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MASCULINIDADES EM QUESTÃO

Equipe Técnica
Coordenação e Organização
Marcelo Morais
Autores
Lia Lopes
Léo Moreira Sá
Cesár Barbato
Vander Che

Colaboração
Daniela Rueda
Doralice Odila
Gabriel Di Pierro
Rafael Lira
Juliana Gonçalves
Lincoln Péricles

Projeto Gráfico e Editoração


Joaldo Nunes

Ilustração
Donizeti Gomes

Fotografia
Ingrid Evangelista

Apoio
VAI 2012

Tiragem
500 cópias
Ficha Catalográfica

COLETIVO DE HOMENS FEMINISTAS. Masculinidades em questão /


Organização de Marcelo Morais. - São Paulo: VAI, 2013. - p. 28 p.

Apoio da Prefeitura do Município de São Paulo. Projeto VAI 2012.

ASSUNTO: MASCULINIDADES. 1. Homens feministas


CDD: 391.6

Março 2013

As fotos dessa publicação foram tiradas durante as rodas de conversa, promovidas pelo projeto O Inverso em Versos.
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Existe homem ‘feminista’?
Lia Lopes Almeida

As masculinidades nas
periferias. Como falar
sobre essa situação?
Vander Clementino Guedes
14
índice
TransHomem ou
TransHumano? Por uma
transcendência dos gêneros 20
Leo Moreira Sá

Gênero, masculinidades
e religião: algumas
considerações 24
Cesar Barbato
apresentação
“Existem momentos na vida
onde a questão de saber se
pode pensar diferentemente
do que se pensa e perceber
diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a
olhar ou a refletir.”
Michel Foucault

Sejam bem-vindas e bem-vindos a esta jornada rumo aos questionamentos das masculinidades em tempos
pós-modernos. Nosso grande objetivo é colaborar para compor um mosaico rico e diversificado dentro dos
atuais estudos de gênero.
Essa publicação é o produto final de um ano de conversas, estudos e atividades do “Coletivo de Homens
Feministas”, que surge no final do ano de 2011, primeiramente com uma inquietação de jovens homens que
mantém há alguns anos uma relação de parceria e proximidade com os grupos ligados às discussões sobre
os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e das Jovens Feministas de São Paulo. Nascendo a partir desses
jovens a demanda por espaços de diálogos, encontro e reflexão catalisando em um grupo social, formado
inicialmente por cerca de 70 jovens homens, com o intuito de discutir e questionar questões relacionadas
às masculinidades, co-responsabilidade e seu papel na sociedade, questionando as formas tradicionais do
patriarcado, o sexismo e o machismo. Por isso, o nome de “Homens Feministas”. Hoje o grupo conta com
mais de 300 membros de diversos estados brasileiros na rede social.
Com a necessidade de se fazer ações mais concretas, o projeto “O inverso em versos”, idealizado por membros
do Coletivo de Homens Feministas, surge com uma visão focada no debate das masculinidades, promovendo
rodas de conversa ao longo de 2012. O projeto conta com o patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de
São Paulo, por meio do Programa de Valorização as Iniciativas Culturais (VAI).

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A primeira roda de conversa discutiu o tema “Existem homens feministas?” e contou com a participação de
Lia Lopes, militante do Coletivo das Jovens Feministas de São Paulo. Lia apresentou um resgate histórico
sobre as ondas da teoria feministas e ressaltou que podemos ter uma igualdade de gênero efetiva a partir
da soma. Aqui cabe ressaltar que nós, Coletivo de Homens Feministas, entendemos a extrema importância
dessa discussão, por mais que alguns grupos feministas sejam contra homens discutirem as questões de
gênero. Cremos que estamos aqui para somar positivamente a luta.
O segundo encontro foi marcado pela abordagem do tema “As fronteiras das masculinidades” e contou com
a presença de Laerte Coutinho. Durante o bate-papo, o cartunista relatou como está sendo as descobertas
sobre sua nova identidade de gênero e apresentou questionamentos fundamentais na produção e reprodução
da dominância heteronormativa.
Navegamos por outros mares, discutimos “As masculinidades na cultura de periferia” no qual Vander Che,
historiador, grafiteiro e admirador da arte de rua, nos apresentou horizontes amplos de como se passa o
diálogo das masculinidades nas regiões periféricas da cidade de São Paulo.
Nesta publicação você também vai encontrar um texto do teólogo feminista, César Barbato, discorrendo
sobre Gênero, masculinidades e religião, além de algumas fotos, poemas e desenhos feitos por alguns de
nossos colaboradores.
Este projeto teve como resultado novas visões, diálogos e aprendizagens sobre feminismo, masculinidades e
participação nas questões de gênero. Os debates propiciaram provocações e reações no movimento, dando
oportunidade a novos olhares sobre o tema. Esperamos que este seja o primeiro de muitos trabalhos que
busquem discutir masculinidades.
Boa leitura!

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Existe Homem
“Feminista”?
Lia Lopes Almeida
Formada em Direito e Economia,
membro do Coletivo de Jovens
Feministas de São Paulo e
consultora da ONU Mulheres Brasil.
A
questão é instigante e pertinente se considerarmos que o coletivo Jovens Feministas de São Paulo,
desde 2006, vem refletindo sobre as distintas nuances das relações de gênero na contemporaneidade,
bem como sobre a co-responsabilidade estabelecida nas relações hetero e homoafetivas vigentes na
população jovem, buscando interagir com a “nova onda” do feminismo no Brasil e na América Latina.
Para tanto, tal reflexão se inicia com a análise e observação do surgimento da primeira rede de jovens
latino-americana e caribenha pelos direitos sexuais e reprodutivos (RedLac) que apresentava, em sua
composição, coletivos feministas mistos (tendo homens jovens como integrantes) e que lutavam abertamente
pelo direitos dos jovens (para além da sua identidade de gênero e/ou orientação sexual) decidirem sobre seu
próprio corpo e firmarem como direito o acesso a métodos contraceptivos e/ou preventivos.
A princípio, tal situação encontrava respaldo ao entender que a relação sexual e/ou afetiva, desde que
vivenciada entre duas pessoas, precisava ser compreendida como algo cuja responsabilidade e decisão, em
alguns aspectos, deveriam ser compartilhadas entre as partes envolvidas, mas também encontrava respaldo
na medida que os homens ali envolvidos se colocavam na condição de lutadores pela igualdade de direitos
das mulheres.
Desta forma, questionamentos sobre a escolha/decisão de ser mãe/pai, da prática do aborto, bem como da
co-responsabilidade de aderir aos métodos contraceptivos (desde o acesso e uso da camisinha masculina/
feminina e/ou da pílula de emergência) e de quem os deveria trazer e/ou comprar durante a relação
estabelecida, foram pontos cada vez mais pertinentes à analise do coletivo.
Buscando verificar em que medida tais posições se perduravam entre gêneros, o coletivo JFSP resolveu
arriscar alguns passos sobre o tema. O primeiro deles foi elaborar, em 2007, uma cartilha sobre contracepção
de emergência que englobasse homens no debate e elaboração desse material. A ideia era ver em que medida
algumas informações evidenciariam a co-responsabilidade das relações afetivas.
A conclusão desse trabalho, para além da publicação da cartilha “Pílula de Emergência: Informação e
Consciência!” (feita com o apoio da Bemfam e do IPPF) e das formações com jovens, nos propiciou diversas
reflexões das quais destaco duas em particular: 1) a de que os homens tinham consciência dos efeitos do uso
do contraceptivo no corpo e na saúde das mulheres e 2) a necessidade dos homens dialogarem entre si sobre
o tema masculinidades e seus desdobramentos sobre as relações de gênero.
Apesar desses resultados, ainda ficou em nós o questionamento sobre o entendimento dos homens sobre a
co-responsabilidade, além de evidenciar seus reflexos nas relações afetivas dos jovens. Com isso, galgamos
uma segunda iniciativa de entrevistar jovens e verificar essa questão diretamente com eles. Um projeto
ambicioso e inovador que durou dois anos e que culminou, em 2009, na publicação “Mulheres e Homens jovens
dialogando sobre Co-responsabilidade” com apoio da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas).

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Esta, por sua vez, revelou uma série de
questões que atingiam aos jovens em seu
cotidiano, entretanto, para o tema em
questão, vimos que, apesar dos homens
terem entendimentos sobre os impactos
da sua relação com as mulheres, ainda
era possível ver certa “omissão” por
parte deles em assumir para si as
responsabilidades inerentes da escolha
de se relacionar com ou sem o uso de
métodos preventivos e contraceptivos.
Além disso, neste trabalho evidenciamos
a necessidade de homens realizarem
encontros entre si para pensar sobre sua
masculinidade e sua relação com o tema gênero,
já que até então, não existia este espaço. Apesar deste
esforço colaborativo, relembramos que alguns patamares feministas, em sua maioria, afirmava que não
podíamos doar nossas energias para “fortalecer” os homens sobre estes temas sem antes as mulheres
serem fortalecidas e esta questão inviabilizou a concretude de outras ações.
Em 2011, durante a promoção de um processo formativo de novas líderes mulheres jovens feministas,
ao sermos questionadas por homens sobre pensarmos em espaços formativos nos quais eles também
fizessem parte, voltava à tona a ideia inicial de pensar processos formativos de homens para homens e,
nesta perspectiva, buscando evidenciar este tema na sociedade, resolvemos criar, usando o perfil das Jovens
Feministas de São Paulo, um espaço virtual, no facebook, intitulado “homens feministas”.
O termo era evidente e propositivo, pois queríamos instigar o debate, mas também refletir sobre a possível
existência de “homens feministas” em uma sociedade historicamente questionada pelo patriarcado,
machismo, sexismo, racismo e homofobia na qual, até o presente momento, os homens figuravam como os
grandes vilões.
Qual não foi nossa surpresa ao ver que, de uma rede virtual iniciada com 175 membros (todos homens
seguidores do perfil das JFSP no facebook), em poucos meses teriam discussões que propiciaram a
entrada de mulheres no grupo, aumentando a rede para quase 400 membros e conseguiu realizar reuniões
presenciais destes participantes para debater especificamente sobre o tema de gênero e masculinidades, ao
longo do ano de 2012, via incentivo aprovado em projeto do Programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais)
da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.

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Questões curiosas sobre a forma como as mulheres exigem que os homens sejam, de como elas ditam seus
comportamentos e corpos, de como a sociedade patriarcal também oprime os homens, além de reflexões
sobre a passividade masculina diante de violência advinda da estrutura social vigente que, de certa maneira,
também os colocariam em situação de “vítimas” do próprio patriarcado e do machismo foram levantadas no
debate virtual. Elas tornaram evidentes que a discussão dos homens perpassa por áreas que as mulheres,
sejam pelo limite biológico ou ideológico, ainda não foram capazes de responder e que a reflexão masculina
se faz necessária para entender o que eles querem e como eles querem viver dentro destas possibilidades e
estruturas sociais atual e historicamente constituídas.
Os resultados deste processo somente serão passíveis de análise daqui há alguns meses ou anos, mas o
que vale destacar deste processo é que hoje existem homens cada vez mais conscientes das desigualdades
de gênero e dispostos, concretamente, a lutar pelos direitos das mulheres nas mais distintas estruturas e
espaços que envolvam relações de poder.
Talvez uma discussão futura que se fará necessária será pensar, em que medida espaços de poder ou temas,
cujo acúmulo teórico e prático realizado pelas mulheres terão que ser compartilhados com os homens ,
ou em que medida tais espaços, fortalecidos historicamente para terem mulheres em suas estruturas de
representação, passarão a ser “dominadas” pelos homens mediante esta “abertura” de diálogo e com base
na construção de novas formas de relação de poder entre gêneros.
O fato é que, ao verificarmos o acúmulo de seis anos de trabalho e de luta das mulheres jovens nas mais
diversas áreas, percebemos que boa parte dos questionamentos femininos e feministas sempre teve como
norte os homens como possíveis “inimigos” e que agora, refletindo sobre os processos de masculinidade e de
co-responsabilidade, é possível estabelecer uma relação na qual os homens são potenciais “aliados” destas
causas que, historicamente, não conseguiram avançar, haja vista o não estabelecimento desta relação como
algo possível, mas que, para esta nova geração, torna-se concreta e viável.
Portanto, temas como eliminação da violência contra a mulher, divisão de tarefas domésticas, empoderamento
econômico e político das mulheres, além da territorialidade e domínio do corpo como objeto que atende as
escolhas e desejos das mulheres, tomam novas e significativas posições e proporções à medida que homens
entram no debate para dialogar com tais demandas, não mais na perspectiva das relações de opressor e
oprimido, mas sim na condição de atores ativos e capazes de transformar a realidade em prol da efetiva
equidade e igualdade de direitos para as mulheres.
Esta, sem duvida, é a contribuição estratégica que esta geração jovem traz para os novos passos das causas
feministas e de gênero no Brasil, potencializando e fortalecendo a consciência e formação masculina sobre as
questões que atingem a eles e as mulheres, gerando uma ação na qual as futuras gerações criem e englobem
“homens feministas” na luta pelos direitos das mulheres.

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As Masculinidades
nas Periferias.
Como falar sobre
esta situação?
Vander Clementino Guedes
Formado em História, é educador
social e grafiteiro. Atua pelas bordas
da cidade de São Paulo como
articulador cultural. Atualmente, faz
parte do Coletivo Muros que Gritam
(Graffiti e Audiovisual).
S
erá que estamos preparados para discutir e pensar no papel do Homem na Sociedade, sem entrar nos
jargões pré-estabelecidos pela mesma sociedade? E como expor as ideias, sensações e sentimentos
de nós, HOMENS sem sermos Machistas?
Estas são questões que precisam ser expostas e pensadas por aqueles que sentem a necessidade de
expressar, falar, agitar o senso comum com um pensamento para além dos existentes no cotidiano de grupos
sociais e principalmente nas discussões familiares.
Mas, por que falar sobre isto nas Periferias? Eis a questão principal desse texto que vem para buscar um
entendimento do que anda acontecendo nas “Margens da Cidade de São Paulo” 1 no que diz respeito ao
comportamento de homens, que se dispõem a pensar e agir em favor das questões de gênero, observado de
outra maneira: do próprio homem que também sonha, sofre, briga, luta, conquista e sente a necessidade de
expor suas ideias e maneiras de viver.
Durante as décadas de 50 e 60, o Movimento Feminista surgiu em alguns países lutando por melhores
condições na sociedade, pelo direito de votar, por uma condição de trabalho mais digna e por lutarem pelo
direito de tomarem suas próprias decisões, independente do homem visto como o patriarca da família e da
sociedade. Na América Latina este movimento chega bem mais forte em meado dos anos 70. E, se tratando
especificamente do Brasil, vem aparecer com vigor nos anos 80, momento de decadência do regime militar e
com o início da luta pelas Diretas Já!
Em meados dos anos 2000 muitas discussões, fóruns, colóquios e encontros de lideranças dos movimentos
sociais que lutavam e ainda lutam pelos direitos das mulheres. Mas e o Homem onde ficava nesta situação?
Pelo que sabemos ficava onde sempre ficou, sem ter a oportunidade de discutir suas próprias questões,
estava totalmente esquecido no que diz respeito a seus anseios, vontades e questões, que não partissem de
uma proposta machista e honrosa.
Após este panorama podemos nos perguntar, mais uma vez: É necessário falar sobre a masculinidade nos
dias atuais? Acredito que sim, ainda mais quando fazemos um recorte, desta questão e levamos para as
periferias de São Paulo, locais estes que são habitados por pessoas que vieram de outros estados do país,
em especial dos estados nordestinos durante os anos 70. Porém, não são os únicos a viverem nestas regiões.

1 Margens entendida de uma forma geográfica, locais que ficam nas bordas de uma cidade, distante – ao mesmo tempo –
dos Centros Comerciais, assim como de outros centros como: Mercados, Hospitais, Centros Culturais e Artísticos.

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São Paulo é uma região que concentra um número enorme de pessoas que vieram de outros estados e até
mesmo países. Segundo o Censo do IBGE de 2010, a população do estado de São Paulo passa dos 41 milhões
de habitantes, entre homens, mulheres, crianças e idosos2. A capital da cidade passa a se aproximar de 10
milhões de habitantes, que estão espalhados pelos cinco cantos da cidade: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro3.
Muita gente em pouco espaço, quem dirá para discutir assuntos de masculinidade, ainda mais nas periferias.
Por questões culturais, sabemos que existem algumas correntes que colocam o homem sendo o centro
de tudo e, ao invés de citar o Antropocentrismo, irei utilizar o Homencentrismo como forma de expressar a
situação dos comportamentos que os Homens exercem na sociedade.4
Assim como as mulheres, os homens também possuem sentimentos, dores e angústias, mas falar sobre
estas questões parecem não ser papo para ‘homem macho’. Este é apenas um exemplo, onde encontramos
concretamente a fundamentação de que o homem deve ser o macho. Como exemplificado, não é por questões
ditas culturais que o machismo existe e está presente no planeta, existe um contrato social e político que
coloca em evidência este papel que, até hoje não sabemos quem a denominou e determinou para ser assim,
tem-se a certeza que o machismo está presente nos dias atuais e, extremamente, evidente nas rodas de
conversas masculinas cheias de ismos que conhecemos de praxe.
Para quebrar um pouco deste paradigma, ou reverter estes casos, falar sobre masculinidades é ultrapassar
os ditos papos de homens e pensar em questões simples do cotidiano. Desde as relações que existem com a
sociedade até os setores de produção industrial discussões referentes ao homem nunca abordou – de fato - o
comportamento do próprio ser, do seu próprio eu. Infelizmente, falar sobre identidades do homem ainda é
um tabu a ser quebrado, ainda mais quando o assunto é discutido nos locais mais extremos da cidade, onde
o hábito de discussão emerge apenas no dito popular: futebol, mulher, trabalho e etc...
Em algumas periferias da cidade de São Paulo se encontram alguns movimentos, pequenos e singelos –
talvez pela sua posição política e uma posição de militância que vai ao contrário do padrão existente – mas
que conseguem emergir das tempestades e situações desgastantes e encaram os problemas do cotidiano
dialogando entre eles, falando sobre questões que não são predominantemente conversas de mulheres.

2 Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/total_populacao_sao_paulo.pdf
3 Fonte: http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/sao-paulo-em-numeros
4 Antropocentrismo termo utilizado para situar a Humanidade como o centro das atenções, termo que vem da época do
Renascimento; Homencentrismo é um termo que estou colocando para identificar o papel do Homem na Sociedade, sendo
ele considerado – por mim – como fisicamente e sexualmente o ator principal das situações e do convívio humano.

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Outro dado que é relevante colocarmos em pauta é que ainda é muito pequena esta participação de homens
falando sobre homens nas periferias de São Paulo, além de toda a carga histórica e social que existe nos
moldes familiares e até religiosos, tenho a convicção que estas conversas provoquem um descontentamento
– para uns – e a oportunidade – para outros – de exporem suas ideias com relação às relações sociais, à
própria vida e também ao próprio ser.
Porém, muitos grupos culturais nunca obtiveram discussões que envolvessem este tema como pauta, ou até
mesmo ações no que diz respeito ao homem.
Infelizmente, como já dito acima esta discussão sobre masculinidades é reduzida na cidade de São Paulo.
Conseguimos encontrar grupos e coletivos em outras regiões do país, mas aqui ainda é pouco discutido ou
tem pouca visibilidade, talvez projetos como este do Inverso em Verso seja a porta entreaberta em nossa
cidade para se começar a pensar e a configurar uma questão tão importante para homens como para a
cidade em si.
Com toda esta questão acima abordada, tenho a convicção que, independente de denominações, movimentos,
questões, dúvidas e afins para determinar se é certo ou não levantar uma bandeira que apoia uma determinada
luta, devemos assumir que antes de qualquer coisa somos todos seres humanos, imperfeitos sim, ao extremo,
mas que não necessariamente a solução para resolver alguns problemas da sociedade e de convívios sociais
seja fecharmos em certas bolhas e aglomerarmos apenas pessoas que pensam como nós. Somos diversos
e diferentes por questões biológicas e culturais, mas a diminuição de preconceitos, pré-julgamentos de
comportamentos, de estilos e afins isto sim deve ser discutido e ampliado para além das esferas políticas e
principalmente das culturais, levando-se em conta que a diversidade e a garantia de direitos ocorrem quando
se constrói um debate amplo e aberto para e com a sociedade como um todo.
A resposta para tudo é inconcebível para nós, que somos seres inacabados e, ao mesmo tempo, fragilizados
pelas mazelas de pensamentos tradicionais e arbitrários que existem no mundo e olha que quem o criou
foram nós mesmos, infelizmente nós.

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TransHomem
ou TransHumano?
Por uma transcendência
dos gêneros
Leo Moreira Sá
Músico, ator, lighting designer
e ativista em defesa dos direitos
humanos das pessoas trans
(ABHT - Associação Brasileira
de Homens Trans)
“... se a existência precede a essência,
nada poderá jamais ser explicado por
referência a uma natureza humana
dada e definitiva; ou seja, não existe
determinismo, o homem é livre, o
homem é liberdade.”
Jean-Paul Sartre

D
esde que a antropóloga americana Margareth Mead lançou em, 1935, o livro “Sexo e temperamento”,
o “mundo dos homens” não foi mais o mesmo. A sua publicação implodiu o pilar principal que
sustentava a ideologia do patriarcado - o determinismo biológico que pregava que o sexo determinava
os comportamentos dos seres humanos. Nesse livro, Mead relata suas pesquisas com 3 tribos da Nova Guiné:
na primeira tribo, tanto homens quanto mulheres eram de temperamento pacífico e por contraste na segunda,
os dois gêneros já tinha uma atitude guerreira, não havendo muita diferença entre papéis sociais nessas duas
tribos; mas na terceira ela encontrou um modelo exatamente inverso ao nosso: os homens passavam a maior
parte do tempo a se ornamentarem para ficarem bonitos, enquanto as mulheres trabalhavam arduamente e
resolviam as questões práticas da comunidade. Esse livro provocou um escândalo na sociedade do começo do
sec.XX, provando que os comportamentos são socialmente produzidos, e levantou o debate sobre os gêneros
que deram início ao movimento feminista mundial . A antropóloga localiza ainda, em cada sociedade que
estudou, os “inadaptados”(pessoas transexuais?), isto é, as pessoas que não se conformam com os papéis
que lhes foram reservados, “o indivíduo para quem as ênfases mais importantes de sua sociedade parecem
absurdas, irreais, insustentáveis ou completamente erradas”. Logo depois Foucault irá afirmar que não
apenas os movimentos corporais são construídos socialmente e incutidos nos indivíduos, como também o
próprio corpo é construído politicamente e que nada existe anteriormente ou externamente ao discurso
humano, e que esse saber se constituí como uma relação de poder que designa, nomeia e confere sentido a
todas as coisas. Recentemente a pensadora contemporânea pós-feministas Judith Butler, que investiga os
processos pelos quais assumimos as performances de gênero que são construídas no interior dos aparelhos
ideológicos da nossa sociedade heteronormativa, e concluí que sexo e gênero não são a causa, mas sim a
consequência dos discursos e práticas culturais.

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Nesse contexto, é possível entender a experiência da transexualidade como uma falha no nosso sistema
cultural heteronormativo, que precisando se reproduzir e se impor permanentemente, exclui os
“inadaptados”e os rotula como doentes mentais através de um diagnóstico médico, baseado na matriz binária
heteroreprodutiva. A transexualidade, segundo Berenice Bento (2008), é a”dimensão identitária localizada no
gênero e se caracteriza pelos conflitos potenciais com as normas de gêneros à medida que as pessoas que a
vivem reinvindicam o reconhecimento social e legal do gênero diferente ao informado pelo sexo...”
Pensando agora no segmento específico de homens transexuais, quando reinvindicamos modificações
corporais e reconhecimento social e legal, estamos também, consciente ou inconcientemente, reinvindicando
a representação de um ideal de homem branco, heterossexual, possuidor do poder do “falo”. Em CONNELL,
Robert no livro W. Políticas da masculinidade: “masculinidade pode ser definida como a configuração de uma
prática de gênero que incorpora a resposta aceita ao problema de legitimidade do patriarcado, que garante
(ou se ocupa em garantir) a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres.” A masculinidade
hegemônica refere-se ao homem “normal, verdadeiro”,viril, não efeminado, ativo e dominante e aponta as
outras masculinidades como a gay e a transexual como subordinadas”.
De posse dessas informações, cabe a nós nos perguntarmos se queremos ser indivíduos diferenciados,
assumindo o papel de sujeitos no processo histórico de nossas vidas, ou cúmplices na manutenção das
relações de poder que regem a nossa sociedade. Me parece que a pergunta agora não é mais que tipo de
homem queremos ser, mas que ser humano pode surgir quando a experiência da transexualidade nos
apresenta esse momento único, onde podemos reconfigurar nossos corpos e nossas existências de uma
forma singular, que nos represente enquanto indivíduos e não seres reduzidos a conceitos e categorias que
mantém o status quo.
“A idéia de que o sujeito não é uma entidade preexistente, essencial, e que nossas identidades são construídas,
significa que as identidades podem ser reconstruídas sob formas que desafiem e subvertam as estruturas de
poder existentes” (Sara Salih in J.Butler e a Teoria Queer pg.23)

“Embora Leo Moreira Sá faça BIBLIOGRAFIA


parte da diretoria da ABHT, esse
texto é fruto de uma visão pessoal
e não representa a opinião dos MEAD, Margaret - SEXO E TEMPERAMENTO - Perspectiva/1969
outros membros da associação.” FOUCAULT, Michel -TRILOGIA DA HISTÓRIA DA SEXUALIDADE - Graal/ 2010
CONNELL, Robert W. - POLÍTICAS DA MASCULINIDADE - Educação e Realidade/1995
BENTO, Berenice - O QUE É TRANSEXUALIDADE - Brasiliense/2008
SALIH, Sara - JUDITH BUTLER E A TEORIA QUEER - Autêntica/2012
SARTRE, Jean-Paul - O SER E O NADA -Vozes/2005

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Gênero, masculinidades
e religião:
algumas considerações
Cesar Barbato
Estudante de teologia e pesquisador
nas áreas de religião, teologia e
sexualidades. É membro da REJU
(Rede Ecumênica da Juventude).
“Os meninos da minha escola me pareciam
bárbaros. Mas eram de uma barbárie que eu tinha
que achar civilizada; já sabiam que seus direitos
eram diviníssimos e que quem não tinha estes
direitos para sempre adquiridos merecia um
sacolejo de ombros, ou insultos com gargalhadas.
Tinham um conhecimento vasto sobre como roupas
e modos revelavam quem devia mandar e quem
devia se humilhar. No fundo, sabiam tudo: no fim
das contas valem apenas os músculos.”1

A
academia é um lugar muito interessante para se observar a maneira como as pessoas interagem
umas com as outras. Nesse espaço, homens e mulheres formam círculos de amizade e lá
compartilham experiências do seu cotidiano, trocam ideias, fazem piadas. Todos os tipos de conversa
rolam entre os intervalos das séries de exercício. Entre as mulheres, já escutei sobre dicas de beleza, elogio a
um determinado cabeleireiro, problemas com os filhos até comentários sobre uma viagem recente. Entre os
homens, temas típicos como o placar do ultimo jogo de futebol, as vantagens do carro X, custo de vida , elogios
aos corpos de algumas mulheres daquele local e até a performance sexual do último encontro.
Além de um espaço de sociabilidade, a academia é um espaço de produção de corpos com um determinado
tamanho e formato. O desejo de possuir essas características é transmitido pelos diversos meios de
comunicação, sejam revistas de beleza ou programas na televisão. Embora as mulheres sejam o principal
alvo da indústria cosmética, das inúmeras dietas, das últimas tendências da moda e suas infinitas exigências,
gostaria de olhar mais atentamente para os homens, a maneira que se comportam, tratam a si e aos outros
e como tudo isso revela os padrões de masculinidade hegemônicos em sociedade. Mas o que a religião tem
a ver com isso? É o que veremos seguir.

1 BENSUSAN, Hilan. Comunista, poemas. Campinas : editora Komedi, 2005. p.44

25
O homem-macho, forte e bem-sucedido
Embora os freqüentadores de uma academia sejam os mais diversos, é comum encontrar um tipo de homem.
Esse homem é ‘bombado’, sério, de poucas palavras, focado em suas séries, circula com o peito estufado, não
olha para os lados e quando conversa, geralmente é com outros homens que compartilham do mesmo perfil.
Mas em que momentos esses homens aprendem a se portar dessa maneira? Quais são as referências/
matrizes que moldam esse estilo de ser? Ninguém nasce se comportando dessa maneira, tudo é aprendido.
A filósofa Simone de Beauvoir, ao falar sobre o processo de educação das mulheres, diz que ninguém
nasce mulher: torna-se mulher2 , da mesma forma os pequenos homens aprendem, desde muito cedo, as
características ‘adequadas’ do masculino. Como foi dito no poema acima, os meninos desde a tenra infância
aprendem a identificar aquilo que os distingue como homens e os privilégios advindos dessa condição.
A internalização de um modelo universal do “que é ser homem” afeta significativamente as relações
e disparidades de gênero. Por gênero, entende-se os papéis socialmente construídos a partir do sexo
biológico.3 Aos homens são atribuídos determinadas qualidades como a racionalidade, a força, a liderança e
às mulheres o sentimento, a amabilidade, o cuidado. Assim, infelizmente, não é de se estranhar que muitos
homens enxerguem as mulheres como mais fracas e não totalmente qualificadas para assumir determinadas
posições. Até mesmo em seus relacionamentos amorosos, os homens são ensinados a terem controle sobre
as ‘virtudes femininas’. 4
Porém, esse modelo de ‘ser homem’ é destrutivo e tem causado sérios problemas nas nossas relações
com os/as outros/as e com o meio ambiente. O modelo hierárquico patriarcal afeta a todos, inclusive os
próprios homens. Pois não basta ser homem, existem características que compõem o “modelo ideal”: ele
é heterosexual, branco, casado, pai, bem-sucedido profissionalmente, provedor, vitorioso, pouca expressão
afetiva, nada que sugira feminilidade, ser agressivo quando necessário. 5 Assim, homens negros, de classe
social baixa, não-heterossexuais e efeminados também sofrem na pele as conseqüências do sistema opressor
patriarcal.

2 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 9-10.
3 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a analise histórica. Educação e realidade. 16 (2). Porto Alegre, v. 16, n.2, p. 5-22, 1990.
4 GROSSI, Miriam Pillar. Masculinidades: uma revisão teórica. In: Mandrágora, 12. São Bernardo do Campo, n.12, 2006. p.28
5 SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo – e é corpo de homem. In: À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade.
São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, CEBI, Sinodal, 2004. p. 189

27
Religião e masculinidades
Mas o que a religião tem a ver com tudo isso? O antropólogo Clifford Geertz, afirma que a religião é “um
sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações
nos homens [sic] através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral, vestindo essas concepções
com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.”6
O que ele quer dizer é que a religião tem o poder de criar nos seres humanos a ideia de que uma determinada
realidade é de tal maneira porque foi divinamente instaurada assim. Por exemplo, que os homens e as
mulheres possuem determinadas qualidades porque Deus os fez assim. Porém, um aspecto importante a
ser mencionado é que a religião também é uma construção humana, logo ela está suscetível aos aspectos
culturais de sua origem e as religiões em sua maioria sempre estiveram sob a dominação masculina.7
No Cristianismo, praticamente todas as imagens que temos de Deus são masculinas e isso tem implicações
sociais. Quando o divino é masculino, no imaginário social o masculino também é divinizado.8 Dessa forma, as
mulheres ocupam um lugar secundário e não de igualdade em relação aos homens.
Numa cultura católica, como a brasileira, na qual crescemos ouvindo que a Bíblia é uma referência de vida ao
ouvirmos o relato de Adão e Eva, sempre pensamos na mulher que se deixou levar pela conversa da serpente
e levou o homem a queda. Ou mesmo na história de Davi, somos ensinados que Bate-Seba levou o rei ao
adultério enquanto tomava banho ao ar livre.9 Foram as teólogas feministas que ousaram fazer novas leituras
dos textos bíblicos, não mais a partir de uma ótica androcêntrica e culpabilizante da mulher, mas a partir de
uma leitura que promovesse a igualdade e justiça nas relações entre homens e mulheres.
Embora vivamos numa sociedade secularizada, onde a religião tem cada vez menos a última palavra, a vida
de homens e mulheres na nossa cultura estão influenciados pela religião, isso em toda a América Latina, e
principalmente num país como Brasil, o país com a maior população católica do mundo.

6 GEERTZ, Clifford. . A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 323 p.
7 GEBARA, Ivone. O que é teologia feminista. São Paulo: Brasiliense. 2007. p.27-32
8 JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino. Petrópolis: Vozes, 1995. p.37
9 Essa história pode ser lida em II Samuel 11

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Para pensar e provocar...
No começo desse texto havia descrito como as academias são espaços de reprodução
dos estereótipos transmitidos a nós pelos diversos meios de comunicação. Nesse espaço,
não somente o visual transmite os padrões impostos, mas pelo comportamento e conversas
podemos perceber como homens e mulheres percebem a si e aos outros. Porém a academia,
originalmente deveria ser um espaço para manutenção da saúde e bem-estar.
Embora as religiões tenham sido dominadas pelo sistema patriarcal e reforçado os papéis socialmente
construídos de gênero, onde os homens continuam a ter uma série de privilégios, as religiões também podem
ter um grande potencial criativo para a superação das diversas desigualdades e formas de preconceito como
o racismo, o sexismo, a homofobia, a xenofobia, o classismo e etc. Há várias redes ecumênicas engajadas no
diálogo para superação destas, como a REJU (Rede Ecumênica da Juventude), Rede FALE, Católicas pelo Direito
de Decidir, entre outras.
Assim, acredito que é possível pensar em novas masculinidades, isto é, em formas alternativas, diferentes e mais
justas de ser homem. Acredito também que nesse processo a religião tem um papel fundamental, por exemplo,
na promoção de valores, apoiando uma educação diferenciada e crítica ao sistema patriarcal e capitalista e na
formação de consciências. As comunidades religiosas podem ser espaços de educação transformadora quando
inseridas na realidade do mundo e comprometidas com a transformação social.
Grandes personalidades que fizeram/fazem a diferença em seu tempo eram também comprometidas
com sua fé: Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá, Marina Silva entre
outros/as.
Que ao olharmos para trás e ouvirmos as vozes de pessoas como essas, possamos nos
engajar pela mudança de paradigmas que parecem ser tão rígidos, mas que sempre
são passíveis de mudança. Que a justiça, a igualdade e o bem-estar em sociedade
sejam as diretrizes dos relacionamentos que construímos ente os homens
e as mulheres, com nossas famílias, amigos/as, colegas de
trabalho. Homens e mulheres juntos para construção de
um mundo mais fraterno e solidário.
Agradecimentos

Este trabalho só foi possível graças às pessoas que acreditaram na


possibilidade de formação desse coletivo e nos deram força para
esta realização. Para nós, é de fundamental importância contribuir
para transformar o Brasil num país mais justo.
Também agradecemos as pessoas e representantes de coletivos que
fizeram parte das rodas de conversa e que foram fundamentais para
a realização desta publicação. Nosso agradecimento também a toda
a equipe de trabalho, que se dedicou para tornar real este trabalho
singelo, mas que envolveu muitas pessoas.
E por fim, nosso agradecimento ecumênico, lembrando que o
respeito à diversidade é um preceito fundamental deste coletivo - a
Shiva, Deus, Buda, aos Orixás que estão em nossos caminhos, e nos
deram força para alcançar nossas metas. E também aos membros
que são ateus, que acreditaram na realização desta obra.
Marcelo Morais
Patrocínio: Parceiros:

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