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20, 2021
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RESUMO: O presente texto é fruto do trabalho teórico executado na disciplina Teoria das ciências
Humanas, ministrada pelos professores Marco Antonio Valentin e Juliana Fausto em 2020 na
Universidade Federal do Paraná. Nele apresento a trajetória percorrida por Lévi-Strauss em sua
obra O pensamento selvagem. Desde sua ruptura com a antropologia clássica enquanto atribui ao
pensamento selvagem as qualidades de filosofia moderna, até sua aparentemente domesticação
no que diz respeito à sua crítica à prática do sacrifício. O texto se encerra com perspectivas
potencializadoras do pensamento selvagem exprimidas por Eduardo Viveiros de Castro e Carlos
Castañeda.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Lévi-Strauss. Eduardo Viveiros de Castro. Carlos Castañeda.
ABSTRACT: This text is the result of the theoretical work carried out in the discipline Theory of
Human Sciences, taught by professors Marco Antonio Valentin and Juliana Fausto in 2020 at the
Paraná Federal University. In it I present the trajectory taken by Lévi-Strauss in his work The
Savage Mind, due to his break with classical anthropology while attributing to the wild thought the
qualities of modern philosophy, until his apparently domestication of such thought with regard to
his criticism of the practice of sacrifice. The text ends with perspectives that potentiate wild
thought expressed by Eduardo Viveiros de Castro and Carlos Castañeda.
KEYWORDDS: Anthropology. Lévi-Strauss. Eduardo Viveiros de Castro. Carlos Castañeda.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, no décimo ensaio de Mil Platôs, mencionam a importância do
legado de Lévi-Strauss: “O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro torna-se mais
razoável” (Deleuze, Guattari, 1997, p. 17). De fato, ao encararmos a história da antropologia, é
notável a revolução encabeçada pelo antropólogo francês.
No início de sua obra O pensamento selvagem, Lévi-Strauss dedica-se a rebater a crença de seus
colegas, de que os povos designados como “selvagens”, tendem a pensar guiados por suas
necessidades básicas, como a fome, o que em realidade, difere totalmente do factual como
explicitado na passagem:
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Lévi-Strauss encerra essa seção de seu texto afirmando que, para os povos assim ditos selvagens
“as espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis
ou interessantes porque são primeiro conhecidas” (Lévi-Strauss, 1989, p. 24). A partir de tal
premissa entendemos porque o totemismo privilegia os animais e as plantas a níveis de totens,
pois eles não estão dados ao pensamento selvagem simplesmente para satisfazer suas
necessidades básicas, mais importante ainda, eles são bons para se pensar.
Mais do que desmistificar as ideias eurocêntricas de sua época, Lévi-Strauss nos apresenta, com
suas obras, o potencial de outros mundos possíveis, nos quais o totemismo, ou agente totêmico,
toma o papel central como representante do pensamento selvagem, o qual desafia as demais
antropologias. Se visto através de um prisma filosófico, podemos entender o totemismo como
uma metafisica [2], porém totalmente ao avesso do antropocentrismo ocidental moderno, cujos
autores buscam estabelecer um abismo intransponível entre homem e natureza, entre o homem e
o animal. A metafisica totêmica é aquela que concilia os campos entre animais humanos e não
humanos, como observado na passagem do texto Totemismo hoje: “O totemismo aproxima o
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Temos então um sistema que agencia as coletividades humanas com seus parentes não humanos,
em O pensamento selvagem encontramos evidências do totemismo como um agente operando
através da diferença para produzir identidades, similitudes e correspondências entre grupos
humanos um ao outro, e em relação a seus animais totêmicos. Em uma passagem específica do
capítulo três, intitulado "Os sistemas de transformações", vemos como tal processo ocorre no que
diz respeito a articulação entre classificações totêmicas e proibições alimentares relativo ao
caráter simbólico e real do totemismo.
Vemos então, a concepção de uma diferenciação e, por consequência, de uma identidade entre os
grupos humanos e os não humanos. O indivíduo humano reconhece que difere de seu parente
epônimo [3] pelas características: a pele, as penas, o bico, afirmando assim a sua humanidade em
detrimento da natureza animal, porém tais partes sagradas são então assimiladas como
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emblemas, criando assim uma conexão entre o grupo e seu animal totêmico. Percebemos aí que a
identidade de um indivíduo humano ou um grupo, no totemismo, é indissociável dos animais não
humanos. As características naturais encontram uma relação de homologia com as características
sociais através de suas diferenças, para assim produzir uma identidade.
Contudo, tal compatibilidade advinda da diferença não atua somente no campo das relações entre
animais humanos e não humanos, ela se faz presente também no que tange diferentes grupos
sociais, é o que Lévi-Strauss nos mostra na passagem:
Logo, as características assimiladas de um animal totêmico por um dado grupo social, não existem
para separar o humano do conjunto da vida, mas sim com o intuito de serem usadas como critério
de distinção em relação a um outro grupo social, assumindo caracteres simbólicos. Segundo a
lógica do totemismo, pode-se concluir que “a humanidade só pode segmentar-se em grupos
sociais na medida que se identifica simbolicamente com outras espécies” [4], ou seja, para se
diferenciar entre si os humanos precisam tornar-se simbolicamente animais não humanos. O
pensamento selvagem distribui diferenças em um contínuo de semelhantes, (o animal totêmico é
sempre semelhante e diferente) desta forma o indivíduo ou um grupo se identificam,
parcialmente, com seu parente não humano, a fim de melhor se distinguir de seus parentes
humanos.
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A consequência de tal figuração é de que, a cada ser (vivo ou inanimado) significado pelo
pensamento selvagem é atribuída a qualidade de “Imago Mundi”, conceito que significa
literalmente imagem do mundo. Esta noção implica que cada entidade atravessada pelo
totemismo tem em si, um microcosmo, como explicitado no comentário de Lévi-Strauss acerca das
possibilidades de significados do cervo:
Não seria menos difícil predizer a função do cervo, cujo corpo é uma
verdadeira imago mundi: seus pelos representam a relva; suas coxas, as
colinas; seus flancos, as planícies; sua espinha, as elevações; seu pescoço,
os vales; sua galhada, toda a rede hidrográfica... (Lévi-Strauss, 1989, p. 75).
Ainda nesta perspectiva cosmológica é importante apontar aquilo que Lévi-Strauss apresenta
como a reciprocidade de perspectivas, um dos atributos do totemismo, que implica no mútuo
espelhamento de homem e mundo, uma faceta a qual impõe ao pensamento selvagem a
humanização dos seres e de suas relações, ao mesmo tempo que os feraliza [5]. No pensamento
selvagem essa transferência não é um rebaixamento a uma sub-humanidade, mas sim, a elevação
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Logo é possível concluir que na teoria totêmica de Lévi-Strauss, os povos assim chamados de
“primitivos” apresentam uma noção ambígua de natureza, pois ela representa uma pré-cultura ao
mesmo tampo que também é sub-cultura. O conjunto natureza possui um caráter sobrenatural,
ela se encontraria acima da cultura e ao mesmo tempo abaixo dela. Vemos assim o mundo do
conhecimento platônico kantiano como algo transparente, o objeto do conhecer seria apenas
representações, neste sentido, o conhecer seria reduzir a zero o que existe de sujeito no objeto,
ou seja, ao objetivar se produz a dessubjetivação. Já no xamanismo ameríndio, o conhecer é
personificar, encontrar o humano por trás do objeto.
Levando em conta tudo que foi exposto acerca das ideias de Lévi-Strauss sobre o pensamento
selvagem, (que em muitas passagens da sua obra defende tal pensamento como uma filosofia de
mesma importância daquela praticada no ocidente) vemos justificada a afirmação de Deleuze e
Guattari exposta no início deste ensaio: o mundo se tornou mais razoável graças ao estruturalismo
do antropólogo francês. Porém, em seguida, os autores chamam a atenção para o que seria um
desvio na teoria antropológica de Strauss:
É importante destacar no fragmento acima os termos “ilusório” e “destituído de bom senso”, pois
é desta forma que o antropólogo enxerga a segunda face do pensamento selvagem em
contraposição ao totemismo, o sacrifício.
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Mas, em que consiste o sacrifício? Diferente do totemismo, que opera com duas séries horizontais
(a natural e a social), o sistema do sacrifício opera através de três séries verticais, seriam elas: o
homem, na base do sistema; a série natural e as relações de contiguidade (tomando aqui o papel
de sacrificado); e no topo se encontraria a divindade (uma extra humanidade), a qual Lévi-Strauss
afirma ser um componente meramente imaginário. A ritualização do sacrifício tem como objetivo,
na visão do antropólogo francês, tomar a natureza como instrumento, em função da ordem
humana para conseguir favores da divindade, ou suprimir a distância entre o operador humano e
deus, para assim divinizar-se. Como explicitado abaixo, em O pensamento selvagem, onde se
destaca o sacrifício como uma busca benefícios apenas ao animal humano, se sobrepondo à
ordem natural:
No totemismo nenhum de seus elementos podem ser substituíveis como na superação de um pelo
outro, no sentido em que, por exemplo, a águia jamais poderia substituir o animal totêmico urso
dentro de um grupo cultural, nem mesmo no nível individual. O sistema opera através da
diferença, onde os termos insubstituíveis são relacionados um com o outro. Já o sacrifício tem
como princípio a substituição, o animal ou a planta quando sacrificados podem ser substituídos
simbolicamente por qualquer outra entidade, implicando a destruição da diferença entre os
termos, portanto a destruição da relação. Desta forma, a ideia de afinidade entre o humano e não
humano assumidas pelos dois sistemas variam consideravelmente. No totemismo a afinidade
entre um grupo humano e uma espécie natural se baseia na diferença entre grupos e espécies.
Enquanto no sacrifício a afinidade anula a diferença entre animal humano e animal não humano
em vista de uma contiguidade entre os humanos e os deuses. Neste caso, para Lévi-Strauss se
configura uma relação com a natureza aonde o termo natural é suprimido pelo termo cultural,
para que esse venha se fundir (segundo o antropólogo de uma forma totalmente “imaginária”)
com um terceiro termo, a entidade.
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Contudo, Lévi-Strauss afirma ainda uma outra diferença entre totemismo e sacrifício, ideia a qual
conduz a obra O pensamento selvagem para uma “inflexão domesticante”. Trata-se da afirmação
enfática de que existe uma diferença de nível de valor epistêmico entre os dois sistemas, o que
justifica uma falta de “bom senso” dos povos assim chamados de “primitivos”, conforme abaixo:
É notável neste trecho o fato de Lévi-Strauss não se limitar a dizer que o sacrifício apenas difere do
totemismo devido a uma incompatibilidade de sistemas, ele precisa reiterar que um é real e o
outro não, afirma que o sacrifício opera e acredita em um “termo não-existente” e que este seria
“desprovido de bom senso”. O totemismo tem fundamento real, embora simbólico; o sacrifício,
por seu turno, carece de tal fundamento e por isso é condenado à condição de “imaginário”. Neste
ponto, o autor parece destoar do que havia escrito anteriormente acerca da reciprocidade de
perspectivas própria do pensamento selvagem, surge aqui uma aparente contradição com tal ideia
lançada por ele próprio no mesmo capítulo, sobre a “humanização das leis naturais e a [...]
naturalização das ações humanas” (Lévi-Strauss, 1989, p. 247) que, segundo o próprio
antropólogo é o que caracteriza o perspectivismo selvagem.
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Após tecer as críticas ao sacrifício através do objetivismo civilizado, Lévi-Strauss parece não
acreditar no valor de verdade do mito, afirmando que este só se configura como verdade num
sistema de transformação de mundo, o que se sucede é a afirmação de que “não existe totem
real” (Lévi-Strauss, 1989, p. 265) esvaziando assim o signo selvagem de qualquer conteúdo, para
classificá-lo meramente como uma posição formal em um sistema lógico, a partir de tal
comentário o totemismo deixaria de ser uma relação de socialidade entre natureza e cultura, mas
sim um simples modo de representação de mudo. O que representa, em certa medida, a negação
da orientação metafisica do pensamento selvagem pelo antropólogo francês no que diz respeito
ao seu livro publicado em 1962. Contudo é preciso ressaltar que não se pretende aqui negar a
orientação cosmológica de Lévi-Strauss, tendo em vista sua perspectiva potencializadora acerca do
totemismo e dos animais não humanos, com notável destaque no capítulo "História e dialética".
Além disso a obra O pensamento selvagem precede o conjunto de textos conhecidos como as
Mitológicas, aonde o pensador irá se debruçar sobre os mitos indígenas.
Aqui vemos o totemismo e sua reciprocidade de perspectivas além do julgamento epistêmico, pois
“As aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista
dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com outrem” (Castro, 2002, p.
397). No encontro sobrenatural as perspectivas são trocadas, aquele que se entendia como
humano se descobre não humano, no ponto em que se defronta com a face humana do não-
humano. Existe algo de sobrenatural no pensamento selvagem, algo que Lévi-Strauss não
conseguiu exprimir ou que lhe escapou de alguma maneira.
Nas obras Xamanismo transversal e Metafísicas canibais, Eduardo Viveiros De Castro opera uma
retomada crítica de Lévi-Strauss, no que diz respeito a sua distinção entre totemismo e sacrifício.
Nelas o antropólogo brasileiro propõe uma terceira forma de simbolismo que se configura como
transformacional, representada pelo perspectivismo cósmico ameríndio, podendo ser entendida
como uma junção entre totemismo e sacrifício, uma radicalização da ideia de reciprocidade de
perspectivas inicialmente apresentada pelo antropólogo francês. No livro Metafísicas canibais
Viveiros De Castro explicita o perspectivismo:
Tal visão cosmológica de mundo demasiada rica de significados é encontrada também nas obras
de Carlos Castañeda, podendo ser vislumbrada no conceito de “perder a forma humana”, uma
ideia que compreende muito bem a reciprocidade de perspectivas, quando os elementos naturais
se misturam com o, assim dito por Castañeda, “reino dos feiticeiros”, ou seja, o campo mitológico.
Ali o conjunto natural se funde ao conjunto cultural na cosmologia do nogualismo, percebido em
passagens como esta extraída do livro Viagem a ixtlán:
Na tentativa de encerrar este artigo, tomo a liberdade de me servir de outra passagem de Viagem
a Ixtlán, na qual vemos semelhanças entre o encontro na floresta com o sobrenatural,
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Bibliografia
CASTRO, E, V. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 4. São Paulo: Editora 34,
1997.