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SENTIDO DA SUBVERSÃO DO SUJEITO PELA PSICANÁLISE

Roberto Calazans+

RESUMO
O artigo demonstra o campo de problemas próprio à psicanálise e a divergência de projetos que há
entre a psicanálise, as ciências humanas, e a filosofia. Para tal nos valemos da avaliação do tipo de
relação que cada um destes projetos mantém com o pensamento científico e como esta relação é
capital para a psicanálise operar o que Lacan denominou de subversão do sujeito. Pretendemos
desta maneira demonstrar que a psicanálise se situa, em sua clínica do sujeito, no campo dos
problemas da ética, e a subversão é o primeiro, e não o último passo, do empreendimento
psicanalítico.
Palavras – chave: sujeito – subversão – psicanálise.

THE STAKE´ OF SUBVERSION OF THE SUBJECT BY PSYCHOANALYSIS

ABSTRACT

This article outlines the field problems that are characteristic of psychoanalysis and distinguishes
them from those that are specific of human sciences and philosophy. For that purpose, we considered
their respective projects in relation to the scientific thought and underlined the importance of this
relation, in the case of psychoanalysis, in order to produce what Lacan called the subversion of the
subject. We thus intend to show that psychoanalysis, in its clinic of the subject, is situated within the
field of ethical problems and that the subversion is the first and not the last step of the
psychoanalytical enterprise.
Key Words: subject – subversion – psychoanalysis.

O artigo que apresentamos é sobre o sentido da subversão do sujeito operada pela


psicanálise. Tomaremos sentido em suas duas acepções: tanto aquele que diz respeito à
inteligibilidade da subversão quanto à finalidade da mesma. Para avaliar a perspectiva da

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O autor é psicólogo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1999), Mestre em Teoria
Psicanalítica pela UFRJ (2000) e Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2004).Professor do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) desde julho de 2002.
Endereço: Universidade Federal de São João Del Rei/ Departamento das Psicologias, Praça Dom Helvécio, nº
74, cep: , São João Del Rei, Minas Gerais
E-mail: robertocalazans@ig.com.br

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psicanálise – ser uma clínica do sujeito –, é preciso afirmar o sujeito como moderno.
Moderno por ser contemporâneo ao mundo científico. Conforme indica Jean-Claude
Milner:

Não existe filosofia que seja inteiramente síncrona com a ciência moderna, mesmo que dela
seja contemporânea. O que corresponde, na verdade, a lhe conferir uma grandeza. A
filosofia contemporânea da ciência moderna testemunha junto a ela dispositivos que lhe são
estranhos; daí seu parentesco de essência à matemática, desde que esta última não seja
definida como linguagem. Mesmo que não negue o corte maior, a filosofia mantém aberta a
problemática; ela convoca a pensá-lo. Alguns dizem que ela está em posição de baliza
absoluta. A psicanálise por sua vez é intrinsecamente síncrona com a ciência; ela é, portanto
de um outro tempo – lógico ou cronológico – que a filosofia (Milner,1996, p.120).

O primeiro ponto que nos interessa é a afirmação da historicidade da psicanálise: só


pode haver psicanálise em um mundo no qual há ciência. Se o campo dos possíveis for
modificado, a psicanálise pode desaparecer. É esta a conclusão da afirmação: a psicanálise
é intrinsecamente sincrônica à ciência moderna. Sincrônico não quer dizer apenas uma
comunidade cronológica; sincrônico significa uma compatibilidade lógica de projetos e de
princípios. A psicanálise é histórica porque só faz sentido falar em sujeito a partir do corte e
do advento da ciência moderna. O corte promovido pelo advento da atividade científica é
com o sistema aristotélico e sua orientação ontológica e qualitativa. E o corte tem por
conseqüência a disjunção de regiões de problemas: uma região – científica – que se
caracteriza por excluir de sua atividade qualquer consideração de valor; e outra – ética –
que se caracteriza por tratar justamente das questões que a ciência não trata: é a região em
que se situa o problema do sujeito. O sujeito, portanto, surge como um efeito do advento da
atividade científica.
A filosofia, por sua vez, não é inteiramente compatível com a lógica de um mundo
científico. Isso significa que se a filosofia reconhece o corte entre o mundo antigo e o
mundo moderno, ela vai tratá-lo de maneira diferente da psicanálise, pois a filosofia vai
pensar o corte em função de seu projeto originário (Châtelet, 1972): a fundamentação
universal das questões de valor e a conseqüente orientação do devir humano. Ao não abrir
mão desse projeto a filosofia se incompatibiliza com a lógica de um mundo científico, pois
a ciência, por definição, escapa a qualquer determinação que seja universalizante, que situe
o campo do possível a priori. Portanto, se há filosofia moderna, é sempre tentando apagar
as conseqüências do corte entre o mundo antigo e o mundo moderno. Se a filosofia pensa o
corte, mesmo que seja em termos de sujeito, é para ir contra uma atividade que se defina

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como histórica. A tarefa da filosofia moderna é tentar tratar as questões científicas em
termos de valor para poder legislar, do exterior, sobre a ciência. Em outros termos: a tarefa
da filosofia é encontrar uma maneira de assegurar o fundamento universal do mundo
moderno unificando o campo de problemas de objetivação com o campo de problemas de
valores.
A filosofia, por pensar contra o corte, vai se colocar em posição de julgá-lo. É o
próprio filósofo quem se situa em posição trans-histórica. Gaston Bachelard (1990) dirá a
esse propósito que toda filosofia se serve de uma ‘função realista’: apagar a disjunção entre
o campo de problemas objetivos e o campo de problemas de valor através de um
deslocamento das questões da atividade científica. Essa função é realista por tentar
encontrar uma instância que seja infensa à dúvida, tal como um fato que se impusesse a
todos. Nesse ponto, também as ciências humanas se valem de uma função realista, mas
tentam encontrá-lo na formulação de leis de uma determinação valorial e não em uma
instância que não passe pela experiência. Ou seja: enquanto a filosofia pretende tratar a
atividade científica como se fosse um problema de valor, as ciências humanas pretendem
tratar os problemas de valores como se fossem problemas científicos. Tanto uma quanto
outra pretendem, desse modo, unificar o campo de problemas. E essa unificação se dá
mediante o apagamento do sentido do problema que cada uma das regiões – científica e
ética – tratam. É por essa razão que tanto a filosofia quanto as ciências humanas não são
contemporâneas com a ciência: por não comungarem com a conseqüência do advento da
atividade cientifica – a disjunção dos campos de problemas de ciência e do campo de
problemas de valores –; e essa discordância é devida à recusa do princípio histórico de
análise dos problemas.
O trabalho de toda uma corrente de epistemologia é dedicado a situar a autonomia
das ciências em relação a qualquer outra atividade. A afirmação dessa autonomia tem por
desígnio salvaguardar o caráter histórico da ciência, ou seja, a possibilidade de abandonar
tanto os seus conceitos como modificar e fabricar novos critérios de julgamento do que é
científico ou não. De acordo com Lecourt (1969), a estratégia da filosofia é contrária à da
epistemologia: manter-se em uma posição de exceção a qualquer mudança. Afinal, como
ser o fundamento universal se há uma atividade que não se submete aos seus critérios?

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Se a psicanálise é intrinsecamente compatível com a ciência, enquanto a filosofia e
as ciências humanas não o são, é porque assume outro princípio de colocação da questão:
não a coloca em termos de uma função realista, mas em termos do que poderíamos chamar
de função histórica. Pois, se a psicanálise trata de uma mesma problemática que a filosofia
e as ciências humanas – a validade dos valores – ela não vai buscar uma fundamentação a
priori que escape à experiência, nem vai buscar uma “realidade psicológica” que se
imponha a todos. A psicanálise vai pensar o fracasso dessas duas propostas em dar conta
dessa questão. A disputa quanto ao tratamento a ser dado a essa questão só pode surgir no
mundo moderno. Pode-se daí extrair o problema que caracteriza a modernidade: sem poder
apelar a Deus e à cosmologia aristotélica, por um lado, e sem poder apelar à ciência, por
outro, como tomar uma decisão com segurança?
Para que tenha sentido a proposta de subversão do sujeito, para esclarecer o sentido
da subversão psicanalítica, é necessário indicar a versão a ser subvertida: a versão filosófica
do sujeito. Conforme aponta Bertrand Ogilvie (1991, p. 11): "Sobre a questão do sujeito, ou
do eu, filósofos especularam: Hegel ou Kant, Descartes ou Spinoza discordaram quanto ao
problema de sua natureza, de seu estatuto, de seus poderes ou de seus limites, da
importância que convém lhes atribuir. Essa questão retorna com insistência e nitidez
particulares. Ora, Lacan, com meios específicos, vai repensá-la de modo novo."
Ogilvie opõe os diversos autores de filosofia a Lacan. A possibilidade de unificação
do campo filosófico não é gratuita, já que as diferenças entre as diversas filosofias se dão
dentro de um mesmo projeto. É ao nível do projeto que a discussão deve ser mantida, pois
permite traçar um quadro geral da proposta filosófica sem a necessidade de entrar no
detalhe das diversas filosofias existentes. É possível estabelecer um nível de análise em que
as diferenças entre as diversas filosofias sejam irrelevantes. Esse quadro geral é dado por
François Châtelet (1972) quando afirma que toda filosofia tem a pretensão de ser o
fundamento, a justificação universal que orientaria o devir humano1. Mais ainda: essa
fundamentação, ou a Verdade, tem que ser provada para não ser mais uma opinião guiada
por interesses particulares.
O sujeito terá de encontrar o fundamento do conhecimento e da ação moral em um
ponto infenso à dúvida, como diria Descartes. Dúvida essa que surge com o esboroamento

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da referência aristotélica. Como se orientar em um mundo em que a referência é perdida e
comporta uma atividade precisa em sua práxis – a ciência –, mas não interessada nos
problemas de valores? Após o corte epistemológico promovido pelo advento da atividade
científica, a filosofia foi constrangida a situar o problema da Verdade em termos de sujeito:
não pode mais atribuir o fundamento a um ser imóvel que ordenaria um mundo finito tal
como no mundo aristotélico. Portanto, só faz sentido falar de sujeito no mundo moderno
ou, em outros termos: alçar o sujeito ao estatuto de fundamento é uma proposta que só pode
surgir na seqüência do advento da atividade científica2, conforme indicam os estudos de
Alexandre Koyré (1991) sobre a história do conhecimento científico. A partir do que foi
colocado, pode-se distinguir, mais uma vez, dois campos de problemas: o campo científico,
onde a precisão de sua atividade e a prova dessa precisão se dá justamente por não se
interessar por questões de valor; o outro, por se definir justamente como o campo do valor,
da orientação e das decisões que colocam o problema de sua legitimação universal.
A colocação da questão da validade do mundo dos valores em uma época científica
permite também o surgimento de outra proposta: se foi possível uma objetivação no
domínio da física matemática, por que não poderia haver o mesmo no domínio dos valores?
É sob esta marca que advém o projeto de uma ciência humana, conforme é indicado em A
História da Filosofia das Ciências Humanas, coletânea organizada por François Châtelet
(1977). As ciências humanas recusam situar o sujeito e sua doação de sentido como
fundamento, pois pretendem apenas estabelecer leis de regulação dos ‘eventos’ valoriais.
Para as ciências humanas, trata-se de descobrir as leis que regem os ‘fatos valoriais’, ou
melhor, elas pretendem tratar os valores como se fossem fatos. E em questão de fatos não
há possibilidade para a doação do sentido, como pretende a filosofia. Ou seja: o
determinismo implica um sem-sentido. Afinal, a ciência humana, por ter a pretensão de ser
uma ciência, tem a pretensão também de retirar de suas considerações qualquer afirmação
de finalidade.
A psicanálise surge do fracasso na tentativa de encontrar um fundamento em
questões de decisões no campo do valor. Freud, em "Análise terminável e interminável"
(1937/1996), afirma as três tarefas impossíveis: educar, governar e psicanalisar. A
psicanálise trata justamente dessas regiões que demandam respostas que não podem ser

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adiadas, mas não têm qualquer índice para encaminhar a resposta. E a essa questão, a
psicanálise chama sujeito. A psicanálise vai colocá-la de outra maneira por não aceitar a
maneira de a filosofia colocar o problema: pretender uma fundamentação universal
ignorando a disjunção entre o campo de problemas de valores e os problemas científicos. E
a psicanálise pensa essa questão clinicamente: questiona o interesse de cada sujeito em
fundamentar universalmente uma decisão. Ou como aponta mais uma vez Ogilvie (op. cit.,
p.26), a psicanálise não vai aceitar qualquer dos dois projetos, a saber: tratar um problema
científico como se fosse um problema de ética (filosofia) ou tratar um problema de ética
como se fosse um problema científico (ciências humanas). A psicanálise vai modificar o
princípio de tratamento do problema.
Resumindo: para que se possa dar o sentido da subversão do sujeito em psicanálise,
é preciso estar atento ao problema que é indicado pelo nome de sujeito e ao princípio, a
função realista, que comanda os projetos da filosofia e das ciências humanas. A psicanálise
rejeita o princípio realista para tratar da região ética de problemas. Caso contrário, corre-se
o risco de se guiar por aquilo que Freud chama de discurso manifesto: confundir a trama de
conceitos com o drama em que estes são expressos. É por essa razão que escolhemos aqui o
mesmo viés de análise dos problemas adotado por Renato Mezan (1989) em seu livro ‘A
trama dos conceitos’: tratar dos problemas em função da articulação conceitual para
‘localizar os conceitos-chave e as redes de problemas entrelaçados’ ao invés de traçar uma
cronologia da apresentação dos problemas. É necessário articular a subversão psicanalítica
tanto com o conceito filosófico de sujeito quanto com a sua negação direta desse conceito, a
saber, as ciências humanas.
Por outro lado, por pensar justamente o fracasso desse projeto, a psicanálise não
pode ignorar de todo os termos que esses projetos utilizam. Mas se ela os usa é para
desqualificá-los logo em seguida, pois aproxima termos de propostas que se anulam
mutuamente. Chamaremos esse estratagema, seguindo a orientação de Dominique Lecourt
(1969) de ‘qualificação desqualificante’: usar um adjetivo para desqualificar o que
tradicionalmente se entende por determinado termo. O exemplo que podemos evocar aqui é
o ‘sujeito do inconsciente’: tradicionalmente, um sujeito não pode ser inconsciente, pois um
sujeito é aquele que deve responder à questão da validade da região ética. Inconsciente é a
abolição total de um sujeito. Quando a psicanálise aproxima estes dois termos, provoca, aos

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olhos de uma função realista, um paradoxo. Mas se adotarmos uma função histórica, o
paradoxo desaparece por se mostrar uma nova lógica no comando do sentido dessa
expressão.
Portanto, situar o sentido da subversão do sujeito promovida pela psicanálise
permite apontar para o problema que ela pretende tratar: ser uma clínica do fracasso dos
processos identificatórios que serviriam de orientação no registro dos problemas éticos. A
psicanálise não almeja estabelecer o referencial desses processos identificatórios e situá-lo
em um determinismo sócio-simbólico ou psicológico, como fazem as ciências humanas.
Tampouco, pretende encontrar uma fundamentação na liberdade do sujeito. A psicanálise
não pretende buscar esse referencial, mas coloca esse projeto de encontrá-lo em questão. O
sentido da subversão do sujeito, de acordo com Bertrand Ogilvie (op. cit., p.13), indica a
recusa tanto do determinismo sócio-simbólico quanto da liberdade. E, de acordo com
Lacan, o que há de mais subversivo em psicanálise é não colocar nenhuma instância nesta
posição de orientação dos valores: "não esperem do meu discurso nada de mais subversivo
do que não pretender a solução" (Lacan, 1992, p.66). Esses esclarecimentos quanto ao
sentido da subversão do sujeito são importantes porque permitirão avaliar dois pontos que
surgem como auge da atualidade: em primeiro lugar, permitirão avaliar se há mesmo
‘novos fenômenos’ que colocariam a clínica psicanalítica em questão; e, em segundo lugar,
avaliar se a filosofia contemporânea do sujeito coloca em questão a subversão do sujeito
promovida pela psicanálise em questão.
Explorar o sentido dessa subversão faz-se necessário hoje devido a um certo
embotamento do pensamento da práxis psicanalítica. É corrente encontrarmos proposições
acerca da existência de uma nova subjetividade, de novos fenômenos para os quais a clínica
psicanalítica não estaria preparada para responder3. Enfatizam, com uma linguagem e com
conceitos extraídos da sociologia ou da psicologia, a falência de uma determinação
simbólica: o sujeito ficaria à mercê de identificações fugazes, ou, conforme aponta
criticamente Slavoj Zizek (1991, p.210), de um "infinito ruim". Os sociólogos identificam
aí um novo tipo de sociedade, cuja crise é preciso explicar. Identificam o surgimento dessa
nova sociedade com o surgimento de uma nova época chamada por eles de “pós-

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modernidade”4. A sociologia, desse modo, reencontraria o seu projeto originário: ser a
ciência capaz de explicar os "fatos sociais". Pois se ela surgiu para explicar as mudanças da
sociedade industrial (Aoukun, 1977), hoje ela explicaria as mudanças da sociedade “pós-
moderna”. E aqueles autores de psicanálise poderiam se valer de explicações da sociologia
dita pós-moderna para ressituar a sua clínica.
Por outro lado, encontramos na filosofia um movimento de recuperação da
independência do sujeito5. Essa recuperação seria uma resposta da filosofia às críticas
sofridas na década de 1960 e evitaria os impasses do individualismo contemporâneo.
Segundo Alain Renaut (1998), o centro dessa crítica se situa em uma certa confusão entre
indivíduo e sujeito, e a crítica de todo o movimento intelectual da década de 1960 se
endereçava à concepção do indivíduo autônomo, inteiramente consciente de si. Daí, as
críticas do movimento intelectual da década de 1960 se ancorarem em dois eixos: a
temática da finitude do sujeito e a temática do inconsciente, o que não configuraria de jeito
algum a totalidade do conceito de sujeito. Mais ainda: é a referência ao sujeito como
independente – a liberdade é a capacidade de se guiar por regras – e não como autônomo,
que evitaria a emergência de um individualismo exacerbado. Desse modo, a filosofia do
sujeito absorveria a crítica sofrida e mostraria a pertinência de seu valor hoje.
Essa posição da filosofia contemporânea vai afirmar que a psicanálise comete o
mesmo equívoco: confundir um indivíduo com o sujeito, confundir uma autonomia com a
liberdade. No entanto, esta afirmativa nos parece ser uma confusão de Renaut e Ferry em
relação ao sentido da subversão do sujeito operada pela psicanálise. Esta confusão não é
atual. Dois mal-entendidos quanto à posição de Lacan demonstram isso: o primeiro é o
elogio feito por Michel Foucault (2003) ao dizer que Lacan contribuiu para a abolição do
sujeito. Lacan recusa o elogio dizendo que “subverter” um sujeito não é o mesmo que
“aboli-lo”. O segundo é indicado por Jacques-Alain Miller. Este cita uma passagem de
Claude Lévi-Strauss na qual critica Lacan pelo risco de o sujeito, ainda que situado em uma
estrutura, poder recuperar seus privilégios de autonomia e de exceção que detinha antes da
crítica estruturalista. Lacan recusa a crítica afirmando que subverter o sujeito tal como a
psicanálise o faz não é manter seus privilégios de autonomia e de exceção.

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Podemos dizer que estamos às voltas com um problema que coloca em questão a
compatibilidade dos projetos da filosofia, das ciências humanas e da psicanálise. É por esta
razão que para localizar o problema da subversão do sujeito é preciso estar atento ao
problema que unifica o campo de litígio entre filosofia, ciências humanas e psicanálise: a
questão de justificativa e de orientação no mundo dos valores – que podemos denominar de
problemas éticos. A querela entre filosofia, psicanálise e ciências humanas só pode surgir
no mundo moderno, somente em um mundo no qual a atividade científica é possível e os
referenciais identificatórios são colocados em questão.
Eis a razão de não ser gratuita a recusa da psicanálise em encontrar um ponto
fundamental infenso à dúvida: para a psicanálise, o debate entre o fundamento na liberdade
do sujeito ou em um determinismo simbólico não é insolúvel; é um problema mal colocado.
Demonstrar isso é demonstrar o sentido da subversão do sujeito, que consiste em destituir
qualquer instância que tenha a pretensão de ocupar o fundamento do mundo dos valores.
Este é um primeiro passo, mas não é ainda o último.
Notas
1 A questão de um fundamento último dos valores é encontrada em vários autores que tratam do problema em
filosofia. Para citar alguns exemplos, basta conferir a introdução dos seguintes livros Granier (1977); Hadot
(1995); Xirau (1966); e principalmente Grondin (1989).
2 Como diz Alain Badiou (1997): "Podemos apoiar-nos aqui em outra grande tradição, que se enraíza em
Descartes, e que instala a questão do Ser-pensar em uma problemática do sujeito. Essa tradição não exige,
pelo menos em aparência, o recurso à transcendência dos princípios. A ligação se realiza supondo-se para o
pensamento um sujeito, um suporte, e interrogando esse sujeito quanto ao seu ser. O ser do pensamento é
identificado como ser do sujeito, e a questão da identidade do Ser e do pensamento se torna a questão da
posição no Ser do Ser-sujeito. A mais alta realização dessa orientação é certamente Hegel, quando fixa como
programa para a filosofia inteira 'pensar o Absoluto não só como substância, mas também e ao mesmo tempo
como sujeito'" (Badiou, 1997, p .97: grifos nossos)
3 Conferir especialmente o livro de artigos organizado por Kehl (2000). Os autores dessa coletânea partem do
seguinte pressuposto: se a função paterna não é mais operante atualmente para conferir uma identidade ao
sujeito, não poderíamos recorrer a uma função fraterna, que poderia "quebrar um galho" e possibilitar uma
subjetividade sem muitos sobressaltos?
4 Cf. Giddens, (1990); Jameson (1996); Bauman (1998); Kumar (1997); Harvey (1992). E ainda o trabalho do
filósofo francês Lyotard (2000)
5 Cf. Renaut (1998); Renaut, Alain e Ferry, (1985) ; Frank (1992).

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Aceito em:Novembro/2004

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