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Aspectos socioculturais relacionados ao uso de medicamentos

1.Qual a relação entre cultura e medicamentos e a formação do farmacêutico


As últimas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia vem
reforçando a necessidade dos currículos propiciarem, além de uma sólida formação nos campos
técnico e científico, um desenvolvimento mais humanista com a capacidade de refletir sobre
aspectos sociais, culturais e econômicos da sociedade (BRASI, 2017). Isso, sobretudo, diante do
desafio da integralidade da atenção a saúde, contemplando todos os aspectos biológicos e sociais
do ser humano.
Vários fatores podem influenciar o uso de medicamentos, tais como poder econômico, nível
de instrução, aspectos sociais e culturais. Dentre esses, destaca-se os fatores culturais pois são
fundamentais para entender como os sujeitos lidam com as doenças e as formas como as tratam,
incluindo o uso de medicamentos (DIEHL & LANGDON, 2016).
-O que é cultura?
-O que é o medicamento em uma cultura?
-Como é processo de enculturação do uso de medicamentos?
-Qual o papel do farmacêutico nesse processo de enculturação?

De acordo com Diehl & Langdon (2016), o conceito de cultura se refere a todo
conhecimento dos indivíduos de um determinado local, seus valores, símbolos, regras, costumes e
práticas, que são necessários para sua convivência social. A cultura é um campo de estudo da
antropologia, mas tem grande importância para as ciências farmacêuticas na medida em que
influencia as escolhas das formas de tratamento e uso de medicamentos. Dessa forma, fatores
culturais são fundamentais na experiência da doença e nas decisões que a pessoa toma quando
se trata de sua medicação.
Importante notar que a cultura é aprendida pelas pessoas, num processo chamado de
enculturação, e confere aos sujeitos uma visão particular de mundo. De acordo com a teoria
interpretaria de Geertz (1989), essa visão de mundo não é algo estanque e fixa, mas dinâmica,
uma vez que a cultura se expressa na interação social, quando os atores comunicam e negociam
os significados.

Portanto, a cultura não é uma coisa dada. Não é mais possível afirmar que a cultura impede o
outro de entender a nossa medicina ou é um obstáculo a ser superado por meio de programas
de educação em saúde. Cultura é um sistema de símbolos fluidos e, podemos dizer, abertos à
reinterpretação, ou seja, há a possibilidade de as pessoas criarem novos significados (DIEHL &
LANGDON, 2016, pag. 120).
Essa visão de cultura como algo em construção, pensando-se no uso dos medicamentos,
traz o desafio ao farmacêutico de promover a interação com indivíduos, exercitando o respeito às
diferentes visões de mundo no sentido de promover consensos e mudanças de hábitos. Isso
demanda do farmacêutico:
 postura relativista frente a um cultura dos pacientes, buscando compreender suas
lógicas e percepções frente a doença e uso dos medicamentos. Essa postura se
contrapõe a uma postura etnocêntrica, pautada exclusivamente na racionalidade
biomédica, que desqualifica as concepções culturais trazidas pelos sujeitos;
 escuta ativa e abertura ao diálogo, em busca de um análise crítica da realidade
sobre as melhores formas de uso e escolha dos medicamentos;
 disposição, abertura e proatividade para buscar soluções que se adequem as
realidades e necessidades trazidas pelos pacientes. Como por exemplo, ao
investigar possíveis interações medicamentosas ou influência dos hábitos de vida na
forma como os indivíduos usam os medicamento.

2. Descrição do caso

A discussão sobre as relações entre aspectos socioculturais e o uso de


medicamentos nos orientam para uma melhor compreensão e orientação na tomada de
atitude, como farmacêuticos, na situação descrita abaixo.
Dona Simone é uma senhora de 75 anos que mora com seu esposo. Ela faz
tratamento para hipertensão arterial, diabetes e hipercolesterolemia (colesterol alto) para os
quais usa: captopril 25 mg (2x/dia), metformina 850 mg (3x/dia) e sinvastatina 20 mg (1x/dia).
Além disso, ela não abre mão de utilizar todos os dias alguns chás como chá verde, chá
preto, barbatimão e carqueja. Mesmo utilizando os medicamentos, ela relata que a pressão
não está controlada e às vezes sente a visão escurecida.

3. Problematização do caso e possibilidades de intervenção do farmacêutico no caso

Diante do relato, a lógica pautada exclusivamente na racionalidade biomédica nos


induziria a orientar Dona Simone a suspender o uso dos chás, pois as plantas citadas
possuem princípios ativos que podem sofrer interações com os medicamentos que ela já
utiliza. Essas interações podem potencializar a ação, provocar a perda de efeitos por ações
opostas, ou ainda, a alterar a absorção, transformação no organismo ou a excreção de outros
medicamentos (CARDOSO et al., 2013). Nesse sentido, por exemplo, o chá verde - Camellia
sinensis (L.) O. Kuntz – tem efeito conhecido como hipertensora (CARDOSO et al., 2013),
enquanto a Carqueja - Baccharis trimera (Less.) DC - pode ter efeito contrário, podendo
ocorrer sinergismo e elevar o efeito dos anti-hipertensivos (KARAM et al., 2013).
No entanto, a partir da perspectiva antropológica de uso dos medicamentos, o
farmacêutico é convidado estabelecer uma relação de diálogo e confiança com o paciente,
por meio do: acolhimento na farmácia, identificando suas necessidades e objetivos naquele
espaço a partir de uma escuta ativa; ser empático, estabelecendo uma relação sem
julgamentos prévios e preconceitos ou posturas autoritárias e normativas; aconselhamento
assertivo, pautando-se nos conhecimentos técnicos, mas também na realidade, hábitos e
experiências prévias do paciente com doenças e medicações (POSSAMAI & DACOREGGIO,
2007).
Especificamente no caso relatado, seria importante compreender através de uma
escuta ativa: identificar desde quando a paciente utiliza essas plantas; com quem aprendeu a
usá-las; quem mais faz o uso dessas plantas em sua residência; como obtém as plantas para
fazer os chás; como é o seu preparo, suas técnicas e rituais relacionados; e quais benefícios
ela julga obter através da sua utilização. Levantar esses conhecimentos e práticas, dando voz
aos sujeitos é um dos primeiros passos para um acolhimento e propicia o estabelecimento de
vínculos de confiança. Além disso, a partir desse levantamento, o farmacêutico poderá fazer
intervenções contextualizadas discutindo as formas diferentes do preparo de chás (por
exemplo, infusão, decocção, maceração) para cada planta, a importância do uso de matérias
primas de qualidade para os chás e também sobre os riscos de uma planta interferir na ação
medicinal da outra ou mesmo dos medicamentos usadas por ela.
Dessa forma, pode-se se estabelecer uma relação de respeito em que seja possível
construir um consenso sobre mudanças nos hábitos da paciente, como a supressão de
alguns chás ou redução no seu consumo, objetivando solucionar os problemas relatados por
ela (hipertensão e visão escurecida). Esses resultados podem ser obtidos graças a uma
concepção de cultura como um a dimensão humana dinâmica (Geertz, 1989), em que as
decisões tomadas por uma pessoa com relação aos seus problemas de saúde modificam a
medida que a doença evoluiu, mas principalmente através das interações com outras
pessoas, incluindo profissionais de saúde.

Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação
Superior. Resolução nº 6, de 19 de outubro de 2017. Institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia e dá outras providencias. Diário Oficial da
União, Brasília, 20 de outubro de 2017, Seção 1, p. 30. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/docman/outubro-2017-pdf/74371- -rces006-17-pdf/file>, Acesso em
21/06/2020.
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da Saúde, Contendo Informações sobre Interações Medicamentosas envolvendo
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DIEHL, E. E.; LANGDON, E. J. . Contexto sociocultural do uso de medicamentos. In: Luciano
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GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
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POSSAMAI, Fabricio Pagani; DACOREGGIO, Marlete dos Santos. A habilidade de
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