I. INTRODUÇÃO. à seguinte expressão: M (t)dv/dt + v(t)dM/dt = 0 ou,
equivalentemente, d[M (t)v(t)]/dt = 0, que diz que o mo- Essa série de textos analisa problemas de corpos de mentum linear do carrinho se conserva. massa variável. Do modo como a segunda lei de New- Se o momentum do carrinho se conserva, seu momen- ton é matematicamente expressa, pode haver dúvidas tum linear no instante t é o mesmo do instante inicial. a respeito de qual equação de movimento um corpo de Entretanto, após um instante t, uma parte da areia caiu massa variável obedece. Nesse primeiro texto, discutirei do carrinho, transportando momentum linear consigo (a um exemplo simples, que nos indicará que a expressão menos que tivesse caı́do com velocidade horizontal nula, F = dp/dt não deve ser aplicada para sistemas cuja que não se verifica experimentalmente). Somando esse massa é variável. Entretanto, veremos que essa lei ainda momentum ao momentum do carrinho, concluı́mos que o é válida, desde que redefinamos o sistema de modo que momentum linear na horizontal do sistema composto por a massa total do mesmo não mude com o tempo. carrinho e areia que caiu aumentou, mesmo sem forças horizontais atuando sobre esse sistema. Como o resultado acima é inconsistente com a noção II. O CARRINHO COM AREIA NO INTERIOR de que o momentum linear do sistema deve se conservar, descartamos a expressão F = dp/dt. Resta avaliar se Considere a seguinte situação: um carrinho se move F = M (t)dv/dt. sobre trilhos, na horizontal, com uma velocidade v(t) em É claro que, em última instância, essa equação não relação ao referencial do laboratório. O carrinho contém pode ser provada, mas apenas checada experimental- areia, e há um furo na sua parte inferior, a partir do qual mente. Entretanto, consideraremos uma situação que, a areia cai. Isso significa que a massa do carrinho varia pelo menos, sugere que essa seja a equação de movimento com o tempo (considere que o termo carrinho se refere do carrinho. Em vez de imaginar que a areia cai conti- ao carrinho vazio somado à areia que ainda está dentro nuamente do carrinho, vamos supor que a queda ocorre dele). a cada intervalo de tempo ∆t, e que, nos instantes de Denotando por M (t) a massa do carrinho e por m(t) a queda, um bloco de areia de massa ∆m é liberado. A massa da areia que já caiu, e admitindo que nenhum grão massa do carrinho, por sua vez, passa a ser M (t) − ∆m. de areia havia caı́do para t = 0, podemos dizer que, por Como, entre os intervalos de tempo, a massa M não conservação da matéria, M (t) = M (0) − m(t). Suponha varia, estamos em território conhecido: dizemos que F = que, também a partir de t = 0, comece a agir sobre o M ∆v/∆t [2] , em que ∆v é a variação de velocidade do carrinho uma força F . A questão que se propõe é: qual carrinho no intervalo ∆t. Agora tome o limite em que é a equação de movimento que o carrinho obedecerá, ao ∆t → 0 para descrever um sistema em que a areia cai longo da direção horizontal? continuamente do carrinho. A expressão obtida é Primeiramente, observe que essa é uma situação ex- dv perimental na qual podemos observar se há variação do F (t) = M (t) . (1) momentum linear do carrinho apenas por sua variação de dt massa: isso porque o empuxo, se houvesse, ocorreria na O argumento acima sugere que essa é a equação que direção vertical, o que não afetaria o movimento horizon- o carrinho obedece. Entretanto, isso não significa que tal. Assim, a força resultante que atua sobre o carrinho a segunda lei de Newton está errada: apenas que está é apenas F . Como sua massa varia, temos que decidir se sendo aplicada de forma inapropriada. Mostrarei como é igualamos F a M (t)dv/dt ou a M (t)dv/dt + v(t)dM/dt. possı́vel conciliar a segunda lei de Newton com o resul- Começarei refutando a segunda possibilidade, to- tado da Eq.(1) na próxima seção. mando como ponto de partida a noção de que o mo- mentum linear de um sistema fechado deve se conser- var quando as forças externas que atuam sobre este são nulas[1] , que corresponde a tomar F = 0. Isso nos leva 2 Suponha que os intervalos de tempo ∆t são suficientemente pe- quenos para que F possa ser tomada como constante; no final do raciocı́nio, tomaremos o limite em que ∆t → 0 e ∆m → 0, de modo que essa aproximação para F se tornará exata. 1 A conservação do momentum linear é consequência da simetria de translação desse sistema, isto é, as leis fı́sicas que o regem não mudam por translações espaciais. Quando exigimos que o momentum linear se conserve, é porque imaginamos que as leis fı́sicas sejam as mesmas em qualquer ponto do espaço. 2
III. CONCILIANDO A SEGUNDA LEI DE Admitindo um intervalo ∆t pequeno, podemos aplicar
NEWTON COM OS RESULTADOS DA SEÇÃO a segunda lei de Newton na forma F ∆t = ∆p (que diz ANTERIOR que o impulso da força resultante sobre o sistema é a variação do momentum linear do sistema), o que leva a Na seção anterior, argumentei que um sistema cuja massa varia sem que exista uma força de empuxo devido F ∆t = pf − pi , (4) a essa variação (o que pode ser conseguido experimental- mente fazendo com que o empuxo atue em uma direção isto é, perpendicular à do movimento estudado, por exemplo) F ∆t = M (t)v(t + ∆t) − M (t)v(t + ∆t) = M (t)∆v. (5) deve obedecer à Eq.(1), o que parece contrariar a segunda lei de Newton (note que a taxa de variação do momen- Dividindo a expressão por ∆t e tomando o limite em que tum linear continua sendo M (t)dv/dt + v(t)dM/dt, mas ∆t → 0, recuperamos a Eq.(1). Isso nos mostra que a não é isso que aparece na direita da igualdade). segunda lei de Newton pode ser conciliada com o resul- O problema aparece por aplicar a segunda lei de New- tado da Eq.(1), desde que a expressão F = dp/dt seja ton a um sistema em que a matéria não se conserva. Se entendida como algo que se refere a todo o sistema: na redefinirmos o sistema de forma a incorporar a areia que esquerda, contabilizamos todas as forças que atuam so- está caindo, poderemos aplicar a segunda lei de New- bre as massas; na direita, a variação de momentum de ton, como mostraremos a seguir. Em suma, a expressão todos os componentes do sistema. As equações de movi- F = dp/dt deve ser lida tendo em mente um sistema fe- mento de cada componente individual do sistema devem chado, isto é, cuja quantidade de matéria não muda ao ser tiradas a partir disso e de, se necessário, argumentos longo do tempo. fı́sicos. Considere novamente a situação em que blocos de areia de massa ∆m caem do carrinho a intervalos de tempo ∆t. Vamos contabilizar a variação de momentum linear do IV. CONCLUSÃO sistema. No instante t, quando a queda do bloco ainda não ocorreu, o momentum do sistema é Em sı́ntese, ao lidar com problemas de massa variável, pi = M (t)v(t). (2) convém redefinir o sistema de forma que, ao contabilizar toda a massa que compõe o sistema, esta seja constante Após o intervalo de tempo ∆t, o momentum linear tem no tempo. Assim, a segunda lei de Newton pode ser contribuições do carrinho, agora com massa M (t)−∆m e aplicada para o sistema como um todo e, a partir disso, velocidade v(t + ∆t), e do bloco de areia, com massa ∆m as equações de movimento de cada objeto do sistemas e velocidade v(t + ∆t), que já assumimos ser a mesma devem ser obtidas. É instrutivo, nesses problemas de velocidade do carrinho no instante t + ∆t: corpos de massa variável, trabalhar com equações válidas em intervalos de tempo ∆t pequenos, nos quais sabemos pf = M (t)v(t + ∆t) − ∆mv(t + ∆t) + ∆mv(t + ∆t). (3) aplicar a expressão F∆t = ∆p para, só então, tomar o limite em que esse intervalo de tempo vai a 0 para obter A hipótese de que a velocidade do bloco é a mesma do as versões diferenciais das equações. carrinho basicamente é o conteúdo da primeira lei de No próximo texto, irei ilustrar como, a partir do Newton, que se refere ao princı́pio da inércia. Se hou- mesmo raciocı́nio utilizado aqui, é possı́vel resolver outros vesse uma segunda força atuando sobre o bloco de areia problemas de massa variável, como aqueles que aparecem em queda, não poderı́amos assumir mesma velocidade. no capı́tulo 8 do livro Fı́sica Básica Volume 1 do Moysés. Abordarei um problema nesse estilo futuramente.