencial para tornar-se analista, na idéia de que a
cura vem por acréscimo e que, portanto, não se deve colocar como finalidade e, sobretudo,
na importante indicação de que ao analista cabe uma formação e não um treinamento.
Formação (Bildung) é um conceito forte no ideário romântico alemão, presente em Goethe
e Hegel, que aponta justamente para uma possível conciliação entre eficácia e excelência
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DUNKER, C. I. L. - Crítica da Ideologia Estética em Psicanálise - um Estudo sobre o Fim de Análise
In: PSICANÁLISE FIM DE SÉCULO - ENSAIOS CRÍTICOS.1 ed.SÃO PAULO : HACKER, 1998,
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no âmbito da cultura universal. Por isso a formação não poderá nunca ser assimilada a uma
meta, um objetivo, pois perderia a contradição que lhe dá causa.
Há também indicações claras de que a ética da excelência pode ser perigosa quando
hegemônica no horizonte de um tratamento. O antigo lema da medicina “Eu o tratei, Deus o
curou”, é outro dos conselhos freudianos. Seu sentido aponta criticamente para a excessiva
confiança no ser do analista e indiretamente para o narcisismo envolvido.
Essa dualidade dos fins em psicanálise aparece também em Ferenczi, um dos
pioneiros no enfrentamento da questão:
“ … nenhuma análise sintomática pode ser considerada concluída se não for,
simultaneamente ou em seguida, uma análise de caráter.” (1927:12)
O produto dessa análise do caráter não implica apenas remover, reduzir ou
solucionar conflitos e seus compromissos mas também mudanças “em nível de um modo de
vida e de seu comportamento” (1927:16). Ora, tais mudanças exigem um crivo de
consideração que a tradicional eficácia não pode oferecer. Sugere-se, no entanto, a
existência de um possível “estilo de vida pós-analítico” de definição problemática e alcance
clínico complexo, pois, ao contrário do sintoma, o caráter é algo de que dificilmente os
sujeitos se queixam.
Constata-se assim uma mútua limitação da ética da eficácia e da excelência no
interior do tratamento. Tensão que se reflete no problema do fim da análise e permite
entender o aparente paradoxo da terminabilidade.
A tese da tensão de éticas na clínica converge ainda com uma diferença importante
entre a psicanálise e outras perspectivas psicoterapêuticas calcadas na sugestão. Freud
(1905a) divide os tratamentos, segundo as categorias da estética de Leonardo da Vinci,
entre aqueles que operam per via di porre e os que o fazem per via di levare. Pela via de
porre, trata-se de acrescentar algo, como na pintura ou no hipnotismo e nas práticas de
sugestão. Nelas supõe-se que a terapia introduz algo novo no sujeito, algo que ele não
possui e que lhe seria entregue como positividade, enriquecendo-o com mais saber,
autocontrole, autoconfiança, etc. Esse seria, não o sentido, mas o objetivo do tratamento.
Finalidade que traduz a objetivação do eu onde pode ser verificada: capacidade de reflexão,
adaptação, estabilidade relacional e de humor, disposição ao trabalho e ao amor.
Pela via de levare, trata-se de retirar ou subtrair algo, como na escultura e na
psicanálise:
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“A terapia analítica, ao contrário, não quer agregar ou introduzir nada novo, senão
restar, retirar, e com este fim se preocupa com a gênese nos sintomas patológicos e a
trama psíquica da idéia patógena, cuja eliminação se propõe como meta.” (1905a:
250)
Se há objetivo, aqui ele não se expressa de forma positiva, mas negativa. É importante notar
que em ambos os casos, acrescentando ou retirando, a ética em questão se fundamenta na
eficácia. Isto porque trata-se apenas de uma divergência quanto aos meios ou vias e não
quanto aos fins, que entendidos como objetivos, permanecem homogêneos nos dois casos,
apesar de inversos.
No entanto, o critério freudiano da via de levare tem o inconveniente de reduzir a
psicanálise à sua dimensão terapêutica. Reduzida a esta dimensão, não há como postular
algo como a interminabilidade da análise.
É preciso salientar, ainda, que ao final de uma análise produz-se também um novo
analista. A análise permite elaborar o desejo de tornar-se analista e oferece as condições
para que este se autorize por si mesmo. Logo, pressupõe-se que a ética da psicanálise seja
transmitida nessa experiência. Se a ética da psicanálise se compõe de eficácia e excelência
e, se ela é transmissível sob transferência, conclui-se que o que é transmitido não é apenas
negatividade (eficácia) mas positividade (excelência). Ora, se a ética da psicanálise
transmite-se na experiência analítica e se esta comporta alguma positividade, sob forma de
um saber fazer, por exemplo, então ela é algo que se acrescenta ao sujeito e com isso viola-
se o pressuposto freudiano da via de levare.
Esta violação do pressuposto sugere duas formas de solução: ou acrescenta-se algo
ao modo das práticas de sugestão e neste caso teríamos de aceitar alguma forma de visão de
mundo psicanalítica, o que representa um deslocamento da contradição, ou acrescenta-se
algo impróprio à universalização ou coletivização sob forma de um ideal.
Foi esta segunda via que Lacan tomou, aparentemente, para desenvolver de modo
mais sistemático o tema do fim da análise.
Para Freud, uma análise deveria conduzir o analisante a um encontro com o rochedo
da castração. Em outras palavras, deveria levar à constatação da divisão subjetiva como raiz
do desejo de um ser falante. Lacan retoma esta idéia e procura elucidar o que aconteceria
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DUNKER, C. I. L. - Crítica da Ideologia Estética em Psicanálise - um Estudo sobre o Fim de Análise
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depois disso. Para tanto, depois de Édipo em Tebas é preciso pensar em Édipo em Colona e
em Antígona. Ocorre que cada aprofundamento da noção de fim da análise corresponde a
um avanço na ética psicanalítica. Isto porque a constatação do desejo em associação com a
castração, presente no Édipo Tebano, dá lugar ao reconhecimento de si, o me phynai, em
Colona, e ao reconhecimento do ato de desejo em Antígona. O rochedo, forma geológica da
natureza, índice da heteronomia, a ser contemplada como limite, cede lugar à humanização
e ao ato decidido.
O centro da ética muda de foco, do produto (objetivo), passa-se ao agente e deste, à
ação. No conjunto, preserva-se, entretanto, o caráter negativo do projeto, a via de levare
freudiana: perda de gozo, destituição subjetiva, irrealização dos ideais, reconhecimento da
inexistência da relação sexual e da falta-a-ser. Ocorre que agora tais atributos se aplicam à
esfera do mais além do terapêutico. A ética da excelência parece impor-se e abarcar a da
eficácia, movimento que se ilustra na substituição da técnica psicanalítica pela ética e pela
valorização da noção de desejo do analista como motor da análise.
Esse movimento teve por efeito confundir finalidade e finalismo, orientação e
objetivo. Toda finalidade transforma-se assim em sinônimo de ideal, como tal alienante e
recusável.
Soller (1993, 1995), uma das comentadoras mais lúcidas a enfrentar o assunto, parte
exatamente deste ponto para argumentar que a questão não deve ser recusada pela sua
perigosa proximidade com o plano dos ideais. Ela aborda o assunto do ponto de vista do
horizonte ético que o subjaz, mostrando como este comporta, pela própria estrutura do
dispositivo analítico, uma promessa. Isto pode ser lido tanto na vertente dos benefícios
testemunháveis por uma análise quanto pela demanda que atravessa o tratamento; promessa
de controle e domínio de si na psicologia do ego; promessa de integração e unidade em
Melaine Klein; ou de autenticidade se pensarmos em Winnicott. No caso da psicanálise de
Lacan, tal benefício se encontraria anexado à esfera do saber: saber sobre a castração, sobre
a divisão subjetiva, sobre o desejo, enfim, saber sobre os limites do saber e sobre sua
irredutibilidade à verdade.
Mas, trocando em miúdos, como se poderia discernir tal projeto ético no momento
da conclusão da cura. Momento indissociável dos meios que lhe dão fim. As teses de Lacan
a este respeito variam ao longo de seu ensino. Podemos pinçar algumas das mais
significativas:
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sentido. Os termos se ajustam aos lugares propostos por Lacan no Seminário XVII (1970)
para definir a estrutura de um discurso (agente, outro, produção e verdade).
Mas que tipo de proposições são empregadas por Lacan em suas nove afirmações ?
Não se tratam de descrições de estados de coisas nem de juízos que especificam
particularidades. Ora, se pomos em primeiro plano o fato de que o tratamento psicanalítico
se funda, e não apenas se inscreve, em uma ética os juízos em questão deve ser acolhidos
como máximas, isto é, representantes sintéticos de um processo que comporta dentro de si
distintas possibilidades. Elas incidem sobre o tratamento como horizontes possíveis de sua
conclusão. Máximas são regras ou princípios de ação adotados como válidos, por vontade
própria. Não são leis, uma vez que são juízos centrados na particularidade do sujeito,
enquanto leis pretendem alcançar a universalidade na qual este sujeito se inscreve. Há,
basicamente, duas formas de fazer a passagem de uma a outra. Ou se postula um princípio
universal, ao qual a máxima deve se constranger, caso do imperativo categórico kantiano,
ou se postula que o princípio particular pode ser estendido a uma comunidade de vontades,
o que ocorre, por exemplo, no caso dos juízos estéticos. A diferença crucial é que na
primeira situação a validade da máxima é aferida por um tribunal, que assume valores
intrínsecos como fundamento, por exemplo, a razão ou a liberdade. No caso da extensão da
máxima, a validade é obtida por valores extrínsecos, dados por um consenso normativo.
A questão toda é saber então se os enunciados de Lacan sobre o fim de análise são
capazes de serem deduzidos por um sujeito qualquer e assim propiciar um avanço do saber
sobre o assunto ou se eles devem ser necessariamente validados por um coletivo humano,
parcial, que os legitima indutivamente por meio de uma afinidade estética. Em outras
palavras: o final de análise depende de uma corporação de psicanalistas para que se aprecie
sua validade? A leitura das máximas envolvidas necessitaria assim de um interpretador
privilegiado? Observe-se que se a resposta for afirmativa, isso muda completamente o
próprio estatuto da teoria ou do ensino psicanalítico. Passa-se de uma teoria aberta à
assimilação do não-sabido a um campo cujo objetivo é preservar e multiplicar
procedimentos na esfera das convenções. Quando tais convenções apresentam-se
indevidamente como se fossem teorias, isto é, quando o que deve ser apresenta-se como o
que é, estamos diante de uma doutrina, palavra cuja extração teológica é imediata.
Se, no entanto, a resposta é negativa, quer pelo veio das idealizações residuais, quer
pelo veio da universalidade pretendida pelo esforço teórico, nada que possa ser traduzido
coletivamente na esfera de critérios universais para delimitar o que se obtém ao final de
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uma análise pode ser estabelecido. Critérios são formas de objetivar o sentido ou o produto
de um processo. Como observou Nogueira (1997), a experiência analítica, como
experiência de um sujeito, por definição não poderia alcançar este grau de objetividade.
Quando falamos, descrevemos ou teorizamos sobre o próprio processo, o ganho epistêmico
não se confunde com o ganho normativo. Isso se aplica também quando pensamos que o
que se obtém ao final de uma análise é um analista.
O critério terapêutico da remoção ou redução dos sintomas, inibições e angústias é
igualmente impotente para elucidar o que se passa no mais além do terapêutico. Ora, a
ausência de tais critérios é um fato interessante no cenário da cultura administrada e da
regulamentação burocrática e anônima de nossos tempos. Preserva-se assim um lugar para a
singularidade do sujeito, o que é pertinente com o projeto clínico da psicanálise. Permite-se
ainda que as variações históricas e culturais das formas de sofrimento e demanda encontrem
acolhimento na clínica em questão.
Todavia a pressão por tornar objetivo e apreensível tais critérios se dá a ver não só
na esfera da representação social da psicanálise, mas também, e, principalmente, no âmbito
das corporações psicanalíticas. Isso se reflete no contínuo deslocamento de práticas e
saberes, inicialmente voltados para o entendimento do tratamento, para a progressiva
função de legitimação de posições políticas e agenciamento de poder correlatos. Combina-
se assim o que há de pior na ética da eficácia: seu utilitarismo em que os fins justificam os
meios, com o que há de pior na ética da excelência, sua tendência ao personalismo
autocrático. Obtém-se ao final um discurso muito bem adjetivado por Canguilhem: “ética
sem controle, medicina sem método e teoria sem rigor”. Ora, assinalar que se trata, neste
movimento, de ideologia é trivial; importa saber qual é a textura dessa ideologia. Em outras
palavras, como teoria e prática escamoteiam sua apresentação, de modo que a contradição
não se torne evidente.
O problema é interessante porque certas premissas da psicanálise de Lacan
dificultam as vias mais tradicionais, a saber, positivização controlada da ética,
fenomenalização dirigida da teoria, regulação pela eficácia normativa e cultivo da
autoridade. Além disso, o veio crítico da leitura lacaniana da psicanálise dos anos 50 e 60 é
exatamente orientado contra tais procedimentos. Portanto, de que modo se poderia
ultrapassar tais objeções e ao mesmo tempo legitimar a propriedade do saber-fazer
psicanalítico? Em outras palavras - uma pergunta que circula em diversas instituições
lacanianas -, como nos transformamos naquilo contra o qual nos insurgimos ?
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do universo da falta (3) que implica na elevação do objeto à dignidade de Coisa. Essas três
proposições combinadas, a partir da interpretação da tragédia de Antígona, aproximam a
ética da psicanálise de uma ética trágica. Mas caberia perguntar então se a adesão ao
modelo de Antígona, como figura principal do desejo do analista, não esquece que a
tragédia é antes de tudo um gênero estético e que, portanto, ao aderirmos à ética trágica,
estaríamos recebendo junto uma estética.
Corrobora tal impressão o fato de que os três grandes exemplos comensuráveis com
a ética psicanalítica derivam do domínio estético, a saber: a tragédia de Antígona, o
problema da criação em Heidegger e o tema do amor cortês na literatura provençal. Uma
leitura menos avisada sugeriria assim que a ética da psicanálise é no fundo uma espécie de
estética aplicada, com fortes infiltrações românticas. Contra esta suposição, pesam as
afirmações de um capítulo deste seminário reservado à função do belo no qual Lacan
argumenta que “ … o belo tem por efeito suspender, rebaixar, desarmar, diria eu, o desejo.
A manifestação do belo intimida, proíbe o desejo.” (p.290). O belo para se tornar desejável
precisa de certos coadjuvantes, como o ultraje, a dor ou o engano. O belo em si é reduzido
à categoria de um bem (Sache), mercadoria por excelência da economia narcísica. Neste
sentido ocupa um lugar semelhante ao que Lacan chama de “a ordem dos poderes”, cuja
máxima é: que o trabalho não pare, quanto ao desejo fica-se na espera.
Ora, se a ética da psicanálise é avessa ao serviço dos bens, conclui-se que ela é
avessa também ao campo da estética, admitindo-se em consequência uma estrita separação
entre estas duas esferas. Percebe-se no entanto que a idéia de uma ética do bem dizer,
apesar de cativante, é extremamente frágil em termos de uma eventual assimilação a uma
ética do belo dizer. A separação que enfatizo colocaria a psicanálise, pelo menos
parcialmente, na contramão de uma estilística da existência, de uma experiência de auto-
enriquecimento e, de modo mais geral, contra o ideário romântico de autocultivo estético da
interioridade. Mas como pensar uma ética da excelência fora deste quadro ? Como não
fazer das virtudes analíticas, se é que elas existem, dons analíticos autojustificados ?
Nesse momento da obra de Lacan, podemos dizer que seu grande interlocutor
filosófico não é mais Hegel, mas Kant. A releitura do conceito de superego, empreendida
neste período, segue em linhas gerais a indicação de Freud (1924c) de que este age como
um imperativo categórico. A descoberta do dualismo significante/gozo que atravessa a lei
superegóica, realizada em “Kant com Sade” (1963), está intimamente ligada aos termos
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inconsistência são apresentados como tipos de crenças deixadas pela análise. Textualmente:
“o sujeito não acredita mais na ficção mas reconhece nela sua aposta” (1995:160).
Posteriormente, esse aspecto do problema é ampliado:
“…percepção do resto de gozo com o qual o sujeito vai se satisfazer, o resto de
fixação que faz surgir uma série de ‘quatro in’: ininterpretável, incurável,
inconsistente, indecidível, cuja causa é a não-relação sexual.” (AMP,1998:117)
Ao todo, portanto, nada menos que seis vertentes procuram sinalizar os limites da
eficácia do tratamento psicanalítico. Seis versões da presença do mais além do rochedo da
castração freudiano. Mas a solução para este resto de gozo justifica ainda que se fale em um
“saldo cínico” da análise, pois o sujeito não acredita mais no fundamento de sua aposta e
mesmo assim a mantém.
Chega-se assim à transformação das máximas lacanianas sobre o final do tratamento
em um sistema de crenças fortemente vinculado à perseveração da corporação de
psicanalistas. Fala-se do final de análise desembocando em um “desejo pela Escola”, em
“lógica da política analítica”, em dimensão “política, clínica e epistêmica do passe”, em
“beatos do fim de análise”, em “causa analítica” (identificada à causa da corporação), em
“autoridade autêntica” (Miller, 1998:13). São expressões que sugerem que se acrescente
algo ao sujeito ao final de sua análise, próprio como vimos, da ética da eficácia sugestiva,
uma vez que fala-se em crenças. Tal eficácia é, contudo, duplamente ilegítima, já que, como
mostramos, o mais além do terapêutico se regula pela ética da excelência.
Além disso, o que se acrescenta é francamente atravessado pela intersubjetividade
estética quando se liga ao “reino de Deus na terra”, ou seja, à corporação de psicanalistas e
seu sistema de crenças correlato. Ora, por que tal sistema de crenças não pode ser
apresentado como tal ? Isso teria como consequência imediata a assunção de que a ética de
tal corporação psicanalítica está fundada na sugestão, o que seria inadmissível como
programa declarado. Para contornar esta dificuldade a unidade da doutrina desdobra-se em
unidade política e esta em unidade de crenças. A tendência ao fechamento em torno do Um,
e a consequente recusa da multiplicidade, mostra-se assim necessária para que se passe do
consenso estético para a verdade doutrinal. Mas como se poderia ainda objetar que a ética
assim colocada se distancia da sugestão e viola, em segundo nível, o pressuposto freudiano
da via de levare ?
Uma solução possível para este impasse seria argumentar que a ética que se
transmite ao sujeito não acrescenta algo ao sujeito da mesma maneira que a sugestão. Ora, a
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Bibliografia:
** Christian Ingo Lenz Dunker é Psicanalista, Doutor em Psicologia pela USP, Professor do
Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, autor do
livro Lacan e a Clínica da Interpretação (Editora Haker) e coautor do livro A Criança
no Discurso do Outro (Editora Iluminuras). Atualmente desenvolve pesquisa sobre as
implicações éticas e retóricas da interpretação na clínica psicanalítica.
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