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O conceito de serviço público e as

transformações do Estado contemporâneo

Andrea Nárriman Cezne

Sumário
1. Introdução. 2. Noção de serviço público
no direito brasileiro. 3. Conceito de serviço
público no direito francês. 4. As transforma-
ções no papel do Estado contemporâneo e o
Estado brasileiro. 4.1. As privatizações no Bra-
sil e seus reflexos no direito administrativo.
4.2. Observações sobre os serviços de interesse
público. 5. Conclusão.

1. Introdução
O presente trabalho busca realizar uma
discussão sobre o conceito de serviço públi-
co, a partir da perspectiva de análise das
transformações do papel do Estado e de suas
características, mudanças essas acentuadas
a partir do fim do século XX, com a crise do
Estado de Bem–Estar Social. Conforme Bucci
(2002, p. 1):
“Com a grande crise econômica mun-
dial dos anos 70, após os dois cho-
ques do petróleo, em 1973 e 1977, e o
rompimento do sistema de equilíbrio
cambial formulado pelo Acordo de
Bretton-Woods, que definira a confi-
guração do cenário político-econômi-
co internacional durante a Guerra
Fria, em 1979, encerrava-se um ciclo
da vida político-econômica no mun-
do e junto com ele a era de ouro que se
seguiu ao fim da Segunda Guerra
Andrea Nárriman Cezne é Doutoranda no
Programa de Pós-graduação em Direito da Mundial. O Estado de bem-estar soci-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul al fora implementado com os exceden-
(PPGD-UFRGS). Professora do Centro Univer- tes de produção desse período, prove-
sitário Franciscano – UNIFRA (Santa Maria, RS). dor de direitos sociais numa fase de
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crescimento da economia capitalista as privatizações, corporificando a abertura
no mundo (...). Fosse pela súbita alte- de vários setores, como o de serviços essen-
ração da dinâmica financeira, ou pela ciais e de redes de suporte a esses serviços
incapacidade das instituições de (exemplificados pelo setor de telefonia e pe-
adaptar-se ao acelerado ritmo de las redes de transmissão de energia elétri-
transformação social e econômica, não ca), antes totalmente fechados à iniciativa
era mais possível manter a equação privada em geral, ou a empresas estrangei-
que relacionava economia, política e ras. Obviamente, esse processo exigiu a cri-
direitos nos mesmos termos que no pe- ação de todo um aparato normativo diferen-
ríodo dos trinta anos do pós-guerra”. ciado, a fim de regulamentar esses serviços,
Como resposta a essa crise, foi elabora- garantindo a manutenção de sua prestação
do um conjunto de reformas, tanto no pró- de acordo com os pressupostos basilares do
prio aparato estatal, como na retirada de di- sistema, como a continuidade e universali-
reitos sociais e modificação da atuação es- dade do serviço público.
tatal ligada a esses direitos. As reformas en- Destarte, essa reformulação do aparato
fatizaram especialmente a necessidade de estatal e sua concretização por meio de um
redução do papel do Estado como interven- novo complexo normativo refletiram-se em
tor sobre as relações econômicas e sociais, todo o campo do direito administrativo, e
propagando que a atuação do mercado se- passou a exigir um novo modelo conceitual
ria sempre mais eficiente que a ação estatal, doutrinário que pudesse apreender essas
e mais, que a sociedade necessitaria de uma realidades, contextualizá-las e modificar
maior participação na vida pública, domi- conceitos já arraigados no campo doutriná-
nada inteiramente pela figura de um Esta- rio. Malgrado a discussão perene existente
do paternalista e ultradimensionado. sobre a definição de serviço público, e a di-
Conforme já exposto, portanto, a crise do vergência doutrinária sobre os critérios uti-
modelo do Welfare State refletiu-se na ins- lizados para defini-lo, pode-se dizer que a
tauração de uma série de reformas na Euro- reformulação do aparato estatal é o aconte-
pa e Estados Unidos, posteriormente impor- cimento mais relevante do direito adminis-
tadas pelos países semiperiféricos e perifé- trativo dos últimos anos e que, nesse con-
ricos desejosos de modernizar seu aparato texto, torna-se especialmente relevante a re-
estatal, a fim de atrair maiores investimen- flexão sobre o conceito de serviço público.
tos estrangeiros e buscar crédito no Fundo A fim de realizar essa discussão, inves-
Monetário Internacional (FMI) e, para tan- tigaram-se as linhas básicas da doutrina
to, as reformas foram realizadas segundo brasileira, para formular um conceito inici-
os critérios estabelecidos pelo mesmo para al, e partiu-se em busca da origem dos con-
adequação econômica. O maior objetivo des- ceitos criados pelo modelo francês, já que
ta era a renegociação da dívida pública, vi- este foi o grande inspirador do modelo ad-
sando realizar o pagamento de suas dívi- ministrativo brasileiro. Relembrados alguns
das externas a longo prazo. Foi atingido por conceitos básicos sobre serviço público, al-
essas reformas o cerne do aparato estatal, gumas questões referentes à modificação do
especialmente as áreas sociais, como a área papel do Estado foram referidas, como a
previdenciária e trabalhista, e também a questão das privatizações, da nova relação
área tributária foi reformulada. Nesse senti- do Estado com entes públicos não-estatais,
do, a readequação do direito administrati- e a proposta de um novo modelo relacional
vo, em especial do regime jurídico dos servi- entre Estado e sociedade civil, a partir da
ços públicos representava um importante utilização de princípios como o da subsidi-
passo estratégico. Somente com a reformu- ariedade da atuação estatal. Por fim, procu-
lação desse regime puderam ser realizadas rou-se brevemente tratar de confluir todos

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os temas trabalhados, tratando das trans- lação com os Estados onde se situam
formações do papel do Estado no limiar do os potenciais energéticos;
século XXI e sua influência na conceitua- c) a navegação aérea, aeroespacial
ção de serviço público. e a infra-estrutura aeroportuária;
Ressalta-se aqui que o presente trabalho d) os serviços de transporte ferro-
não pretendeu aprofundar nenhum dos te- viário e aquaviário entre portos brasi-
mas referidos, mas criar uma teia conceitu- leiros e fronteiras nacionais, e os limi-
al, cujo número de questões é muito maior tes de Estado ou Território;
que o de respostas. Afinal, os problemas e) os serviços de transporte rodo-
apresentados encontram-se em discussão e viário interestadual e internacional de
evolução, e não se pretende vê-los estabili- passageiros;
zados em curto prazo. Mais do que isso, tal- f) os portos marítimos, fluviais e
vez seja necessário que se abandone a bus- lacustres;
ca de certeza e estabilidade, tão caros ao ju- XV – organizar e manter os servi-
rista, em um mundo complexo e mutável. ços oficiais de estatística, geografia,
Procuraram-se aqui dividir algumas das geologia e cartografia de âmbito naci-
perplexidades causadas por esse admirá- onal;
vel mundo novo, perplexidades essas rela- XXII – executar os serviços de po-
cionadas às mutações ocorridas em um ente lícia marítima, aeroportuária e de fron-
tão caro aos publicistas: o Estado. teiras;
XXIII – explorar os serviços e ins-
2. Noção de serviço público talações nucleares de qualquer natu-
no direito brasileiro reza e exercer monopólio estatal so-
bre a pesquisa, a lavra, o enriqueci-
Inicialmente, deve-se buscar conceituar mento e reprocessamento, a industri-
a partir da máxima norma positivada do alização e o comércio de minérios nu-
ordenamento jurídico, a Constituição. cleares e seus derivados, atendidos os
Referindo-se aos serviços públicos, o seguintes princípios e condições:
arrolamento dos mesmos se encontra a) toda atividade nuclear em terri-
presente nos artigos 21. In verbis: tório nacional somente será admitida
Art. 21. Compete à União: (...) para fins pacíficos e mediante apro-
X – manter o serviço postal e o cor- vação do Congresso Nacional;
reio aéreo nacional; b) sob regime de concessão ou per-
XI – explorar, diretamente ou me- missão, é autorizada a utilização de
diante autorização, concessão ou per- radioisótopos para a pesquisa e usos
missão, os serviços de telecomunica- medicinais, agrícolas, industriais e
ções, nos termos da lei, que disporá atividades análogas;
sobre a organização dos serviços, a c) a responsabilidade civil por da-
criação de um órgão regulador e ou- nos nucleares prescinde de culpa;
tros aspectos institucionais; Art. 25, § 2 o: Cabe aos Estados ex-
XII – explorar, diretamente ou me- plorar diretamente, ou mediante con-
diante autorização, concessão ou per- cessão, os serviços locais de gás cana-
missão: lizado, na forma da lei, vedada a edi-
a) os serviços de radiodifusão so- ção de medida provisória para a sua
nora e de sons e imagens; regulamentação.
b) os serviços e instalações de ener- O artigo 173 disciplina o exercício de ati-
gia elétrica e o aproveitamento ener- vidade econômica pelo ente estatal, ou seja,
gético dos cursos de água, em articu- os limites para a intervenção direta do Esta-

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do na economia, conforme exposto no caput conceitos mistos. Geralmente, três grandes
do referido artigo: “Ressalvados os casos critérios são utilizados, herança da doutri-
previstos nessa Constituição, a exploração na francesa (Cf. MESCHERIAKOFF apud
direta de atividade econômica pelo Estado JUSTEN, 2003, p. 60): 1) o critério orgânico,
só será permitida quando necessária aos que distingue a atividade pela presença do
imperativos da segurança nacional ou a re- ente público na prestação do serviço; 2) o
levante interesse coletivo, conforme defini- critério material, ou seja, de ser a prestação
dos em lei”. Ainda na ordem econômica, o destinada ao povo, de interesse coletivo; e
artigo 177 traz as atividades específicas que 3) o critério formal, ligado à submissão ao
eram de monopólio da União, mas que, a regime jurídico de direito público.
partir da Emenda Constitucional n o 9, pas- No sentido do problema da escolha entre
saram a poder ser realizadas por empresas os critérios apontados, Lúcia Valle Figueredo
estatais e privadas, mediante condições es- (2003, p. 75) refere a existência de grandes
tabelecidas em lei específica. Somente se divergências na doutrina, a respeito da con-
manteve como monopólio o previsto no in- veniência da aplicação de um dos critérios,
ciso V (a pesquisa, a lavra, o enriquecimen- e sobre qual deles seria o correto, ou se mais
to, o reprocessamento, a industrialização e adequada seria a utilização de vários crité-
o comércio de minérios e minerais nuclea- rios. Critica a aplicação de um critério uni-
res e seus derivados). Também os artigos camente orgânico, uma vez que o serviço não
196, 199, 203, 204, 205 e 209 tratam de servi- deixará de ser público se exercido por pes-
ços, estes de interesse público (saúde e edu- soa jurídica de direito privado. No seu en-
cação) que são prestados pelo Estado junta- tender, o regime jurídico aplicável é o crité-
mente com a iniciativa privada, devendo ser rio mais adequado, uma vez que se exige
fiscalizados pelo poder público. que a atividade prestada esteja submetida
Buscando uma compreensão ampla do ao regime de direito público, a exemplo das
fenômeno, serviço público abrangeria toda permissionárias ou concessionárias de ser-
e qualquer prestação estatal, incluindo des- viços públicos, nos termos da Lei 8.997/95.
de as atividades essenciais do Estado, como O conceito aqui utilizado conjuga vários
a jurisdição e segurança pública, até ativi- critérios (FIGUEREDO, 2003, p. 78-79):
dades econômicas em que haja atividade “Serviço público é toda atividade
estatal (Cf. MARQUES NETO, 2002, p. 18). material fornecida pelo Estado, ou por
Poder-se-ia questionar aqui a utilidade de quem esteja a agir no exercício da fun-
um conceito tão amplo, e se a busca for por ção administrativa se houver permissão
uma conceituação mais exata e estrita, será constitucional e legal para isso, com o
necessário definir sob quais critérios esta fim de implementação de deveres
será feita. consagrados constitucionalmente rela-
Uma conceituação adequada de serviço cionados à utilidade pública, que deve
público envolve delimitar entre atividades ser concretizada, sob regime prevalen-
diversas características comuns que possam te de Direito Público”.
ser diferenciadas de outras atividades (eco- Como critérios de verificação do concei-
nômicas ou não). A eleição de critérios pela to, poder-se-ia utilizar a competência cons-
doutrina varia em um amplo espectro: de titucionalmente prevista (acima elencada),
conceitos estritamente formais (consideran- e, dessa forma, traçar um quadro geral, no
do o regime jurídico dessas atividades) a qual se distinguem: 1 – serviços públicos
conceitos materiais (buscando característi- (aqueles elencados pelos artigos 21 e 25,
cas próprias da atividade em si que a dife- supra citados); 2 – atividades de interesse
renciem, independentemente do tratamen- público (como saúde e educação) que po-
to jurídico), passando pela utilização de dem ser exercidas tanto sob regime público

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como sob regime privado; 3 – atividades de Ainda sobre a questão dos critérios, ob-
intervenção do Estado na economia, ou seja, serve-se que o critério puramente orgânico
de exercício de atividades econômicas stricto não pode ser incorporado como absoluto,
sensu pelo Estado; e 4 – exercício de ativida- porque o Estado pode explorar atividades
de econômica pela iniciativa privada. Aqui pertencentes ao campo da atividade econô-
não se estabelece uma distinção apriorísti- mica em sentido estrito (a exemplo das ati-
ca entre serviço público e atividade econô- vidades do art. 177 da CF/88). Outrossim, a
mica lato sensu, mas, a partir do gênero ativi- adoção de um critério puramente formalis-
dade econômica, estabelecem-se quatro es- ta resultaria em problemas. A mera atribui-
pécies: uma atividade privada, que é a regu- ção de determinada competência ao Estado
lar, e três outras atividades públicas, que não transforma a atividade em serviço pú-
são excepcionais, entre as quais estão elen- blico, reconhecendo-se, portanto, que o le-
cados os serviços públicos (Cf. MOREIRA gislador não pode fixar arbitrariamente o
NETO apud FIGUEREDO, 2003, p. 80). Con- que seja serviço público. Se houvesse a con-
clui-se que mesmo a atividade econômica sagração somente do critério do regime jurí-
cometida ao Estado como um serviço públi- dico aplicável à atividade, estar-se-ia vio-
co é ainda vocacionada à colaboração do lando a Constituição, que traz também um
setor privado, pois não perderia sua carac- critério material de identificação, referente
terização como atividade lucrativa. à atividade específica (Cf. GRAU, 2001).
Também Eros Roberto Grau distingue o De acordo com Couto e Silva (2002, p.
gênero – atividade econômica – apresentan- 47), dos três requisitos anteriormente exigi-
do como espécies a atividade econômica dos na conformação de serviço público, ou
stricto sensu e o serviço público. Nem toda a seja, 1) ser o serviço de interesse geral (ou
atividade exercida pelo Estado representa- utilidade pública), 2) ser prestado pelo Es-
rá necessariamente serviço público, visto tado e 3) sob regime especial de direito pú-
que é possível a intervenção do Estado no blico, somente sobreviveu o interesse geral
campo econômico stricto sensu. A definição do serviço, e os outros dois critérios já sofre-
do autor de serviço público é a seguinte: ram enormes modificações. Observa que, na
“(...) é o tipo de atividade econômica recente doutrina francesa, “a concepção
cujo desenvolvimento compete prefe- mais moderna é de que o regime jurídico é
rencialmente ao setor público. Não ‘ex- totalmente irrelevante para a caracterização
clusivamente’ – note-se –, visto que o dos serviços públicos. Estes se definem ape-
setor privado presta serviço público nas pelo fim de interesse geral que perse-
em regime de concessão ou permissão. guem e o vínculo orgânico, direto ou indire-
Desde aí poder-se-á também afirmar to, com o Estado”.
que o serviço público está para o setor É pertinente aqui indagar sobre a apli-
público assim como a atividade econô- cação do critério formal como decisivo, que
mica está para o setor privado”. tem como um de seus defensores mais sig-
(GRAU, 2001, p. 250). nificativos na doutrina brasileira Celso
A distinção baseia-se na idéia segundo a Antonio Bandeira de Mello (1998, p. 433).
qual serviços públicos privativos seriam De acordo com o mesmo, o elemento formal
aqueles cujo exercício somente poderia se (o regime de Direito Público) seria essenci-
dar por meio de regime de concessão. Grau al, pois de outra forma o conceito do que
elenca como serviços públicos não-privativos seja serviço público não seria mais um con-
a saúde e a educação, agrupando-os como ceito útil:
atividades que têm por substrato atividade “Serviço público é toda atividade
econômica, podendo tanto ser desenvolvidas de oferecimento de utilidade ou como-
pelo Estado como pela iniciativa privada. didade material fruível diretamente

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pelos administrados, prestado pelo Verdadeiramente, coloca-se a qualifica-
Estado ou por quem lhe faça as vezes, ção como serviço público sob a vontade do
sob um regime de Direito Público – por- legislador, já que não há limites substanci-
tanto, consagrador de prerrogativas ais na Carta Magna, e a identificação so-
de supremacia e restrições especiais – mente se dará pelo regime jurídico aplicá-
instituído pelo Estado em favor dos in- vel. A própria utilidade de um conceito de
teresses que houver definido como própri- serviço público, que termina por se colocar
os no sistema normativo”. à mercê do critério subjetivo da “vontade do
Somente o critério formal seria de algu- legislador”, passa a ser questionável. Tor-
ma utilidade juridicamente, pois, se utiliza- na-se, portanto, problemática essa noção de
do o conceito material, baseado na presta- serviço público, mormente os avanços ocor-
ção de uma utilidade ou comodidade fruí- ridos no campo do Direito Administrativo,
vel pelo administrado, não haveria forma que há muito já abandonou a vinculação de
de controlar, delimitar claramente o que se- serviço público unicamente ao regime jurí-
ria serviço público ou não (Cf. MELLO, dico de direito público. Trazem-se à cola-
1998). Seria insuficiente para uma defini- ção, nesse sentido, as críticas traçadas por
ção jurídica porque poderia supostamente Almiro do Couto e Silva (2002, p. 47):
existir o substrato material sem a noção ju- “O que, com todo o respeito, não
rídica de serviço público propriamente, nes- me parece aceitável, por destoante da
se caso classificando-se a atividade, confor- realidade do nosso tempo e até mes-
me o autor, como serviço governamental. mo do ordenamento jurídico brasilei-
Bandeira de Mello também diferencia servi- ro, é a bem conhecida posição de Celso
ços públicos e exploração estatal de ativi- Antônio Bandeira de Mello, que só
dade econômica, tratando esta última como considera serviço público o que seja
atividade desempenhada basicamente sob prestado sob regime de direito públi-
regime de Direito Privado, e mais, relacio- co. Isso implica dizer que só os servi-
nando-a diretamente à atividade própria ços administrativos são serviços pú-
dos particulares. A distinção estaria já cla- blicos, expelindo-se do conceito os de
ra no próprio artigo 173 da Constituição natureza industrial e comercial, que,
Federal de 1988, ao dispor sobre o exercício por subordinados a regime predomi-
de atividade econômica pelo Estado somen- nante de direito privado, seriam clas-
te em casos excepcionais (imperativos da se- sificados, se bem compreendo o pen-
gurança nacional ou interesse público rele- samento do ilustre mestre paulista,
vante), visto que as atividades seriam natu- como ‘serviços governamentais’
ralmente vocacionadas à iniciativa priva- (MELLO, 2001, p. 602). Tais serviços,
da. Nesse caso, não se trataria de serviço embora presente o vínculo orgânico
público, mas de serviço governamental. com o Estado e conquanto prestados
Mais do que isso, na verdade, o Estado no interesse geral, não seriam servi-
poderia qualificar qualquer atividade como ços públicos. Mas que natureza teri-
serviço público, colocando-a ao abrigo do am? Seriam atividades puramente eco-
regime de direito público, desde que respei- nômicas do Estado, em tudo igual a que
tasse os limites traçados pela Constituição. indivíduos desempenharam? Como
Entretanto, o próprio autor reconhece que a explicar as regras constitucionais que
CF/88 não definiu o que seja atividade eco- as tratam como serviços públicos (p.
nômica, portanto os limites para a qualifi- ex., os incisos XI e XII, do art. 21)?”.
cação estariam sujeitos somente ao “senti- Destaca Couto e Silva (2002) que o regi-
do comum da expressão” (MELLO, 1998, p. me jurídico é um importante elemento, em
444). algumas hipóteses decisivo, para saber se

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determinada atividade, que guarde vínculo que é extremamente difícil, perante a multi-
orgânico com o Estado, é serviço público. plicidade de elementos, uniformizar o con-
Ou seja: se o regime for de direito público, ceito de serviço público. Some-se a isso uma
certamente se tratará de serviço público, mas importante questão de ordem conjuntural:
o contrário não é verdadeiro: nos serviços as modificações vividas pelo direito admi-
públicos de natureza industrial e comerci- nistrativo brasileiro nesse campo, especial-
al, o regime jurídico não é puramente de di- mente a partir do final da década de 80.
reito público, não obstante poderem ser qua- É necessário que se utilize uma concep-
lificados como serviços públicos. Conclui- ção de serviço público que possa identificar
se que o regime jurídico é importante indi- a atividade, mas se mantenha adequada a
cador, mas não pode ser o único determi- todas as mudanças atuais e futuras do di-
nante da qualificação. reito administrativo. Essas mudanças, des-
Observando-se a doutrina, percebe-se de a intervenção do Estado na economia,
que a maioria dos conceitos construídos são especialmente após a Primeira Guerra Mun-
de caráter misto. A exemplo, vejam-se os se- dial, até a recente onda de privatizações e o
guintes: “serviço público é todo aquele pres- retorno de institutos como a concessão e
tado pela Administração ou por seus dele- outros semelhantes (que permitam aos par-
gados, sob normas e controles estatais, para ticulares exercerem serviços públicos priva-
satisfazer necessidades essenciais ou secun- tivos), trouxeram consigo questionamentos
dárias da coletividade ou simples conveni- sobre qual seria o conceito de serviço públi-
ências do Estado” (MEIRELLES apud co, e mais ainda: qual o papel do conceito
MORAES et al, 1996, p. 71); “(...) represen- de serviço público no campo do direito ad-
tam atividades associadas à satisfação de ministrativo, hoje. A crise anunciada pela
necessidades sociais, revelando um caráter doutrina já há algum tempo (desde a déca-
de essencialidade vinculado, principalmen- da de 50) não diminuiu a importância do
te quando se configuram como redes de in- conceito dentro do direito administrativo.
fraestrutura, à garantia de suporte à ativi- A fim de discutir o conceito de serviço
dade econômica e ao atendimento de requi- público em suas raízes históricas, e revisan-
sitos específicos da produção” (CARVA- do o modelo estrangeiro que mais influen-
LHO, 2002, p. 17); “atividades dotadas de ciou o arcabouço administrativo brasileiro,
conteúdo econômico, revestidas de especial deve-se fazer uma breve revisão dos concei-
relevância social, cuja exploração a Consti- tos de serviço público utilizados na doutri-
tuição ou a Lei cometeu à titularidade de na francesa.
uma das esferas da federação como forma
de assegurar o seu acesso a toda gente, per- 3. Conceito de serviço
manentemente” (MARQUES NETO, 2002, público no direito francês
p. 18); “(...) para qualificação de um serviço
como público, a par do interesse geral a que O direito administrativo francês foi a
se destina a satisfazer, é indispensável a grande inspiração do direito administrati-
existência de um vínculo orgânico entre ele vo brasileiro na sua formação, e sua influ-
e o Estado. Este é o titular do serviço, muito ência não teve paralelos até recentemente,
embora sua gestão possa ser transferida a quando, a partir dos processos de privati-
particulares” (SILVA, 2002, p. 45). Elemen- zações e reforma do aparato estatal, houve
tos comuns nas definições são o vínculo or- uma aproximação com o modelo norte-ame-
gânico (mesmo que mediato) e o elemento ricano1. Nesse processo, a conceituação de
material, presentes nessas definições apre- serviço público pela doutrina brasileira ba-
sentadas, e consagrados por grande parte seou-se essencialmente nos conceitos dis-
da doutrina. De qualquer forma, percebe-se cutidos no contexto francês.

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Na França, o conceito de serviço públi- incerteza entre as jurisdições comum e ad-
co, mais do que um mero conceito jurídico, ministrativa, levando ambas a contínuos
“tem status de verdadeiro mito na história impasses. A doutrina utilizada trabalhava
social da França, que está vinculado aos com a questão da jurisdição por meio da
fundamentos do Estado, além de represen- dualidade da ação do Estado, que consistia
tar um elemento de coesão social” numa divisão em que “o Estado se compor-
(CHEVALLIER apud JUSTEN, 2003, p. 18). tava hora como pessoa civil, ora como pes-
O serviço público está relacionado com a soa pública, no exercício de sua puissance
justificativa de existência do próprio Esta- publique” 2 (JUSTEN, 2003, p. 22). Os confli-
do, e relaciona-se à transformação de seu tos de competência entre a Corte de Cassa-
modelo ocorrida no fim do século XIX: a tran- ção (jurisdição comum) e o Conselho de Es-
sição entre o Estado Liberal e o Estado-Pro- tado (jurisdição administrativa) passaram
vidência. A afirmação do instituto veio para a ser arbitrados pelo Tribunal de Conflitos.
instrumentalizar a modificação do papel do Este adotou como critério o conceito de ser-
Estado, que passa de espectador das rela- viço público – os direitos e obrigações nas-
ções econômicas e garantidor somente de cidos da execução de serviços públicos não
suas funções essenciais a um papel de in- poderiam estar submetidos ao Código Civil
tervenção e fomento na economia (cujo mo- (Cf. MESCHERIAKOFF apud JUSTEN, 2003,
delo é de inspiração keynesiana), buscando p. 22), afastando-se, portanto, o caso da ju-
acelerar o processo de industrialização no risdição comum.
país. O Estado francês veio substituir a fi- Inicialmente, o marco nesse sentido foi o
gura do monarca, como ente centralizador e acórdão Blanco, decidido pelo Tribunal de
paternal. Conflitos em 8/2/1873. A discussão foi so-
Havia a necessidade de criar um funda- bre a jurisdição competente para a ação de
mento jurídico para a sujeição do Estado ao responsabilidade pelos danos físicos cau-
Direito – visto que este passa de titular ab- sados a uma menina, resultantes de um aci-
soluto de poder para titular de obrigações, à dente entre os vagões que circulavam nas
medida que se transforma de manifestação instalações da manufatura de tabaco da ci-
de autoridade em prestador de serviços dade de Bordeaux. Consideraram-se nesse
(JUSTEN, 2003, p. 21). Na delimitação des- caso derrogadas as normas de direito civil e
se conceito, tanto a doutrina como a juris- proclamou-se o serviço público como crité-
prudência administrativa foi extremamen- rio de atribuição de competência à jurisdi-
te importante. Ressalte-se que o sistema fran- ção administrativa, sendo essa a grande
cês possui um contencioso administrativo, modificação realizada nesse caso. De acor-
separado da jurisdição comum e não sub- do com Devolvé, a manifestação do comis-
metido a ela. Dessa forma, com a formação sário David, que proferiu as conclusões do
desse contencioso próprio, é necessária a de- acórdão, reforçou expressamente a impor-
terminação da competência própria do con- tância da idéia de serviço público como de-
tencioso administrativo que subtrairá a cau- terminante para a competência administra-
sa específica da jurisdição comum. O con- tiva: “os tribunais judiciários são absoluta-
ceito de serviço público serviu como forma mente incompetentes para conhecer todas
de determinação da competência. as demandas formadas contra a Adminis-
Anteriormente, à jurisdição administra- tração em razão de serviços públicos, qual
tiva se atribuía competência para julgar seja seu objeto...” (DEVOLVÉ apud JUSTEN,
questões envolvendo a existência de inte- 2003, p. 23). Dessa forma, todos os serviços
resse público e o exercício de prerrogativas públicos estariam sob a influência do Con-
inerentes à Administração Pública. A falta selho de Estado. Não importava, portanto,
de um critério objetivo criava uma zona de a natureza do serviço público – poderiam

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ser serviços de natureza industrial ou co- início do declínio da noção de serviço pú-
mercial – que estaria submetido à jurisdi- blico, porque reconhecia a jurisdição admi-
ção administrativa. A noção de serviço pú- nistrativa para os casos de gestão pública
blico como central no sistema veio a substi- (Cf. JUSTEN, 2003, p. 27).
tuir a anterior idéia de puissance publique Quanto à doutrina, a construção do con-
como critério de determinação da competên- ceito de serviço público como base da noção
cia administrativa. O acórdão Blanco não de serviço público teve como seu principal
surtiu impacto à época que foi proferido, responsável Léon Duguit, partindo da críti-
somente sendo redescoberto e reconhecido ca à teoria da autolimitação subjetiva do
posteriormente – a interpretação de que ele Estado em busca de um fundamento para a
teria definido de forma inovadora serviço crescente intervenção do Estado em setores
público somente seria extraída do acórdão antes exclusivos da iniciativa privada. A te-
muitos anos depois de ele ter sido proferido. oria da autolimitação subjetiva consistia na
Posteriormente, outro marco em termos idéia de que o Estado seria ora titular da
de jurisprudência administrativa foi o acór- autoridade (puissance publique), ora uma pes-
dão Terrier. Nesse caso, um particular (M. soa civil, desprovida de prerrogativas. Se o
Terrier) propôs a demanda visando à con- Estado atuasse no setor de atividades pri-
denação de uma prefeitura a pagar um prê- vado, devia sujeitar-se ao direito civil. O con-
mio pelo serviço de caça às víboras por ele ceito de serviço público surge da busca de
executado. Dessa forma, “o litígio questio- um novo critério de justificação da atuação
nou dois pontos: a possibilidade de aplica- do Estado, não mais alicerçada na idéia de
ção do critério de serviço público para as soberania, ou na expressão de uma autori-
atividades locais e a configuração de um dade (puissance publique). Duguit busca uma
serviço público na determinação municipal nova teoria de legitimação do Estado, base-
visando à exterminação das víboras. A res- ada na noção de serviço público. O Estado
posta do Conselho de Estado foi afirmativa deveria sujeitar-se a um direito objetivo e agir
aos dois pontos” (JUSTEN, 2003, p. 27). dentro dos limites por ele estabelecidos, sem-
Figurou como marco o referido acórdão, pre vinculado ao fim da solidariedade soci-
pois trouxe consigo o abandono definitivo al (JUSTEN, 2003, p. 30).
do critério de atos de autoridade/atos de Duguit filia-se à corrente do positivismo
gestão. A nova argumentação, criada pelo sociológico – o direito aplicável seria somen-
Comissário do Conselho Romieu, referia que te aquele socialmente aceito e integrado ao
tudo que dissesse respeito à organização e comportamento social, fonte de um direito
funcionamento de serviços públicos gerais capaz de guiar a atividade legislativa na
ou locais estaria ao abrigo do princípio da realização da solidariedade social. Solida-
gestão pública e, portanto, submetido à ju- riedade social deveria ser entendida como
risdição administrativa. Dessa forma, a cri- uma obrigação de solidariedade que têm os
ação de um serviço público não precisaria membros de uma dada sociedade, no senti-
necessariamente de um corpo de agentes do de realizar e alcançar suas necessidades
públicos, mas poderia dar-se pela necessi- de ordem material, intelectual e moral. As
dade pública, um interesse geral naquele noções de serviço público e solidariedade
momento específico. A partir desses critéri- social estão intrinsecamente ligadas – pois
os, abre-se a possibilidade de denominar cada membro da sociedade teria, nesse sis-
como serviço público atividades desenvol- tema, obrigações proporcionais à sua posi-
vidas pelos particulares. Esse acórdão cau- ção na sociedade no sentido de alcançar
sou um efeito duplo sobre a noção de servi- essa finalidade3.
ço público: dissociou-se serviço público da O conceito de serviço público de Duguit
idéia de puissance publique; e desencadeou o tem um caráter de maleabilidade, possibili-

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tando a variação das atividades pertencen- Duguit passou a ser o ponto referencial da
tes à categoria de serviços públicos, confor- chamada École du Service Publique, embora a
me a concepção corrente à época. O Estado doutrina desse pensador não tenha sido
possui sempre um papel ativo, à medida que seguida fielmente, pois seus fundamentos
a sociedade passa a exigir dele outras pres- sociológicos e filosóficos foram rejeitados
tações além das tradicionais, como educa- pelos integrantes da Escola de Bordeaux,
ção e assistência social, demandas que o Es- dando-lhe uma nova interpretação, que vi-
tado deveria suprir com os serviços públi- sava “juridicizar” a idéia de serviço público.
cos (Cf. JUSTEN, 2003). O objeto do serviço Outro importante pensador francês que
público, em nível interno, deveria ser extra- influenciou a concepção de serviço público,
ído da sua situação econômica e das neces- com crítica a Duguit, foi Hauriou. Este con-
sidades de seus cidadãos. Dessa forma, ser- siderava que a fundamentação do sistema
viço público seria: administrativo não poderia dar-se unica-
“(...) toda a atividade cujo cumprimen- mente pela noção de serviço público, mas
to deve ser regulado, assegurado e que envolvia necessariamente a idéia de
controlado pelos governantes, por ser puissance publique – dessa forma, somente se
indispensável à realização e ao desen- poderia identificar a ação estatal pela utili-
volvimento da interdependência so- zação desses dois critérios, um deles refe-
cial e que é de tal natureza que não rente ao meio de exercício (puissance publi-
pode ser assegurado completamente que) e outro referente ao fim (prestação de
senão pela intervenção da força do serviço público) (Cf. JUSTEN, 2003, p. 42).
governante” (JUSTEN, 2003, p. 35). Conforme já se expôs acima, Duguit su-
Esse conceito não escapou de críticas, e postamente teve seus seguidores nos pro-
entre estas encontra-se a confusão entre os fessores da Escola de Bordeaux, entre eles
critérios material e orgânico, já que a defini- Gaston Jèze. Basta, entretanto, observar seu
ção de Estado e serviço público estaria in- conceito de serviço público para perceber a
trinsecamente ligada, não esquecendo do forma como foi totalmente alterado. Para Jèze
caráter de utilidade pública do serviço pú- (apud JUSTEN, 2003, p. 45), serviço público
blico. Dessa forma, “o Estado é o conjunto seria toda atividade desenvolvida sob regi-
de serviços públicos funcionando sobre a me de direito público, excluindo-se do con-
impulsão e o controle dos governantes no ceito as atividades exercidas por ente esta-
interesse coletivo” (DUGUIT apud JUSTEN, tal sob regime de direito privado, e também
2003, p. 36). as prestações colocadas à disposição dos
Apesar das críticas a esse conceito, con- usuários por particulares (sobre as quais a
siderado como sociológico ou filosófico para Administração interviria somente para vi-
alguns doutrinadores, que propugnavam a giar e proteger o público contra os abusos
busca de uma noção mais jurídica e exata do empresário). Nessa concepção subjetiva,
de serviço público, não se pode esquecer que o legislador é quem decidiria sobre quais
sua eventual amplitude e imprecisão enten- atividades seriam colocadas sob regime de
de-se por ser estrutura fundante do sistema, direito público e elevadas à condição de
e não meramente um conceito do direito serviço público – a decisão sobre o que é
administrativo. O Estado somente existiria ou não serviço público acaba ficando ao
para fazer funcionar o serviço público. Como sabor da vontade legislativa. Essa defini-
elementos essenciais, pode-se citar o cará- ção tem o mérito de abranger todos os ser-
ter objetivo dos serviços públicos, seu reco- viços públicos existentes, mas corre o ris-
nhecimento legislativo e o fato de serem obri- co de fazer com que a noção de serviço
gações cuja execução se impõe aos gover- público propriamente dita perca sua uni-
nantes. O conceito de serviço público em dade e especificidade.

324 Revista de Informação Legislativa


Justen, confrontando os conceitos cria- partir dos anos trinta a gestão de serviços
dos por Duguit e Jèze, observa que, no caso públicos por particulares, via concessão.
do primeiro, a noção do que é serviço públi- Esse processo acabou por flexibilizar a no-
co nasce da própria sociedade – serviço pú- ção de serviço público a tal nível que tornou
blico “como toda a atividade cuja realiza- difícil sua delimitação – toda atividade de
ção deve ser assegurada, regrada e controla- interesse geral, mesmo confiada a um parti-
da pelos governantes” (DUGUIT apud cular, poderia ser virtualmente serviço pú-
JUSTEN, 2003, p. 45). Trata-se aqui de “de- blico (JUSTEN, 2003, p. 48-51).
ver ser”, pois constitui-se obrigação de o Es- Entretanto, da evolução do conceito de
tado atender às demandas da sociedade por serviço público na doutrina francesa, assen-
meio dos serviços públicos. E, para Jèze, ser- taram-se ao menos os princípios aplicáveis
viço público define-se como “toda ativida- a esse campo, as “Leis de Rolland”, siste-
de cuja realização é assegurada, regrada e matizadas por Louis Rolland, que elegeu
controlada pelos governantes” (JÈZE apud três princípios fundamentais: a continuida-
JUSTEN, 2003, p. 46). A alteração gramati- de, a igualdade e a mutabilidade. A conti-
cal reflete a radical mudança de paradigma nuidade, já preconizada por Duguit, apon-
– de conceito objetivo, prévio e autônomo à tava a necessidade de os governantes orga-
vontade estatal (Duguit) para um conceito nizarem o serviço público e controlá-lo de
subjetivo, acessório e dependente da esco- forma que se assegurasse o seu funciona-
lha do governante (Jèze). mento ininterrupto. A igualdade, substanci-
Posteriormente, percebeu-se a insuficiên- ada de várias formas, como, por exemplo, a
cia do conceito de serviço público como fun- igualdade no recrutamento de pessoal, na
damento único da delimitação do campo de prestação de serviços aos usuários (embora
aplicação do direito administrativo. A par- nesse caso possa ser diferenciada em virtu-
tir da década de 50, o conceito entra em cri- de do caráter econômico da atividade), etc.
se, traduzida por algumas constatações. A A mutabilidade, ou adaptabilidade, consis-
primeira constatação é de que o Estado não tindo na necessidade de o conceito de servi-
se limita a gerir serviços públicos, mas pos- ço público acompanhar as mudanças da so-
sui outras atividades, como a fiscalização. ciedade no tempo e as novas exigências nas-
A segunda é a possibilidade de o próprio cidas nesse processo (Cf. JUSTEN, 2003).
Estado recorrer a elementos normativos do Ressalte-se, dessa forma, que as três con-
direito privado, como, por exemplo, na re- cepções de serviço público que a doutrina
gulação de contratos. utiliza no tratamento do serviço público são
O intervencionismo crescente a partir da baseadas nos seguintes critérios: a) ser uma
1 a Guerra Mundial já havia descaracteriza- emanação da puissance publique (critério or-
do o conceito, pois ampliou o alcance da gânico); b) ser uma prestação destinada ao
noção de serviço público a ponto de torná- povo (critério substancial); e c) ser sujeito ao
la insuficiente como critério de definição de regime de direito público (critério formal).
competência legislativa. O reconhecimento Cada um deles possui vantagens e desvan-
de serviços de caráter industrial e comercial tagens que devem ser analisadas. O critério
(SPIC), sujeitos às regras de direito comum orgânico permite que se identifique o servi-
por se tratar de exploração de atividade em ço público facilmente pelo prestador, entre-
condições idênticas a de um particular, de tanto é insuficiente para compreender a ges-
natureza primordialmente econômica, traz tão privada de serviços públicos.
o abandono do critério orgânico no reconhe- O critério funcional ou material, colocan-
cimento dos serviços públicos, por reconhe- do serviço público como qualquer ativida-
cer que poderiam estar submetidos às regras de revestida de interesse público, pode-se
do direito comum. Acentuou-se também a dizer que é predominante na doutrina, em-

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 325


bora seja geralmente associado a elementos Primeiramente, distinguem-se os
prevalentes nas outras concepções. O crité- denominados serviços públicos admi-
rio funcional responde bem a três questões nistrativos (SPA) geridos em sistema
recorrentes no direito administrativo fran- de ‘régie’ ou por pessoas jurídicas de
cês: “justificar a ação estatal, limitar a inter- direito público as quais se sujeitam,
venção do Estado na economia e, ainda, di- obviamente, ao direito público. De-
recionar a competência para a jurisdição pois, encontram-se bastante difundi-
administrativa” (JUSTEN, 2003, p. 61). Apre- dos os serviços públicos industriais e
senta alguns problemas relacionados à pró- comerciais (SPIC), acima referidos,
pria plasticidade do conceito de serviço administrados por entes autônomos,
público: a dissociação entre as atividades pessoas jurídicas de direito público
de serviço público e os organismos admi- (ÈPIC – Établissements Publics Indus-
nistrativos (nesse sentido, permitiria ao juiz triels et Comerciaux) e de direito pri-
e ao legislador considerar como serviço pú- vado (S.A. – Sociedades Anônimas).
blico quaisquer atividades, independentes Estão organizadas sob esses modelos
de sua organização e desempenho) e a pos- as empresas cujo serviço se insere nas
sibilidade de ocorrerem assimilações pela ditas atividades de rede – energia, te-
Administração Pública de atividades não lecomunicações, transportes ferroviá-
desempenhadas por ela – ampliando, por rios e aéreos e televisão – todos sob
fim, a estrutura administrativa. O critério for- regime de direito privado. São esses
mal, qual seja, do regime jurídico aplicável, os serviços que estão sob regulamen-
permite a identificação de serviço público so- tação do direito comunitário e que so-
mente pelo regime jurídico aplicável. Assim frem maiores adaptações para a ade-
como na doutrina brasileira, observa-se aqui quação aos ditames concorrenciais
a aplicação de vários critérios, associados ou comunitários. São esses serviços em
não, pela doutrina francesa, e pela própria rede que evocam nos demais Estados-
jurisprudência da Corte Constitucional. membros a expressão ‘serviço públi-
A crise do Estado-Providência refletiu- co à francesa’ e, segundo Laubedère,
se em modificações no âmbito dos serviços Venezia e Gaudemet (apud JUSTEN,
públicos franceses, especialmente acentua- 2003, p. 72), dizem respeito à modali-
da no fim dos anos 80. Reformas iniciadas dade de organização, que confiam ‘a
nas décadas de 70 e 80, envolvendo algum execução de serviços públicos em rede
grau de adaptação às regras comunitárias a monopólios públicos, freqüentemen-
(Cf. JUSTEN, 2003, p. 68-69), culminaram te nacionais, e cujo corpo funcional se
com a grande reforma do Estado e dos servi- beneficia de um estatuto próprio.
ços públicos ocorrida no fim dos anos 90 Conclui-se dessa breve análise da evo-
(no governo de A. Juppé). Buscando a rees- lução dos serviços públicos na doutrina
truturação das relações entre a Administra- francesa a sua larga influência, praticamente
ção Pública e os cidadãos, culminou no exclusiva sobre o modelo normativo de ser-
campo dos serviços públicos com a adoção viço público brasileiro até a década de 90,
de uma Carta dos Serviços Públicos (Cf. que ainda se mostra forte na doutrina, visto
JUSTEN, 2003, p. 71), acrescentando aos cri- que toda reflexão conceitual sobre serviços
térios clássicos outros como a transparên- públicos baseia-se nos mesmos critérios uti-
cia, a responsabilidade, a simplicidade, a lizados pelos doutrinadores franceses. A cri-
acessibilidade, a participação dos usuários se do conceito na França e as pressões pela
e a confiança. No quadro atual dos serviços modificação desse modelo de serviço públi-
públicos na França, podem ser identifica- co predominantemente estatal, acentuadas
das as seguintes peculiaridades: na França pela questão comunitária (que

326 Revista de Informação Legislativa


trata os chamados serviços de interesse ge- esfera estatal foi modificada, retirando-se di-
ral sob critérios predominantemente econô- retamente o Estado e permanecendo em seu
micos, em um modelo que privilegia a livre nome entes privados (no caso de atuação
concorrência) tiveram como conseqüência em regimes de concessão e permissão) ou,
a reestruturação e adaptação de parte dos em algumas atividades, observa-se a atua-
serviços públicos, com forte oposição da ção de entidades de caráter público não es-
sociedade, que se opõe a modificações radi- tatal. A reflexão sobre essa nova realidade,
cais de cunho liberalizante sobre o modelo e a reformulação dos paradigmas dogmáti-
de Estado francês. Embora já tenha havido cos a partir desta, é presente e necessária a
uma considerável reestruturação, ainda fim de que se verifique, primeiramente, se as
permanecem as raízes do sistema, em um modificações realizadas coadunavam-se
país que tem o serviço público como um dos com a ordem constitucional brasileira e, em
mitos fundadores do Estado. Ao contrário segundo lugar, de que forma essas reformas
do caso brasileiro, lá a defesa dos serviços normativas refletem no campo do direito
públicos como de competência primordial administrativo, exigindo da doutrina e da
do Estado reveste-se de um caráter cultural jurisprudência soluções para as novas de-
e identitário. Não se pode negar que o mo- mandas e conflitos decorrentes desse quadro.
delo de serviço público francês muito já ce-
deu e flexibilizou-se, especialmente perante 4.1. As privatizações no Brasil e seus
as diretrizes comunitárias, mas não sem re- reflexos no direito administrativo
sistência da sociedade. Tratando da evolução histórica do Esta-
do brasileiro no decorrer do século XX, pode-
4. As transformações no papel do Estado se dizer que ela tem acompanhado, ainda
contemporâneo e o Estado brasileiro que com um certo atraso, os modelos traça-
dos pelos países capitalistas centrais. Até a
Conforme já referido, o contexto de crise década de 30, o Estado brasileiro optara por
do Estado-Providência afetou poderosa- uma diminuta intervenção na economia (Cf.
mente o conceito de serviço público, de for- SILVA, 2002), e nesse período o instituto da
ma que o próprio Estado é obrigado a mu- concessão de serviços públicos foi larga-
dar suas estruturas internas e sua relação mente utilizado. Geralmente os contratos de
com a sociedade civil. As reformulações atin- concessão tratavam de concessão de obra
giram tanto o campo da regulação estatal pública, por conta e risco do concessioná-
como o da prestação de serviços públicos. rio, em uma situação vantajosa para o Esta-
Nos aspectos regulatórios, percebeu-se a do, que não investia recursos próprios na
ampliação do papel do Estado atuando so- área de infra-estrutura de serviços. Poder-
bre as relações econômicas (como demons- se-ia dizer que, sob esse aspecto, o Brasil
tra a afirmação cada vez maior dos direitos seguiu as linhas do modelo de Estado Libe-
do consumidor e da atuação estatal sobre ral, dominante à época.
as relações econômicas), enquanto a noção A partir da década de 30, a situação mo-
de serviço público vive uma profunda trans- difica-se totalmente, acentuando-se a pre-
formação, na medida em que simultanea- sença do Estado na economia durante toda
mente vivencia-se um processo de privati- a Era Vargas, por meio da reformulação do
zação de empresas e ativos estatais e a “que- Estado e da descentralização, com a criação
bra do paradigma monopolista de explora- de uma série de autarquias, com funções ad-
ção dessas atividades” (Cf. MARQUES ministrativas, mas também de natureza in-
NETO, 2002, p. 13). dustrial e comercial. Após a Segunda Guer-
No caso brasileiro, observou-se que a re- ra Mundial, essas tarefas ligadas à interven-
serva de titularidade de atividades para a ção estatal na economia passam a ser exer-

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cidas por pessoas jurídicas de direito priva- Observou-se uma aproximação entre o
do, ligadas à Administração Indireta do direito administrativo brasileiro e o modelo
Estado (sociedades de economia mista e norte-americano, com a introdução de prin-
empresas públicas). Essa mudança, entre- cípios como os da eficiência no serviço pú-
tanto, não altera o processo anterior, pois a blico e da criação de autarquias especiais
prestação continua a ser realizada pelo Es- para fiscalizar a prestação de serviços pú-
tado. O período militar acentuou essa ten- blicos pelos particulares, chamadas de agên-
dência intervencionista, com a realização de cias reguladoras. Segundo Mattos (2002, p.
grandes obras de infra-estrutura, aumento 56):
do número de entidades da administração “Diante desse quadro normativo,
pública indireta e também aumento da re- a mudança na forma de atuação do
gulação das atividades econômicas. Estado como agente normativo e re-
Com a crise do Estado de Bem-Estar So- gulador da atividade econômica con-
cial da década de 70, passa-se a questionar forme previsto no art. 174 da Consti-
o tamanho do Estado e seu papel. As críti- tuição Federal de 1988 constitui o prin-
cas decorrentes, com seu ideário neoliberal cipal elemento de transformação jurí-
de reformas estruturais do Estado, com me- dico-institucional introduzido pelo
canismos como os da desregulamentação e projeto de reforma do Estado no Bra-
da privatização, somente atingiram o Esta- sil. E o que caracteriza e define tal
do brasileiro a partir da década de 804. O mudança é a criação de agências de
governo Figueiredo (1981-1984) foi o primei- regulação como órgãos responsáveis
ro a realizar privatizações, por meio do De- por certos setores da economia, prin-
creto n o 86.215, de 15/7/81 (atingindo várias cipalmente por aqueles caracterizados
empresas estatais, entre essas a Riocel), pro- como de infra-estrutura e serviços
cesso que obteve continuidade nos gover- públicos, com funções normativas e
nos Sarney (com o Programa Federal de De- reguladoras orientadas especialmen-
sestatização – Decreto n o 95.886/88) e te pelos princípios constitucionais da
Collor, criador do Programa Nacional de livre concorrência e da defesa do con-
Desestatização, expresso na Lei 8.031, de sumidor”.
12/4/90, várias vezes modificada e substi- O processo de privatização acima des-
tuída no governo Fernando Henrique Car- crito afetou o direito administrativo brasi-
doso pela Lei 9.491, de 9/9/97 (Cf. SILVA, leiro em vários campos. Especialmente dois
2002). De acordo com Mattos (2002), a con- aspectos têm sofrido fortes modificações: a
cretização do projeto de Reforma do Estado questão da regulação das atividades econô-
ocorre, a partir de 1995, com uma série de micas pelo Estado e a própria prestação de
emendas constitucionais (EC no 5, 6, 7 e 8, serviços públicos. Analisando-se a interven-
todas em 15/8/95; EC no 9, em 9/11/95, e ção estatal na economia, um duplo movi-
EC no 19, em 4/6/98) e leis promulgadas mento ocorria: à medida que o Estado recu-
para efetivá-la (como a Lei de Concessões ava em sua atuação como agente econômi-
dos Serviços Públicos – Lei 8.987/95; a lei co, aumentava a sua intervenção como re-
regulando a prestação de serviços no setor gulador de várias atividades. Percebia-se a
elétrico e a criação da ANEEL – Lei 9.427/ necessidade de normatizar cada vez mais
96; a Lei Geral de Telecomunicações – Lei várias atividades, com vistas a preservar a
9.472/97; entre outras). A onda de privati- sua existência, assegurar seu equilíbrio in-
zações provocou um renascimento dos ins- terno, ou preservar outros objetivos, como
titutos de delegação de serviço público a proteger os hipossuficientes na relação ou a
particulares, tais como a concessão, a per- consagração de políticas públicas naquele
missão e a autorização. setor específico. A partir do recuo da atua-

328 Revista de Informação Legislativa


ção direta do Estado, esse passa a preocu- Analisando a questão da intervenção di-
par-se em regular mais fortemente aqueles reta estatal na economia, uma multiplicida-
campos específicos que estavam anterior- de de fatores causou a retirada da ação do
mente sob sua atuação direta (MARQUES Estado como agente de prestação desses ser-
NETO, 2002), mas ao mesmo tempo inter- viços: fatores econômicos, como o solapa-
vém regulando fortemente sobre áreas an- mento da capacidade de investimento do
tes fracamente reguladas, como saúde su- Estado (causado pela própria crise fiscal
plementar, uso e exploração de recursos hí- estatal) e o aumento de forças econômicas
dricos etc. que independem das estruturas dos Esta-
O fortalecimento da atuação pública dos nacionais; fatores políticos, como o dé-
ocorreu pelo aumento da regulação em vá- ficit democrático na gestão dos serviços pú-
rios campos específicos da atividade eco- blicos, causando pressões da sociedade por
nômica, embora aparentemente com a reti- maior participação; fatores tecnológicos, já
rada do ente estatal na prestação direta de que a evolução tecnológica traz consigo pa-
serviços, houvesse a tendência de flexibili- drões crescentes de exigência social, aos
zá-los, uma vez que explorados por entes quais o Estado não poderia corresponder
privados. Ganha espaço nessa nova regu- na prestação direta de serviço (na maior
lação a relação entre o Estado e a sociedade, parte dos casos). Essa mudança de eixo ex-
pois a imposição unilateral e autoritária de pressa na drástica diminuição do interven-
pautas e comportamentos dá lugar à articu- cionismo direto estatal, que separou as fi-
lação de interesses e pautas regulatórias guras do explorador da atividade econômi-
negociadas com os diversos setores envol- ca e do agente regulador possibilitou toda a
vidos na atividade. O Estado passa a ter um modificação do perfil regulatório do Esta-
papel de regulador reflexivo, como media- do, transformando também os usuários em
dor de interesses e tutor das hipossuficiên- consumidores das prestações e serviços
cias sociais. Observam-se, portanto, suces- agora sob âmbito privado.
sivas mudanças na relação entre o Estado e A mudança na regulação do domínio
os administrados: econômico relaciona-se ao processo de uma
“O novo papel do Estado, enquan- forte transformação conceitual e operacio-
to regulador, implica no abandono do nal no serviço público. Portanto, devem ser
perfil autoritário em favor de uma compreendidos os processos concomitantes
maior interlocução com a sociedade. de privatizações de empresas públicas, cri-
Enquanto na perspectiva do Estado ação de novos órgãos reguladores (as agên-
liberal incumbe ao poder público as- cias reguladoras) e a retomada de instru-
segurar as regras do jogo para livre mentos normativos que permitem o exercí-
afirmação das relações de mercado e cio de serviços públicos por entes privados
no Estado social inverte-se esse papel, (como as concessões) como faces da trans-
passando a atividade estatal a prover formação do papel do Estado.
necessidades coletivas, ao Estado Em relação a serviço público, inicialmen-
contemporâneo são requisitadas fun- te importa referi-lo nos moldes expostos na
ções de equalizador, mediador e árbi- parte inicial do presente trabalho, ou seja:
tro ativo das relações econômicas e pertencente ao gênero de atividade econô-
sociais. Mais que um mero garantidor mica lato sensu (conforme leciona Eros Ro-
de pré-condições normativas e menos berto Grau5), diferenciando-se especifica-
que um produtor de utilidades públi- mente por se tratar de serviço de interesse
cas, o Estado hodierno assume um geral (ou utilidade pública) e por possuir,
papel de ‘mediador ativo’ de interes- conforme Couto e Silva (2002, p. 47), “vín-
ses” (MARQUES NETO, 2002, p. 16). culo orgânico, direto ou indireto, com o Es-

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tado”. Especificamente, o art. 175 da CF/88 almente público – por meio de concessões e
trata de serviço público na acepção de “pro- permissões), como para garantir que os ser-
dução e oferecimento de utilidades públi- viços prestados obedeçam aos princípios da
cas dotadas de valor econômico e, por con- universalidade da prestação e continuida-
seqüência, passíveis de exploração econô- de, e para assegurar a preservação dos bens
mica” (MARQUES NETO, 2002, p. 18-19). vinculados à atividade. Pela relevância so-
O autor ressalta que, mesmo quando o pró- cial que possuem, os serviços públicos de-
prio Estado fornece as prestações, essas não vem ser garantidos à maior parte da popu-
deixam de possuir valor econômico, uma lação e ser garantida a sua continuidade.
vez que delegava a empresas públicas6 a A introdução da competição na explora-
exploração desses serviços. A natureza eco- ção dessas atividades teve um impacto mai-
nômica das prestações tem duas conseqüên- or ainda na reformulação do setor dos ser-
cias principais: 1) a exploração dessas ati- viços públicos. Anteriormente, entendia-se
vidades pode ser objeto de delegação à ini- que permitir a competição seria inadequa-
ciativa privada (mesmo que sob regime do a esse setor por vários fatores. Inicial-
jurídico parcialmente público – por meio de mente, havia a idéia de que a natureza des-
concessões e permissões); 2) não há impedi- ses serviços não permitia sua exploração
mento à competição na sua exploração. Es- sob regime de livre mercado; a competição
sas idéias são basilares para compreender fragilizaria o regime de direito público a que
a transformação sofrida pelo serviço públi- se submetia o setor, uma vez que nem todos
co brasileiro, acentuadas a partir da década os competidores a ele se submeteriam; e tam-
de 90. bém por razões econômicas, conforme ex-
O modelo de serviço público até o fim da põe o autor (MARQUES NETO, 2002, p. 21):
década de 80 baseava-se na premissa que a “Em função do monopólio de re-
melhor maneira de regular uma atividade des, da inviabilidade econômica de
era reservar sua exploração ao Estado. A convívio de várias operadoras de um
exploração direta era considerada regula- mesmo serviço já em tese sujeito a
ção suficiente da atividade (Cf. MARQUES amarras regulatórias (limitações de
NETO, 2002). Também a posse pelo Estado preços, obrigação de oferta em áreas
de redes de suporte a serviços essenciais, deficitárias, etc) e mesmo da necessi-
como as redes de transmissão de energia dade de escala para oferta da utilida-
elétrica e de telefonia, era considerada uma de seria economicamente inviável a
questão estratégica na defesa da soberania existência da competição nas ativida-
e da própria unidade do sistema. Não ha- des consideradas serviço público”.
via separação entre regulador e operador da Essas premissas confundiam o efeito da
utilidade, visto que ambas se encontravam subordinação da atividade ao regime de di-
na figura do Estado. Essa confusão tornava reito público com a retirada dessa atividade
pouco claros os parâmetros regulatórios, da área econômica (naturalmente competi-
geralmente decididos internamente pelo tiva). A abertura dos mercados, com as pri-
próprio operador, ou pelo ente estatal con- vatizações e o fim dos monopólios estatais,
trolador. derrubou essas idéias sobre os efeitos da
Com a transferência da exploração dos concorrência na prestação de serviços pú-
serviços públicos à iniciativa privada, ope- blicos. A maior transformação do serviço
rou-se novamente a separação entre opera- público operou-se justamente em áreas nas
dor e regulador, passando-se a necessitar quais se introduziu a competição em um
de uma forte regulação estatal, tanto para mesmo serviço com distintas incidências
controlar os pressupostos da outorga (por- regulatórias, existindo prestadoras sujeitas
que exercidos os serviços sob regime parci- ao regime de direito público e outras sujei-

330 Revista de Informação Legislativa


tas ao regime de direito privado, ainda que lidade); e b) a manutenção da perenidade
ambas submetidas às regras atinentes ao da oferta dessa utilidade (princípio da con-
serviço específico. Exemplo disso é o que tinuidade). Não se afastam esses princípios
ocorre no setor de telecomunicações entre por estar o serviço sob o cumprimento de
concessionárias e autorizatárias do serviço agentes privados. Conforme Marques Neto
de telefonia fixa; e no setor de energia elétri- (2002, p. 22):
ca, em que há previsão de competição entre “É importante que se tenha em vis-
concessionárias e autorizatárias na geração ta que o poder público, ao eleger uma
e comercialização de energia elétrica e ou- dada atividade à condição de serviço
tros setores. Basicamente, buscou-se forne- público, acaba por ensejar três ordens
cer a quem estivesse entrando no sistema de conseqüências principais: i) permi-
um regime jurídico mais brando que o dis- te a introdução de mecanismos de res-
pensado ao operador dominante, a fim de trição de acesso a quem quiser explo-
acirrar a competição (MARQUES NETO, rar tal atividade (sem que isso impli-
2002, p. 23). que necessariamente em restrição ab-
Obviamente, a visão tradicional de ser- soluta); ii) faz incidir sobre os presta-
viço público, como uma atividade subtraí- dores (todos ou pelo menos parte de-
da do domínio econômico, de natureza es- les) uma forte incidência regulatória;
tatal, deu lugar a uma visão de que se trata e iii) acarreta para o poder público ti-
de uma atividade econômica. Entretanto, tular deste serviço (aquele a cuja esfe-
por força de sua relevância social, é reserva- ra corresponde a competência materi-
da à titularidade do poder público, com vis- al para explorar, direta ou indireta-
tas a manter algumas garantias mínimas re- mente, tal atividade) compromissos
lativas à sua prestação: restrição do acesso perante a sociedade, compromissos
à exploração do serviço somente àqueles que estes consistentes em assegurar a exis-
receberam uma outorga ou licença específi- tência e a acessibilidade destes servi-
ca e exigência de que a exploração dessa ços a toda a coletividade”.
atividade esteja sujeita a um regime jurídico Portanto, conclui-se que, apesar da pre-
de maior incidência regulatória (parcial- sença cada vez maior do setor privado no
mente submetido ao direito público) (Cf. setor dos serviços públicos, não implica dei-
MARQUES NETO, 2002). A idéia do servi- xar o setor sujeito somente às leis do merca-
ço público como res extra comercio ruiu intei- do. Conexa a essa questão, poder-se-ia per-
ramente, mas isso não deve significar ne- guntar se, na modificação no setor dos ser-
cessariamente a desregulamentação do se- viços públicos (com a presença maciça da
tor, à sujeição somente às leis do mercado. iniciativa privada na prestação desses ser-
Muito pelo contrário, a competição deverá viços), a titularidade do serviço foi alterada,
dar-se no campo de uma estrita regulação ou seja, se há possibilidade de prestações
jurídica atinente ao serviço público especí- de serviço pela iniciativa privada sem qual-
fico, e afigura-se como benéfica ao consumi- quer vínculo com o Estado. Segundo Couto
dor, tanto em termos de preço dos serviços e Silva (2002, p. 73):
como também da pressão para que as ope- “O Estado mantém, em todas as si-
radoras acompanhem os avanços tecnoló- tuações, a titularidade do serviço e se
gicos. apresenta sempre investido de amplo
A noção de serviço público está ligada instrumental normativo e sancionató-
necessariamente a dois princípios, compro- rio, indispensável às atividades regu-
missos daqueles que assumem sua execu- latórias de competência das agências
ção: a) a ampliação e generalização do aces- que, como autarquias, integram a Ad-
so àquela utilidade (princípio da universa- ministração Pública (...). De qualquer

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 331


maneira, ainda que prestados em re- ticulares, estes últimos atuando sob super-
gime privado, e situados em ambiente visão daqueles. A atuação compartilhada,
de competição e concorrência, mas sob a supervisão do poder público, demons-
num mercado constantemente vigia- tra-se em todos esses campos, conforme pre-
do pelo Estado, os serviços por este vêem expressamente os artigos 197, 204, 205
delegado a particulares mediante con- e 2097 da CF/88.
cessão, permissão e autorização, con- No campo dessas prestações de cunho
tinuam sendo, em quaisquer hipóte- social, cuja titularidade não é exclusiva do
ses, serviços públicos, devendo ser Estado, a implementação de medidas dimi-
assim considerados para todos os efei- nuindo a ação estatal e visando desregula-
tos, inclusive, portanto, para o da res- mentar o setor fez-se mediante a retirada da
ponsabilidade extra-contratual de que atuação estatal direta e criação de entida-
trata o § 6 o do art. 37 da Constituição des públicas não estatais, visando suprir o
Federal”. papel do Estado. Com o surgimento de no-
Portanto, no processo de mutação da vas entidades, houve a necessidade da cria-
noção de serviço público à luz das reformas ção de modelos gestores adequados à nova
do Estado e das privatizações, não há mo- realidade. Não se pode olvidar, entretanto,
dificação essencial do núcleo do instituto: a os vários problemas criados por esses mo-
titularidade estatal, outorgada pelo interes- delos, especialmente no caso das Organiza-
se público preponderante e a decorrente ne- ções Sociais (criação da Lei 9.637, de 15 de
cessidade de controle sobre a atividade. A maio de 1998). Também se devem reconhe-
rigidez constitucional brasileira, exigindo cer os avanços na área, especialmente pela
a vinculação entre Estado e serviço público, criação de um novo modelo de entidade para
tem sido mantida. No campo dos serviços o terceiro setor, o das Organizações da Soci-
públicos, essa ligação é regulada por um edade Civil de Interesse Público (OSCIP),
complexo normativo que permite ao Estado reguladas pela Lei 9.790, de 23 de março de
o controle da atividade, mesmo sob execu- 1999.
ção das entidades privadas. Analisando-se o quadro geral relaciona-
A grande modificação conceitual do ser- do a esses serviços, observa-se que a redu-
viço público foi uma aproximação maior à ção do tamanho do Estado e a necessidade
noção de utilidade econômica, trazendo de reformulação de políticas públicas soci-
consigo o risco da mercantilização excessi- ais, visando ao ajuste fiscal, provocou uma
va da atividade, se a regulação específica precarização dos serviços sociais. Segundo
for frágil, o que poderá acarretar mesmo a Morales (1999, p. 51):
exclusão econômica de sua fruição (total- “O problema do financiamento
mente avessa à idéia de generalidade e aces- das políticas públicas sociais obrigou
sibilidade próprias a um serviço de interes- o Estado a repensar a distribuição dos
se coletivo). Vê-se, portanto, a necessidade recursos escassos e a maneira pela
de garantir um controle efetivo sobre a regu- qual os Estados iriam prover os bens
lação dos serviços. públicos. Isso provocou um intenso
debate acerca do papel do Estado. Há
4.2. Observações sobre os concordância razoável de que, entre
serviços de interesse público os diversos problemas envolvidos, um
A Constituição Federal de 1988 tratou dos mais importantes é a incapacida-
dos serviços de interesse público em seu Tí- de dos governos de levar a bom ter-
tulo VIII – Da Ordem Social, prevendo o exer- mo as propostas de políticas públi-
cício dessas atividades por uma forma de cas por eles encampadas programa-
atuação compartilhada entre Estado e par- ticamente”.

332 Revista de Informação Legislativa


Entre os fatores da crise de governança contrário, sem a responsabilização do Esta-
elencados pelo autor, destaca-se a maneira do ou dos entes privados, o preenchimento
inadequada de intervir tanto nas ativida- dessas demandas sociais tenderia a ter uma
des econômicas como nas atividades soci- existência de avanços e retrocessos ao sa-
ais. Esse é o argumento básico não só para a bor de tensões políticas e econômicas. A
retirada do Estado do papel de agente eco- questão é, inicialmente, se as organizações
nômico, como também para o recuo das po- não-governamentais seriam realmente ade-
líticas públicas sociais. Examinando-se as quadas a essa prestação de serviço e, caso o
alternativas que se apresentam, três são as fossem, de que forma deveria ser regulada
possíveis formas de organizar a provisão sua atuação.
de serviços e atividades que envolvam ex- Inicialmente, a opção de muitos países
ternalidades importantes e prestações de foi pela privatização desses setores, que se
cunho social (como saúde, educação, assis- revelou um grande fracasso. Ao contrário
tência, previdência, proteção ao meio ambi- do sucesso de muitas das privatizações rea-
ente e à cultura): a) a continuidade da pro- lizadas no campo da atividade econômica,
visão desses serviços pelo Estado (proble- a área das prestações sociais mostrou-se ina-
mática por manter o modelo em crise, quan- dequada à atuação da livre iniciativa, com
do já houve o esgotamento de sua capacida- fins puramente lucrativos. Morales (1999,
de de expansão dos direitos sociais); b) a p. 57) aponta algumas questões surgidas
privatização ou terceirização dessas pres- nesse quadro, como a progressiva diminui-
tações, deixando ao Mercado a tarefa de re- ção das taxas de lucro na medida em que a
gulá-las, concretizando a minimização to- renda da população atendida é menor, ge-
tal do Estado, que se demonstrou inviável rando o desinteresse do mercado, e o conse-
no atendimento a essas prestações de cu- qüente problema gerado pelo atendimento
nho social ou coletivo; c) a desestatização incompleto a essas demandas sociais.
sem a perda do caráter público do serviço, O fracasso da via do mercado levou à
transferindo suas prestações a entidades busca de alternativas, com precedência à via
públicas não pertencentes nem à esfera es- reformadora, visando à reestruturação dos
tatal nem à esfera privada (Cf. MORALES, serviços dentro do próprio Estado. A partir
1999). das mudanças na organização e no funcio-
A opção pela prestação por intermédio namento do aparelho burocrático estatal, a
de entes públicos não-estatais teria como fi- chamada corrente gerencialista propõe-se a
nalidade a provisão das prestações sociais encontrar respostas à crise desses serviços.
e coletivas de forma adequada, o que o Mer- Como uma de suas estratégias, a reforma
cado não foi capaz de fazer, ao mesmo tem- gerencialista propõe a descentralização na
po em que não se retornaria ao modelo de prestação desses serviços de interesse pú-
atuação estatal anterior. Nesse sentido, as blico, mantendo-se a sua execução sob su-
organizações sem fins lucrativos seriam pervisão estatal, e sendo realizadas por en-
vocacionadas por sua própria formação e tidades que recebem várias designações di-
estrutura a promover essas atividades, ocu- versas (dependendo de seu país de origem):
pando os espaços vazios deixados pelo organizações sociais, agências autônomas,
Mercado e pelo Estado. A prestação dos ser- fundações de serviço público, etc. O relevan-
viços de interesse público deveria ocorrer te é que se tratam de organização de caráter
sob o controle estatal, responsável pela for- público, não estatal, sem fins lucrativos,
mulação das diretrizes das respectivas áre- “cuja finalidade é prestar serviços de inte-
as, pelo fomento de projetos e pela fiscaliza- resse público de natureza concorrencial,
ção do exercício dessas atividades presta- com financiamento público e métodos de
das por entidades públicas não estatais. Do funcionamento do setor privado, submeti-

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 333


da a duplo controle: estatal e social” do-se o cumprimento das normas gerais da
(MORALES, 1999, p. 62). educação nacional e submissão à autoriza-
Deve-se tratar dessas questões com certa ção e avaliação da qualidade pelo Poder
reserva, entretanto, visto que nessas áreas Público). Portanto, excluindo-se o campo do
de prestações de interesse público, em que ensino fundamental, não há maiores garan-
há compartilhamento da atuação estatal tias constitucionais para se exigir a atuação
com entes privados, a regulação é mais fle- estatal direta, mormente quando se trata da
xível que no setor de serviços públicos stricto educação superior9.
sensu. Embora a Constituição atrele o desen- Procurou-se demonstrar que essas ativi-
volvimento da área específica a percentuais dades não são de titularidade estatal exclu-
fixos de recursos estatais8, ou estabeleça que siva, mas de interesse público, compartilha-
o Estado deverá garantir ao cidadão o aces- das entre Estado e sociedade, em geral sem
so à sua prestação, ressalte-se que, na maio- garantias de prestação estatal desses servi-
ria dos casos, não há previsão específica ços, excetuando-se casos específicos, como
quanto à forma que deva ser exercida. A o referente à educação fundamental. De res-
exemplo disso, pode-se analisar a área de to, não há uma regulação constitucional
Saúde em sua previsão constitucional. O art. mais rígida para proteger contra a diminui-
196 garante a saúde como um direito de to- ção da rede de prestações estatais nesses
dos e dever do Estado, que deverá ser ga- serviços, de forma que teoricamente é possí-
rantido mediante políticas sociais e econô- vel ocorrer um processo de “privatização”
micas que visem à redução do risco das do- dessas atividades, já que a vinculação jurí-
enças e de outros agravos e ao acesso uni- dica do Estado nesses casos é mais tênue do
versal e igualitário às ações e serviços para que em relação aos serviços públicos. A nor-
sua promoção, proteção e recuperação. En- matização específica poderá até mesmo ser
tretanto, a forma específica como o Estado bastante restritiva nos serviços “não-exclu-
deverá atuar nesse campo foi regulada pela sivos”, entretanto a obrigação de prestação
legislação ordinária, não se encontrando estatal direta como regra absoluta não exis-
prevista expressamente em nível constitu- te. Não se pode afastar, entretanto, a necessi-
cional. Prevê-se expressamente no art. 199 dade da manutenção do papel do Estado no
que “a assistência à saúde é livre à iniciati- direcionamento, controle e supervisão das ati-
va privada”, estabelecendo a possibilidade vidades de interesse público, com a institui-
de participação complementar das entida- ção de um regime jurídico mais restrito (com-
des de saúde privadas no Sistema Único de parativamente ao das atividades econômicas
Saúde. Pode-se dizer que há a garantia cons- stricto sensu) e sua responsabilidade pela qua-
titucional do direito à saúde, mas não à for- lidade e adequação na prestação desses ser-
ma como deve ser prestado pelo ente estatal. viços à população, visto que se tratam de se-
Tratando-se da educação, a situação não tores essenciais, como saúde e educação.
é diversa, ampliada ainda mais a participa- O Estado deve ter a obrigação primordial
ção de entes privados porque a Constitui- de regular e fiscalizar essas atividades, exer-
ção prevê que a educação “será promovida cidas também por ele, embora não com ex-
e incentivada com a colaboração da socie- clusividade. Aliás, é importantíssimo que a
dade” (art. 205). A obrigatoriedade do Esta- atuação estatal permaneça fortemente pre-
do é de fornecer ensino fundamental obri- sente nesses setores. O que se busca é esta-
gatório e gratuito (art. 208, I), direito público belecer uma regulamentação jurídica ade-
subjetivo que poderá ser exercido pelo cida- quada, a fim de que a colaboração com os
dão contra o Estado (art. 208, § 1 o). A parti- entes não-estatais não signifique falta de
cipação das instituições privadas é permiti- controle e irresponsabilidade do Estado na
da nos moldes fixados pelo art. 209 (exigin- prestação desses serviços, que não são pro-

334 Revista de Informação Legislativa


priamente atividades econômicas, mas vi- ciada. Conforme já foi referido acima, o se-
sam à implementação desses relevantes di- tor dos serviços de interesse público (ou ser-
reitos sociais, como saúde, educação e as- viços públicos não privativos, na acepção
sistência social, corporificando-se conforme de Eros Roberto Grau) foi o que mais sofreu
a própria designação, como serviços de es- com a reforma estatal, já que ali é permitido
pecial interesse público. o exercício de atividades sob titularidade
privada e sob titularidade pública. Não há
5. Conclusão um regime jurídico mais rígido de proteção
a esses direitos, visto que, como regra geral,
A abrangência do conceito de serviço pú- o Estado tem uma vinculação jurídica mais
blico é influenciada pela época e pela noção tênue em relação à prestação direta dessas
de Estado e pela relação entre este e a socie- atividades. Indiretamente, o Estado afasta
dade. A noção de serviço público há de ser sua responsabilidade na atuação direta em
essencialmente evolutiva, condicionada políticas sociais, a partir de uma flexibiliza-
pela época e pelo meio social. Tratando das ção que pode terminar por precarizar essas
diversas formulações de serviço público, e prestações.
da sua relação com o contexto histórico do Em relação aos serviços públicos propri-
Estado naquele momento, percebeu-se que amente ditos, obviamente o exercício dessa
algumas características podem ser traçadas atividade é mais protegido em razão da na-
até o modelo relacional atual. Nesse senti- tureza das atividades específicas, e nesse
do, permanecem os serviços públicos com a sentido resgata-se o valor do quesito mate-
titularidade estatal, no sistema brasileiro, ao rial de serviço público. Não se deve olvidar,
contrário de outros sistemas em que a titu- portanto, a importância do conceito de ser-
laridade foi transferida juntamente com a viço público propugnado por Duguit e sua
execução dos serviços. Permanece a titula- repercussão na doutrina brasileira. Dessa
ridade estatal como uma forma de garantir forma, serviço público é a atividade explíci-
proteção a essas atividades que se revestem ta ou supostamente definida pela Consti-
de especial interesse público, exigindo do tuição como indispensável, em determina-
Estado um controle maior sobre a sua exe- do momento histórico, à realização e ao de-
cução. Aí se põe o limite da Constituição senvolvimento da coesão e da interdepen-
Federal de 1988: a titularidade estatal exige dência social, de acordo com o conceito de
que a delegação dos serviços ocorra somen- Duguit.
te pelas formas previstas na própria carta Em outros termos, serviço público é ati-
constitucional, ou seja, a concessão, a per- vidade explícita ou supostamente definida
missão e a autorização. pela Constituição como serviço existencial
Do contrário, estar-se-á diante de um con- relativamente à sociedade em um determi-
flito com a regra constitucional. Enquanto nado momento histórico, conceito adotado
não for modificada essa norma, pode-se di- por Eros Roberto Grau (2002), seguindo a
zer que o próprio ordenamento não admite linha de Ruy Cirne Lima. Nesse sentido, o
a privatização total dos serviços públicos interesse deve ser obter a melhor prestação
estrito senso. Por conta da titularidade esta- de serviços, seja pela iniciativa privada, seja
tal, sempre estará presente o regime de di- por ente público, não esquecendo da neces-
reito público, mesmo que parcialmente. sidade de se respeitar os princípios basila-
Em relação às prestações sociais (saúde, res do sistema (continuidade, igualdade e
educação, assistência social), com caráter de adaptação do serviço), e buscando um di-
atividade pública de interesse coletivo, não reito cada vez mais rigoroso quando da ava-
há a mesma segurança normativa, já que se liação da prestação de serviços e de sua su-
permite ao Estado moldar de forma diferen- pervisão. Somente dessa forma, poder-se-á

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 335


respeitar o significado maior da conceitua- blicos industriais e comerciais (SPIC), administra-
ção de serviço público, não abandonando a dos por entes autônomos, pessoas jurídicas de di-
reito público (ÈPIC – Établissements Publics In-
estrutura de definição constitucional. dustriels et Comerciaux) e de direito privado (como
as S.As. – Sociedades Anônimas).
7
Art. 197. São de relevância pública as ações e
serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dis-
Notas por, nos termos da lei, sobre sua regulamentação,
fiscalização e controle, devendo sua execução ser
1 A tendência de aproximação ocorre pela pró-
feita diretamente ou através de terceiros, e também
pria hegemonia norte-americana no processo de glo- por pessoa física ou jurídica de direito privado.
balização e pela busca de opções para modificar o Art. 204. As ações governamentais na área de
aparato estatal pela crise do modelo de Estado- assistência social serão realizadas com recursos do
Providência. As reformas, de inspiração neoliberal, orçamento da seguridade social, previstos no art.
buscaram reduzir o tamanho do Estado, mediante 195, além de outras fontes, e organizadas com base
políticas de privatização e desregulamentação. nas seguintes diretrizes:
Nesse sentido, a criação de novos órgãos, como as I – descentralização político-administrativa,
agências reguladoras, inspiradas no modelo norte- cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera
americano, supostamente buscou implementar os federal e a coordenação e execução dos respectivos
conceitos de eficiência e administração técnica, as- programas às esferas estadual e municipal, bem
sim como uma regulação mais flexível àqueles se- como a entidades beneficentes e de assistência soci-
tores. al;
2
A expressão, sem tradução exata para o por- Art. 205 – A educação, direito de todos e dever
tuguês, designa o conjunto de direitos cujo sujeito do Estado e da família, será promovida e incenti-
ativo é a pessoa jurídica do Estado e os sujeitos vada com a colaboração da sociedade, visando ao
passivos são os indivíduos submetidos a esse po- pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
der (JUSTEN, 2003, p. 22, nota 25). o exercício da cidadania e sua qualificação para o
3
O raciocínio de Duguit resultou na concepção trabalho.
de que o Estado é de fato, titular de uma determi- Art. 209 – O ensino é livre à iniciativa privada,
nada parcela de poderes dentro de uma sociedade atendidas as seguintes condições: I – cumprimento
organizada e deve ter maiores responsabilidades das normas gerais da educação nacional; II – auto-
na realização da “solidariedade social”. Daí decor- rização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
ria a idéia de que o papel de prestador de serviço 8
Nesse sentido, a previsão constitucional do
público devia ser atribuído ao Estado, segundo a art. 198, relativa à área de saúde, que prevê um
concepção de Duguit, por causa, exatamente, des- percentual mínimo de recursos a serem aplicados
sa concepção de distribuição de responsabilidades na área, definidos por lei complementar, e do art.
(obrigações) (JUSTEN, 2003, p. 32). 212, relativa à educação, esta última expressamen-
4
Seguindo novamente a tendência dos países te prevendo a aplicação mínima anual de 18% dos
centrais, Mattos (2002, p. 44) ressalta que, até a recursos da União e 20% dos recursos dos Estados,
década de 80, a intervenção do Estado na econo- Distrito Federal e Municípios (calculados sobre a
mia estava fundada nas políticas econômicas de receita resultante de impostos) na respectiva área.
nacionalização, na Europa, e regulation, nos EUA. 9
Observe-se na Constituição Federal que a re-
Somente foi quebrado esse paradigma a partir da gulação da educação é diferenciada, estabelecen-
implementação de políticas neoliberais de desesta- do-se a obrigatoriedade somente em relação ao en-
tização e desregulamentação, pioneiramente pelos sino fundamental. In verbis: “Art. 208 – O dever do
governos Thatcher (1979) e Reagan (1980). São os Estado com a educação será efetivado mediante a
primeiros governos de países capitalistas avança- garantia de: I – ensino fundamental obrigatório e
dos que se engajam publicamente na tarefa de pôr gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita
em prática o programa neoliberal (ANDERSON, para todos os que a ele não tiveram acesso na idade
1996). própria; II – progressiva universalização do ensino
5
Conforme já exposto, serviço público para o médio gratuito; (...) V– acesso aos níveis mais ele-
referido autor é o “tipo de atividade econômica vados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
cujo desenvolvimento compete preferencialmente ao segundo a capacidade de cada um;
setor público” (GRAU, 2002, p. 250). § 1 o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
6
A opção do Estado de não prestar diretamen- direito público subjetivo.
te essas utilidades, mas por meio de outras pesso- § 2 o O não-oferecimento do ensino obrigatório
as jurídicas por ele criadas, observou-se também pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, impor-
no modelo francês, com os chamados serviços pú- ta responsabilidade da autoridade competente (...)”.

336 Revista de Informação Legislativa


Em relação ao papel da União, especialmente FIGUEREDO, Lúcia Valle. Curso de direito adminis-
relacionado ao ensino superior, prevê-se o seguinte: trativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
“Art. 211 §1 o A União organizará o sistema federal
GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço públi-
de ensino e o dos Territórios, financiará as institui-
ções de ensino públicas federais e exercerá, em co. In: ______. (Org.); GUERRA FILHO, Willis San-
tiago. Direito constitucional: estudos em homenagem
matéria educacional, função redistributiva e suple-
a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2002.
tiva, de forma a garantir equalização de oportuni-
dades educacionais e padrões mínimos de quali- JUSTEN, Mônica Spezia. A noção de serviço público
dade do ensino mediante assistência técnica e fi- no direito europeu. São Paulo: Dialética, 2003.
nanceira aos Estados, ao Distrito Federal e aos
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova
Municípios”.
regulação dos serviços públicos. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, n. 228, p. 13-29, abr./
jun. 2002.
Referências MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulamenta-
ANDERSON, Perry. História e lições do neolibera- ção econômica e democracia: contexto e perspecti-
lismo: a construção de uma via única. Rede semanal, vas na compreensão das agências de regulação no
Brasília, 5 nov. 1996. Disponível em: <http:// Brasil. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Regulação,
www.redesemanal.hpg.ig.com.br/monitor/ direito e democracia. São Paulo: Fundação Perseu
perry1.html>. Acesso em: [200-?]. Abramo, 2002.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direi- MORAES, Luiza Rangel; WALD, Alexandre de M.;
to administrativo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. WALD, Arnoldo. O direito de parceria e a nova lei de
concessões: análise das leis 8987/95 e 9074/95. São
CARVALHO, Vinícius Marques de. Regulação de Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
serviços públicos e intervenção estatal na econo-
mia. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Regulação, MORALES, Carlos Antonio. Provisão de serviços
direito e democracia. São Paulo: Fundação Perseu sociais através de organizações públicas não-esta-
Abramo, 2002. tais: aspectos gerais. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bres-
ser; GRAU, Nuria Cunill (Org.). O público não-esta-
SILVA, Almiro do Couto e. Privatização no Brasil e tal na reforma do estado. Rio de Janeiro: Fundação
o novo exercício de funções públicas por particula- Getúlio Vargas, 1999.
res: serviço público “à brasileira”?. Revista de Direi-
to Administrativo, Rio de Janeiro, n. 230, p. 45-74,
out./dez. 2002.

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 337


338 Revista de Informação Legislativa

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