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Revista ClimaCom, Coexistências e Cocriações | Pesquisa – Ensaio | ano 8, no.

20, 2021

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O pensamento selvagem, da domesticação à feralização

Enzo Estevinho Guido [1]

RESUMO: O presente texto é fruto do trabalho teórico executado na disciplina Teoria das ciências
Humanas, ministrada pelos professores Marco Antonio Valentin e Juliana Fausto em 2020 na
Universidade Federal do Paraná. Nele apresento a trajetória percorrida por Lévi-Strauss em sua
obra O pensamento selvagem. Desde sua ruptura com a antropologia clássica enquanto atribui ao
pensamento selvagem as qualidades de filosofia moderna, até sua aparentemente domesticação
no que diz respeito à sua crítica à prática do sacrifício. O texto se encerra com perspectivas
potencializadoras do pensamento selvagem exprimidas por Eduardo Viveiros de Castro e Carlos
Castañeda.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Lévi-Strauss. Eduardo Viveiros de Castro. Carlos Castañeda.

The savage mind, from the domestication to the feralisation

ABSTRACT: This text is the result of the theoretical work carried out in the discipline Theory of
Human Sciences, taught by professors Marco Antonio Valentin and Juliana Fausto in 2020 at the
Paraná Federal University. In it I present the trajectory taken by Lévi-Strauss in his work The
Savage Mind, due to his break with classical anthropology while attributing to the wild thought the
qualities of modern philosophy, until his apparently domestication of such thought with regard to
his criticism of the practice of sacrifice. The text ends with perspectives that potentiate wild
thought expressed by Eduardo Viveiros de Castro and Carlos Castañeda.
KEYWORDDS: Anthropology. Lévi-Strauss. Eduardo Viveiros de Castro. Carlos Castañeda.

Gilles Deleuze e Félix Guattari, no décimo ensaio de Mil Platôs, mencionam a importância do
legado de Lévi-Strauss: “O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro torna-se mais
razoável” (Deleuze, Guattari, 1997, p. 17). De fato, ao encararmos a história da antropologia, é
notável a revolução encabeçada pelo antropólogo francês.

No início de sua obra O pensamento selvagem, Lévi-Strauss dedica-se a rebater a crença de seus
colegas, de que os povos designados como “selvagens”, tendem a pensar guiados por suas
necessidades básicas, como a fome, o que em realidade, difere totalmente do factual como
explicitado na passagem:
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Essa ânsia de conhecimento objetivo constitui um dos aspectos mais


negligenciados do pensamento daqueles que chamamos de ‘primitivos’. Se
ele é raramente dirigido para realidades do mesmo nível daquelas às quais
a ciência moderna está ligada, implica diligencias intelectuais e métodos de
observação semelhantes. Nos dois casos, o universo é objeto de
pensamento, pelo menos como meio de satisfazer a necessidade. (Lévi-
Strauss, 1989, p. 17).

O antropólogo vai além, colocando o pensamento selvagem no mesmo patamar do pensamento


domesticado ocidental:

Cada civilização tende a superestimar a orientação objetiva de seu


pensamento; [...]. Quando cometemos o erro de ver o selvagem como
exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou
econômicas, não percebemos que ele nos dirige a mesma censura. (Lévi-
Strauss, 1989, p. 17).

Lévi-Strauss encerra essa seção de seu texto afirmando que, para os povos assim ditos selvagens
“as espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis
ou interessantes porque são primeiro conhecidas” (Lévi-Strauss, 1989, p. 24). A partir de tal
premissa entendemos porque o totemismo privilegia os animais e as plantas a níveis de totens,
pois eles não estão dados ao pensamento selvagem simplesmente para satisfazer suas
necessidades básicas, mais importante ainda, eles são bons para se pensar.

Mais do que desmistificar as ideias eurocêntricas de sua época, Lévi-Strauss nos apresenta, com
suas obras, o potencial de outros mundos possíveis, nos quais o totemismo, ou agente totêmico,
toma o papel central como representante do pensamento selvagem, o qual desafia as demais
antropologias. Se visto através de um prisma filosófico, podemos entender o totemismo como
uma metafisica [2], porém totalmente ao avesso do antropocentrismo ocidental moderno, cujos
autores buscam estabelecer um abismo intransponível entre homem e natureza, entre o homem e
o animal. A metafisica totêmica é aquela que concilia os campos entre animais humanos e não
humanos, como observado na passagem do texto Totemismo hoje: “O totemismo aproxima o
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homem do animal e a alegada ignorância do papel do pai na concepção chega a substituir o


genitor humano por espíritos mais próximos ainda as forças naturais” (Lévi-Strauss, 1975, p. 14).

Temos então um sistema que agencia as coletividades humanas com seus parentes não humanos,
em O pensamento selvagem encontramos evidências do totemismo como um agente operando
através da diferença para produzir identidades, similitudes e correspondências entre grupos
humanos um ao outro, e em relação a seus animais totêmicos. Em uma passagem específica do
capítulo três, intitulado "Os sistemas de transformações", vemos como tal processo ocorre no que
diz respeito a articulação entre classificações totêmicas e proibições alimentares relativo ao
caráter simbólico e real do totemismo.

Essa subordinação lógica da semelhança ao contraste é bem evidenciada


pelas atitudes complexas que observam alguns povos ditos totêmicos em
relação às partes do corpo dos animais epônimos. Os tucunas do alto dos
Solimões, que têm uma exogamia ‘hipertotêmica’ (os membros do clã do
tucano não podem se casar entre si nem desposar um membro de outro
clã que tenha nome de pássaro etc.), consomem livremente o animal
epônimo mas respeitam e preservam uma parte sagrada, utilizando outras
como enfeites e distintivos. O animal totêmico se decompõe, então, em
parte consumível, parte respeitável e parte emblemática. [...] A pele, as
penas, o bico, os dentes podem ser meus, pois são aquilo pelo que o
animal epônimo e eu diferimos um do outro; essa diferença é assumida
pelo homem a título de emblema e para afirmar a sua relação simbólica
com o animal, ao passo que as partes consumíveis, portanto, assimilável,
são o índice de uma consubstancialidade real, mas que, ao contrário do
que se imagina, a proibição alimentar tem como objetivo negar. [...] trata-
se, entre a cultura e a natureza, de uma troca de similitudes por diferenças
que se situam tanto entre os animais, de um lado, e entre os homens, de
outro, quanto entre os animais e os homens (Lévi-Strauss, 1989, p. 123-
124).

Vemos então, a concepção de uma diferenciação e, por consequência, de uma identidade entre os
grupos humanos e os não humanos. O indivíduo humano reconhece que difere de seu parente
epônimo [3] pelas características: a pele, as penas, o bico, afirmando assim a sua humanidade em
detrimento da natureza animal, porém tais partes sagradas são então assimiladas como
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emblemas, criando assim uma conexão entre o grupo e seu animal totêmico. Percebemos aí que a
identidade de um indivíduo humano ou um grupo, no totemismo, é indissociável dos animais não
humanos. As características naturais encontram uma relação de homologia com as características
sociais através de suas diferenças, para assim produzir uma identidade.

Contudo, tal compatibilidade advinda da diferença não atua somente no campo das relações entre
animais humanos e não humanos, ela se faz presente também no que tange diferentes grupos
sociais, é o que Lévi-Strauss nos mostra na passagem:

É necessário, portanto, que a carne de qualquer animal não seja assimilável


por qualquer grupo de homens. [...] as proibições alimentares não
acompanham sempre as classificações totêmicas e lhe estão logicamente
subordinadas. Assim elas não colocam um problema separado. Se por meio
de proibições alimentares os homens negam uma natureza animal real em
relação a sua humanidade, é porque lhes é necessário assumir os
caracteres simbólicos com o auxílio dos quais eles distinguem os animais
uns dos outros (e lhes fornecem um modelo natural de diferenciação), para
criar diferenças entre si (Lévi-Strauss, 1989, p. 125).

Logo, as características assimiladas de um animal totêmico por um dado grupo social, não existem
para separar o humano do conjunto da vida, mas sim com o intuito de serem usadas como critério
de distinção em relação a um outro grupo social, assumindo caracteres simbólicos. Segundo a
lógica do totemismo, pode-se concluir que “a humanidade só pode segmentar-se em grupos
sociais na medida que se identifica simbolicamente com outras espécies” [4], ou seja, para se
diferenciar entre si os humanos precisam tornar-se simbolicamente animais não humanos. O
pensamento selvagem distribui diferenças em um contínuo de semelhantes, (o animal totêmico é
sempre semelhante e diferente) desta forma o indivíduo ou um grupo se identificam,
parcialmente, com seu parente não humano, a fim de melhor se distinguir de seus parentes
humanos.
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O totemismo foi um grande ponto de ruptura promovido por Lévi-Strauss na antropologia do


século XX, a posição sustentada pelo autor não vê as diferenças entre humanidade e animalidade
como motivos de uma separação absoluta entre natureza e cultura, dando à humanidade uma
ordem totalmente isolada do conjunto vida. Para o totemismo, nem a humanidade nem a não
humanidade representam dados imutáveis, estes grupos ocupam posições relativas
intercambiáveis. Tal é o caráter multidimensional da diferenciação totêmica entre natureza e
cultura. O sistema totêmico conjura, então, relações ao mesmo tempo simbólicas e reais entre
humanos e não humanos, compondo um sistema de formação de mundo em que o real é uma
obra conjunta, entre humanidade e não humanidade, aliança imprescindível entre um grupo ou
um indivíduo humano com uma espécie ou indivíduo natural. A terra é entendida como uma rede
coletiva multiespécie, e não uma criação exclusiva de humanos, um sistema cosmológico de
transformação, mediante trocas simbólicas entre natureza e cultura, abolindo qualquer distinção
entre espécies naturais e grupos sociais.

A consequência de tal figuração é de que, a cada ser (vivo ou inanimado) significado pelo
pensamento selvagem é atribuída a qualidade de “Imago Mundi”, conceito que significa
literalmente imagem do mundo. Esta noção implica que cada entidade atravessada pelo
totemismo tem em si, um microcosmo, como explicitado no comentário de Lévi-Strauss acerca das
possibilidades de significados do cervo:

Não seria menos difícil predizer a função do cervo, cujo corpo é uma
verdadeira imago mundi: seus pelos representam a relva; suas coxas, as
colinas; seus flancos, as planícies; sua espinha, as elevações; seu pescoço,
os vales; sua galhada, toda a rede hidrográfica... (Lévi-Strauss, 1989, p. 75).

Ainda nesta perspectiva cosmológica é importante apontar aquilo que Lévi-Strauss apresenta
como a reciprocidade de perspectivas, um dos atributos do totemismo, que implica no mútuo
espelhamento de homem e mundo, uma faceta a qual impõe ao pensamento selvagem a
humanização dos seres e de suas relações, ao mesmo tempo que os feraliza [5]. No pensamento
selvagem essa transferência não é um rebaixamento a uma sub-humanidade, mas sim, a elevação
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rumo a uma sobre humanidade. Encontramos aí mais um ponto de divergência radical do


pensamento selvagem para com o naturalismo ocidental moderno e sua noção de
desenvolvimento, o qual reconhece uma prioridade absoluta da cultura sobre a natureza.

Logo é possível concluir que na teoria totêmica de Lévi-Strauss, os povos assim chamados de
“primitivos” apresentam uma noção ambígua de natureza, pois ela representa uma pré-cultura ao
mesmo tampo que também é sub-cultura. O conjunto natureza possui um caráter sobrenatural,
ela se encontraria acima da cultura e ao mesmo tempo abaixo dela. Vemos assim o mundo do
conhecimento platônico kantiano como algo transparente, o objeto do conhecer seria apenas
representações, neste sentido, o conhecer seria reduzir a zero o que existe de sujeito no objeto,
ou seja, ao objetivar se produz a dessubjetivação. Já no xamanismo ameríndio, o conhecer é
personificar, encontrar o humano por trás do objeto.

Levando em conta tudo que foi exposto acerca das ideias de Lévi-Strauss sobre o pensamento
selvagem, (que em muitas passagens da sua obra defende tal pensamento como uma filosofia de
mesma importância daquela praticada no ocidente) vemos justificada a afirmação de Deleuze e
Guattari exposta no início deste ensaio: o mundo se tornou mais razoável graças ao estruturalismo
do antropólogo francês. Porém, em seguida, os autores chamam a atenção para o que seria um
desvio na teoria antropológica de Strauss:

Considerando os dois modelos, da série e da estrutura, Lévi-Strauss não se


contenta em beneficiar a segunda com todos os prestígios de uma
classificação verdadeira; ele remete a primeira ao domínio obscuro do
sacrifício, que ele apresenta como ilusório e até destituído de bom senso.
(Deleuze, Guattari, 1997, p. 17).

É importante destacar no fragmento acima os termos “ilusório” e “destituído de bom senso”, pois
é desta forma que o antropólogo enxerga a segunda face do pensamento selvagem em
contraposição ao totemismo, o sacrifício.
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Enquanto o totemismo corresponde a uma verdade objetiva do pensamento selvagem que


repousa sobre um sistema lógico de formas, o sacrifício caracteriza a face falsa inerente a tal
pensamento, representando um sistema físico de forças. Ou seja, o pensamento selvagem, em
Lévi-Strauss, não contém somente o totemismo, há que se considerar também o sacrifício, ambos,
apesar de serem considerados excludentes pelo antropólogo, podem coexistir em grupos como
instituições independentes, conflitantes e até mesmo complementares.

Mas, em que consiste o sacrifício? Diferente do totemismo, que opera com duas séries horizontais
(a natural e a social), o sistema do sacrifício opera através de três séries verticais, seriam elas: o
homem, na base do sistema; a série natural e as relações de contiguidade (tomando aqui o papel
de sacrificado); e no topo se encontraria a divindade (uma extra humanidade), a qual Lévi-Strauss
afirma ser um componente meramente imaginário. A ritualização do sacrifício tem como objetivo,
na visão do antropólogo francês, tomar a natureza como instrumento, em função da ordem
humana para conseguir favores da divindade, ou suprimir a distância entre o operador humano e
deus, para assim divinizar-se. Como explicitado abaixo, em O pensamento selvagem, onde se
destaca o sacrifício como uma busca benefícios apenas ao animal humano, se sobrepondo à
ordem natural:

No sacrifício, a série [...] das espécies naturais desempenha o papel de


intermediário entre dois termos polares, dos quais um é o sacrificador e o
outro a entidade [...] o objetivo do sacrifício é precisamente instaurar uma
relação, que não é de semelhança mas de contiguidade. (Lévi-Strauss,
1989, p.250-251).

Lévi-Strauss identifica então duas diferenças entre o sistema do totemismo e o sistema do


sacrifício. A primeira diz respeito aos elementos ou termos que compõem cada sistema e revelam
a disparidade entre ambos:

se se admite que, nos dois casos, uma afinidade é implícita ou


explicitamente reconhecida entre um homem ou um grupo de homens, de
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um lado, e um animal ou vegetal, de outro (seja a título de epônimo de um


grupo de homens, seja a título de coisa sacrificada que substitui o homem
ou serve de médium ao sacrificador humano), é claro que, no caso do
totemismo, nenhuma outra espécie ou fenômeno natural é substituível ao
epônimo: jamais se pode tomar um animal por outro. Se sou do clã do
urso, não posso pertencer ao da águia, pois que, como vimos, a única
realidade do sistema consiste numa rede de recortes diferenciais entre
termos colocados como descontínuos. No caso do sacrifício é o inverso:
embora coisas distintas sejam muitas vezes destinadas preferencialmente a
certas divindades ou a certos tipos de sacrifício, o princípio fundamental é
o da substituição, na falta da coisa precisa, qualquer outra pode substituí-
la, desde que permaneça a intenção, a única que importa, e ainda que o
próprio zelo possa variar. O sacrifício está, então, situado no reino da
continuidade [...] Entre o sistema do totemismo e o do sacrifício existem,
portanto, duas diferenças fundamentais: o primeiro é um sistema
quantificado, ao passo que o segundo admite uma passagem contínua
entre seus termos; enquanto vítima sacrificial (Lévi-Strauss, 1989, p. 249-
250).

No totemismo nenhum de seus elementos podem ser substituíveis como na superação de um pelo
outro, no sentido em que, por exemplo, a águia jamais poderia substituir o animal totêmico urso
dentro de um grupo cultural, nem mesmo no nível individual. O sistema opera através da
diferença, onde os termos insubstituíveis são relacionados um com o outro. Já o sacrifício tem
como princípio a substituição, o animal ou a planta quando sacrificados podem ser substituídos
simbolicamente por qualquer outra entidade, implicando a destruição da diferença entre os
termos, portanto a destruição da relação. Desta forma, a ideia de afinidade entre o humano e não
humano assumidas pelos dois sistemas variam consideravelmente. No totemismo a afinidade
entre um grupo humano e uma espécie natural se baseia na diferença entre grupos e espécies.
Enquanto no sacrifício a afinidade anula a diferença entre animal humano e animal não humano
em vista de uma contiguidade entre os humanos e os deuses. Neste caso, para Lévi-Strauss se
configura uma relação com a natureza aonde o termo natural é suprimido pelo termo cultural,
para que esse venha se fundir (segundo o antropólogo de uma forma totalmente “imaginária”)
com um terceiro termo, a entidade.
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Contudo, Lévi-Strauss afirma ainda uma outra diferença entre totemismo e sacrifício, ideia a qual
conduz a obra O pensamento selvagem para uma “inflexão domesticante”. Trata-se da afirmação
enfática de que existe uma diferença de nível de valor epistêmico entre os dois sistemas, o que
justifica uma falta de “bom senso” dos povos assim chamados de “primitivos”, conforme abaixo:

As classificações totêmicas têm duplo fundamento objetivo: as espécies


naturais verdadeiramente existem e existem de fato sob a forma de série
descontínua; por seu lado, os segmentos sociais também existem. O
totemismo, ou o que se pretende como tal, limita-se a conceber uma
homologia de estrutura entre duas séries, hipótese perfeitamente legitima,
pois os segmentos sociais estão instituídos, e cada sociedade tem o poder
de tornar hipótese plausível, nela conformando suas regras e
representações. Ao contrário, o sistema do sacrifício faz intervir um termo
não-existente: a divindade, e adota uma concepção objetivamente falsa da
série natural, já vimos que ele a representa como contínua. Para exprimir a
diferença entre o totemismo e o sacrifício, não basta, portanto, dizer que o
primeiro é um sistema de referências e o segundo um sistema de
operações; que um elabora um esquema de interpretação enquanto o
outro propõem (ou acredita propor) uma técnica para obter certos
resultados: um é verdadeiro, outro falso. Mais exatamente, os sistemas
classificatórios estão situados no nível da língua: são códigos mais ou
menos bem elaborados mas sempre visando exprimir sentidos, ao passo
que o sistema do sacrifício representa um discurso específico e desprovido
de bom senso, ainda que seja proferido frequentemente. (Lévi-Strauss,
1989, p. 253-254)

É notável neste trecho o fato de Lévi-Strauss não se limitar a dizer que o sacrifício apenas difere do
totemismo devido a uma incompatibilidade de sistemas, ele precisa reiterar que um é real e o
outro não, afirma que o sacrifício opera e acredita em um “termo não-existente” e que este seria
“desprovido de bom senso”. O totemismo tem fundamento real, embora simbólico; o sacrifício,
por seu turno, carece de tal fundamento e por isso é condenado à condição de “imaginário”. Neste
ponto, o autor parece destoar do que havia escrito anteriormente acerca da reciprocidade de
perspectivas própria do pensamento selvagem, surge aqui uma aparente contradição com tal ideia
lançada por ele próprio no mesmo capítulo, sobre a “humanização das leis naturais e a [...]
naturalização das ações humanas” (Lévi-Strauss, 1989, p. 247) que, segundo o próprio
antropólogo é o que caracteriza o perspectivismo selvagem.
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Após tecer as críticas ao sacrifício através do objetivismo civilizado, Lévi-Strauss parece não
acreditar no valor de verdade do mito, afirmando que este só se configura como verdade num
sistema de transformação de mundo, o que se sucede é a afirmação de que “não existe totem
real” (Lévi-Strauss, 1989, p. 265) esvaziando assim o signo selvagem de qualquer conteúdo, para
classificá-lo meramente como uma posição formal em um sistema lógico, a partir de tal
comentário o totemismo deixaria de ser uma relação de socialidade entre natureza e cultura, mas
sim um simples modo de representação de mudo. O que representa, em certa medida, a negação
da orientação metafisica do pensamento selvagem pelo antropólogo francês no que diz respeito
ao seu livro publicado em 1962. Contudo é preciso ressaltar que não se pretende aqui negar a
orientação cosmológica de Lévi-Strauss, tendo em vista sua perspectiva potencializadora acerca do
totemismo e dos animais não humanos, com notável destaque no capítulo "História e dialética".
Além disso a obra O pensamento selvagem precede o conjunto de textos conhecidos como as
Mitológicas, aonde o pensador irá se debruçar sobre os mitos indígenas.

Todavia, as considerações do capítulo 8 de O pensamento selvagem insinuam um traço


etnocêntrico na construção de Lévi-Strauss. Seria possível estipular que sua obra, após apresentar
uma filosofia capaz de conciliar os campos: natureza e cultura, acaba não levando a cabo a ruptura
começada, de modo que o abismo entre humanidade e não humanidade sobrevive, ainda mais,
deixa entrever uma espécie de domesticação do totemismo através da antropologia, posição que
manifesta Eduardo Viveiros de Castro no escrito A inconstância da alma selvagem: “O pensamento
selvagem não cabe todo em O pensamento selvagem” (Castro, 2002, p. 19), na mesma obra outra
passagem ilustra magistralmente a reciprocidade de perspectivas que Lévi-Strauss tentou
sustentar seus textos:

A situação sobrenatural típica no mundo ameríndio é o encontro, na


floresta, entre humano - sempre sozinho – e um ser que, visto
primeiramente como um mero animal ou uma pessoa, revela-se como um
espírito ou um morto, e fala com o homem [...] Esses encontros costumam
ser letais para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividade não-
humana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser da mesma
espécie que o locutor: morto, espírito ou animal. Quem responde a um tu
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dito por um não-humano aceita a condição de ser sua ‘segunda pessoa’, e


ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como não-humano.
(Apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes
de transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas
agências extra-humanas sem perder sua própria condição de sujeito).
(Castro, 2002, p. 397).

Aqui vemos o totemismo e sua reciprocidade de perspectivas além do julgamento epistêmico, pois
“As aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista
dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com outrem” (Castro, 2002, p.
397). No encontro sobrenatural as perspectivas são trocadas, aquele que se entendia como
humano se descobre não humano, no ponto em que se defronta com a face humana do não-
humano. Existe algo de sobrenatural no pensamento selvagem, algo que Lévi-Strauss não
conseguiu exprimir ou que lhe escapou de alguma maneira.

Nas obras Xamanismo transversal e Metafísicas canibais, Eduardo Viveiros De Castro opera uma
retomada crítica de Lévi-Strauss, no que diz respeito a sua distinção entre totemismo e sacrifício.
Nelas o antropólogo brasileiro propõe uma terceira forma de simbolismo que se configura como
transformacional, representada pelo perspectivismo cósmico ameríndio, podendo ser entendida
como uma junção entre totemismo e sacrifício, uma radicalização da ideia de reciprocidade de
perspectivas inicialmente apresentada pelo antropólogo francês. No livro Metafísicas canibais
Viveiros De Castro explicita o perspectivismo:

O que o perspectivismo afirma, enfim, não é tanto a ideia de que os


animais são ‘no fundo’ semelhantes aos humanos, mas sim a de que eles,
como os humanos, são outra coisa ‘no fundo’: eles têm, em outras
palavras, um ‘fundo’, um ‘outro lado’; são diferentes de si mesmos. Nem
animismo – que afirmaria uma semelhança substancial ou analógica entre
animais e humanos –, nem totemismo – que afirmaria uma semelhança
formal ou homológica entre diferenças intra-humanas e diferenças
interespecíficas –, o perspectivismo afirma uma diferença intensiva que
traz a diferença humano/ não-humano para o interior de cada existente
(Castro, 2009, p. 61).
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Neste contexto entendemos o que representa a terceira forma de simbolismo, o perspectivismo


traz consigo a diferença entre humano e não humano, ou entre natureza e cultura, em cada uma
de suas séries e elementos. Isso implica uma mudança de estatuto do pensamento selvagem, de
epistemologia ou forma cultural, defendida por Lévi-Strauss, para cosmologia, pois nesta leitura de
Viveiros de Castro tal pensamento não possui somente sua própria cultura, mas também sua
própria natureza, a qual possibilita uma mitologia, negada anteriormente por Lévi-Strauss no
capítulo 8 de O pensamento selvagem. As espécies naturais aparecem no perspectivismo como
sobrenaturais e os humanos como não humanos e vice-versa, conforme apresentado na passagem
anterior do livro A inconstância da alma selvagem.

Tal visão cosmológica de mundo demasiada rica de significados é encontrada também nas obras
de Carlos Castañeda, podendo ser vislumbrada no conceito de “perder a forma humana”, uma
ideia que compreende muito bem a reciprocidade de perspectivas, quando os elementos naturais
se misturam com o, assim dito por Castañeda, “reino dos feiticeiros”, ou seja, o campo mitológico.
Ali o conjunto natural se funde ao conjunto cultural na cosmologia do nogualismo, percebido em
passagens como esta extraída do livro Viagem a ixtlán:

Ontem o mundo tornou-se como os feiticeiros lhe dizem que é – continuou


– Nesse mundo, os coiotes falam, assim como os veados, como já lhe disse
uma vez, e as cascáveis e árvores e todos os outros seres vivos. [...] Dom
Juan explicou que o coiote ia ser meu companheiro para toda vida e que,
no mundo dos feiticeiros, ter um amigo coiote não era uma coisa desejável.
Disse que teria sido ideal se eu tivesse conversado com uma cascavel, pois
eram companheiras estupendas.
- Se eu fosse você – acrescentou- nunca confiaria num coiote. Mas você é
diferente e pode até vir a ser um feiticeiro coiote.
- O que é um feiticeiro coiote?
- Um que tira uma porção de coisas de seus irmãos coiotes (Castañeda,
1972, p. 253)

Na tentativa de encerrar este artigo, tomo a liberdade de me servir de outra passagem de Viagem
a Ixtlán, na qual vemos semelhanças entre o encontro na floresta com o sobrenatural,
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apresentado por Viveiros de Castro, e a experiência extra-humana de Dom Genaro, um dos


mestres de Castañeda:

- O que aconteceu quando agarrou seu aliado, Dom Genaro? – perguntei.


- Foi um choque violento – disse ele, depois de hesitar um momento.
Parecia estar concatenando seus pensamentos.
‘Nunca imaginei que fosse assim’, continuou. ‘Era uma coisa, uma coisa,
uma coisa ... como nada que eu possa dizer. Depois que o aguarei,
começamos a girar. O aliado me fez girar, mas eu não o larguei.
Rodopiamos pelo ar com tanta força que eu nem via mais nada. Tudo
estava nublado. O rodopio continuou por muito tempo. De repente, senti
que estava de pé no chão outra vez. Olhei para mim. O aliado não me
matara. Eu estava inteiro. Eu era eu! Então, vi que obtivera êxito. Afinal, eu
tinha um aliado. Saltei de prazer. Que sensação! Que sensação foi aquela!
‘Depois olhei em volta, para ver onde me encontrava. O lugar era
desconhecido. Achei que o aliado devia ter me carregado pelo ar e me
atirado em algum lugar muito longe de onde começamos a rodopiar.
Orientei-me. Achei que minha casa devia estar a leste, por isso comecei a
caminhar naquela direção. Ainda era cedo. O encontro com o aliado não
tinha durado muito tempo. Logo encontrei uma trilha e então vi um grupo
de homens e mulheres vindo em minha direção. Eram índios. Achei que
eram índios mazatecas. Rodearam-me e perguntaram param onde eu ia.
‘Vou para Ixtlán’, disse eu. ‘Está perdido?’, perguntou alguém. ‘Estou’,
respondi. ‘Por quê?’, indagou o mesmo índio. ‘Porque Ixtlán não fica nessa
direção. Ixtlán fica na direção oposta. Nós também vamos para lá’, disse
outra pessoa. ‘Venha conosco!’, disseram todos. ‘Temos comida!’’
Dom Genaro parou de falar e olhou para mim como se estivesse esperando
que fizesse alguma pergunta.
- E então o que aconteceu? – perguntei. – Foi com eles?
- Não fui não – respondeu. – Porque eles não eram reais. Vi logo, no
minuto em que chegaram perto de mim. Havia alguma coisa em suas
vozes, em sua simpatia, que os denunciou, especialmente quando me
convidaram para ir com eles. Por isso, eu fugi. Eles me chamaram e
pediram que eu voltasse. Os chamados deles me tentavam, mas continuei
fugindo.
- Quem eram? – perguntei.
- Gente – respondeu Dom Genaro, numa voz cortante. – Só que não eram
reais.
- Eram como aparições – explicou Dom Juan. – Como fantasmas.
[...] – Disse que não eram reais. Depois de meu encontro com o aliado,
nada mais era real (Castañeda, 1972, p. 258-262).
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Bibliografia

CASTAÑEDA, C. Viagem a Ixtlán. São Paulo: Lírculo do livro, s/d.

CASTRO, E, V. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.

CASTRO, E, V. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu, 2018.

DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 4. São Paulo: Editora 34,
1997.

LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus, 1989.

LÉVI-STRAUSS, C. Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1975.

Recebido em: 20/03/2021

Aceito em: 15/04/2021


Revista ClimaCom, Coexistências e Cocriações | Pesquisa – Ensaio | ano 8, no. 20, 2021

[1] Graduando da Universidade Federal do Paraná. E-mail: enzoguido20@gmail.com


[2] Tal ideia do totemismo como uma possível anti-metafísica moderna foi expressa pelo professor Marco Antonio
Valentin em suas aulas de Teoria das Ciências Humanas durante o período especial de 2020-2021 UFPR.
[3] Epônimo entendido como o animal que dá nome ao totem.
[4] Referência extraída da aula de Teoria das Ciências Humanas ministrada por Valentim, M. A.
[5] Feralizar se entende aqui como aquilo que escapa ao controle humano.

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